Acessibilidade / Reportar erro

Anestesia em paciente obstétrica portadora de anemia falciforme e traço talassêmico após plasmaféresis: relato de caso

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A plasmaféresis é a técnica de tratamento de escolha para pacientes com anemia hemolítica grave. Uma de suas conseqüências é a depleção de colinesterase plasmática, o que interfere na metabolização de alguns bloqueadores neuromusculares de uso corrente na prática anestesiológica. RELATO DO CASO: Paciente com 26 anos, estado físico ASA IV, gestação de 30 semanas e 3 dias, portadora de anemia falciforme, traço talassêmico e alo-imunização para antígenos de alta freqüência. Apresentou crise de falcização, sendo transfundida com derivado sangüíneo incompatível. Evoluiu com hemólise maciça, sendo admitida com hemoglobina de 3 g/dL e hematócrito de 10%, icterícia intensa, taquicardia, apatia e descoramento. Na avaliação hematológica concluiu-se ser situação de inexistência de sangue compatível para transfusão. Foi tratada com corticoterapia, imunoglobulinas e plasmaféresis. No segundo dia de internação, evoluiu com insuficiência renal aguda e edema pulmonar agudo, piora do estado geral e instabilidade hemodinâmica. Indicada a resolução da gestação em decorrência do quadro clínico da paciente e do sofrimento fetal agudo que se sobrepôs. A paciente foi admitida na sala de operações consciente, dispnéica, pálida, ictérica, SpO2 de 91% em ar ambiente, freqüência cardíaca de 110 bpm e pressão arterial de 110 x 70 mmHg, em uso de dopamina (1 µg.kg-1.min-1) e dobutamina (10 µg.kg-1.min-1). Optou-se por anestesia geral balanceada, com alfentanil (2,5 mg), etomidato (14 mg) e atracúrio (35 mg) e isoflurano. Não se observou intercorrências anestésico-cirúrgicas. Ao final, a paciente foi encaminhada à UTI, sob intubação orotraqueal, e em uso de drogas vasoativas, tendo sido extubada após 3 horas. CONCLUSÕES: Este caso mostrou-se um desafio para a equipe, visto que a paciente apresentava instabilidade hemodinâmica e alteração do coagulograma, condições que contra-indicam a anestesia regional; além disto, a plasmaféresis potencialmente depleta os estoques de colinesterases plasmáticas, o que interfere na anestesia. Entretanto, o arsenal medicamentoso disponível permitiu o manuseio seguro desta situação.

ANESTESIA, Obstétrica; TERAPÊUTICA


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La plasmaféresis es una técnica de tratamiento de elección para pacientes con anemia hemolítica grave. Una de sus consecuencias es la depleción de colinesterasa plasmática, lo que interfiere en la metabolización de algunos bloqueadores neuromusculares de uso corriente en la práctica anestesiológica. RELATO DEL CASO: Paciente con 26 años, estado físico ASA IV, gestación de 30 semanas y 3 días, portadora de anemia falciforme, trazo talasémico y alo-inmunización para antígenos de alta frecuencia. Presentó crisis de falcización, siendo transfundida con derivado sanguíneo incompatible. Evolucionó con hemólisis maciza, siendo admitida con hemoglobina de 3 g/dL y hematócrito del 10%, ictericia intensa, taquicardia, apatía y con pérdida de color. En la evaluación hematológica se concluyó ser una situación de inexistencia de sangre compatible para transfusión. Fue tratada con corticoterapia, inmunoglobulinas y plasmaféresis. En el segundo día de internación, evolucionó con insuficiencia renal aguda y edema pulmonar agudo, empeoramiento del estado general e inestabilidad hemodinámica. Indicada la resolución de la gestación como resultado del cuadro clínico de la paciente y del sufrimiento fetal agudo que se sobrepuso. La paciente fue admitida en la sala de operaciones consciente, disneica, pálida, ictérica, SpO2 del 91% en aire ambiente, frecuencia cardiaca de 110 lpm y presión arterial de 110 x 70 mmHg, en uso de dopamina (1 µg.kg-1 min-1) y dobutamina (10 µg.kg-1.min-1). Se optó por anestesia general balanceada, con alfentanil (2,5 mg), etomidato (14 mg) y atracúrio (35 mg) e isoflurano. No se observó interocurrencias anestésico- quirúrgicas. Al final, la paciente fue encaminada a la UTI, bajo intubación orotraqueal, y en uso de drogas vasoactivas, habiendo sido extubada después de 3 horas. CONCLUSIONES: Este caso se mostró un desafío para el equipo, ya que la paciente presentaba inestabilidad hemodinámica y alteración del coagulograma, condiciones que contraindican la anestesia regional, además de esto, la plasmaféresis potencialmente depleta las existencias de colinesterasas plasmáticas, lo que interfiere en la anestesia. Mientras, el arsenal medicamentoso disponible, permitió el manoseo seguro de esta situación.


BACKGROUND AND OBJECTIVES: Plasmapheresis is the technique of choice for severe hemolytic anemia patients. A consequence is plasma cholinesterase depletion, which interferes with metabolism of some neuromuscular blockers currently used in anesthesiology. CASE REPORT: Pregnant patient, 26 years old, physical status ASA IV, 30 weeks and 3 days gestational age, with sickle cell anemia, thalassemic trait and allo-immunization for high frequency antigens. Patient presented sickling crisis being transfused with incompatible blood. Patient evolved with massive hemolysis being admitted with 3 g/dL hemoglobin and 10% hematocrit, severe jaundice, tachycardia, apathic and pale. Hematological evaluation has concluded for the inexistence of compatible blood for transfusion. Patient was treated with steroids, immunoglobulins and plasmapheresis. In the second admission day patient evolved with acute renal failure and pulmonary edema, general state worsening and hemodynamic instability. Gestation resolution was indicated due to patient's clinical conditions and consequent acute fetal suffering. Patient was admitted to the operating room conscious, pale, with dyspnea, jaundice, 91% SpO2 in room air, heart rate of 110 bpm and blood pressure of 110 x 70 mmHg, under dopamine (1 µg.kg-1.min-1) and dobutamine (10 µg.kg-1.min-1). We decided for balanced general anesthesia with alfentanil (2.5 mg), etomidate (14 mg), atracurium (35 mg) and isoflurane. There were no anesthetic-surgical intercurrences. Patient was referred to ICU after surgery completion under tracheal intubation and vasoactive drugs, being extubated 3 hours later. CONCLUSIONS: This case was a challenge for the team since patient was hemodynamically instable with coagulogram abnormalities counterindicating regional anesthesia. In addition, plasmapheresis potentially depletes plasma cholinesterase reserves, interfering with anesthesia. However, available drug armamentarium has allowed for the safe management of this situation.

ANESTHESIA, Obstetric; THERAPEUTIC


INFORMAÇÃO CLÍNICA

Anestesia em paciente obstétrica portadora de anemia falciforme e traço talassêmico após plasmaféresis. Relato de caso* * Recebido do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP), Botucatu, SP

Anestesia en paciente obstétrica portadora de anemia falciforme y trazo talasémico después de plasmaféresis. Relato de caso

Eduardo Barbosa LeãoI; Guilherme A M de BarrosII; Laís H C NavarroIII; Yara Marcondes Machado Castiglia, TSAIV

IME2 do CET/SBA do Departamento de Anestesiologia da FMB-UNESP

IIDoutorando de Anestesiologia da FMB-UNESP, Médico da Disciplina de Terapia Antálgica e Cuidados Paliativos da FMB-UNESP

IIIMédica do Departamento de Anestesiologia da FMB-UNESP

IVProfessora Titular do Departamento de Anestesiologia da FMB-UNESP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dr. Eduardo Barbosa Leão Av. Caetité 175, Centro 46190-000 Paramirim, BA E-mail: eduleao25@yahoo.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: A plasmaféresis é a técnica de tratamento de escolha para pacientes com anemia hemolítica grave. Uma de suas conseqüências é a depleção de colinesterase plasmática, o que interfere na metabolização de alguns bloqueadores neuromusculares de uso corrente na prática anestesiológica.

RELATO DO CASO: Paciente com 26 anos, estado físico ASA IV, gestação de 30 semanas e 3 dias, portadora de anemia falciforme, traço talassêmico e alo-imunização para antígenos de alta freqüência. Apresentou crise de falcização, sendo transfundida com derivado sangüíneo incompatível. Evoluiu com hemólise maciça, sendo admitida com hemoglobina de 3 g/dL e hematócrito de 10%, icterícia intensa, taquicardia, apatia e descoramento. Na avaliação hematológica concluiu-se ser situação de inexistência de sangue compatível para transfusão. Foi tratada com corticoterapia, imunoglobulinas e plasmaféresis. No segundo dia de internação, evoluiu com insuficiência renal aguda e edema pulmonar agudo, piora do estado geral e instabilidade hemodinâmica. Indicada a resolução da gestação em decorrência do quadro clínico da paciente e do sofrimento fetal agudo que se sobrepôs. A paciente foi admitida na sala de operações consciente, dispnéica, pálida, ictérica, SpO2 de 91% em ar ambiente, freqüência cardíaca de 110 bpm e pressão arterial de 110 x 70 mmHg, em uso de dopamina (1 µg.kg-1.min-1) e dobutamina (10 µg.kg-1.min-1). Optou-se por anestesia geral balanceada, com alfentanil (2,5 mg), etomidato (14 mg) e atracúrio (35 mg) e isoflurano. Não se observou intercorrências anestésico-cirúrgicas. Ao final, a paciente foi encaminhada à UTI, sob intubação orotraqueal, e em uso de drogas vasoativas, tendo sido extubada após 3 horas.

CONCLUSÕES: Este caso mostrou-se um desafio para a equipe, visto que a paciente apresentava instabilidade hemodinâmica e alteração do coagulograma, condições que contra-indicam a anestesia regional; além disto, a plasmaféresis potencialmente depleta os estoques de colinesterases plasmáticas, o que interfere na anestesia. Entretanto, o arsenal medicamentoso disponível permitiu o manuseio seguro desta situação.

Unitermos: ANESTESIA, Obstétrica: colinesterase plasmática; TERAPÊUTICA: plasmaferese

RESUMEN

JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: La plasmaféresis es una técnica de tratamiento de elección para pacientes con anemia hemolítica grave. Una de sus consecuencias es la depleción de colinesterasa plasmática, lo que interfiere en la metabolización de algunos bloqueadores neuromusculares de uso corriente en la práctica anestesiológica.

RELATO DEL CASO: Paciente con 26 años, estado físico ASA IV, gestación de 30 semanas y 3 días, portadora de anemia falciforme, trazo talasémico y alo-inmunización para antígenos de alta frecuencia. Presentó crisis de falcización, siendo transfundida con derivado sanguíneo incompatible. Evolucionó con hemólisis maciza, siendo admitida con hemoglobina de 3 g/dL y hematócrito del 10%, ictericia intensa, taquicardia, apatía y con pérdida de color. En la evaluación hematológica se concluyó ser una situación de inexistencia de sangre compatible para transfusión. Fue tratada con corticoterapia, inmunoglobulinas y plasmaféresis. En el segundo día de internación, evolucionó con insuficiencia renal aguda y edema pulmonar agudo, empeoramiento del estado general e inestabilidad hemodinámica. Indicada la resolución de la gestación como resultado del cuadro clínico de la paciente y del sufrimiento fetal agudo que se sobrepuso. La paciente fue admitida en la sala de operaciones consciente, disneica, pálida, ictérica, SpO2 del 91% en aire ambiente, frecuencia cardiaca de 110 lpm y presión arterial de 110 x 70 mmHg, en uso de dopamina (1 µg.kg-1 min-1) y dobutamina (10 µg.kg-1.min-1). Se optó por anestesia general balanceada, con alfentanil (2,5 mg), etomidato (14 mg) y atracúrio (35 mg) e isoflurano. No se observó interocurrencias anestésico- quirúrgicas. Al final, la paciente fue encaminada a la UTI, bajo intubación orotraqueal, y en uso de drogas vasoactivas, habiendo sido extubada después de 3 horas.

CONCLUSIONES: Este caso se mostró un desafío para el equipo, ya que la paciente presentaba inestabilidad hemodinámica y alteración del coagulograma, condiciones que contraindican la anestesia regional, además de esto, la plasmaféresis potencialmente depleta las existencias de colinesterasas plasmáticas, lo que interfiere en la anestesia. Mientras, el arsenal medicamentoso disponible, permitió el manoseo seguro de esta situación.

INTRODUÇÃO

A plasmaféresis é a técnica de escolha para tratamento de pacientes com anemia hemolítica grave. Uma das conseqüências deste procedimento é a depleção da colinesterase plasmática, enzima responsável pela hidrólise da acetilcolina 1-4, o que interfere na metabolização de alguns bloqueadores neuromusculares de uso corrente em anestesia 5,6.

RELATO DO CASO

Paciente com 26 anos, negra, 72 kg, 1,66 m, quarta gestação, segundo parto, um aborto e uma cesariana prévia, estado físico ASA IV, com gestação de 30 semanas e 3 dias, esplenectomizada, portadora de anemia falciforme, traço talassêmico e alo-imunização para antígenos de alta freqüência na população.

Apresentou quadro de infecção respiratória viral na sua cidade de origem evoluindo com crise de falcização. Como conduta optou-se por transfusão de concentrado de hemácias do mesmo isogrupo, uma vez que apresentava valor pré-transfusional de hemoglogina de 6 g/dL. Após esta transfusão, evoluiu com quadro de hemólise maciça sendo, então, transferida com urgência para o Hospital das Clínicas de Botucatu - UNESP. No momento da admissão hospitalar, a parturiente encontrava-se em mau estado geral, apática e astênica. Ao exame físico apresentava-se descorada ao extremo, ictérica, com pulsos finos, taquicárdica, sopro sistólico 3+/6+, ausculta pulmonar normal, normotensa e anúrica.

Diagnosticou-se quadro de franca crise hemolítica (hemoglobina de 2,4 g/dL e hematócrito de 6%) e coagulação intravascular disseminada compensada, ou seja, com plaquetometria normal. Na avaliação hematológica concluiu-se ser esta uma situação em que virtualmente não existe sangue compatível a ser transfundido, motivo pelo qual a paciente desenvolveu reação hemolítica após o concentrado de hemácias que havia sido administrado em sua cidade. Desta forma, a paciente estava alo-imunizada para antígenos eritrocitários (anti-Kell, anti-E, anti-Duffyª, anti-S), além de apresentar alo-anticorpo dirigido contra um antígeno de altíssima freqüência na população - VEL.

A terapêutica instituída consistiu de: 1) plasmaféresis de duas volemias e meia; 2) imunoglobulina humana, por via venosa, na dose de 1 g.kg-1.dia, durante dois dias; 3) transfusão de concentrado de hemácias lavadas, irradiadas, desleucocitadas, fenotipadas e compatíveis nos sistemas Kell, E, Duffyª e S, porém incompatível no sistema VEL; 4) eritropoetina. Observou-se importante melhora clínica após a adoção destas terapêuticas.

No segundo dia de internação, a paciente evoluiu com insuficiência renal aguda (IRA) devido à deposição, nos túbulos renais, de produtos de degradação da hemoglobina. Apresentou, também, edema agudo de pulmão, como conseqüência da sobrecarga volêmica determinada pela imunoglobulina humana transfundida, e agravada pela IRA coexistente. Evoluiu com piora do estado geral e instabilidade hemodinâmica. Caracterizou-se quadro de insuficiência cardíaca decorrente da anemia intensa - cor-anêmico.

Na vigência da dramaticidade do quadro, reuniram-se as clínicas envolvidas no tratamento desta paciente: Hematologia, Anestesiologia e Obstetrícia. Optou-se, de comum acordo, pela imediata resolução da gestação em decorrência do quadro clínico progressivo e instável da paciente e do sofrimento fetal agudo que se sobrepunha.

A paciente foi encaminhada com urgência ao centro obstétrico, onde foi admitida consciente, dispnéica, com freqüência respiratória aumentada, pálida, ictérica, com SpO2 de 91% em ar ambiente e estertores crepitantes nos 2/3 inferiores pulmonares bilateralmente. A freqüência cardíaca era de 110 bpm e pressão arterial de 110 x 70 mmHg, em uso de dopamina (1 µg.kg-1.min-1) e dobutamina (10 µg.kg-1.min-1). A monitorização consistiu de estetoscópio, pressão arterial não-invasiva, cardioscopia, capnografia com capnometria, oximetria de pulso, analisador de gases e sondagem vesical. Os exames laboratoriais pré-operatórios estão relacionados na tabela I.

Revista Brasileira de Anestesiologia, 2005; 55: 3: 336-342

Anestesia em paciente obstétrica portadora de anemia falciforme e traço talassêmico após plasmaféresis. Relato de caso

Eduardo Barbosa Leão; Guilherme A M de Barros; Laís H C Navarro; Yara Marcondes Machado Castiglia

Após avaliação clínica e laboratorial, decidiu-se pela anestesia geral balanceada. A indução foi realizada com intubação orotraqueal em seqüência rápida com manobra de Sellick. Os fármacos utilizados foram alfentanil (35 mg.kg-1), etomidato (0,2 mg.kg-1) e atracúrio (0,5 mg.kg-1). A anestesia foi mantida com isoflurano, em concentrações variáveis conforme a necessidade.

No intra-operatório tratou-se a acidose metabólica com a administração de bicarbonato de sódio (100 mEq) e adequação da ventilação mecânica. Para o tratamento do edema agudo de pulmão foram administrados 40 mg de furosemida e 100 g de manitol. Transfundiu-se uma unidade de concentrado de hemácias fenotipadas, compatíveis nos quatro sistemas já descritos, porém incompatíveis no sistema VEL. Não se observaram intercorrências anestésico-cirúrgicas.

Ao final do procedimento a paciente foi encaminhada à UTI, com intubação orotraqueal, sedada com midazolam e em uso de drogas vasoativas, tendo sido extubada após três horas da sua admissão. Foram realizadas sessões de hemodiálise, com boa evolução clínica. Recebeu alta hospitalar após quatro semanas, acompanhada pelo seu recém-nascido, sem seqüelas.

DISCUSSÃO

A prática anestesiológica atual tem feito com que profissionais da área se defrontem com situações de extrema gravidade. Nestas situações, o anestesiologista necessita da colaboração de outros especialistas, como neste caso. Esta interação é extremamente benéfica para a evolução do paciente, assim como uma oportunidade para que se compartilhem experiências e conhecimentos nas mais diversas áreas da Medicina.

A anemia falciforme é de prevalência expressiva na população brasileira e, em especial, naquelas pessoas de ascendência negra. As crises de falcização, que são desencadeadas por múltiplos fatores como infecção, desidratação, hipotermia, entre outros, podem levar à necessidade de transfusão sangüínea. Caso os quadros de falcização sejam recorrentes, ou existam outras doenças hematológicas que cursem com períodos de anemia aguda, estabelece-se a necessidade de transfusões repetidas. Em conseqüência pode ocorrer quadro de sensibilização a antígenos sangüíneos freqüentes na população geral.

Esta passa a ser uma situação bastante delicada e depende do número e dos antígenos contra os quais a paciente desenvolve anticorpos específicos. Se o antígeno VEL, extremamente freqüente na população geral, está entre aqueles contra os quais a paciente apresenta-se sensibilizada, haverá enorme dificuldade em encontrar sangue compatível a ser transfundido 7.

Este caso representou um desafio para a equipe. Tratava-se de paciente com instabilidade hemodinâmica, edema agudo de pulmão, insuficiência renal aguda, coagulopatia secundária à reação transfusional hemolítica aguda e sobrecarga hepática com esplenectomia.

Pelo quadro clínico descrito, a escolha da técnica anestésica adequada tornou-se difícil. A coagulopatia e instabilidade hemodinâmica são condições que contra-indicam o bloqueio anestésico no neuro-eixo 8,9. Além disto, o estado gravídico e a plasmaféresis potencialmente depletam em mais de 80% os estoques de colinesterases plasmáticas 10-13, o que interfere com os agentes anestésicos que dependem desta enzima para sua metabolização, como a succinilcolina e alguns bloqueadores neuromusculares não-despolarizantes, como, por exemplo, o mivacúrio 14-18.

Na tal conjuntura, em que havia contra-indicação para realização de bloqueios, optou-se pela anestesia geral balanceada, com respiração controlada. A escolha dos agentes empregados durante a anestesia baseou-se não apenas nas alterações fisiológicas gestacionais, mas também naquelas condições patológicas que colaboravam com a gravidade.

Desta forma, a indução foi realizada com etomidato, hipnótico que proporciona estabilidade hemodinâmica satisfatória 19-23, sendo útil em situações de hipovolemia e hemorragia materna, assim como em parturientes cardiopatas e naquelas que não toleram diminuição da resistência vascular periférica 24. O opióide escolhido foi o alfentanil que apresenta as vantagens de pKa baixo, rápido início de ação, curta duração e alta ligação protéica, o que diminui a passagem transplacentária 25-28. Apesar de poder causar depressão respiratória temporária no recém-nascido, quando usado em doses superiores a 10 µg.kg-1 24, o alfentanil, usado na indução anestésica, atenua a resposta materna ao estresse da intubação e aos estímulos nociceptivos da cirurgia 29. Ao final da gestação o leito vascular uterino está no seu maior grau de vasodilatação 30. Desta forma, um aumento na concentração materna de catecolaminas, causado pela intubação traqueal 31,32, diminui o fluxo sangüíneo uterino 33,34 em até 35% 35 comprometendo a vitalidade fetal 36. Assim, o alfentanil usado em doses de 15 a 30 10 µg.kg-1 é uma medida efetiva para atenuar a resposta adrenérgica à intubação traqueal 37.

O atracúrio e o cisatracúrio são os bloqueadores neuromusculares não-despolarizantes que apresentam metabolização pela reação de Hoffmann 38,39, independem da atividade da acetilcolinesterase plasmática e das funções renal e hepática 40-43. Ambos os fármacos poderiam ter sido utilizados no caso, porém o atracúrio foi escolhido pelo menor custo e por não haver indicações específicas para o emprego do cisatracúrio.

Todos anestésicos inalatórios cruzam a barreira placentária 44. Os efeitos fetais são mínimos quando o nascimento ocorre em um intervalo menor que dez minutos após a indução anestésica. No entanto, com administração materna prolongada, a concentração sangüínea fetal de anestésico se aproxima da materna induzindo sedação fetal 24.O uso de isoflurano para cesariana já está bem documentado pela literatura. Em concentrações de 1,25% a 1,8%, o isoflurano não causou nenhum caso de consciência materna e depressão do recém-nascido nos estudos de Tunstall e col. 45 e Piggott e col. 46, sendo, então, bem tolerado por ambos 47,48. A baixa solubilidade sangüínea fetal do isoflurano, comparada com a materna, garante sua rápida eliminação fetal 24,49. Em algumas situações em que a anestesia regional é contra-indicada, isoflurano 0,5% a 1,5% pode ser utilizado para manutenção da anestesia em cesariana 50. Clinicamente, isoflurano e sevoflurano são similares, quando administrados para manutenção de anestesia geral durante cesariana eletiva, com relação a seus efeitos materno-fetais 50,51 e em todos os parâmetros que são usados para avaliação da evolução do feto, como a gasometria do líquor, o índice de Apgar e o índice da capacidade adaptativa neurológica 50. Este arsenal medicamentoso escolhido possibilitou a condução adequada e segura dessa situação, com desfecho satisfatório.

04. Matthes G, Pawlow I, Ziemer S - Age-dependent regeneration of plasma proteins after donor plasmapheresis. Infusionsther Transfusionsmed, 1992;19:29-31

05. Evans RT, MacDonald R, Robinson A - Suxamethonium apnoea associated with plasmapheresis. Anaesthesia, 1980;35: 198-201.

06. Naik B, Hirshhorn S, Dharnidharka VR - Prolonged neuromuscular block due to cholinesterase depletion by plasmapheresis. J Clin Anesth, 2002;14:381-384.

07. Taniguchi F, Horie S, Tsukihara S et al - Successful management of a P-incompatible pregnancy using double filtration plasmapheresis. Gynecol Obstet Invest, 2003;56:117-120.

08. Chaves IMM, Chaves LFM - Anticoagulantes e bloqueios espinhais. Rev Bras Anestesiol, 2001;51:225-234.

09. Bisinotto FMB, Martins Sobrinho J, Augusto CM, et al - Hematoma subdural encefálico após anestesia subaracnóidea. Rev Bras Anestesiol, 1993;43:199-200.

10. Shipton EA - Caesarean section in a patient with low serum cholinesterase activity following plasmapheresis. A case report and review. S Afr Med J, 1983;64:1068-1070.

11. Robertson GS - Serum cholinesterase deficiency. II. Pregnancy. Br J Anaesth, 1966;38:361-369.

12. Blitt CD, Petty WC, Alberternst EE et al - Correlation of plasma cholinesterase activity and duration of succinylcholine during pregnancy. Anesth Analg, 1977;56:78-83.

13. Evans RT, Robinson A - The combined effects of pregnancy and repeated plasma exchange on serum cholinesterase activity. Acta Anaesthesiol Scand, 1984;28:44-46.

14. Blitt CD, Petty WC, Alberternst EE et al - Correlation of plasma cholinesterase activity and duration of action of succinylcholine during pregnancy. Anesth Analg, 1977;56:78-83.

15. Aagesen G, Ronquist G - Prolonged succinylcholine-induced paralysis in connection with caesarean section. A case report. Acta Anaesthesiol Scand, 1977;21:379-384.

16. Whittaker M, Crawford JS, Lewis M - Some observations of levels of plasma cholinesterase activity within an obstetric population. Anaesthesia, 1988;43:42-45.

17. Gyasi HK, Mohy O, Adu-Gyamfi Y et al - Plasma cholinesterase in pregnancy-effect of enzyme activity on the duration of action of succinylcholine. Middle East J Anesthesiol, 1986;8:379-385.

18. Ravindran RS, Cummins DF, Pantazis KL et al - Unusual aspects of low levels of pseudocholinesterase in a pregnant patient. Anesth Analg, 1982;61:953-955.

19. Saldanha VB, Charles AM - Efeitos hemodinâmicos do etomidato, midazolam e thiopental. Estudo em indução nos homens e em coração perfundido de ratos. Rev Bras Anestesiol, 1991;41:387-392.

20. Castiglia YMM, Vianna PTG, Lemonica L et al - Efeitos hemodinâmicos do etomidato, tiopental sódico e alfastesin durante indução anestésica e pós-intubaçao. Rev Bras Anest 1984;34:413-417.

21. Pederneiras C, Linhares SF, Teixeira FN et al - Estudo comparativo do etomidato e tiopental sódico como agente de indução anestésica. Rev Bras Anestesiol, 1986;36:7-14.

22. Downing JW, Buley RJ, Brock-Utne JG et al - Etomidate for induction of anesthesia at cesarean section: comparison with thiopentone. Br J Anaesth 1979;51:135-140.

23. Vale NB, Vale LFB, Delfino J - Variação circadiana do efeito do etomidato associado ao fentanil na anestesia para curetagem uterina. Rev Bras Anestesiol, 1999;49:227-233.

24. Mattingly JE, D'Alessio J, Ramanathan J - Effects of obstetric analgesics and anesthetics on the neonate: a review. Paediatr Drugs, 2003;5:615-627.

25. Cheibuh ZB, Maselli EVS, Charruf I et al - Proteção das reações à intubação traqueal com alfentanil. Rev Bras Anestesiol, 1991;41:227-230.

26. Bower S, Hull CJ - Comparative pharmacokinetics of fentanil and alfentanil. Br J Anaesth, 1982;54:871-877.

27. Bovill JG, Sebel PS, Blackbum CL et al - The pharmacokinetics of alfentanil (R39209): a new opioid analgesic. Anesthesiology 1982;57:439-443.

28. Nocite JR, Serzedo PSM, Caetano AMM et al - Associação etomidato-alfentanil controla alterações circulatórias pós-intubação traqueal em cardiopatas. Rev Bras Anestesiol, 1988;38:219-222.

29. Gin T, Ngan-Kee WD, Siu YK et al - Alfentanil given immediately before the induction of anesthesia for elective cesarean delivery. Anesth Analg, 2000;90:1167-1172.

30. Greiss FC - A clinical concept of uterine blood flow during pregnancy. Obstet Gynecol, 1967;30:595-604.

31. Rosenfeld CR, Barton MD, Meschia G - Effects of epinephrine on distribution of blood flow in the pregnant ewe. Am J Obstet Gynecol, 1976;124:156-163.

32. Shnider SM, Wright RG, Levinson G et al - Uterine blood flow and plasma norepinephrine changes during maternal stress in the pregnant ewe. Anesthesiology, 1979;50:524-527.

33. Gin T, O'Meara ME, Kan AF et al - Plasma catecholamines and neonatal condition after induction of anaesthesia with propofol or thiopentone at caesarean section. Br J Anaesth, 1993;70:311-316.

34. Loughran PG, Moore J, Dundee JW - Maternal stress response associated with caesarean delivery under general and epidural anaesthesia. Br J Obstet Gynaecol, 1986;93:943-949.

35. Jouppila P, Kuikka J, Jouppila R et al - Effect of induction of general anesthesia for cesarean section on intervillous blood flow. Acta Obstet Gynecol Scand, 1979;58:249-253.

36. Nandi PR, Morrison PJ, Morgan BM - Effects of General Anaesthesia on the Fetus during Caesarean Section, em: Kaufman L - Anaesthesia. Edinburgh: Churchill Livingston, 1991;103-122.

37. Kovac AL - Controlling the hemodynamic response to laryngoscopy and endotracheal intubation. J Clin Anesth, 1996;8:63-79.

38. Smith CE, van Miert MM, Parker CJ et al - A comparison of the infusion pharmacokinetics and pharmacodynamics of cisatracurium, the 1R-cis 1'R-cis isomer of atracurium, with atracurium besylate in healthy patients. Anaesthesia, 1997;52:833-841.

39. Viby-Mogensen J, Engbaek J, Eriksson LI et al - Good clinical research practice (GCRP) in pharmacodynamic studies of neuromuscular blocking agents. Acta Anaesthesiol Scand, 1996;40:59-74.

40. Scott RP, Goat VA - Atracurium: its speed of onset. A comparison with suxamethonium. Br J Anaesth, 1982;54:909-911.

41. Basta SJ, Ali HH, Savarese JJ et al - Clinical pharmacology of atracurium besylate (BW 33A): a new non-depolarizing muscle relaxant. Anesth Analg, 1982;61:723-729.

42. Mehta MP, Choi WW, Gergis SD et al - Facilitation of rapid endotracheal intubations with divided doses of nondepolarizing neuromuscular blocking drugs. Anesthesiology, 1985;62: 392-395.

43. Grilo FDL, Martins RS - Influência da dose priming em acelerar o bloqueio neuromuscular do atracúrio. Rev Bras Anestesiol, 1991;41:79-82.

44. Dwyer R, Fee JP, Moore J - Uptake of halothane and isoflurane by mother and baby during caesarean section. Br J Anaesth 1995;74:379-383.

45. Tunstall ME, Sheikh A - Comparison of 1.5% enflurane with 1.25% isoflurane in oxygen for caesarean section: avoidance of awareness without nitrous oxide. Br J Anaesth, 1989;62: 138-143.

46. Piggott SE, Bogod DG, Rosen M et al - Isoflurane with either 100% oxygen or 50% nitrous oxide in oxygen for caesarean section. Br J Anaesth, 1990;65:325-329.

47. Warren T, Datta S, Ostheimer G et al - Comparison of the maternal and neonatal effects of halothane, enflurane, and isoflurane for cesarean delivery. Anesth Analg, 1983;62:516-520.

48. Ghaly R, Flynn R, Moore J - Isoflurane as an alternative to halothane for caesarean section. Anaesthesia, 1988;43:5-7.

49. Gibbs CP, Munson ES, Tham MK - Anesthetic solubility coefficients for maternal and fetal blood. Anesthesiology, 1975;43:100-103.

50. Gambling DR, Sharma SK, White PF et al - Use of sevoflurane during elective cesarean birth: a comparison with isoflurane and spinal anesthesia. Anesth Analg, 1995;81:90-95.

51. Tatekawa S, Asada A, Nishikawa K et al - Comparison of sevoflurane with isoflurane anesthesia for use in elective cesarean section. Anesthesiology, 1993;79:1018.

Apresentado em 12 de julho de 2004

Aceito para publicação em 20 de janeiro de 2005

  • 01. Wood L, Jacobs P, Dubovsky DW et al -The role of continuous-flow blood fraction separators in clinical practice. S Afr Med J, 1981;59:99-104.
  • 02. Menges T, Wagner RM, Welters I et al - The role of the protein C-thrombomodulin system and fibrinolysis during cardiovascular surgery: influence of acute preoperative plasmapheresis. J Cardiothorac Vasc Anesth, 1996;10:482-489.
  • 03. von Bormann B, Boldt J, Schleinzer W et al - Hemodynamics in donor plasmapheresis. Anaesthesist, 1988;37:316-320.
  • Endereço para correspondência
    Dr. Eduardo Barbosa Leão
    Av. Caetité 175, Centro
    46190-000 Paramirim, BA
    E-mail:
  • *
    Recebido do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP), Botucatu, SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005
    Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: bjan@sbahq.org