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Estudo FREEDOM: a saga dos diabéticos continua?

EDITORIAL

Estudo FREEDOM: a saga dos diabéticos continua?

Marinella CentemeroI; Alexandre AbizaidII; J. Eduardo SousaIII

IDoutora. Médica cardiologista clínica do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IILivre-docente. Diretor do Serviço de Cardiologia Invasiva do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

IIILivre-docente. Diretor do Centro de Intervenções em Doenças Estruturais do Coração do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Marinella Centemero Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana São Paulo, SP, Brasil - CEP 04012-909 E-mail: mpcentemero@yahoo.com.br

O estudo FREEDOM, recentemente apresentado no congresso da American Heart Association (AHA), em novembro de 2012, e simultaneamente publicado na prestigiosa revista New England Journal of Medicine, revelou que a cirurgia de revascularizacão miocárdica apresenta resultados superiores aos da intervenção coronária percutânea (ICP) com utilização de stents farmacológicos (SFs) no tratamento de diabéticos portadores de doença arterial coronária complexa. Nessa pesquisa multicêntrica e internacional, que envolveu 140 hospitais, dentre os quais quatro centros brasileiros (Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo, SP; Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - São Paulo, SP; Hospital Universitário da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre - Porto Alegre, RS; Hospital Cardiológico Costantini - Curitiba, PR), 1.900 pacientes portadores de diabetes com acometimento multiarterial e sem lesão de tronco da coronária esquerda foram randomizados para cirurgia de revascularização miocárdica ou ICP.1

Ao final de 5 anos (seguimento médio de 3,8 anos), o objetivo primário do estudo, composto de morte por todas as causas, infarto do miocárdio não-fatal e acidente vascular cerebral não-fatal, ocorreu em 26,6% no grupo ICP/SF vs. 18,7% no grupo cirúrgico (P = 0,005), com redução relativa de risco de eventos de 30% a favor da cirurgia de revascularização miocárdica. A revascularização cirúrgica também se associou a menores taxas de infarto do miocárdio (6% vs. 13,9%; P < 0,001), porém com significativa maior incidência de acidente vascular cerebral (5,2% vs. 2,4%; P = 0,03). Também houve redução marginal de mortalidade global nos pacientes tratados pela cirurgia de revascularização miocárdica comparativamente à ICP/SF (10,9% vs. 16,3%; P = 0,049).

Resta saber se esses resultados terão impacto na prática clínica e como vão influenciar as diretrizes futuras sobre o tratamento da doença coronária em diabéticos.

A publicação dessa pesquisa coroa uma série importante de estudos prévios, envolvendo a questão do melhor tratamento disponível para a abordagem de pacientes coronariopatas e diabéticos. Essa saga iniciou-se na década de 1990, com o primeiro estudo Bypass Angioplasty Revascularization Investigation (BARI), que alertou a comunidade científica sobre a complexidade tanto clínica como anatômica desse subgrupo e os grandes desafios que a ICP (à época representada pela angioplastia com balão) enfrentava nesses pacientes: revascularização incompleta pela dificuldade em abordar alguns tipos de lesões, como oclusões totais, e presença de altas taxas de reestenose coronária.2 Esses fatores, aliados ao alto risco cardiovascular inerente aos diabéticos, comprometeram a evolução clínica tardia e redundaram em maior mortalidade no grupo percutâneo. Curiosamente, nos diabéticos que eram elegíveis para o estudo mas não foram randomizados (registro BARI), e nos quais os médicos decidiam de forma individualizada a melhor estratégia de tratamento para cada paciente, não se observou diferença de mortalidade entre os dois tipos de revascularização.3

Posteriormente, ao longo de quase 20 anos após a publicação do alerta do National Heart, Blood and Lung Institute (NHBLI), em setembro de 19954, baseado nos resultados do BARI, vários estudos randomizados, metanálises e estudos de coorte analisaram o desempenho dos diabéticos tratados por cirurgia de revascularização miocárdica ou ICP, com e sem utilização de SF, no contexto da doença coronária multiarterial. Dentre eles, destacamos dois estudos randomizados mais recentes, o Coronary Artery Revascularization in Diabetes (CARDia) e o SYNTAX.5,6

No CARDia, 510 pacientes diabéticos com doença multiarterial ou uniarterial complexa foram randomizados para receber ICP (SFs com sirolimus foram utilizados em 70%) ou cirurgia de revascularização miocárdica, constatando-se que ao final de 5 anos a ocorrência de morte, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral foi semelhante nos dois grupos (26,6% vs. 20,5%; P = 0,11). Entretanto, as taxas de morte, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e necessidade de nova revascularização foram significativamente maiores para a ICP (37,5% vs. 26%; P = 0,005), levando seus autores a concluir que a realização do tratamento percutâneo nesse subgrupo é segura e factível, apesar de novas intervenções serem necessárias.5

No estudo SYNTAX, que incluiu 1.800 portadores de doença arterial coronária complexa, randomizados para cirurgia de revascularização miocárdica vs. ICP/SF (com paclitaxel), 452 pacientes eram diabéticos (25%), com perfil clínico de maior risco, comparativamente aos não-diabéticos (porcentual significativamente maior de mulheres, hipertensão arterial, dislipidemia, insuficiência cardíaca, doença vascular periférica e acidente vascular cerebral prévio). Apesar disso, a incidência de eventos maiores (morte, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral) foi semelhante para cirurgia de revascularização miocárdica e ICP ao final de 1 ano6 (10,3% vs. 10,1%; P = 0,96) e de 3 anos7 (16,3% vs. 14%; P = 0,53) de evolução. Novos procedimentos foram significantemente mais frequentes nos diabéticos tratados por ICP/SF, tanto no primeiro ano (20,3% vs. 6,4%; P < 0,001) como aos 3 anos de evolução (28% vs. 12,9%; P = 0,001).

Sumarizando, os estudos CARDia e SYNTAX, envolvendo quase mil pacientes diabéticos, demonstraram que o tratamento percutâneo (na maioria dos casos com utilização de SF) tem segurança equivalente à da cirurgia de revascularização miocárdica, pois as taxas combinadas de eventos cardíacos maiores foram semelhantes com as duas técnicas. Ambos também revelaram que a cirurgia de revascularização miocárdica tem como vantagem a menor necessidade de intervenções a curto e médio prazos, quando comparada à ICP. Tal fato provavelmente relaciona-se à maior complexidade anatômica das lesões tratadas nos diabéticos, que trazem como consequência taxas mais elevadas de reestenose e revascularização incompleta, mesmo com a utilização de SF. A progressão acelerada da aterosclerose coronária também é um fator que contribui para a necessidade de nova revascularização nesse subgrupo.

Voltando ao estudo FREEDOM e realizando análise detalhada desse mesmo estudo, podemos perceber algumas de suas várias virtudes:

1- É o primeiro estudo randomizado, multicêntrico, especificamente desenhado para avaliar os dois tipos de revascularização, percutânea vs. cirúrgica, exclusivamente em diabéticos com doença arterial coronária complexa.

2- Tanto a cirurgia de revascularização miocárdica como a ICP foram realizadas de acordo com a prática contemporânea disponível na época (2005-2010).

3- É um estudo de superioridade, o que lhe confere peso estatístico de grande valor.

4- Patrocinado por uma instituição independente e de inquestionável prestígio (NHLBI).

5- Até a presente data é o estudo que envolveu o maior número de pacientes comprovadamente diabéticos (1.900) e randomizados para a comparação dos dois tipos de revascularização.

6- A maioria dos pacientes (cerca de dois terços) apresentava doença triarterial.

7- Houve grande preocupação com o controle dos fatores de risco relacionados à doença arterial coronária, particularmente do diabetes, enfatizando a obtenção das metas rigorosas estabelecidas pelas diretrizes internacionais de cardiologia e pela American Diabetes Association (ADA).

Contudo, como todos os estudos, mesmo aqueles rigorosamente desenhados para se enquadrar nos chamados "cânones da medicina baseada em evidências", análises críticas podem e devem ser feitas. Portanto, as considerações que faremos a seguir a respeito do FREEDOM têm por objetivo exercitar o tirocínio clínico, valendo-nos da experiência adquirida em muitos anos de prática diária desde os primórdios da cardiologia intervencionista e também da participação ativa em vários estudos randomizados.

Inicialmente, chama a atenção o fato de cerca de 33 mil diabéticos terem sido rastreados para participar da pesquisa, porém apenas 10% (3.309) eram elegíveis, dos quais 1.900 (57%) aceitaram efetivamente participar do estudo. Assim, suas conclusões se referem especificamente a essa população. Não existem informações a respeito do tratamento realizado nos diabéticos excluídos da pesquisa e também naqueles que recusaram a randomização, apesar de elegíveis. Um "registro FREEDOM", apresentando a técnica de revascularização empregada e a evolução desses pacientes, à semelhança do que fizeram os estudos BARI e SYNTAX, seria desejável e esclarecedor.

No decorrer dos 5 anos de recrutamento, o estudo sofreu duas emendas, em 2007 e 2009, relacionadas ao tamanho da amostra, ao tempo de seguimento clínico e às taxas de eventos cardiovasculares maiores, provavelmente pelo longo tempo de randomização (2005-2010) e pelo baixo recrutamento de pacientes. Inicialmente, previa-se a entrada de 2.400 diabéticos em um período de 2 anos, com seguimento clínico mínimo de 3 anos para assegurar poder de 85% em detectar redução relativa do objetivo primário de 18% a 23% ao final de 4 anos. O estudou terminou com 1.900 pacientes, acompanhados por 4,75 anos, com período mínimo de seguimento de 2 anos e poder estimado em 80% para detectar redução relativa de 27% da taxa de eventos para os dois grupos de tratamento.

Em relação aos resultados, vale ressaltar que a mortalidade dos diabéticos submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica aos 30 dias no FREEDOM foi de apenas 1,7%, porcentual extremamente baixo e provavelmente difícil de ser reproduzido na prática diária, fora das condições ideais de um estudo randomizado.

Nesse sentido, citamos a experiência nacional, bem documentada por Braile e Gomes8, que revela que a média de mortalidade para cirurgias de revascularizacão miocárdica no Brasil, a partir dos dados fornecidos pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), gira em torno de 4,8%. Na Europa, esses porcentuais podem variar de 3% a 7,3%.

Em outro artigo publicado em 2009 e que compilou a experiência brasileira relativa à cirurgia de revascularização miocárdica a partir do banco de dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), no período compreendido entre 2005 e 2007, Piegas et al.9 relatam que 63.529 cirurgias foram realizadas em 191 hospitais. A mortalidade hospitalar total foi de 6,2%, sendo maior nos hospitais de pequeno volume cirúrgico (7,29%), quando comparada àquela encontrada nos de grande volume (5,77%; P < 0.001). Comparativamente, esses autores citam dados relativos ao registro americano Adult Cardiac Surgery in New York State 2003-2005, cuja mortalidade aos 30 dias foi de 2,14%, e também as taxas de mortalidade dos países integrantes do projeto European System for Cardiac Operative Risk Evaluation (EuroSCORE): Alemanha, 2,4%; Reino Unido, 3,7%; Espanha, 6,8%; Itália, 2,4%; França, 3,2%; Finlândia, 1,5% (média de 3,4%).9

Outro dado interessante diz respeito à análise do objetivo primário combinado do estudo de acordo com diversos subgrupos pré-especificados, constatando-se que fora dos Estados Unidos a ocorrência dos eventos cardíacos maiores aos 5 anos foi semelhante para ICP/SF e cirurgia de revascularização miocárdica (25% vs. 21%; P = NS). A explicação para essa diferença regional ainda não foi esclarecida.

Após tais considerações, parece-nos que a questão relativa à melhor opção de revascularização no diabético multiarterial não está definitivamente resolvida e provavelmente deve ser individualizada, na medida em que outras variáveis, como fragilidade do paciente, risco de acidente vascular cerebral, presença de comorbidades associadas (como doença renal e doença pulmonar obstrutiva crônica), experiência das equipes intervencionista e cirúrgica, além do nível socioeconômico do paciente e sua aderência ao tratamento farmacológico, podem influir nos resultados imediatos e tardios da revascularização escolhida.

Concluindo, gostaríamos de enfatizar que os procedimentos percutâneos e cirúrgicos são complementares durante a evolução da doença arterial coronária, sendo desejável a discussão entre clínicos, intervencionistas e cirurgiões, o chamado Heart Team, na avaliação das vantagens e desvantagens dos dois tipos de revascularização. Além disso, o paciente e seus familiares também devem ser envolvidos na decisão sobre o tratamento e honestamente esclarecidos a respeito das opções disponíveis de revascularização e seus riscos.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 1º/12/2012

Aceito em: 2/12/2012

  • 1. Farkouh ME, Domanski M, Sleeper LA, Siami FS, Dangas G, Mack M, et al.; FREEDOM Trial Investigators. Strategies for multivessel revascularization in patients with diabetes. N Engl J Med. 2012;367(25):2375-84.
  • 2. Comparison of coronary bypass surgery with angioplasty in patients with multivessel disease. The Bypass Angioplasty Revascularization Investigation (BARI) Investigators. N Engl J Med. 1996;335(4):217-25.
  • 3. Feit F, Brooks MM, Sopko G, Keller NM, Rosen A, Krone R, et al. Long-term clinical outcome in the Bypass Angioplasty Revascularization Investigation Registry: comparison with the randomized trial. BARI Investigators. Circulation. 2000;101(24):2795-802.
  • 4. Clinical alert: bypass over angioplasty for patients with diabetes. Del Med J. 1995;67(11):594.
  • 5. Hall R, Serruys P. CARDia: Coronary Artery Revascularization in Diabetes trial. In: ESC Congress 2012 [Internet]. [cited 2012 Jan 11]. Available from: http://www.escardio.org/congresses/esc-2012/congress-reports/Pages/710-5-CARDia.aspx
  • 6. Banning AP, Westaby S, Morice MC, Kappetein AP, Mohr FW, Berti S, et al. Diabetic and nondiabetic patients with left main and/or 3-vessel coronary artery disease: comparison of outcomes with cardiac surgery and paclitaxel-eluting stents. J Am Coll Cardiol. 2010;55(11):1067-75.
  • 7. Kappetein AP, Feldman TE, Mack MJ, Morice MC, Holmes DR, Ståhle E, et al. Comparison of coronary bypass surgery with drug-eluting stenting for the treatment of left main and/or three-vessel disease: 3-year follow-up of the SYNTAX trial. Eur Heart J. 2011;32(17):2125-34.
  • 8. Braile DM, Gomes WJ. Evolução da cirurgia cardiovascular: a saga brasileira. Uma história de trabalho, pioneirismo e sucesso [editorial]. Arq Bras Cardiol. 2010;94(2):151-2.
  • 9. Piegas LS, Bittar OJNV, Haddad N. Cirurgia de revascularização miocárdica: resultados do Sistema Único de Saúde. Arq Bras Cardiol. 2009;93(5):555-60.
  • Correspondência:

    Marinella Centemero
    Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - Vila Mariana
    São Paulo, SP, Brasil - CEP 04012-909
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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