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Perda visual no pós-operatório de laminectomia cervical em pronação

Resumo

A perda visual pós-operatória é uma complicação rara e devastadora. A incidência estimada é de 0,01-1% após cirurgia não oftalmológica. Há relatos de sua ocorrência após cirurgias da coluna, cardíaca e de cabeça e pescoço. Relatamos o caso de um paciente submetido à laminectomia cervical em pronação que se queixou de perda de visão em um dos olhos no pós-operatório. O paciente foi profundamente investigado após a perda visual. O caso foi diagnosticado como oclusão da artéria central da retina (CRAO) do olho esquerdo. Aqui consideramos os potenciais fatores etiológicos que causam essa perda unilateral da visão e tentamos sugerir estratégias para reduzir a incidência dessa complicação em cirurgia de coluna vertebral.

PALAVRAS-CHAVE
Cirurgia da coluna; Perda visual pós-operatória; Posição prona; Oclusão da artéria central da retina

Abstract

Postoperative visual loss is a rare and devastating complication. The estimated incidence is 0.01-1% after non ocular surgery. It has been reported after spine, cardiac and head and neck surgeries. We report a patient who was operated for cervical laminectomy in prone position and complained of loss of vision in one eye postoperatively. He was thoroughly investigated after visual loss. The case was diagnosed as central retinal artery occlusion (CRAO) of the left eye. Here we consider the potential etiological factors causing this unilateral loss of vision and try to suggest strategies to reduce the incidence of the complication in spinal surgery.

KEYWORDS
Spine surgery; Postoperative visual loss; Prone position; Central retinal artery occlusion

Introdução

A perda visual pós-operatória é uma complicação inesperada e rara, com incidência estimada de 0,01-1% após cirurgia não oftálmica.11 Roth S, Thisted RA, Erickson JP, et al. Eye injuries after non-ocular surgery: a study of 60,965 anaesthetics from 1988 to 1992. Anesthesiology. 1996;85:1020-7.

2 Warner ME, Warner MA, Garrity JA, et al. The frequency of perioperative vision loss. Anesth Analg. 2001;93:1417-21.

3 Williams EL, Hart WM, Tempelhoff R. Postoperative ischemic optic neuropathy. Anesth Analg. 1995;80:1018-29.
-44 Kumar N, Jivan S, Topping N, et al. Blindness and rectus muscle damage following spinal surgery. Am J Ophthalmol. 2004;138:889-91. Uma revisão da literatura revela tais casos como isolados. Patil et al.55 Patil CG, Lad EM, Lad SP, et al. Visual Loss after spine surgery: a population based study. Spine. 2008;33:1491-6. descobriram uma taxa global de 0,094% nas altas de cirurgia da coluna vertebral no banco de dados Nationwide Inpatient Sample (NIS). As causas mais comuns de perda visual pós-operatória são neuropatia óptica isquêmica, trombose da artéria central da retina e cegueira cortical. Dentre essas, a neuropatia óptica isquêmica é observada com frequência como causa de perda visual pós-operatória após anestesia geral.11 Roth S, Thisted RA, Erickson JP, et al. Eye injuries after non-ocular surgery: a study of 60,965 anaesthetics from 1988 to 1992. Anesthesiology. 1996;85:1020-7. A segunda causa mais frequente de perda visual pós-operatória em pacientes operados em pronação para cirurgia da coluna é a oclusão da artéria central da retina (OACR). Existem alguns fatores de risco pré-operatórios reconhecidos que incluem diabete melito, hipertensão, tabagismo, insuficiência renal, glaucoma de ângulo estreito, policitemia, doença vascular aterosclerótica e distúrbios vasculares do colágeno.66 Roth S, Barach P. Postoperative visual loss: still no answers yet. Anesthesiology. 2001;95:575-7.

Relato de caso

Um paciente do sexo masculino de 56 anos (170 cm, 88 kg, IMC 30,45 kg.m-2) deu entrada no Departamento de Neurocirurgia de nosso hospital com queixa de dor no ombro esquerdo que irradiava para o braço ipsilateral havia dois anos. Queixou-se também de sensação de formigamento no braço esquerdo e dor no braço direito durante os últimos dois anos. A história do paciente incluía diabete melito desde os quatro anos. Sua glicemia estava em desequilíbrio porque não tomara o agente hipoglicêmico oral nos últimos 15 dias. O paciente foi colocado em uma dieta para diabéticos e o medicamento antidiabético foi iniciado. O paciente tinha história de tabagismo desde os dez anos e não apresentava outra doença significativa.

Ao exame físico identificamos leve fraqueza dos membros superiores mais do lado esquerdo do que do direito. O componente sensorial estava intacto. Não havia restrição de movimento nos membros superiores. Uma ressonância magnética (RM) da coluna cervical foi feita e revelou espondilose cervical avançada com compressão da raiz nervosa degenerativa do disco de C3-4 a C6-7 e estenose do canal central secundário. Os exames pré-operatórios estavam todos dentro do limite normal, exceto a glicemia, que era de 216 mg.dL-1. A pressão arterial era de 126/78 mmHg e a frequência cardíaca de 82 bpm.

Considerando o envolvimento neurológico, o cirurgião decidiu fazer uma laminectomia endoscópica no nível de C5-6 e C6-7. A anestesia geral foi planejada para o paciente. Duas cânulas intravenosas periféricas de calibre 16G foram colocadas em ambas as mãos. A anestesia foi induzida com infusão intravenosa (IV) de midazolam (1 mg), propofol (150 mg) e um bolus de fentanil (150 mcg). A intubação traqueal com tubo endotraqueal reforçado de 8,5 mm foi facilitada com infusão IV de 6 mg de vecurônio. O cateter urinário foi inserido e o paciente foi posicionado em pronação. Os olhos do paciente foram protegidos com pomada de cloranfenicol antes de ser cobertos com compressas. O paciente foi subsequentemente colocado na mesa cirúrgica em pronação. O pescoço foi mantido na linha média com um suporte de cabeça em formato de ferradura com leve flexão de modo que suas costas permanecessem em posição neutra com a cabeça ligeiramente dependente. A anestesia foi mantida com isoflurano (0,8-1,4%). A duração total da cirurgia foi de aproximadamente 170 minutos (min) e 70 min adicionais foram necessários para a indução e cessação da anestesia. A pressão sanguínea sistólica do paciente foi mantida entre 90 e 120 mm Hg ao longo do procedimento. Houve 400 mL de perda sanguínea durante a cirurgia, que foram reposicionados por 1.500 mL de soro fisiológico normal e mantiveram a pressão arterial em nível aceitável.

No fim da cirurgia, o paciente foi reposicionado em supinação e transportado para a Unidade de Terapia Intensiva, com o tubo endotraqueal no local para ventilação eletiva. Havia um leve inchaço facial e congestão conjuntival bilateral. Durante a ventilação eletiva noturna, manteve seus parâmetros vitais. Após a reavaliação, foi extubado de manhã. No primeiro dia de pós-operatório após a extubação, reclamou de visão reduzida no olho esquerdo. Um exame imediato foi feito por um oftalmologista.

Ao exame, constatou-se redução da acuidade visual à percepção da luz no olho esquerdo e normalidade no olho direito (6/6). O olho esquerdo apresentava inchaço palpebral, leve proptose e congestionamento conjuntival. O movimento extraocular mostrou adução restrita e também na elevação e depressão do olhar lateral esquerdo. A pressão intraocular de ambos os olhos estava normal. A pupila esquerda estava moderadamente dilatada com defeito pupilar aferente relativo (DPAR). O exame de fundo revelou palidez com edema da retina central e reflexo foveal opaco (fig. 1). As artérias retinianas eram finas com razão AV alterada. O exame de fundo do olho direito estava normal (fig. 2). O paciente recebeu prescrição de metilprednisolona IV (1 g por dia por três dias). Apesar do tratamento, a visão do paciente deteriorou para nenhuma percepção da luz. No quinto dia, uma RM revelou normalidade do olho direito, mas a órbita esquerda apresentava edema difuso do ventre do músculo reto mediano. O caso foi diagnosticado com oclusão da artéria central da retina (OACR) do olho esquerdo.

Figura 1
Imagem do fundo do olho esquerdo mostra palidez retiniana com artérias atenuadas.

Figura 2
Imagem normal do fundo do olho direito.

Discussão

A perda de visão após cirurgia da coluna é uma complicação rara, mas desastrosa. As causas mais prováveis de perda visual no intraoperatório incluem o posicionamento do paciente, perda de sangue, hipotensão intraoperatória, longa duração da cirurgia e hidratação excessiva ou uma combinação desses fatores. As causas comumente relatadas de perda visual pós-operatória são OACR ou oclusão da veia, neuropatia óptica isquêmica e isquemia cerebral.77 Myers MA, Hamilton SR, Bogosian AJ, et al. Visual loss as a complication of spine surgery. A review of 37 cases. Spine. 1997;22:1325-9.,88 Stevens WR, Glazer PA, Kelley SD, et al. Ophthalmic complications after spinal surgery. Spine. 1997;12:1319-24. Diabete melito, tabagismo, hipertensão crônica, doença vascular e coagulopatia são os potenciais fatores de risco para essa complicação.66 Roth S, Barach P. Postoperative visual loss: still no answers yet. Anesthesiology. 2001;95:575-7. O papel desses fatores na patogênese da perda visual em cirurgia da coluna ainda permanece obscuro. Sabíamos que nosso paciente era fumante e também diabético.

A compressão externa sobre a órbita, a hemorragia retrobulbar ou o espaço orbital muito pequeno também podem afetar adversamente a circulação retiniana e levar à OACR e à isquemia retiniana. Leibovitch et al.99 Leibovitch I, Casson R, Laforest C, et al. Ischemic orbital compartment syndrome as a complication of spinal surgery in the prone position. Ophthalmology. 2000;113:105-8., em seu relato de caso, mencionaram a síndrome de compartimento orbital isquêmico em pronação. Considerou-se que no paciente em pronação, a posição de Trendelenberg reversa a 10° normalizou a pressão intraocular.1010 Ozcan MS, Praetel C, Bhatti MT, et al. The effect of body inclination during prone positioning on intraocular pressure in awake volunteers: a comparison of two operating tables. Anesth Analg. 2004;99:1152-8. Nosso paciente tinha compleição robusta e era obeso (IMC 30,45 kg.m-2); portanto, o espaço orbital já poderia estar comprometido devido à gordura orbital abundante e o menor agravo de uma pronação prolongada pode ter precipitado uma isquemia retiniana devido à oclusão da artéria central da retina. Além disso, o diabete é conhecido por causar alterações vasculares que poderiam precipitar o evento em nosso caso. Jampol et al.1111 Jampol LM, Goldbaum M, Rosenberg M, et al. Ischemia of ciliary arterial circulation from ocular compression. Arch Ophthalmol. 1975;93:1311-7. também relataram isquemia da circulação arterial ciliar devido à compressão ocular. A embolia retiniana é outra causa em potencial para a oclusão da artéria, mas isso geralmente ocorre após uma cirurgia cardíaca.

Em revisão dos casos publicados de OACR após cirurgia da coluna, Kumar et al.1212 Kumar N, Jivan S, Glenny RW, et al. Blindness and rectus muscle damage following spine surgery. Am J Ophthalmol. 2004;138:889-91. descreveram sinais e sintomas que incluíam a perda unilateral da visão; ausência de percepção da luz; defeito pupilar aferente; edema periorbital, pálpebral ou ambos; quimose; proptose; ptose; parestesia da região supraorbitária; córnea nebulosa ou turva; perda de movimentos oculares; equimoses ou outro trauma perto do olho. Proptose e inchaço dos músculos extraoculares foram observados em alguns casos em tomografia computadorizada (TC) orbital precoce ou ressonância magnética (RM). Edema macular ou retiniano, mancha vermelha ou vasos retinianos atenuados eram típicos. A apresentação clínica de nosso paciente é similar à do caso relatado por Kumar et al.1212 Kumar N, Jivan S, Glenny RW, et al. Blindness and rectus muscle damage following spine surgery. Am J Ophthalmol. 2004;138:889-91.

Neuropatia óptica isquêmica (NOI) foi relatada em uma grande variedade de procedimentos cirúrgicos, como cirurgia cardiotorácica,1313 Tice DA. Ischemic optic neuropathy and cardiac surgery. Ann Thorac Surg. 1987;44:677. fusão instrumentada da coluna vertebral,1414 Tetzlaff JE, Bell JR, Kosmorsky G, et al. Ischemic optic neuropathy after spinal fusion. Can J Anaesth. 1998;45:63-6. cirurgias de cabeça e pescoço,1515 Marks SC, Jaquers DA, Hirata RM, et al. Blindness following radical neck dissection. Head Neck. 1990;12:342-5. cirurgias nasais e sinusais.1616 Maniglia AJ. Fatal and major complication secondary to nasal and sinus surgery. Laryngoscope. 1989;99:276-83. A neuropatia óptica isquêmica anterior tipicamente aparece como edema de disco óptico e hemorragia peripapilar e ocorre devido ao fluxo sanguíneo anormal do nervo óptico resultante de hipotensão, anemia ou embolia. O posicionamento prolongado em pronação também aumenta a pressão intraocular e causa glaucoma agudo (fechamento angular). Descobriu-se que o aumento da pressão intraocular (PIO) diminui significativamente o fluxo sanguíneo retiniano e coroideano e danifica as células ganglionares da retina. Porém, nessa condição, os olhos ficam doloridos, vermelhos e com edema corneano. A condição é bilateral e acompanhada por cefaleia, náusea e vômito. A visão pode ser parcialmente recuperada nessas duas condições com o uso de dose elevada de esteroides e uso imediato de fármacos para reduzir a PIO. Em nosso paciente, a pressão arterial foi mantida durante toda a operação e a perda de sangue também não foi significativamente alta. A perda visual foi indolor e unilateral. Infelizmente, nosso paciente não apresentava características de NOI ou glaucoma, mas apresentou quadro claro de OACR sem recuperação da visão.

Podemos tentar algumas estratégias de tratamento em casos de OACR, como a massagem ocular para diminuir a pressão intraocular e melhorar o fluxo sanguíneo nas artérias ou deslocar qualquer êmbolo, a inalação de CO2 a 5% em oxigênio para aumentar a dilatação das artérias e melhorar a oferta de O2 e a administração de acetazolamida intravenosa para aumentar o fluxo sanguíneo da retina. Todas essas tentativas só podem ser benéficas se forem executadas dentro de 60-100 min da ocorrência de OACR; caso contrário, o dano permanente resultará. Hayreh e Weingast descobriram que o dano retiniano irreversível ocorreu após 100 min de isquemia em estudos nos quais ocluíram cirurgicamente a artéria central da retina.

Conclusão

A redução do fluxo sanguíneo ocular é possível por inúmeros fatores que, na presença de fator de risco, podem cumulativamente levar à perda visual pós-operatória. Os pacientes com fatores de risco pré-operatórios (hipertensão, diabete, tabagismo, ateroscelose, coagulopatia) devem ser submetidos a exame oftalmológico pré-operatório. Os pacientes e parentes também devem ser informados com antecedência sobre o risco imprevisível, mas raro, de perda visual perioperatória. Sempre que possível, os pacientes de alto risco devem ser posicionados com o nível da cabeça um pouco mais alto do que o do coração. Além disso, a cabeça deve ser mantida em uma posição neutra para frente (isto é, posição de Trendelenberg reversa a 10° na linha média, quando possível). Hipotensão, anemia e hidratação excessiva devem ser evitadas no perioperatório. Um exame oftalmológico imediato deve ser feito para essa complicação incomum.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2016
  • Aceito
    25 Nov 2016
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