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Ausência parcial congênita do pericárdio

Resumos

A ausência congênita do pericárdio é uma anomalia congênita rara, de difícil diagnóstico. Relatamos um caso de paciente de 42 anos, com dor torácica atípica, eletrocardiograma com distúrbio de condução no ramo direito, radiografia de tórax com desvio do eixo cardíaco no sentido anti-horário e ecocardiograma sugerindo sobrecarga de volume do ventrículo direito. Cateterismo cardíaco demonstrou ausência de shunts intracardíacos, e rotação e deslocamento do coração para o hemitórax esquerdo. Ressonância nuclear magnética confirmou o diagnóstico ao demonstrar ausência parcial do pericárdio à esquerda, com interposição do parênquima pulmonar entre o tronco da artéria pulmonar e a aorta.

Cardiopatias congênitas; Pericárdio; Diagnóstico por imagem


Agenesis of the pericardium is a rare congenital anomaly, which is difficult to diagnose. We report a case of a 42-year-old patient, with atypical chest pain, electrocardiogram with an incomplete right bundle branch block, chest X-ray with a counterclockwise heart axis deviation and echocardiogram suggesting right ventricle volume overload. Cardiac catheterization showed no intracardiac shunts, and rotation and displacement of the heart into the left hemithorax. Magnetic nuclear resonance imaging confirmed the diagnosis by revealing partial absence of the left pericardium, with interposition of lung parenchyma between the main pulmonary artery and the aorta.

Heart defects, congenital; Pericardium; Diagnostic imaging


RELATO DE CASO

Ausência parcial congênita do pericárdio

José Luis Attab dos SantosI; Clemente GreguoloII; José Fábio Fabris JuniorIII; Alan Nascimento PaivaIV; Henrique Simão TradV; Taisa Tavares de AndradeVI

IMédico cardiologista intervencionista e diretor do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Invasiva da Santa Casa de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, SP, Brasil

IIMédico cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Invasiva da Santa Casa de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, SP, Brasil

IIIMédico cardiologista intervencionista do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Invasiva da Santa Casa de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto, SP, Brasil

IVMédico cardiologista intervencionista do Hospital das Clínicas Samuel Libânio de Pouso Alegre. Pouso Alegre, MG, Brasil

VMédico radiologista do Centro Diagnóstico por Imagem. Ribeirão Preto, SP, Brasil

VIMédica cardiologista ecocardiografista do Centro Diagnóstico Cardiovascular. Ribeirão Preto, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: José Luis Attab dos Santos Av. Saudade, 456 - Campos Elíseos Ribeirão Preto, SP, Brasil - CEP 14085-000 E-mail: joseluis@hci.med.br

RESUMO

A ausência congênita do pericárdio é uma anomalia congênita rara, de difícil diagnóstico. Relatamos um caso de paciente de 42 anos, com dor torácica atípica, eletrocardiograma com distúrbio de condução no ramo direito, radiografia de tórax com desvio do eixo cardíaco no sentido anti-horário e ecocardiograma sugerindo sobrecarga de volume do ventrículo direito. Cateterismo cardíaco demonstrou ausência de shunts intracardíacos, e rotação e deslocamento do coração para o hemitórax esquerdo. Ressonância nuclear magnética confirmou o diagnóstico ao demonstrar ausência parcial do pericárdio à esquerda, com interposição do parênquima pulmonar entre o tronco da artéria pulmonar e a aorta.

Descritores: Cardiopatias congênitas. Pericárdio. Diagnóstico por imagem.

ABSTRACT

Agenesis of the pericardium is a rare congenital anomaly, which is difficult to diagnose. We report a case of a 42-year-old patient, with atypical chest pain, electrocardiogram with an incomplete right bundle branch block, chest X-ray with a counterclockwise heart axis deviation and echocardiogram suggesting right ventricle volume overload. Cardiac catheterization showed no intracardiac shunts, and rotation and displacement of the heart into the left hemithorax. Magnetic nuclear resonance imaging confirmed the diagnosis by revealing partial absence of the left pericardium, with interposition of lung parenchyma between the main pulmonary artery and the aorta.

Descriptors: Heart defects, congenital. Pericardium. Diagnostic imaging.

A ausência congênita do pericárdio é uma anomalia congênita rara (1:14.000 em séries necroscópicas), mais prevalente no sexo masculino (1:3), ocasionalmente detectada durante operações intratorácicas ou exames necroscópicos e de difícil diagnóstico na prática clínica.1-5 Relatamos um caso de ausência parcial congênita do pericárdio encaminhado ao setor de hemodinâmica do Hospital das Clínicas Samuel Libânio da Faculdade de Medicina de Pouso Alegre (Pouso Alegre, MG, Brasil) para esclarecimento diagnóstico.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 42 anos de idade, com queixa de dor torácica atípica, foi admitido no setor de hemodinâmica do Hospital das Clínicas Samuel Libânio da Faculdade de Medicina de Pouso Alegre para esclarecimento de presumível cardiopatia congênita. O eletrocardiograma revelou distúrbio de condução no ramo direito e a radiografia de tórax demonstrou desvio do eixo cardíaco no sentido anti-horário (Figura 1). O ecocardiograma revelou dimensões e função do ventrículo esquerdo normais e ventrículo direito com sobrecarga de volume, sem evidências de regurgitação tricúspide ou shunts intracardíacos.


O paciente foi submetido a cateterismo cardíaco pelo acesso femoral, com punções arterial e venosa, sob anestesia local. Após punção da veia femoral introduziu-se cateter até o átrio direito e estabeleceu-se a concordância cava superior e cava inferior, definindo o situs atrial solitus. A passagem do cateter em átrio direito para o tronco pulmonar foi realizada com dificuldade técnica, em decorrência do excessivo deslocamento do coração para a esquerda, obtendo-se registros pressóricos sem evidências de hipertensão pulmonar ou gradientes de via de saída do ventrículo direito. Injeção seletiva de contraste nesse ventrículo, com aquisição em oblíqua anterior direita, demonstrou características angiográficas de ventrículo morfologicamente direito, com dimensões e contratilidade conservadas, deslocado para cima e para a frente, e com conexão concordante com o tronco pulmonar. O retorno venoso pulmonar opacificou o átrio esquerdo, que revelou septo interatrial íntegro, porém com anormalidade de seu contorno, posteriormente atribuída à interposição de tecido pulmonar entre o átrio e seu apêndice, protruso através do defeito pericárdico.

O cateterismo arterial retrógrado com registro pressórico demonstrou elevação das pressões de enchimento do ventrículo esquerdo (135/0/24), sem gradiente transvalvar aórtico e mitral. Durante o avanço do cateter, pôde-se observar o trajeto cruzado das vias de saída dos ventrículos, estando a aorta à direita e mais afastada da artéria pulmonar. Injeção seletiva de contraste nesse ventrículo, com aquisição em oblíqua anterior esquerda, demonstrou características angiográficas de ventrículo morfologicamente esquerdo, com septo interventricular íntegro, mas com movimentação anormal, deslocado para trás e para baixo e com conexão conco rdante para a aorta (Figuras 2 e 3).



O ecocardiograma foi repetido no Centro de Diagnóstico Cardiovascular de Ribeirão Preto (Ribeirão Preto, SP, Brasil), com a impressão diagnóstica de criss-cross heart, que, entretanto, não foi confirmada, pois não demonstrou o cruzamento de fluxos através das valvas atrioventriculares, defeitos estruturais nem dilatações cavitárias. Foram observados, entretanto, acentuados desvios póstero-lateral e inferior no acesso à janela apical de quatro câmaras e movimento anormal do septo interventricular (paradoxal tipo A), associado à ampla movimentação da parede posterior, compatíveis com ausência parcial congênita do pericárdio em consequência da ampla movimentação anterior do coração na sístole decorrente do defeito pericárdico.

Também foi solicitada ressonância nuclear magnética do coração, realizada no Centro de Diagnóstico por Imagem de Ribeirão Preto (CEDIRP), que demonstrou deslocamento do eixo cardíaco para a esquerda, com aumento da mobilidade durante as fases do ciclo cardíaco e sem a identificação do pericárdio na face esquerda do coração, com o parênquima pulmonar envolvendo o tronco da artéria pulmonar. Outros achados descritos no laudo do exame foram raiz e porção ascendente da aorta e tronco da artéria pulmonar de calibre e contornos normais, drenagem venosa sistêmica e pulmonar de configuração normal, câmaras cardíacas com dimensões e espessura das paredes normais, e relações atrioventriculares e ventriculoarteriais preservadas. O estudo dinâmico evidenciou desempenho sistólico preservado de ambos os ventrículos, sem alterações regionais de contratilidade ou de disfunções valvares significativas (Figura 4).


DISCUSSÃO

A lateralização à esquerda da artéria pulmonar, com anteriorização da via de saída do ventrículo direito, bem como o deslocamento da aorta e o acentuado desvio do ventrículo esquerdo para trás e para baixo foram os achados inusitados do cateterismo cardíaco que serviram como ponto inicial do diagnóstico dessa rara malformação cardíaca.

O posicionamento inadequado dos ventrículos levou à interpretação inicial equivocada de que pudesse estar ocorrendo disposição superior-inferior com conexão atrioventricular cruzada (criss-cross heart) e discordância atrioventricular e ventriculoarterial (L-alça bulboventricular), pois nessa situação a aorta está à direita da artéria pulmonar e há fisiologia de transposição congenitamente corrigida das grandes artérias.6 Dessa maneira, o trajeto do cateter venoso seria do átrio direito para o ventrículo esquerdo conectado à artéria pulmonar, e o trajeto do cateter arterial atingiria o ventrículo direito conectado ao átrio esquerdo, com a aorta à direita da artéria pulmonar.

Os questionamentos referentes ao padrão morfológico dos ventrículos, a disposição espacial do septo interventricular, a posição das valvas atrioventriculares, o alinhamento não paralelo das vias de saída, o padrão de circulação coronária, bem como a raridade de apresentação do criss-cross heart e suas graves anomalias associadas, não presentes neste caso, foram razões para prosseguir na investigação combinada com outros métodos de imagem cardiovascular.5,7 Assim, o reconhecimento definitivo da afecção só foi confirmado pela imagem de ressonância magnética, com ausência parcial do pericárdio no lado esquerdo, sem encarceramento de estruturas cardíacas, associado ao dado mais frequentemente observado e descrito na literatura, que é a interposição de tecido pulmonar entre a aorta e a artéria pulmonar.6

Em relação à ausência congênita do pericárdio, é importante salientar que as formas totais são mais frequentes (70%) e a maioria dos pacientes tem curso assintomático durante a vida. Entretanto, as formas incompletas podem se apresentar com sintomas de precordialgia ou palpitações, atribuídas à perda de fixação cardíaca, e são potencialmente letais como resultado da herniação de cavidades cardíacas com encarceramento e torção, especialmente o apêndice atrial esquerdo através do defeito pericárdico.8 Assim, aceita-se que nas formas completas não há indicação para tratamento cirúrgico porque não apresentam riscos, reservando-se a reparação do pericárdio aos casos sintomáticos ou com risco de encarceramento e síncope.9,10

Finalmente, ressaltamos a importância da avaliação conjunta por diferentes métodos de imagem cardiovascular na elucidação sistemática diante de casos clínicos atípicos, em que diagnósticos diferenciais devem ser cotejados para oferecer ao paciente a melhor orientação terapêutica possível.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram não haver conflito de interesses relacionado a este manuscrito.

Recebido em: 26/6/2012

Aceito em: 18/10/2012

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  • Correspondência:

    José Luis Attab dos Santos
    Av. Saudade, 456 - Campos Elíseos
    Ribeirão Preto, SP, Brasil - CEP 14085-000
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      26 Jun 2012
    • Aceito
      18 Out 2012
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