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Origem anômala de artéria coronária esquerda do tronco pulmonar: síndrome de Bland-White-Garland

Abnormal origin of the left coronary artery from pulmonary artery: the Bland-White-Garland Syndrome

Resumos

A origem anômala da artéria coronária esquerda a partir do tronco pulmonar, conhecida como síndrome de Bland-White-Garland (BWG), é uma doença rara, que, habitualmente, leva à morte antes do primeiro ano de vida. Os autores relatam o caso de uma criança branca, com 2 anos e 6 meses de idade, portadora da síndrome de BWG, e revisam a apresentação clínica, a fisiopatologia, o diagnóstico e o tratamento desses pacientes.

Cardiopatias congênitas; Anomalias dos vasos coronários; Artéria pulmonar, anormalidades; Insuficiência cardíaca congestiva, etiologia


The abnormal origin of the left coronary artery (LCA) from the pulmonary artery, known as Bland-White-Garland Syndrome (BWG), is a rare disease that, usually, results in death within the first year of life. The authors report the case of a 2 ½ year old Caucasian child, with BWG Syndrome. A review of the clinical presentation, physiopathology, diagnostic methods and treatment of such patients is also presented.

Heart defects, congenital; Coronary vessel anomalies; Pulmonary artery, abnormalities; Heart failure, congestive, etiology


RELATO DE CASO

Origem anômala de artéria coronária esquerda do tronco pulmonar: síndrome de Bland-White-Garland

Abnormal origin of the left coronary artery from pulmonary artery: the Bland-White-Garland Syndrome

Isamara Fernanda Bregagnollo; Gustavo Souza Oliveira; Rossano Cesar Bonatto; Fábio Cardoso Carvalho

Setor de Hemodinâmica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP, Botucatu, SP

Correspondência Correspondência: Isamara Fernanda Bregagnollo Rua Capitão Andrade, 567 - Bairro Alto Botucatu, SP - CEP 18601-545 Tel.: (14) 3811-6121 E-mail: isamara36@gmail.com

RESUMO

A origem anômala da artéria coronária esquerda a partir do tronco pulmonar, conhecida como síndrome de Bland-White-Garland (BWG), é uma doença rara, que, habitualmente, leva à morte antes do primeiro ano de vida. Os autores relatam o caso de uma criança branca, com 2 anos e 6 meses de idade, portadora da síndrome de BWG, e revisam a apresentação clínica, a fisiopatologia, o diagnóstico e o tratamento desses pacientes.

Descritores: Cardiopatias congênitas. Anomalias dos vasos coronários. Artéria pulmonar, anormalidades. Insuficiência cardíaca congestiva, etiologia.

SUMMARY

The abnormal origin of the left coronary artery (LCA) from the pulmonary artery, known as Bland-White-Garland Syndrome (BWG), is a rare disease that, usually, results in death within the first year of life. The authors report the case of a 2 ½ year old Caucasian child, with BWG Syndrome. A review of the clinical presentation, physiopathology, diagnostic methods and treatment of such patients is also presented.

Descriptors: Heart defects, congenital. Coronary vessel anomalies. Pulmonary artery, abnormalities. Heart failure, congestive, etiology.

A origem anômala da artéria coronária esquerda a partir do tronco pulmonar caracteriza a rara síndrome de Bland-White-Garland (BWG), que pode resultar da septação anormal do tronco arterioso em aorta e artéria pulmonar ou da persistência dos brotos pulmonares, com involução dos brotos aórticos que formarão as artérias coronárias1. Trata-se de uma má formação que afeta um em cada 300 mil nascidos vivos, correspondendo a 0,5% das doenças cardíacas congênitas2. Responde pela causa de morte nas crianças afetadas numa freqüência de 80% a 85% antes do primeiro ano de vida3. Atualmente, são reconhecidas duas formas:

1. Infantil: não há formação de circulação colateral ou, se ocorrer, é discreta. Corresponde a cerca de 80% a 85% dos casos. Os sintomas mais freqüentes são dispnéia, insuficiência cardíaca congestiva e dor torácica aos esforços habituais do lactente, provocados por isquemia e disfunção ventricular.

2. Adulta: há formação de circulação colateral bem estabelecida. Corresponde de 15% a 20% dos casos. As principais manifestações incluem infarto agudo do miocárdio, insuficiências mitral e cardíaca congestiva, arritmias ventriculares e morte súbita1-3.

No presente trabalho, os autores relatam um caso da forma adulta e revisam a literatura e a fisiopatologia pertinentes.

RELATO DO CASO

Paciente TCP, branca, com 2 anos e 6 meses de idade, do sexo feminino, assintomática. Ao exame físico, durante avaliação pediátrica de rotina, apresentava-se com bom estado geral, acianótica, eupnéica, afebril, com mucosas úmidas e coradas, e todos os pulsos palpáveis, rítmicos, simétricos e com amplitude preservada. Apresentava peso de 12,3 kg, estatura de 88 cm, índice de massa corpórea de 15,9 kg/m2, freqüência cardíaca de 110 bpm, freqüência respiratória de 23 ipm, pressão arterial de 96 x 60 mmHg, e pulmões com expansibilidade preservada, sem ruídos adventícios e evidências de derrame pleural.

Ao exame cardiológico, apresentou ictus visível, palpável e impulsivo (+++) no 6º espaço intercostal esquerdo (EIE), 3 cm fora da linha hemiclavicular, rítmico. Sem frêmitos ou bulhas palpáveis. Bulhas rítmicas e hipofonéticas. Sopro sistólico 2+/4+, rude, mesossistólico, audível em foco mitral e irradiado para axila esquerda. O abdome apresentava ruídos hidroaéreos normais, sem evidências de visceromegalias. Os membros inferiores apresentavam-se sem edema. À eletrocardiografia, foram observados ritmo sinusal, sobrecarga de câmaras esquerdas, e alteração da repolarização ventricular sugestiva de isquemia em parede anterior extensa. À radiografia de tórax, foi observado índice cardiotorácico de 0,66, com trama vascular pulmonar normal e aumento de câmaras esquerdas (Figura 1). À ecocardiografia, foram observados dilatação de câmaras cardíacas esquerdas, hipocinesia ântero-apical, refluxo mitral moderado e dilatação da artéria coronária direita, além de não ter sido possível a visualização da coronária esquerda (Figura 2). Ao estudo hemodinâmico, foram observadas as seguintes pressões, em mmHg: ventrículo esquerdo, 101/16; aorta, 102/59; tronco pulmonar, 35/19/25; ventrículo direito, 37/8; e átrio direito, 8. À aortografia, foram observadas valva aórtica bicúspide e competente e artéria coronária direita dilatada, não sendo possível a visibilização da artéria coronária esquerda. O ventrículo esquerdo apresentava-se com aumento dos volumes sistólico e diastólico finais e refluxo mitral moderado, e o átrio esquerdo estava dilatado. A angiografia seletiva de coronária direita evidenciou artéria coronária direita dilatada, tortuosa e com ampla circulação colateral para coronária esquerda, cujo tronco tinha origem na artéria pulmonar. As artérias descendente anterior e circunflexa apresentavam bom calibre e posição anatômica preservada (Figura 3).




DISCUSSÃO

Na síndrome de BWG relatada pelos autores, o mecanismo de agressão ocorre por um crônico processo de isquemia miocárdica. Inicialmente, há vasodilatação coronária, em uma tentativa de melhora da isquemia; posteriormente, o organismo procura compensar a baixa oxigenação por meio de circulação colateral, que provém da artéria coronária direita. Dessa forma, estabelece um fluxo sanguíneo do sistema aórtico de alta pressão para o sistema pulmonar de baixa pressão, caracterizando fluxo sanguíneo aortopulmonar através das artérias coronárias. A isquemia miocárdica crônica leva a um processo de remodelação miocárdica, que, a curto prazo, mantém o desempenho cardíaco, mas que, a longo prazo, desencadeia o processo de remodelação cardíaca, o qual, se não interrompido, acarreta, em prazo variável, disfunção ventricular progressiva, insuficiência cardíaca e morte. Os sintomas mais freqüentes são: dispnéia, fadiga intensa, palidez, fácies de dor, infarto agudo do miocárdio, insuficiência mitral, arritmias e morte súbita. O quadro clínico e os exames complementares não-invasivos, muitas vezes, possibilitam o diagnóstico, sendo, no entanto, utilizado o cateterismo cardíaco para diagnóstico definitivo na escolha da abordagem terapêutica. O tratamento definitivo para a anomalia é cirúrgico. No caso descrito, esses exames possibilitaram caracterizar, detalhadamente, as alterações presentes nessa paciente.

A síndrome de BWG gera seqüelas nos pacientes acometidos, por um mecanismo de isquemia miocárdica, que se manifesta na vida extra-uterina1. Durante a vida intra-uterina, o sangue proveniente do tronco pulmonar possui alta saturação de oxigênio e a demanda miocárdica pelo mesmo é alta. Na vida extrauterina, pela organização da circulação, o sangue que chega à artéria coronária esquerda passa a apresentar baixa saturação de oxigênio3. Concomitantemente, as necessidades metabólicas do recém-nascido aumentam, elevando também o consumo de oxigênio miocárdico. Como conseqüência, forma-se, no decorrer do tempo, uma circulação colateral proveniente da artéria coronária direita e de seus ramos, com o intuito de complementar a irrigação miocárdica ineficaz da artéria coronária esquerda2,3. No princípio, essa circulação colateral é pouco desenvolvida e o ventrículo esquerdo sofre um crônico processo de isquemia, respondendo com vasodilatação coronária e redução da resistência ao fluxo, para preservar a oferta de oxigênio adequada às demandas metabólicas1. Em breve a reserva de fluxo coronário se esgota, dando início a um processo crescente de isquemia, com conseqüente disfunção ventricular. O processo de desenvolvimento de circulação colateral continua, com aumento do calibre e do número dos vasos colaterais; porém, como a artéria coronária esquerda está conectada a um sistema de baixa pressão, o sangue tende a fluir retrogradamente pela mesma, até atingir a artéria pulmonar, desviando o fluxo dos vasos miocárdicos, que possuem maior resistência. Isso constitui o chamado roubo pulmonar-coronário ou shunt coronária direita para a esquerda1,3. Nessas circunstâncias, instala-se um quadro de isquemia miocárdica crônica dos territórios irrigados pelas artérias coronárias esquerda e direita. Em conseqüência, ocorre disfunção ventricular esquerda tanto sistólica como diastólica, com dilatação ventricular progressiva. O processo de remodelação, que, a curto prazo, pode manter o desempenho cardíaco, a longo prazo promove alterações da função dos miócitos, da constituição do miocárdio e da geometria da cavidade ventricular esquerda4,5. As alterações da função dos miócitos e da composição do miocárdio comprometem a contratilidade e, conseqüentemente, o desempenho global do coração4,5. Atualmente, existem também evidências de que as alterações da geometria da câmara ventricular esquerda acarretam várias desvantagens hemodinâmicas para o ventrículo esquerdo. Uma das primeiras observações é que o ventrículo remodelado não somente aumenta as dimensões, mas também se torna mais esférico. A transformação da forma elíptica para esférica cria várias desvantagens mecânicas para a câmara, entre as quais se destacam: aumento do estresse parietal tanto sistólico como diastólico, desajuste da pós-carga, hipoperfusão subendocárdica, aumento do consumo de oxigênio miocárdico, manutenção da sobrecarga hemodinâmica, e acentuação da ativação dos mecanismos de remodelação e compensatórios da insuficiência cardíaca6. O segundo problema importante é que o aumento da esfericidade compromete a função dos músculos papilares, por estiramento, e a dilatação do anel mitral, resultando em insuficiência mitral de grau variável7. A regurgitação mitral impõe sobrecarga volumétrica para o ventrículo esquerdo, contribuindo para acentuar a dilatação ventricular, instalando-se, assim, um círculo vicioso que tende a comprometer progressivamente a função global do coração, independentemente dos mediadores neuro-humorais responsáveis pela remodelação cardíaca1-3,7,8.

No paciente relatado, esses aspectos tornam-se evidentes nas avaliações ecocardiográfica e hemodinâmica, que demonstram: aumento das dimensões e remodelação esférica do ventrículo esquerdo, refluxo mitral moderado, e comprometimento do desempenho cardíaco. A angiografia das artérias coronárias evidencia claramente a contrastação precoce da artéria coronária esquerda por meio de ampla rede de colaterais, formando-se verdadeiro fluxo arteriovenoso da artéria coronária direita-artéria coronária esquerda-tronco pulmonar, que certamente promove isquemia miocárdica.

Os constantes episódios de isquemia levam à formação de pequenas áreas de necrose, o que pode acarretar insuficiências cardíaca e mitral. Esta última, por disfunção do músculo papilar e/ou dilatação do anel valvar mitral, foi observada na paciente descrito neste trabalho. No caso relatado, o ecocardiograma não permitiu a visualização da artéria coronária esquerda, sugerindo a presença de origem anômala desta. O cateterismo cardíaco confirmou o diagnóstico, revelou átrio e ventrículo esquerdos dilatados, disfunção da parede ântero-lateral do ventrículo esquerdo, regurgitação mitral, artéria coronária direita dilatada e presença de ampla rede de colaterais, com enchimento precoce da artéria coronária esquerda originandose do tronco pulmonar9. O exame de escolha para o diagnóstico desses casos é a ecocardiografia bidimensional Doppler em cores, que, além de fazer o diagnóstico na quase totalidade dos casos, fornece informações valiosas e precisas sobre o grau de comprometimento miocárdico, a função global do coração e o estado anatomofuncional da valva mitral. No caso relatado, o estudo ecocardiográfico não foi suficiente para esclarecer adequadamente todas as alterações morfofuncionais para intervenção cirúrgica. Considerando-se que a instituição não dispunha de equipamento de angiotomografia e que havia necessidade de solucionar o caso com a maior brevidade possível, os autores optaram pela realização de estudo hemodinâmico com angiocoronariografia para estabelecer o diagnóstico definitivo e a programação cirúrgica1,9.

O tratamento definitivo para a anomalia é cirúrgico1,9,10. A cirurgia está sempre indicada e fica atrelada ao aparecimento de sintomas e/ou à presença de fluxo sanguíneo significativo através das artérias coronárias, pois ambos sinalizam grande risco de arritmias ventriculares e morte súbita, devendo ser realizada o mais precocemente possível1,2. Há diversas técnicas cirúrgicas que permitem a correção, mas não há estudos que apontem de forma clara qual a melhor. O que está bem estabelecido é o risco de morte cirúrgica, sabidamente mais elevado até os 18 a 24 meses de vida, devendo a correção cirúrgica, sempre que possível, ser realizada antes desse período1-3,9. A abordagem mais utilizada é o reimplante cirúrgico da artéria coronária esquerda anômala diretamente na aorta. Outras abordagens incluem: ligadura da artéria coronária esquerda no nível de sua origem na artéria pulmonar, revascularização com enxerto venoso ou artéria mamária interna, e cirurgia do túnel intrapulmonar (Takeuchi)1,2,10. A paciente deste relato foi submetida a cirurgia com reimplante da artéria coronária esquerda na aorta, com sucesso e boa evolução.

Recebido em: 26/7/2007

Aceito em: 28/8/2007

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  • Correspondência:

    Isamara Fernanda Bregagnollo
    Rua Capitão Andrade, 567 - Bairro Alto
    Botucatu, SP - CEP 18601-545
    Tel.: (14) 3811-6121
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      28 Ago 2007
    • Recebido
      26 Jul 2007
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