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O papel do ultrassom point-of-care e questões relacionadas à ventilação unipulmonar em neonatos

Lemos com interesse o relato de caso publicado por Rodrigues et al.11 Rodrigues A, Alves P, Hipólito C, et al. Will ultrasound replace the stethoscope? A case report on neonatal one-lung ventilation. Braz J Anesthesiol. 2019;69:514-6. descrevendo o uso de ventilação monopulmonar em neonato submetido a lobectomia superior esquerda. Os autores merecem elogios pela conduta clínica adotada e, especificamente, pelo emprego do ultrassom à beira leito (POCUS, do inglês Point of Care Ultrasound) para confirmar o isolamento pulmonar. De fato, em adultos, o POCUS revelou maior precisão (95%) quando comparado à ausculta (62%) no diagnóstico diferencial entre a intubação traqueal e brônquica.22 Ramsingh D, Frank E, Haughton R, et al. Auscultation versus point-of-care ultrasound to etermine endotracheal versus bronchial intubation. Anesthesiology. 2016;124:1012-20. Gostaríamos aqui brevemente de complementar alguns sinais que caracterizam, e por assim dizer conferem a “assinatura” à imagem ultrassonográfica pulmonar, além de comentar alguns desafios que são associados à técnica descrita pelos autores.

O ultrassom de pulmão se baseia principalmente em artefatos:

  1. “Linhas A”: artefatos formando linhas horizontais que se repetem a partir da linha pleural até o final da tela e a intervalos equidistantes (p. ex., distância entre as linhas cutânea e pleural = distância linha pleural e a primeira linha A, e assim por diante). O “Padrão linha A” é encontrado em pulmões normais e/ou em patologias não intersticiais (p. ex., pneumotórax, DPOC/exacerbação de asma, embolia pulmonar);

  2. “Linhas B”: artefatos formando linhas verticais geradas pela presença de líquido que se originam da linha pleural e se dirigem até a base da tela. Quanto maior a quantidade de líquido, maior/mais numerosas serão as linhas B. O “Padrão linhas B” é encontrado em patologias intersticiais (p. ex., edema pulmonar, SDRA, pneumonia/pneumonite);

  3. Deslizamento pulmonar (Lung-sliding): brilho/cintilância da linha pleural que se movimenta lateralmente de forma sincronizada com a inspiração/expiração. A presença do deslizamento pulmonar confirma aposição das pleuras visceral e parietal, portanto, elimina a hipótese de pneumotórax no local examinado do tórax. De forma semelhante, e como descrito pelos autores, o sinal da praia (seashore) e do código de barra (barcode) refletem, respectivamente, a presença ou ausência do deslizamento pulmonar durante exame no modo M. Finalmente, o pulso pulmonar (lung-pulse) também confirma aposição das pleuras (similar ao deslizamento pulmonar), assim excluindo a hipótese de pneumotórax.

No seu relato, os autores afirmam “Em um pulmão colapsado, a linha pleural se movimenta com os batimentos cardíacos, originando o sinal de pulso pulmonar”. De fato, o pulso pulmonar pode estar presente ou não dependendo da causa do colapso pulmonar. No pneumotórax, por exemplo, os sinais de deslizamento e pulso pulmonar estão ausentes, e outras características (padrão linha A + linhas B ausentes + ponto pulmonar) confirmam o diagnóstico. Por outro lado, e como referido anteriormente, a presença do pulso pulmonar confirma aposição das pleuras, assim eliminando a hipótese de pneumotórax.

Finalmente, respeitosamente discordamos que Tubo Endotraqueal (TET) de 3 mm não possa ser acoplado a Bloqueador Brônquico (BB). O uso de Fogarty 3 Fr externamente à luz do TET ou BB Arndt 5 Fr foi bem descrito33 Ho AMH, Karmakar MK, Critchley LAH, et al. Placing the tip of the endotracheal tube at the carina and passing the endobronchial blocker through the Murphy eye may reduce the risk of blocker retrograde dislodgement during one-lung anaesthesia in small children. Br J Anaesth. 2008;101:690-3. e significaria colocá-lo no brônquio principal esquerdo, nesse caso. Além disso, embora os autores tivessem conseguido evitar a oclusão do orifício do lobo superior direito empregando o TET, o que aconteceria se o orifício do lobo superior direito estivesse muito próximo a ou acima da carina? Nesse caso, acreditamos que o uso de BB no brônquio principal esquerdo seria uma escolha mais adequada.

Outro ponto é se a técnica descrita é aplicável no caso de isolamento de pulmão direito. Na maioria dos casos, provavelmente é, mas existem certas preocupações. A introdução do TET no brônquio principal esquerdo menor (comparado ao direito) (a razão entre os diâmetros do brônquio principal esquerdo e traqueia é de aproximadamente 0,65-0,7 em adultos), defendido pelos autores, ocasionaria o risco de pressão excessiva na mucosa, potencialmente resultando em isquemia, edema, e/ou mesmo formação de granuloma. Mesmo um curto período de intubação (com TET 3 mm) do brônquio principal esquerdo resultou em traqueomalácia com subsequente colapso do brônquio principal esquerdo de neonatos prematuros.44 Ho AMH, Winthrop A, Jones EF, et al. Severe pediatric bronchomalacia. Anesthesiology. 2016;124:1395. Diferentemente do emprego da ventilação monopulmonar em adultos com doença pulmonar crônica, durante o uso da ventilação monopulmonar em pediatria, vários períodos de alternância entre ventilação monopulmonar e com os dois pulmões podem ser necessários para a manutenção de oxigenação adequada. Daí, uma potencial desvantagem (não verificada) da intubação brônquica seletiva com TET de lúmen único, em contraposição ao uso de BB, é a necessidade de deslocar o TET para dentro e fora do brônquio principal. Devido à condição de exíguo espaço de trabalho representada por um paciente de pequena dimensão em posição lateral, a maioria dos anestesiologistas provavelmente julgará que o reposicionamento do TET (o que pode exigir repetidas manobras para fixar/soltar o TET) e a reconfirmação da correta intubação seletiva brônquica pode ser mais trabalhosa/desafiadora do que simplesmente desinflar/reinflar o balão brônquico (especialmente no lado esquerdo). Assim, simplesmente avançar o TET no brônquio principal indicado para cirurgia que dure algumas poucas horas é uma técnica simples que deve ser tentada, especialmente pelos profissionais que não se sintam à vontade com o uso de bloqueador brônquico.

  • Suporte financeiro
    Recursos do departamento e instituição. Não houve necessidade de financiamento externo para o presente trabalho.

References

  • 1
    Rodrigues A, Alves P, Hipólito C, et al. Will ultrasound replace the stethoscope? A case report on neonatal one-lung ventilation. Braz J Anesthesiol. 2019;69:514-6.
  • 2
    Ramsingh D, Frank E, Haughton R, et al. Auscultation versus point-of-care ultrasound to etermine endotracheal versus bronchial intubation. Anesthesiology. 2016;124:1012-20.
  • 3
    Ho AMH, Karmakar MK, Critchley LAH, et al. Placing the tip of the endotracheal tube at the carina and passing the endobronchial blocker through the Murphy eye may reduce the risk of blocker retrograde dislodgement during one-lung anaesthesia in small children. Br J Anaesth. 2008;101:690-3.
  • 4
    Ho AMH, Winthrop A, Jones EF, et al. Severe pediatric bronchomalacia. Anesthesiology. 2016;124:1395.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Jun 2020
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