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Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia

Imperfect agents: feminist contributions to the analysis of autonomy, preferences and democracy

Resumos

O artigo discute a noção de autonomia e o processo de formação das preferências, considerando abordagens distintas na teoria política feminista. O respeito às crenças e preferências individuais tem sido considerado um aspecto central da democracia pela tradição liberal. Mas mesmo nessa tradição, há entendimentos distintos de como essas preferências são definidas, como elas estão relacionadas às posições sócio-estruturais dos indivíduos e às oportunidades abertas ou limitadas por essas posições. As análises feministas consideram os constrangimentos, mas também os incentivos e interpelações que constituem as preferências e as identidades em contextos nos quais há desigualdades sociais. O artigo enfoca as tensões entre o valor da autonomia individual, tomado como premissa epistemológica e política, e o entendimento crítico da opressão e da dominação como a base para a produção social das identidades.

autonomia; opressão; preferências; feminismo; teoria política


The article discusses the issue of autonomy and preferences considering different approaches in feminist political theory. The respect for individual beliefs and preferences has been considered a main feature for democracy within liberal tradition. But even in this tradition there are distinct understandings of how those preferences are defined, how they are connected to individual structural positions and the opportunities that those positions open or constrain. Feminist analysis considers constraints, but also evocations and interpellations, constituting preferences and identities in contexts of social inequalities. The work focuses on the tensions between the value of individual autonomy, taken as an epistemological and a political framework, and the critical understanding of oppression and domination as the basis for socially produced identities.

autonomy; oppression; preferences; feminism; political theory


Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia

Flávia Biroli

É professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF), onde coordena o Grupo de Pesquisas sobre Democracia e Desigualdades, e pesquisadora do CNPq. E-mail: flaviabiroli@gmail.com

RESUMO

O artigo discute a noção de autonomia e o processo de formação das preferências, considerando abordagens distintas na teoria política feminista. O respeito às crenças e preferências individuais tem sido considerado um aspecto central da democracia pela tradição liberal. Mas mesmo nessa tradição, há entendimentos distintos de como essas preferências são definidas, como elas estão relacionadas às posições sócio-estruturais dos indivíduos e às oportunidades abertas ou limitadas por essas posições. As análises feministas consideram os constrangimentos, mas também os incentivos e interpelações que constituem as preferências e as identidades em contextos nos quais há desigualdades sociais. O artigo enfoca as tensões entre o valor da autonomia individual, tomado como premissa epistemológica e política, e o entendimento crítico da opressão e da dominação como a base para a produção social das identidades.

Palavras-chave: autonomia, opressão, preferências; feminismo; teoria política.

ABSTRACT

The article discusses the issue of autonomy and preferences considering different approaches in feminist political theory. The respect for individual beliefs and preferences has been considered a main feature for democracy within liberal tradition. But even in this tradition there are distinct understandings of how those preferences are defined, how they are connected to individual structural positions and the opportunities that those positions open or constrain. Feminist analysis considers constraints, but also evocations and interpellations, constituting preferences and identities in contexts of social inequalities. The work focuses on the tensions between the value of individual autonomy, taken as an epistemological and a political framework, and the critical understanding of oppression and domination as the basis for socially produced identities.

Key-words: autonomy; oppression; preferences; feminism; political theory

As tensões entre a garantia formal de liberdade individual para as mulheres e a reprodução cotidiana de barreiras ao exercício dessa mesma liberdade são um problema central para o feminismo contemporâneo1 1 Este texto integra os projetos de pesquisa "Desafios da teoria democrática numa ordem desigual: contribuições das teorias políticas feministas" (CNPq 20/2010) e "Desigualdades e preferências: a tensão entre o valor da autonomia individual e a crítica à opressão na teoria política contemporânea" (PQ/CNPq). Resulta da apresentação feita no Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, que aconteceu na Universidade de Brasília entre 23 e 26 de abril de 2012. Agradeço aos colegas das mesas-redondas e participantes do simpósio pelos comentários. Agradeço, especialmente, a Luis Felipe Miguel pelas críticas a uma versão anterior do artigo. . O impacto das formas cotidianas de opressão na formação das preferências das mulheres permanece como um problema mesmo quando não há normas exclusivas baseadas no sexo ou quando não há propriamente coerção ou controle direto de um homem sobre uma mulher. Do mesmo modo, o entendimento amplamente presente nas teorias feministas de que a agência toma forma em contextos concretos, em redes de relações que não permitem considerar os indivíduos isoladamente e de maneira abstrata, abre uma agenda bastante produtiva para a análise das variáveis que definem as possibilidades de autodeterminação em sociedades que são, ao mesmo tempo, democráticas e desiguais. Na formulação dessas críticas, é comum que as abordagens se orientem, como se verá neste artigo, simultaneamente pelo ideal moderno da autonomia e pelo distanciamento em relação a algumas de suas premissas e desdobramentos.

A valorização da autonomia está relacionada a diferentes entendimentos do que é necessário para seu exercício. A consideração dos limites e obstáculos à autodeterminação e, ao mesmo tempo, a compreensão de quais são as condições para que a autodeterminação se efetive variam não apenas entre as diferentes correntes de pensamento mas também dentro daquela na qual a autonomia individual se firmou como valor central e como horizonte normativo, o liberalismo. Do mesmo modo, as sobreposições e as fronteiras entre a noção de autonomia e as noções de liberdade e de independência variam segundo a concepção que se tem do que define a primeira.

A oposição entre uma moral baseada na autodeterminação e uma moral baseada na obediência está na base da valorização da autonomia no pensamento moderno (Schneewind, 1998). Em sua generalidade, ela compreende uma noção da autonomia individual que é um dos fundamentos do pensamento democrático, a de que a autonomia corresponde à determinação pelos próprios indivíduos das leis sob as quais vivem. São mobilizadas, aqui, as oposições entre autonomia e autoridade e autonomia e tradição.

Os valores e normas que assim se definem circunscrevem o indivíduo na concepção liberal moderna. Nesse sentido, e ainda que não seja minimamente possível abranger o conjunto dessa empreitada, discutir a autonomia como problema e horizonte normativo corresponde a analisar as tensões e disputas em torno da definição moderna do indivíduo e dos sentidos que são atribuídos à agência individual.

As abordagens liberais orientadas pelo ideal da autonomia tomam como um dado, de maneira expressiva, as preferências que os indivíduos manifestam e sustentam, de diferentes formas e em diferentes medidas, como "suas". Partem dessas preferências para a análise das garantias à liberdade, definindo assim a relação corrente entre liberdade individual e pluralismo. A crítica feminista, mesmo quando fortemente ancorada em matrizes filosóficas e políticas liberais, se distingue dessas abordagens ao definir como uma preocupação central o entendimento – e a crítica – do que se passa antes de as preferências serem expressas. Em outras palavras, o processo de socialização que está na base das preferências e da agência é alvo da crítica feminista, levando a discutir o impacto da opressão e da dominação nas preferências assumidas e nas escolhas feitas pelos indivíduos. A dominação masculina, com os padrões opressivos de socialização que alimenta, seria responsável pela reprodução da moral fundada na valorização da obediência, em contextos nos quais a moral baseada na autodeterminação se impôs como referência normativa.

Um dos alvos comuns a diversas abordagens no feminismo é justamente a naturalização de diferenças entre traços psíquicos, desejos, competências e comportamentos de mulheres e homens, tomados como uma derivação das diferenças entre os sexos, isto é, das diferenças fisiológicas. Por meio dela, convenções e normas manteriam as mulheres atadas à moral da obediência sem que isso representasse uma contradição ou fissura nas normas e instituições orientadas pelo ideal da autonomia.

Este texto discute as ambiguidades e o potencial da noção de autonomia a partir das críticas e contribuições do feminismo, procurando compreender como diferentes abordagens mobilizam o ideal da autonomia para discutir a relação entre autonomia e preferências. A partir da crítica feminista, a análise da posição das mulheres nas sociedades contemporâneas permite avançar na compreensão das possibilidades e limites para o exercício da autonomia em contextos nos quais não há coerção, mas há constrangimentos sistemáticos – que podem ser sutis, cotidianos e relacionados a estereótipos que são internalizados pelos indivíduos.

O artigo é composto por quatro seções, além desta introdução e da conclusão. A primeira seção discute a relação entre hierarquias, assimetrias e a formação das preferências. A segunda seção parte da distinção entre abordagens procedimentais e substantivas da autonomia para analisar a variação das condições entendidas como necessárias para a agência autônoma. Na terceira seção, considero as implicações, para a crítica à dominação e à opressão, da posição de neutralidade em relação às preferências dos indivíduos e às formas de vida que nelas se fundam. A noção de agência diferenciadamente imperfeita é proposta na quarta seção como uma forma de considerar, ao mesmo tempo, que o exercício da autonomia se dá, regularmente, em meio a constrangimentos, mas que suas possibilidades estão diretamente relacionadas às posições sociais desiguais dos indivíduos. A conclusão, por fim, retoma brevemente a sequencia dos argumentos e afirma que a preservação da autonomia como horizonte normativo depende de uma crítica posicionada aos mecanismos de reprodução das desigualdades.

Autonomia e assimetrias na formação das preferências

A noção de autonomia vem funcionando como ideal moral, político e social, oposto respectivamente à autoridade e à tradição, ao paternalismo e ao perfeccionismo e, por fim, às pressões, influências e distorções por parte de outros agentes e de crenças e opiniões majoritárias (Dworkin, 2001 [1988], p. 10-11). Suas ambiguidades e seu potencial derivam dos problemas colocados por algo que está presente nessas três formas assumidas pelo ideal: a distinção entre o que é próprio ao indivíduo – e que deveria ser garantido e respeitado para que se preserve a integridade individual – e o que lhe é imposto ou é efeito da impossibilidade de escolher e/ou de refletir sobre suas escolhas. O que é próprio ao indivíduo, nessa perspectiva, é o que estaria preservado da manipulação, que seria independente e autodeterminado (Dworkin, 2001 [1988], p. 12).

Um dos eixos em que esse ideal se define remete às críticas kantianas e à relação entre razão e autonomia. Aqui, consiste simultaneamente na possibilidade de que o indivíduo determine seus próprios fins de maneira racional e na capacidade de determiná-los e realizá-los sem que seja dominado por outros. A paixão e as emoções, assim como a dominação e a subjugação, são antagônicas ao exercício da autonomia (Guyer, 2003, p. 72 e 94). É essa a base, de modo abreviado, para a relação que se estabelece entre o individual e o universal em uma das abordagens que mais influência exerceram sobre o pensamento contemporâneo sobre justiça, liberdades e direitos individuais. O princípio da autonomia compreende a soberania dos indivíduos em relação a si mesmos e aos outros, correspondendo ao mesmo tempo à capacidade de estabelecer as leis morais sob as quais se vive e à capacidade de estabelecê-las como leis morais universais. Essas capacidades são a matéria de que consiste a dignidade (Reath, 2006, p. 124). A subjugação e o domínio por outros correspondem não apenas a impedimentos à autodeterminação de um indivíduo ou de alguns indivíduos, mas a uma ruptura com o que é propriamente humano e universal em cada indivíduo, isto é, sua capacidade de agência moral. As preferências e a agência individual serão, nesse caso, avaliadas de acordo com seu grau de diferenciação em relação à obediência e submissão à autoridade e às convenções.

Em outro eixo no qual esse ideal se afirma, a sobreposição à noção de liberdade é mais presente. A abordagem de John Stuart Mill em Sobre a liberdade é representativa da compreensão da autonomia como ideal político e social2 2 Na perspectiva assumida por Gerald Dworkin (2001 [1988], p. 11), Stuart Mill é incluído entre os autores que trabalhariam com a autonomia como ideal social, mas entendo que o aspecto central à definição da autonomia como ideal político para Dworkin, que é a noção de igual respeito (sobretudo às crenças, formas de vida e concepções de bem), está presente também em Mill. . Mill destaca o limite da ação dos governos, das maiorias e dos outros indivíduos sobre a esfera de liberdade de cada indivíduo, mas também o autocontrole que permitiria aos indivíduos superar os imperativos da natureza. A definição da liberdade como a capacidade de "perseguir nosso próprio bem à nossa própria maneira", sem que isso signifique privar os demais da sua liberdade (Mill, 2008 [1859], p. 15), estabelece uma continuidade importante entre a liberdade em relação a restrições e a capacidade de autodeterminação, de definição de si na medida em que é possível definir o tipo de vida que se deseja viver. Mas é possível compreender essa liberdade não apenas como ausência de restrições, mas como independência, no sentido que define "o status de uma pessoa como independente e igual e não como subserviente" (Dworkin, 2002 [1977], p. 404). O princípio de que "sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano" (Mill, 2008 [1859], p. 13) é visto como vantajoso, ao mesmo tempo, para os indivíduos e para a humanidade3 3 Lembro que essa posição convive, em Mill, com a análise dos limites à liberdade daqueles que não seriam, por diferentes razões, capazes do exercício da autodeterminação, como as crianças e os bárbaros. . A análise da condição da mulher, por outro lado, ressalta a complexidade da servidão ao caracterizá-la como um modo de vida não apenas imposto, mas aprendido e estimulado por aqueles que se encontram em posição privilegiada e que extraem recursos dessa mesma servidão – no caso, os homens (Mill; Mill, 2001 [1869]).

A partir desses dois eixos, define-se a compreensão de que o exercício da autonomia depende da eliminação da coerção e da subjugação, e é possível uma vez que essa eliminação se efetive. Por isso uma das preocupações políticas principais, quando se trata da autonomia como ideal político e social, é com os ajustes entre liberdade individual e controle social, para evitar que a ação de um ou de alguns indivíduos prejudique a possibilidade de que outros definam como gostariam de viver e procurem viver de acordo com essa concepção. A igual consideração e respeito aos indivíduos dá conteúdo à liberdade individual. Ao impedir que os interesses e vantagens de alguns rompam com as fronteiras que garantem a integridade de outros, torna-se possível que o usufruto dessa liberdade inclua o exercício da autodeterminação.

No debate contemporâneo, a compreensão de que os indivíduos são igualmente capazes de definir suas preferências e fazer escolhas sobre como viver suas vidas está na base de compreensões influentes das conexões entre autonomia, liberdade individual e igualdade (Rawls, 2008 [1971]; Dworkin, 2005). O ideal da autonomia se ancora, então, na produção de normas e instituições que garantam a igual capacidade dos indivíduos para definir e buscar sua concepção de bem, nos casos em que esta não impeça que outros busquem sua própria. A distinção entre formas de vida impostas pelo juízo alheio e formas de vida escolhidas pelos próprios indivíduos desempenha um papel central no liberalismo igualitário contemporâneo (Dworkin, 2005 [2000], p. XVI e XVII).

Essa distinção é, necessariamente, embaçada se a consideramos da perspectiva da crítica feminista. As hierarquias de gênero produzem preferências e identidades que reafirmam a posição de subordinação e vulnerabilidade relativa das mulheres: essa é uma das bases para a crítica à consideração das preferências já produzidas como um ponto de partida para as análises e a formulação de políticas. Mas há uma série de complicações quando, desfeita a clareza da distinção entre formas de vida impostas e formas de vida escolhidas, consideramos a posição do indivíduo em relação a "suas" preferências e escolhas. O reconhecimento da complexidade na produção das preferências, assim como a distinção entre autonomia e satisfação de preferências privadas (Sunstein, 2009 [1991], p. 227), não resolve o problema do estatuto político e moral conferido aos indivíduos em contextos nos quais há opressão – e a internalização de valores e práticas que permitem que essa opressão se mantenha é uma opção que precisa ser considerada. O silenciamento ou captura da voz das mulheres também é um dos subprodutos expressivos das relações de poder quando as hierarquias de gênero são ativas numa sociedade (Miguel e Biroli, 2011). E, sendo esse o caso, afirmar que as mulheres não são propriamente a origem de suas preferências e decisões, isto é, que as decisões e as preferências que estão na base dessas decisões são orientadas heteronomamente, ou seja, que seus interesses são construídos a partir da posição dos homens nessas relações, pode corresponder justamente a um reforço à visão de que as mulheres não são política, moral e eticamente competentes.

O problema ultrapassa as relações de gênero, colocando a análise das possibilidades de produção autônoma das preferências como um aspecto central da crítica às relações de dominação e de opressão. Leva, também, a considerar o modo como hierarquias e relações de poder respaldadas por diferentes critérios e concepções podem produzir restrições à capacidade de autodeterminação dos indivíduos. Considera-se, aqui, a valorização diferenciada dos sexos, mas também as formas de distinção baseadas no acesso a bens culturais, as redes de poder calcadas no saber técnico, as formas de reconhecimento baseadas na diferenciação entre identidades socialmente valorizadas e identidades socialmente desvalorizadas, para mencionar alguns..

A consideração de que padrões opressivos de socialização e relações hierárquicas de poder podem constituir impedimentos à autonomia dos indivíduos, na medida em que naturalizam posições desvantajosas e as práticas e identidades que as mantêm, faz parte de abordagens críticas aos mecanismos de reprodução das desigualdades de gênero (Bartky, 1990; Biroli, 2013; Bourdieu, 2005 [1998]; Beauvoir, 2008 [1949]; Mackinnon, 1989; Nussbaum, 2008 [2000]; Pateman, 1988; Young, 1990; Wolf, 2002 [1991]). No limite, podem estar em curso mecanismos sociais que destroem no indivíduo a percepção de sua competência para tomar decisões e orientar suas vidas (Benson, 1994, p. 659). Nesse caso, a valorização da autonomia pode requerer a crítica a esses mecanismos e o "escrutínio crítico" das preferências que eles colaboram para produzir (Nussbaum, 2008 [2000], p. 114).

Por outro lado, a valorização da autonomia dependeria da retenção da ideia de que há algo próprio ao indivíduo que se manifesta no modo como escolhe viver sua vida, se afastadas as situações nas quais tem sua liberdade restrita ou é coagido a determinadas escolhas (Dworkin, 2001 [1988]). Além disso, essa valorização corresponderia ao reconhecimento de que, se as preferências e identidades são condicionadas por fatos socioculturais e pelas expectativas dos outros de modo incontornável, isso não significa que as pessoas não tomem decisões e ajam a seu modo em relação a esses fatos (Young, 2005, p. 18). Mesmo as formas publicamente expressas de consentimento e acomodação à dominação não significam, necessariamente, a ausência de ruídos e fissuras na eficácia dos discursos e valores dominantes (Scott, 1990, p. 25). Em algumas abordagens, o reconhecimento de que há perspectivas que não estão contidas nos valores hegemônicos e que devem ser apreendidas em sua especificidade, com os interesses a elas relacionados (Young, 2005), transfigura-se na afirmação de que as mulheres, na posição que as relações de gênero lhes legam, sobretudo na vida doméstica e familiar, tornam-se portadoras de uma ética diferenciada. A valorização das relações, do cuidado e dos laços de interdependência é que permitiria, nesse caso, reconhecer sua "voz em primeira pessoa" (Gilligan, 1982, p. 150). A crítica mais comum a esse tipo de abordagem ressalta, no entanto, que o que está sendo "ouvido" são os estereótipos já aceitos e codificados, e não algo como uma voz autêntica e diferenciada (Clement, 1996; Miguel, 2001; Okin, 1989b).

Como forma de ilustrar a manifestação dessas ambiguidades na consideração das preferências das mulheres – e, de modo mais amplo, dos indivíduos em posição de desvantagem relativa, recorro a um artigo recente de Hélio Schwartsman, colunista do jornal Folha de S. Paulo, escrito como reação ao noticiário sobre o aumento do percentual de cesarianas no Brasil4 4 As citações neste parágrafo e no seguinte são da coluna "Excesso de cesarianas?", de Hélio Schwartsman, publicada na p. 2 do jornal Folha de S. Paulo em 23 de novembro de 2011. Os grifos foram acrescentados por mim. . Em 2011, as cesarianas corresponderam a 52% dos partos realizados no país, enquanto o percentual de cesarianas indicadas por razões médicas seria de 15%, segundo a OMS. A opção pela cesariana em casos nos quais não há motivações clínicas resultaria, estatisticamente, em mais complicações decorrentes do parto para as mães e os bebês e em maiores custos. Mas o ponto, segundo o colunista, é que a diferença entre os percentuais é a expressão do "desejo da mãe, do médico ou de ambos", em uma situação em que os riscos são, na realidade, pouco expressivos, ainda que de fato maiores do que no chamado parto normal. E, quando se trata de uma opção das mulheres, não há por que colocar essa escolha em questão: "Se a mulher não é devota da falácia naturalista e, por não querer sentir dor ou qualquer outra razão subjetiva, escolhe fazer a cesárea, não há razão médica ou moral para repreendê-la por isso". Até aqui, podemos considerar que é um caso em que a agência das mulheres está sendo perfeitamente considerada e que sua posição como agente está, na realidade, sendo garantida, ao menos do ponto de vista lógico: se essa é sua escolha, decorrente de uma preferência qualquer – que não precisa, inclusive, ser justificada –, ela deve ser respeitada.

A hipótese de que os obstetras pressionem as mulheres para que escolham a cesariana também é considerada pelo colunista, permitindo uma observação adicional. É vista como "mais complicada" e "eticamente questionável", porque nesse caso a comodidade e o lucro dos médicos estariam sendo colocados "à frente dos interesses do paciente". A lógica parece novamente irrepreensível. A decisão deve ser da mulher e, se não há riscos (mas, poderíamos adicionar, mesmo que existam), o imperativo é tão somente o da sua preferência e do seu bem-estar, seja lá como ela o considere. Mas o parágrafo final da coluna expõe as fissuras que as afirmações anteriores poderiam deixar despercebidas: "De toda maneira, a civilização ocidental já resolveu esse dilema há tempos, ao advogar por democracias que dão aos indivíduos o direito de tomar as decisões relevantes para a sua saúde e sexualidade".

Voltando à consideração dos problemas na produção social das preferências, o dilema "já resolvido" da civilização ocidental, o da relação entre agência e preferências nas democracias, talvez não possa ser deixado para trás assim tão rapidamente, sobretudo quando se observa a relação entre gênero, cidadania e direito ao corpo5 5 Uma razão óbvia para isso, no caso brasileiro, é a criminalização do aborto, que nega às mulheres parcela importante do direito sobre seu corpo. Mas esse é um caso em que o direito é claramente negado, mesmo quando existem preferências que são contrárias ao que define a lei. Nessa discussão, o exemplo da cesariana é mais apropriado porque expõe uma situação na qual o direito existe, a decisão pode estar sendo tomada sem que exista coerção, mas pode haver, ainda assim, dúvidas sobre o grau de autonomia nela envolvido devido às relações de poder que a constituem. . Um aspecto que precisa ser considerado nesse exemplo é que a opção pela cesariana não resulta de uma escolha da mulher ou de uma escolha dos médicos – situação em que seria suficiente, para medir o grau de justeza da escolha feita, considerar se a mulher teve condições livres, isto é, não coercitivas, de escolha. A ausência de restrições tornaria possível a autodeterminação. A relação entre médicos e pacientes é, porém, uma relação de poder atravessada pelo peso que nela tem o saber técnico especializado (no caso, o saber médico) e também pelo acesso diferenciado que médico e paciente têm a informações relativas ao funcionamento dos hospitais, planos de saúde, direitos no sistema público de saúde e mesmo a informações relativas ao próprio estado da mulher e de sua gestação. Além disso, pode haver, nesse sentido, restrições diversas e graus também diversos de autonomia, considerando a posição socioeconômica da mulher – sua possibilidade, por exemplo, de ter informações sobre diferentes correntes médicas e de optar por uma delas, arcando com os custos financeiros e de tempo atrelados a essa opção, mas também a variação no tratamento recebido dos médicos, no tempo a elas dedicado e na consideração dos riscos envolvidos.

Considerado esse quadro, uma hipótese que se poderia levantar é a de que a decisão tomada pela mulher pode ser livre, no sentido de que não há constrangimentos ou pressões explícitas no processo em que se define sua escolha. Mas a passagem da ausência de constrangimentos e pressões à autonomia na definição e expressão de suas preferências demandaria que fossem levadas em conta as variáveis mencionadas, isto é, as relações de poder e assimetrias existentes nesse mesmo processo. Em outras palavras, a consideração das fronteiras entre liberdade e coerção (ou entre livre decisão e constrangimentos) não dá conta do que está em questão quando se discutem as fronteiras entre autonomia e opressão.

A própria delimitação entre interesse próprio e interesse "impróprio" (porque mobilizado para garantir vantagens para terceiros) pode ser bastante borrada pelo contexto em que essas interações se dão, isto é, um contexto assimétrico de exercício de poder e de acesso a informações. A internalização de valores e hierarquias potencialmente reafirmados nessas relações pode, por exemplo, se expressar como baixa autoconfiança da mulher para tomar essa decisão ou como percepção de que essa decisão não lhe cabe – mesmo nos casos em que, de uma perspectiva médica acerca dos riscos envolvidos nas decisões tomadas, as alternativas estariam disponíveis6 6 O problema da baixa autoconfiança é parte importante da condição de "autovalorização" que seria necessária para que a agência fosse considerada autônoma, na definição de Paul Benson (1994). O que está em questão é a dimensão intersubjetiva do reconhecimento de quais são os interesses próprios aos indivíduos e de seu valor e legitimidade. .

O foco nas hierarquias e relações de poder assimétricas faz com que as escolhas sejam vistas não apenas como um fator da interação entre o indivíduo e as alternativas socialmente disponíveis mas como um desdobramento complexo dos padrões de socialização, das relações nas quais os indivíduos estão posicionados e de como, dados esses padrões e essa posição, configuram-se suas ambições, o horizonte das possibilidades que lhes parecem possíveis e, de modo mais geral, sua capacidade de autodeterminação.

O exercício da autonomia aparece, assim, como socialmente circunscrito. Por isso não seria possível considerar a autodeterminação como algo que se define fora ou independentemente dos valores, das práticas e dos sentidos com os quais tomamos contato ao mesmo tempo em que nos definimos como indivíduos.

Preferências e critérios de distinção: os requisitos para a agência autônoma

Há uma adesão ampla das teorias feministas, ainda que com graus diferentes de elaboração, ao entendimento de que os horizontes individuais e as alternativas imaginadas pelas pessoas se definem "em relação ao que é percebido como possível" (Phillips, 2007, p. 148). As hierarquias de gênero restringem o horizonte do possível para as mulheres, as posicionando de modo semelhante em relação a uma série de oportunidades e expectativas, e essa é uma das razões pelas quais podem ser tomadas como um "grupo", como uma categoria particular na análise das relações de poder e de suas desvantagens relativas. A crítica a essas hierarquias colaborou para a compreensão de que os obstáculos à autodeterminação podem diferir dos obstáculos de ordem material e de que a dominação de gênero não é um subproduto de outras formas de dominação (por exemplo, em Beauvoir, 2008 [1959]). Por outro lado, as identidades de gênero se organizam diferentemente, de acordo com outros aspectos que definem e constituem a posição das mulheres na sociedade, como classe social e raça (por exemplo, em Spelman, 1988), o que faz com o que o fato de serem mulheres não determine, por si só, suas chances de atingir as condições ou desenvolver as capacidades necessárias à autodeterminação.

Do reconhecimento amplo do peso dos padrões de socialização dos indivíduos e das interações que reforçam papéis diferenciados na construção das identidades de gênero não decorrem, no entanto, abordagens comuns. Não há consenso, por exemplo, sobre como e em que circunstâncias os indivíduos se tornam capazes de desafiar as convenções e as expectativas que lhes são dirigidas e que são ritualizadas e institucionalizadas em normas e práticas sociais e culturais. Somam-se a isso divergências do ponto de vista político e filosófico quanto ao que é necessário para que a ação e as preferências que estão em sua base sejam consideradas autônomas.

A consideração diferenciada dos mecanismos de dominação parece decisiva na diferenciação entre abordagens procedimentais da autonomia e abordagens substantivas, ainda que nem sempre isso seja explicitado, desse modo, nas análises. Juntamente com o impacto da socialização na definição das preferências, coloca-se, aqui, o problema das "fronteiras" entre o exercício da dominação e a agência individual.

As abordagens procedimentais se definiriam pela neutralidade em relação ao conteúdo das preferências assumidas pelos indivíduos. São os procedimentos na definição das preferências e condutas que permitem observar em que medida há de fato autonomia. Ainda que existam matizes no debate feminista, essas abordagens se expressam na compreensão de que a autonomia se realiza quando há "autoentendimento refletido ou coerência interna juntamente com a ausência de coerção indevida e manipulação por outros" (Friedman, 2003, p. 103). Para que sejam autônomas, as escolhas e ações devem "espelhar desejos ou valores que a pessoa tenha reafirmado refletidamente e que são importantes para ela" (Friedman, 2003, p. 14). Um indivíduo autodirigido é aquele que estabelece objetivos para si, definidos em um conjunto de opções, e que pode ter a expectativa de alcançá-los. O importante nessa definição, mais uma vez, é que esses objetivos sejam formulados de acordo com valores, desejos e convicções desenvolvidos de uma maneira que seja livre de coerção, e entendidos como importantes para o indivíduo mesmo depois de uma reflexão sobre suas origens e conteúdo (Oshana, 2003, p. 100). As condições sociais requeridas são, por sua vez, que existam opções significativas e que o indivíduo tenha tido a possibilidade de desenvolver a "competência para escolher ou agir de maneiras que sejam autônomas" (Friedman, 2003, p. 14).

Tomadas essas condições, "se a pessoa não se importa com 'colocar-se de pé por conta própria'7 7 No original, "raise herself up 'by her boot-straps'". , não valoriza o fato de ser capaz de suprir suas necessidades por meio do seu próprio trabalho, não quer conquistar o sucesso profissional 'por sua conta', então não há qualquer razão particular para que ela viva de acordo com esses objetivos" (Friedman, 2003, p. 103-4)8 8 Para Friedman (2003, p. 103), a concepção atomista e "self-made" da autonomia não é, no entanto, neutra; é uma concepção substantiva que define o tipo de vida que alguém deve levar para que seja considerado autônomo. . Se o contexto social em que as preferências se definem é livre de coerções e apresenta opções alternativas, e se os procedimentos pelos quais se chega a elas incluem a reflexão sobre suas origens, isto é, a consideração sobre a correspondência entre essas preferências e aquilo que é importante para o indivíduo – seus valores e desejos mais profundos, como dito anteriormente –, o fato de que o conteúdo dessas escolhas seja incoerente com uma visão normativa sobre as práticas e valores que definiriam uma vida autônoma não deve ser objeto de consideração.

Nas abordagens procedimentais da autonomia, a capacidade de agência autônoma é considerada, ao mesmo tempo, como uma realidade sociológica verificável e como um valor a ser preservado. O igual respeito aos indivíduos inclui o respeito à diversidade de suas preferências e formas de vida. Uma concepção pouco exigente da autonomia é, por isso, vista como mais adequada. Ela permitiria incluir um conjunto maior de indivíduos e colaboraria para evitar a estigmatização daqueles que não atendem a um ideal difícil de alcançar9 9 Em algumas abordagens, a crítica à estigmatização inclui a recusa à valorização do ideal da autonomia, que é visto como um mito que compromete a reflexão sobre os mecanismos de reprodução das desigualdades e impõe obstáculos ao entendimento de que deve haver responsabilidade coletiva pela dependência (Fineman, 2004). Para uma análise da relação entre autonomia e responsabilidade no debate teórico contemporâneo, conferir Biroli (2012). . Seria, também, mais coerente com a noção de que o exercício da autonomia se apresenta em graus variáveis e que a autodeterminação se dá de maneira necessariamente imperfeita e em meio a constrangimentos. Por isso o foco da crítica deveria ser na "desobstrução" da autodeterminação, no sentido acima definido, mas não na avaliação das formas de vida que daí derivam.

Para essa discussão, é fundamental considerar os limites às abordagens procedimentais, elaborados em enfoques mais próximos do rótulo "substantivos". A crítica às abordagens procedimentais é, sobretudo, ao fato de que não seriam capazes de considerar adequadamente o funcionamento dos mecanismos de dominação e de opressão nas sociedades contemporâneas. A definição da autonomia que mobilizam, exposta a partir da distinção de Friedman, seria, nesse sentido:

1) Insuficiente: exige a ausência de coerção, mas não faz a crítica aos processos que levariam a internalizar valores que naturalizam desvantagens e desigualdades;

2) Obscura: exige a existência de alternativas socialmente disponíveis, mas não faz a crítica aos mecanismos estruturais que impedem as alternativas de serem efetivamente disponíveis; e

3) Distorcida em seu foco: exige a autorreflexão, focando nos processos "internos" ou individuais de superação dos obstáculos à autodeterminação, mas desvia a análise do caráter intersubjetivo desses processos.

Por isso, tal definição de autonomia não forneceria o arcabouço teórico e político necessário para a análise crítica dos contextos institucionais e dos padrões de socialização em que as preferências se definem. Na análise das relações de gênero ficaria de fora, por exemplo, toda a problemática social envolvida na "decisão de uma mulher de adotar um papel tradicional de gênero por causa dos estigmas sociais associados a uma recusa" (Sunstein, 2009 [1991], p. 228). Ficaria desconsiderada, ainda, na agência, a diferença entre consentir, entrando em arranjos previamente estabelecidos e aderindo a obrigações previamente definidas, e engajar-se ativamente, criando livremente as relações e seus termos (Pateman, 1985 [1979], p. 21).

A crítica dirigida ao individualismo abstrato por não problematizar as redes intersubjetivas de significados, regras sociais e convenções em que se ancoram as obrigações "consentidas" dos indivíduos (Pateman, 1985 [1979], p. 29) pode ser, aqui, redirecionada para as abordagens procedimentais da autonomia, que focam, sobretudo, os processos individuais de formação das preferências. A análise crítica das preferências sustentadas e dos consentimentos dependeria, assim, da crítica ao "voluntarismo" predominante nas teorias liberais (Pateman, 1985 [1979]), da distinção entre voluntarismo hipotético e consentimento tácito, de um lado, e consentimento expresso nos casos em que a recusa a consentir – e, num paralelo com a terminologia utilizada neste texto, em que a recusa a um determinado modo de vida que teria, hipotética e tacitamente, sido escolhido – é efetivamente possível (Pateman, 1989, p. 72). As condições em que as escolhas são feitas, considerando as relações de gênero, a dependência material e a educação para servir, precisariam, assim, ser levadas em conta na distinção entre consentimento e escolha e voluntarismo hipotético e presumido.

Mecanismos impessoais e sistemáticos de opressão podem "prejudicar a capacidade de uma pessoa se importar com aquilo que é valoroso para ela", deformando "a natureza da preocupação que uma pessoa tem em relação a si mesma" e comprometendo a própria capacidade de individuação na medida em que não apenas limitam as opções no momento em que as escolhas são feitas mas deturpam as condições em que a socialização se dá (Friedman, 2003, p. 19).

Essas são algumas das razões pelas quais as abordagens substantivas se concentram no conteúdo das escolhas feitas pelos indivíduos. O foco no conteúdo das decisões – em vez de no modo como são tomadas – permitiria destacar problemas como o da internalização de normas e valores que fazem parte da socialização do indivíduo e, portanto, de sua identidade e da formação de seus valores mais profundos, mas que são falsos e opressivos (Stoljar, 2000, p. 109). A crítica se volta para o caráter opressivo de normas sociais internalizadas, que bloqueiam a capacidade efetiva de crítica às premissas – falsas – que estão na base dos valores e preferências assumidos pelos indivíduos. Em um dos exemplos dados por Paul Benson (1991) e retomados por Stoljar (2000, p. 101), uma garota de 18 anos com bom desempenho escolar e envolvimento em atividades que considera interessantes e prazerosas, capaz de manter amigos e uma rede considerada satisfatória de relações pessoais, orienta parte importante do seu tempo para compensar sua insatisfação com a inadequação a padrões vigentes da beleza feminina – fazendo dietas ou alisando o cabelo, mas sobretudo frustrando-se com tentativas de adaptar-se a padrões falsos e opressivos, que ela não é capaz de submeter a um crivo crítico. Uma vez que o problema da internalização da opressão é considerado, todo um rol de escolhas, que vão da aceitação de padrões estéticos (Wolf, 2002 [1991]) à concordância com um casamento arranjado (Phillips, 2010) ou à manutenção de relações afetivas violentas (Mackinnon, 1989; Nussbaum, 2008 [2000]), pode ficar de fora do que é definido como preferência e agência autônoma.

São críticas que procuram responder, ao menos parcialmente, aos limites que tornariam as abordagens procedimentais da autonomia incapazes de considerar adequadamente a opressão e a dominação, sobretudo quando naturalizadas e internalizadas. Mas elas abrem outro conjunto de problemas. Considerando que a valorização da autonomia depende da apreensão da ideia de que há algo próprio ao indivíduo que se manifesta no modo como escolhe viver sua vida – como definido antes neste artigo a partir de Gerald Dworkin (2001 [1988]) –, há aqui o risco de que o peso da socialização e da opressão cresça nas análises de modo a comprometer a consideração da autonomia como horizonte normativo. A própria consideração da agência pode ficar comprometida, caso se entenda que a intersubjetividade dos significados, regras sociais e convenções determina seus limites. "Os indivíduos não estão completamente submersos nas regras, significados e deveres sociais", são também "superiores a elas, utilizando-as como a base necessária a partir da qual julgam, escolhem e agem", criando e transformando suas relações sociais (Pateman, 1985 [1979], p. 29).

Por isso, várias abordagens consideram graus de autonomia em vez de pressupor que seja possível analisar sua presença ou ausência, uma vez que a autonomia é exercida sempre em meio a constrangimentos (Benson, 1990; Friedman, 2003; Hague, 2011; Nussbaum, 2008 [2000]; Stoljar, 2000). Recuperam alguns aspectos das abordagens procedimentais, mas assumem que é necessário mobilizar valores que permitam de fato distinguir entre preferências, práticas e formas de vida mais e menos autônomas. Mas a consideração dos graus de autonomia e o entendimento de que a agência é sempre imperfeita podem servir também para criticar, se não os limites, os "excessos" das abordagens substantivas. Ao mobilizar valores tidos como objetivos para a análise das preferências e da agência dos indivíduos, recairiam num paternalismo característico da visão estigmatizadora que vê grande parte dos indivíduos como incapaz de autodeterminação das suas preferências e, assim, de agência autônoma. Recuperar a agência de indivíduos colocados em posição de dependência e subordinação demandaria levar em consideração as "suas" escolhas (Dworkin, 2001 [1988]). A sobrevalorização da autonomia presente em abordagens substantivas levaria a justificar medidas paternalistas, com o objetivo de "compelir as pessoas a quem identificamos como não-autônomas, ou insuficientemente autônomas, a tornar-se (mais) autodirigidas" (Oshana, 2003, p. 100).

Neutralidade e crítica à dominação

Recorri à distinção entre abordagens procedimentais e substantivas como forma de considerar as variações em análises que valorizam a autonomia como ideal normativo. Ainda que as abordagens não se encaixem em um ou outro desses rótulos – e não é esse o ponto, de fato –, a distinção ajuda também a considerar questões relativas à neutralidade, de um lado, e à definição de critérios para a caracterização do agir autônomo.

Parece relevante, neste momento da análise, distinguir entre a autonomia em sentido "global" e em sentido "local", ainda que hipoteticamente. Essa distinção colabora, aqui, para a análise crítica do valor da neutralidade, atrelado ao ideal da autonomia. Em um sentido "global", a autonomia corresponderia ao poder de uma pessoa para determinar como viverá sua vida, dirigindo-a de acordo com valores e preferências que considera relevantes. Essa definição, assim ampla, está presente em abordagens procedimentais e substantivas da autonomia. Mas um dos passos dados na distinção entre elas é a definição, adicional, da competência para a agência autônoma. Considerá-la coloca, de antemão, o problema da distinção entre indivíduos capazes de autonomia e indivíduos incapazes, ou insuficientemente capazes. O diagnóstico do que limita essa capacidade, por outro lado, nos permite voltar a considerar os efeitos da opressão e da dominação nas possibilidades de autonomia.

Para Marina Oshana, a autonomia, definida como autodireção, requer a liberdade positiva. A independência em relação à direção de outros e a desobstrução da autoridade de outros sobre as escolhas de um indivíduo seriam necessárias, mas não suficientes. A liberdade positiva remete, aqui, ao "desejo e habilidade para o autogoverno" (Oshana, 2003, p. 101) e à capacidade de tomar decisões sobre questões relevantes para a direção da própria vida. Os impedimentos à autodireção podem ser internos ou externos. Entre os primeiros, são considerados obstáculos vistos como psicológicos, como as compulsões e neuroses, e obstáculos vistos como intersubjetivos, como a baixa autoestima. Os impedimentos externos, por sua vez, são "a manipulação e a intimidação impostas por outros aos indivíduos, atitudes conformistas e expectativas insensatas em relação aos papéis sociais, sexismo, racismo ou pobreza" (Oshana, 2003, p. 102). A ausência de interferências não é suficiente para suspender vários desses constrangimentos, que podem, inclusive, não significar um obstáculo à liberdade dos indivíduos enquanto retiram deles a capacidade para a autodeterminação. "As escolhas de uma pessoa autônoma não devem ser apenas livres de obstruções (de outros ou de obstáculos internos), mas, para serem reais, essas escolhas devem estar socialmente, politicamente e economicamente a seu alcance" (Oshana, 2003, p. 104).

À definição dos recursos necessários à autodireção associa-se, também, a diferenciação entre autonomia, satisfação e bem-estar. A mulher que escolhe não assumir ou não manter trabalho remunerado ao casar-se ou ter um filho, tendo tomado essa decisão de maneira livre de constrangimentos ou da imposição de outros e considerando que essa forma de vida aumenta seu bem-estar, faz uma escolha que, sob certos critérios – que passariam pelo crivo de noções procedimentais da autonomia –, é autônoma. Ela corresponde ao sentido "local" da autonomia como autodireção: ela, de fato, escolheu autonomamente essa forma de vida. Mas o problema que se coloca, levando em conta o sentido "global" da autonomia, é que "a vida que ela escolhe, e em relação à qual ela não está alienada, é uma vida na qual ela é sistematicamente submetida ao desejo e às decisões de outros", é uma vida que promove a dependência e pode promover a subserviência (Oshana, 2003, p. 104)10 10 Esse exemplo foi aqui construído a partir de outro, dado por Oshana (2003, p. 104-106), em que uma médica afegã decide abandonar sua profissão para viver de acordo com as recomendações e normas do Taliban. O exemplo foi modificado e redefinido na argumentação que o segue porque entendo que, no caso do Taliban, há constrangimentos que se aproximam do que compreendemos como coerção, não sendo adequado para a consideração de escolhas em contextos nos quais há constrangimentos sociais mais "fluidos" e não impedimentos, que são o foco desta discussão. Há um elemento nele que é importante para a análise de situações não coercivas, como a que procurei trazer com o exemplo do casamento: a perda da capacidade para a autodeterminação convive com a valorização social e um sentido de valor-próprio e autoestima do qual decorre ao menos parcialmente o bem-estar. .

A mesma escolha que leva ao bem-estar subjetivo leva também a restrições nas possibilidades futuras de autodeterminação – não exercendo trabalho remunerado, torna-se dependente financeiramente do cônjuge ou de outros familiares, tem suas redes e aptidões não-domésticas e/ou profissionais diminuídas, torna-se vulnerável no caso de uma separação ou sente-se vulnerável demais para escapar a uma relação violenta ou que simplesmente não deseja mais manter. Sua decisão, ainda que "localmente" autônoma e não coagida, a insere potencialmente em "ciclos de vulnerabilidade socialmente causada e distintamente assimétrica" (Okin, 1989a, p. 138).

A partir da análise dos papéis de gênero que tornam as mulheres vulneráveis – papéis, no caso, fundados na divisão sexual do trabalho –, pode-se definir essa escolha como de menor valor relativo porque conduz à dependência. A relação entre autonomia e pluralidade não estaria, por isso, eliminada. Ela depende da consideração de que a autonomia comporta arranjos variados, mas "não implica que qualquer objetivo ou modo de vida seja tão bom quanto qualquer outro" (Kane apud Oshana, 2003, p. 106). Pode-se considerar que a autonomia tem "importância objetiva considerável para todas as pessoas, tenha ela ou não importância subjetiva para um indivíduo em particular" (Oshana, 2003, p. 107), tendo como horizonte normativo a superação de relações que posicionam os indivíduos de modo desvantajoso e que naturalizam padrões hierárquicos opressivos. Isso implica que a avaliação das condições em que as preferências e decisões serão consideradas autônomas é feita a partir de uma perspectiva que não é neutra em relação aos desejos e mesmo à satisfação dos próprios indivíduos.

Os critérios para essa avaliação estariam, portanto, fora do âmbito individual. Considero ao menos dois critérios possíveis. Um deles é o impacto dessas escolhas para a autonomia de outros indivíduos: decisões que parecem individuais e isoladas "podem ajudar a estabelecer e reproduzir normas de desigualdade que são prejudiciais a outras mulheres" (Sunstein, 1999, p. 88) ou a outros indivíduos, já que o problema colocado não se restringe às desigualdades de gênero. O outro é uma avaliação normativa do grau de justiça que está na base dessas preferências, isto é, que atravessa o contexto social, moral e institucional em que se definem. Esse segundo critério inclui a avaliação de se os padrões resultantes dessas preferências e das escolhas nelas fundadas são justos ou injustos11 11 A consideração dos padrões de justiça inclui, nesse caso, a esfera doméstica e familiar (Biroli, 2010; Okin, 1999) . A acomodação a relações assimétricas, baseadas na dependência ou fundadas no medo de represálias – da violência ou do isolamento – não é uma alternativa entre outras, mas uma alternativa que implica a adaptação a injustiças e que, como tal, contribui para bloquear possibilidades individuais e coletivas de reorganização das relações em direção a arranjos que não sejam moldados pela dominação e pela opressão (Nussbaum, 2008 [2000]; Okin, 1999).

Mas a distinção entre preferências autônomas e adaptativas traz novos problemas. Ela parece pressupor uma fronteira clara ou ao menos estável entre preferências "próprias" e preferências reativas e socialmente orientadas. Mas um dos aspectos que vem sendo considerado aqui, a partir do debate feminista, é justamente que a socialização borra essa fronteira, promovendo a internalização de significados, valores e práticas que estão na base dos papéis socialmente definidos. Além disso, e numa consideração de que socialização e internalização de valores e práticas não suprimem a agência, as preferências adaptativas e reações acomodatícias não significam que não exista o "conhecimento das circunstâncias e das forças efetivas que operam nessas circunstâncias", elencado como um requisito para a autodireção necessária ao exercício da autonomia (Oshana, 2003, p. 102).

Além disso, os critérios que são mobilizados para distinguir entre preferências autônomas e não autônomas podem extrapolar as questões relativas à autodeterminação e à crítica às formas de opressão e de dominação, mobilizando pressupostos e preconceitos de outra ordem.

A análise da agência no caso do aborto seletivo, em que as mulheres escolhem abortar ao descobrirem que o feto é do sexo feminino, exemplifica as dificuldades na definição do que vale e do que não vale como agência autônoma. A opção pelo aborto seletivo em grupos culturais nos quais o valor do bebê depende do seu sexo, e nos quais a situação da mulher nas relações familiares e comunitárias depende de que ela dê à luz um homem, pode ser vista como uma escolha fundada em uma preferência adaptativa. Essa escolha expressa sua capitulação a uma cultura misógina, e não preferências "próprias" (Sawitri Saharso apud Phillips 2007, p. 130 e 131).

O problema que se coloca é que a decisão de abortar pode ser, de forma mais ampla do que no exemplo do aborto seletivo, uma reação a constrangimentos, pressões e temores. Isso não significa que o aborto se dê sempre como uma reação a constrangimentos, mas que há situações em que é reconhecido como a expressão de preferências autônomas das mulheres sem que se possa pressupor a ausência de constrangimentos. A decisão pelo aborto devido à pobreza, à ausência de um companheiro ou a pressões familiares – isto é, devido a constrangimentos sociais comuns nas sociedades liberais ocidentais – seria mais autônoma do que no caso do aborto seletivo (Phillips, 2010, p. 118)? Transformados em políticas de Estado, esses julgamentos poderiam, por exemplo, diferenciar a agência das mulheres quando há um fator "cultural" nos constrangimentos a que estão submetidas e quando não há. Nesse caso, a consideração de graus de autonomia seria relativa ao pertencimento a culturas não ocidentais e não, necessariamente, ao fato de que as preferências sejam adaptativas12 12 É importante deixar claro que Anne Phillips não justifica o aborto seletivo nessa discussão. Sua preocupação, no entanto, é com o recurso à "cultura" como forma de considerar diferentemente as agências das mulheres nas sociedades ocidentais e nas não ocidentais. O exemplo aparece justamente em texto no qual defende que uma posição normativa clara a favor da igualdade requer ao mesmo tempo o suporte ao feminismo e ao multiculturalismo (Phillips, 2007). .

A preocupação, nesta discussão, é com a tendência a assumir que os indivíduos pertencentes a minorias culturais são motivados por sua cultura, enquanto outros (ou melhor, "nós") são motivados pelas nossas escolhas (Phillips, 2007, p.27). A não ser que se considere que a alternativa entre circunstâncias sociais e agência individual é uma base adequada para a crítica, a alternativa entre cultura e agência individual parece igualmente problemática. O exemplo do aborto seletivo parece produtivo para iluminar esse aspecto da discussão. Mas, em outro sentido, as ambiguidades que ele expressa parecem enfraquecer-se. É possível, ao mesmo tempo, sustentar que se uma mulher opta por abortar essa opção é legítima, com base em outros critérios – como o direito a decidir sobre seu corpo e sobre a forma de vida que pretende levar –, e argumentar que há formas indefensáveis de opressão e de injustiça em sociedades (ou comunidades de cultura) nas quais a mulher é levada a abortar porque a aceitação futura de seu filho e de si depende do sexo do feto. Assim colocada, a defesa do direito ao aborto – como um direito inextricavelmente ligado ao reconhecimento dos direitos individuais e da capacidade de autodeterminação das mulheres – é lógica e politicamente compatível com a crítica às formas de opressão implicadas na pobreza, na exploração e no "patriarcado".

Agência diferenciadamente imperfeita

O reconhecimento de que a agência autônoma se dá sempre em meio a constrangimentos e pressões permite ultrapassar a alternativa entre considerar as mulheres como "vítimas sem agência" ou considerar que essa é uma questão resolvida nas democracias contemporâneas, que lhes garantiriam a "saída" e a busca de alternativas compatíveis com seus direitos individuais (Phillips, 2007, p. 147 e p. 149). Nesse caso, os indivíduos são ora vistos como incapazes de agir – eliminam-se reflexão, escolhas e agência diante da existência de constrangimentos à autodeterminação –, ora considerados livres para definir autonomamente o curso de suas vidas quando são suspensas autoridade e coerção – varrem-se para debaixo do tapete as formas cotidianas de opressão, o efeito de padrões opressivos de socialização, e o exercício, mesmo que fluido, da dominação (Phillips, 2007, p. 150).

A agência é sempre imperfeita em relação ao ideal normativo da autodireção e autodeterminação pelos indivíduos de suas preferências. Essa imperfeição é o modo mesmo de expressão da agência individual, consideradas a socialização, o caráter social e intersubjetivo dos valores que são mais caros aos indivíduos e as relações de poder que atravessam, ainda que diversamente, os contextos em que as preferências individuais se definem e a agência toma forma. Na análise da posição da mulher nas relações de gênero, a compreensão da agência imperfeita como expressão regular, e não como desvio, permite desvinculá-la de estereótipos de gênero – sejam eles estereótipos "do mal" (a mulher é incapaz de agir autonomamente porque falta a ela o desenvolvimento moral necessário) ou "do bem" (a mulher não corresponde às expectativas em relação à agência autônoma porque tem uma preocupação maior com os que a cercam, com aqueles com quem tem laços afetivos, do que consigo mesma), isto é, afinados ou não com a valorização de uma perspectiva supostamente feminina.

Mas a compreensão de que a agência se define regularmente em meio a valores e expectativas socialmente definidos, que constituem o horizonte das preferências e possibilidades dos indivíduos, não suspende a crítica que a análise da opressão de gênero nas sociedades democráticas ocidentais colaborou para avançar.

A agência é diferenciadamente imperfeita, em pelo menos dois sentidos:

(1) os indivíduos não são efetivamente iguais. A universalização dos direitos convive com formas de dominação, exploração e opressão que têm impacto na definição do horizonte de possibilidades e das ambições, assim como das escolhas efetivamente disponíveis para os indivíduos. O âmbito da individualidade e as possibilidades de autodeterminação são diferentemente delimitados em função da posição social desses indivíduos (se são homens ou mulheres, ricos ou pobres, proprietários ou não proprietários, negros ou brancos etc.).

(2) Os indivíduos não são definidos como agentes igualmente competentes. Há filtros ancorados em preconceitos, estereótipos, tradições culturais e religiosas, e eles colaboram para o desenvolvimento diferenciado das competências necessárias para o agir autônomo. A capacidade para o exercício da autonomia é socialmente significada e representada. As fronteiras entre ser vista como incompetente para autodirigir-se, segundo os padrões sociais e estereótipos vigentes, e ver a si mesma dessa forma não são claras. Essa continuidade pode estar na base da falta de habilidade das mulheres para reconhecer a si mesmas como pessoas livres ou, por outro lado, do entendimento de que são livres mesmo quando tomam parte em relações injustas e opressivas13 13 Phillips (2010, p. 108) atribui a primeira concepção a Simone de Beauvoir e a segunda a Martha Nussbaum. .

O primeiro sentido ressalta o fato de que o processo de produção das preferências e dos interesses é supraindividual e remete às posições em uma coletividade, "ao contexto em que a preferência é expressa, às regras legais existentes, escolhas passadas de consumo e à cultura em geral" (Sunstein, 2009 [1991], p. 225). Destaca, ainda, o fato de que as possibilidades de definir autonomamente as preferências e de agir com base em preferências assim definidas dependem da posição social dos indivíduos, que se define não apenas pelas diferenças entre eles mas também pelo acúmulo das desigualdades e desvantagens (Phillips, 2006). Formas estruturais de dominação e opressão restringem a capacidade e as possibilidades do exercício da autonomia pelos indivíduos.

O segundo sentido – o reconhecimento de si própria como livre mesmo em uma relação opressiva – está mais diretamente ligado aos problemas relativos à socialização, à internalização da opressão e aos mecanismos de "reprodução da subordinação" que permanecem "mesmo quando as mulheres agem cada vez mais como indivíduos que não estão sob o comando direto de um homem" (Fraser, 1997, p. 235). São parte dos problemas aqui colocados os exemplos de mulheres que permanecem em relações nas quais sofrem humilhação, agressão e/ou outras formas de violência, mas não denunciam o agressor ou retiram denúncias feitas anteriormente (Mackinnon, 1989; Nussbaum, 2008 [2000])14 14 Uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 9 de fevereiro de 2012 torna possível iniciar ação penal contra agressores sem a denúncia, e mesmo sem o consentimento, da vítima. O mesmo colunista da Folha de S. Paulo aqui citado no exemplo da cesariana critica a decisão do STF com base na defesa da autonomia da mulher para decidir, mesmo que essa decisão seja pela proteção do agressor ou por manter-se em uma relação violenta: "(...) Sou do tempo em que a razão mesma do movimento feminista era afirmar a autonomia da mulher, isto é, fazer avançar a noção de que ela é capaz de fazer suas escolhas em qualquer situação. As implicações não são triviais: a mulher deve ser livre para abortar, divorciar-se e – por que não? – definir se processa ou não o companheiro agressor" (Hélio Schwartsman, "Feminismo e autonomia", Folha de S. Paulo, 11/2/2012, p. 2). . O exemplo anterior sobre a opção por deixar de exercer trabalho remunerado ao casar-se ou ter filhos e a inserção em "ciclos de vulnerabilidade" também se aplica aqui.

Nesse ponto, a incorporação das perspectivas dominantes pode ser alçada a um problema central. Estaria em curso a escravização das mentes (Mill e Mill, 2001 [1869]) ou o reconhecimento do mundo – e das opções e formas de vida possíveis – a partir das categorias que esse mundo tornou disponíveis, como um desdobramento das disposições adquiridas e da condicionabilidade, como é definido no efeito de doxa em Pierre Bourdieu (2001 [1997], p. 166).

No caso específico das mulheres, um desdobramento dessa incorporação pode ser a reprodução ativa da posição que lhes é reservada numa sociedade machista, isto é, a transposição das categorias organizadoras das hierarquias de gênero para a gramática "própria" dos seus desejos e expectativas. O ponto de vista da dominação é considerado, em algumas abordagens, sistêmico e hegemônico. Ele definiria, amplamente, o significado de "mulher" para as próprias mulheres, que apreenderiam a realidade em seus termos (Mackinnon, 1989, p. 114). Em um contexto em que o ponto de vista masculino constitui a perspectiva "universal" do Estado, das leis e da indústria cultural, a mulher seria privada dos referenciais que possibilitariam que se construísse como um self. Há contextos nos quais falta aos indivíduos a própria noção de que algo vai errado quando há abuso e exploração, assim como o conceito de si como indivíduo portador de direitos que não podem ser violados (Nussbaum, 2008 [2000], p. 113).

Mas mesmo em abordagens feministas nas quais a reprodução da dominação pelas próprias mulheres é um problema central, como a de Simone de Beauvoir, a de Catherine Mackinnon, mencionada acima, e a de Iris Young15 15 Para uma análise da distinção entre as abordagens das três autoras, a partir dos conceitos de experiência vivida, conhecimento vivido e perspectiva, conferir Biroli (2013). , a exposição das fissuras na dominação estabelece uma diferença significativa em relação à ênfase estrita na reprodução da dominação pelos próprios agentes. Do fato de que não existe uma posição exterior à dominação e aos constrangimentos sociais não decorre, histórica e analiticamente, que a perspectiva dos indivíduos será uma reposição do léxico que justifica sua posição social16 16 Conferir Bourdieu, 2005 [1998] e as críticas a seu A dominação masculina feitas por Young (2005) e Moi (1999). . A vivência do corpo e da sexualidade pela mulher, foco da opressão de gênero em diferentes tempos e contextos, é um exemplo das fissuras na dominação e de sua ressignificação pelos indivíduos (Young, 2005).

Mesmo na abordagem de Mackinnon, que apresenta uma posição-limite, compreendendo que as experiências femininas em sociedades nas quais persistem relações de gênero assimétricas equivalem a uma consciência mistificada de si, a ressignificação das experiências e identidades das mulheres aparece como uma possibilidade – e uma alternativa historicamente viabilizada pelas próprias mulheres e pelo feminismo. O compartilhamento das experiências entre as mulheres lhes daria acesso a um "conhecimento vivido da realidade social de ser mulher" (Mackinnon, 1989, p. 90)17 17 Mackinnon tem como modelo os grupos de mulheres nos Estados Unidos, nas décadas de 1970 e 1980. A ressignificação das experiências depende de condições que se assemelham àquelas consideradas por Fraser com a noção de "contrapúblicos subalternos" (1997 [1992], p. 123). .

O que antes foi mencionado como internalização das categorias da dominação, transformadas na base das expectativas e preferências particulares do indivíduo, aqui reaparece como transposição de uma condição de alienação (visão de si a partir de um ângulo de visão masculino) em direção à consciência da própria posição social (Mackinnon, 1989, p. 94-95). O reconhecimento da privação do self em benefício de outros – no caso, dos homens –, que a condição da mulher envolveria nas sociedades nas quais as hierarquias de gênero são opressivas e violentas, seria fundamental para a agência, para a construção autônoma de si (Mackinnon, 1989, p. 86 e 89-91).

A valorização do conhecimento vivido das mulheres se dá por meio do reconhecimento de que sua experiência não é individual, mas compartilhada. Seu mal-estar não resulta de algum tipo de desajuste individual, mas da violência à qual é submetida. Nessa perspectiva, a agência autônoma é possível quando a dominação é superada. A autonomia é um desdobramento da reflexão sobre as bases das preferências e das identidades que são nela fundadas. A autorreflexão, que nas abordagens procedimentais antes discutidas é um critério para o reconhecimento da agência em seus próprios termos, levando a reconhecer como autônomas opções que não correspondem a uma distância reflexiva em relação à dominação (Friedman, 2003), é, na abordagem de Mackinnon, uma condição suficiente se, e apenas se, está associada à superação da dominação, à redefinição da perspectiva da mulher e à reorganização de sua posição nas relações sociais, incluído aí o âmbito da intimidade18 18 A noção de autonomia decisória é, em abordagem distinta e mesmo oposta à de Mackinnon em vários aspectos, importante na análise de Jean Cohen sobre a intimidade e o direito à privacidade (2012 [1997]). .

A manutenção da autonomia como horizonte normativo requer, nesse sentido, o enfrentamento crítico do problema da internalização da dominação. Uma das alternativas presentes nas abordagens aqui consideradas é o "escrutínio crítico das preferências e desejos" dos indivíduos, sem o receio de que o abandono da posição de neutralidade seja estigmatizado como autoritarismo. Ele poderia revelar o modo como "hábito, medo, baixas expectativas e condições prévias injustas deformam as escolhas das pessoas e o que esperam de suas próprias vidas" (Nussbaum, 2008 [2000], p. 114).

Essa posição depende da definição de critérios a partir de uma posição externa à dos próprios indivíduos, com base nos quais seria possível diferenciar as preferências que reproduzem hierarquias opressivas, muitas vezes reafirmando as condições de opressão nas quais foram engendradas, e as preferências que fundamentam decisões que contribuem para a autodefinição e o autodesenvolvimento dos indivíduos.

Conclusão

O reconhecimento da complexidade dos processos de produção das preferências e das escolhas feitas pelos indivíduos é fundamental para a crítica às desigualdades. No debate contemporâneo, o multiculturalismo é uma das correntes que promoveram esse reconhecimento na medida em que destaca, em diferentes abordagens, o peso das tradições e convenções religiosas na produção das preferências. Mas acaba, na maior parte das vezes, limitando a discussão a tradições, comunidades e minorias culturais não ocidentais, com destaque para sua posição no contexto europeu e norte-americano.

Pelo desenvolvimento histórico do feminismo, e pelos pesos desiguais dos centros de pesquisa e do mercado editorial, a maior parte da crítica que ganhou expressão nas últimas décadas foi produzida nos países ocidentais, sobretudo no hemisfério norte, e é voltada para o cotidiano da opressão nas sociedades liberais ocidentais. O que poderia ser um limite se torna, para os fins desta discussão, uma vantagem, porque permite avançar na reflexão sobre formas de opressão persistentes em contextos nos quais os direitos individuais são formalmente garantidos. É justamente nesses contextos que parte da teoria e da análise política contemporâneas encontra bases vistas como sólidas para ignorar os processos sociais de produção das preferências, tomando a agência individual como dado ou contrapondo agência perfeita e imperfeita.

Além disso, as ambigüidades congênitas que caracterizam a análise da agência das mulheres no feminismo ampliam seu potencial crítico. A consideração sistemática dos efeitos dos padrões de socialização, dos estereótipos e das formas de internalização das hierarquias convive, conflituosamente, com a busca pelo reconhecimento da voz, das perspectivas e dos interesses que seriam próprios às mulheres, mas que estariam silenciados pela dominação masculina. Justamente porque os problemas que essa dicotomia coloca são, analítica e teoricamente, reconhecidos por várias autoras nesse debate, são muitos os matizes analíticos entre a denúncia do roubo da voz e a busca de um timbre propriamente feminino que a dominação não teria sido capaz de alterar.

O artigo apontou, em abordagens distintas, as exigências colocadas para que preferências e agência sejam definidas como autônomas. Procurou, sobretudo, considerar os problemas que se impõem à reflexão sobre a distinção entre graus de autonomia, sobre o desenvolvimento das condições e competências necessárias à autodeterminação e sobre as possibilidades efetivamente disponíveis para a produção autônoma das preferências e o exercício efetivo da autodeterminação.

Entendo, a partir dessas análises e considerações, que o compromisso com a igualdade e a crítica à opressão requerem critérios normativos claros para a análise das preferências dos indivíduos. A manutenção da autonomia como horizonte normativo requer a análise crítica das preferências que reiteram a dependência e não permitem a constituição das condições e competências necessárias à autonomia (Nussbaum, 2008 [2000]) e dos atos voluntários que tomam forma em relações assimétricas e opressivas (Pateman, 1985 [1979], 1989; Phillips, 2010). Sem ela, o valor da autonomia seria esvaziado do que lhe é fundamental: a concepção dos indivíduos como agentes morais que são efetivamente capazes de decidir como viverão suas vidas, de participar das decisões que têm impacto sobre si e sobre a coletividade de que fazem parte.

A consideração de que a agência é regularmente imperfeita, isto é, de que os indivíduos agem em meio a constrangimentos, permite romper com estereótipos – a agência imperfeita não é característica de um ou outro grupo social moral e eticamente "deficitário" – e considerar de que modo formas ativas de dominação e opressão modulam as possibilidades e as capacidades para a autodeterminação dos indivíduos.

O complemento necessário ao entendimento de que a agência é imperfeita é o de que a agência é desigualmente imperfeita, permitindo considerar de que modo as formas de opressão e o acúmulo de desigualdades incidem sobre as condições sociais em que as preferências são produzidas. O impacto das relações de poder e dos padrões opressivos de socialização é diferenciado, seletivo e orientado. Os problemas presentes na análise da autonomia como horizonte normativo remetem às possibilidades e capacidades que cada indivíduo terá para desenvolver-se e definir sua própria vida. Mas os impedimentos a essa autodeterminação têm impacto diferenciado segundo o pertencimento dos indivíduos a grupos sociais: organizam-se estruturalmente e incidem de maneira diferenciada segundo a posição estrutural dos indivíduos.

As variações nas competências para o agir autônomo remetem, assim, às desigualdades estruturais, e não às idiossincrasias da personalidade, às fraquezas dos temperamentos – ou do sexo – dos indivíduos. Por outro lado, destacam as conexões entre as escolhas individuais e a reprodução da opressão e das desigualdades. A ativação, pelos indivíduos, de padrões sociais opressivos não resulta em vivências e valores que ficam contidos dentro dos limites da individualidade. As preferências e escolhas que reiteram hierarquias opressivas contribuem para naturalizá-las. Podem, ainda, expressar-se politicamente de modo a reproduzir os mecanismos que impedem ou dificultam a redefinição das normas, valores e padrões de referência em direção a instituições e relações mais próximas dos ideais, tensamente casados, da igualdade e da autonomia individual.

Bibliografia:

Recebido em 6 de junho de 2012.

Aprovado em 1º de setembro de 2012.

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  • 1
    Este texto integra os projetos de pesquisa "Desafios da teoria democrática numa ordem desigual: contribuições das teorias políticas feministas" (CNPq 20/2010) e "Desigualdades e preferências: a tensão entre o valor da autonomia individual e a crítica à opressão na teoria política contemporânea" (PQ/CNPq). Resulta da apresentação feita no Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, que aconteceu na Universidade de Brasília entre 23 e 26 de abril de 2012. Agradeço aos colegas das mesas-redondas e participantes do simpósio pelos comentários. Agradeço, especialmente, a Luis Felipe Miguel pelas críticas a uma versão anterior do artigo.
  • 2
    Na perspectiva assumida por Gerald Dworkin (2001 [1988], p. 11), Stuart Mill é incluído entre os autores que trabalhariam com a autonomia como ideal social, mas entendo que o aspecto central à definição da autonomia como ideal político para Dworkin, que é a noção de igual respeito (sobretudo às crenças, formas de vida e concepções de bem), está presente também em Mill.
  • 3
    Lembro que essa posição convive, em Mill, com a análise dos limites à liberdade daqueles que não seriam, por diferentes razões, capazes do exercício da autodeterminação, como as crianças e os bárbaros.
  • 4
    As citações neste parágrafo e no seguinte são da coluna "Excesso de cesarianas?", de Hélio Schwartsman, publicada na p. 2 do jornal
    Folha de S. Paulo em 23 de novembro de 2011. Os grifos foram acrescentados por mim.
  • 5
    Uma razão óbvia para isso, no caso brasileiro, é a criminalização do aborto, que nega às mulheres parcela importante do direito sobre seu corpo. Mas esse é um caso em que o direito é claramente negado, mesmo quando existem preferências que são contrárias ao que define a lei. Nessa discussão, o exemplo da cesariana é mais apropriado porque expõe uma situação na qual o direito existe, a decisão pode estar sendo tomada sem que exista coerção, mas pode haver, ainda assim, dúvidas sobre o grau de autonomia nela envolvido devido às relações de poder que a constituem.
  • 6
    O problema da baixa autoconfiança é parte importante da condição de "autovalorização" que seria necessária para que a agência fosse considerada autônoma, na definição de Paul Benson (1994). O que está em questão é a dimensão intersubjetiva do reconhecimento de quais são os interesses próprios aos indivíduos e de seu valor e legitimidade.
  • 7
    No original, "raise herself up 'by her boot-straps'".
  • 8
    Para Friedman (2003, p. 103), a concepção atomista e "self-made" da autonomia não é, no entanto, neutra; é uma concepção substantiva que define o tipo de vida que alguém deve levar para que seja considerado autônomo.
  • 9
    Em algumas abordagens, a crítica à estigmatização inclui a recusa à valorização do ideal da autonomia, que é visto como um mito que compromete a reflexão sobre os mecanismos de reprodução das desigualdades e impõe obstáculos ao entendimento de que deve haver responsabilidade coletiva pela dependência (Fineman, 2004). Para uma análise da relação entre autonomia e responsabilidade no debate teórico contemporâneo, conferir Biroli (2012).
  • 10
    Esse exemplo foi aqui construído a partir de outro, dado por Oshana (2003, p. 104-106), em que uma médica afegã decide abandonar sua profissão para viver de acordo com as recomendações e normas do Taliban. O exemplo foi modificado e redefinido na argumentação que o segue porque entendo que, no caso do Taliban, há constrangimentos que se aproximam do que compreendemos como coerção, não sendo adequado para a consideração de escolhas em contextos nos quais há constrangimentos sociais mais "fluidos" e não impedimentos, que são o foco desta discussão. Há um elemento nele que é importante para a análise de situações não coercivas, como a que procurei trazer com o exemplo do casamento: a perda da capacidade para a autodeterminação convive com a valorização social e um sentido de valor-próprio e autoestima do qual decorre ao menos parcialmente o bem-estar.
  • 11
    A consideração dos padrões de justiça inclui, nesse caso, a esfera doméstica e familiar (Biroli, 2010; Okin, 1999)
  • 12
    É importante deixar claro que Anne Phillips não justifica o aborto seletivo nessa discussão. Sua preocupação, no entanto, é com o recurso à "cultura" como forma de considerar diferentemente as agências das mulheres nas sociedades ocidentais e nas não ocidentais. O exemplo aparece justamente em texto no qual defende que uma posição normativa clara a favor da igualdade requer ao mesmo tempo o suporte ao feminismo e ao multiculturalismo (Phillips, 2007).
  • 13
    Phillips (2010, p. 108) atribui a primeira concepção a Simone de Beauvoir e a segunda a Martha Nussbaum.
  • 14
    Uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 9 de fevereiro de 2012 torna possível iniciar ação penal contra agressores sem a denúncia, e mesmo sem o consentimento, da vítima. O mesmo colunista da
    Folha de S. Paulo aqui citado no exemplo da cesariana critica a decisão do STF com base na defesa da autonomia da mulher para decidir, mesmo que essa decisão seja pela proteção do agressor ou por manter-se em uma relação violenta: "(...) Sou do tempo em que a razão mesma do movimento feminista era afirmar a autonomia da mulher, isto é, fazer avançar a noção de que ela é capaz de fazer suas escolhas em qualquer situação. As implicações não são triviais: a mulher deve ser livre para abortar, divorciar-se e – por que não? – definir se processa ou não o companheiro agressor" (Hélio Schwartsman, "Feminismo e autonomia",
    Folha de S. Paulo, 11/2/2012, p. 2).
  • 15
    Para uma análise da distinção entre as abordagens das três autoras, a partir dos conceitos de experiência vivida, conhecimento vivido e perspectiva, conferir Biroli (2013).
  • 16
    Conferir Bourdieu, 2005 [1998] e as críticas a seu
    A dominação masculina feitas por Young (2005) e Moi (1999).
  • 17
    Mackinnon tem como modelo os grupos de mulheres nos Estados Unidos, nas décadas de 1970 e 1980. A ressignificação das experiências depende de condições que se assemelham àquelas consideradas por Fraser com a noção de "contrapúblicos subalternos" (1997 [1992], p. 123).
  • 18
    A noção de autonomia decisória é, em abordagem distinta e mesmo oposta à de Mackinnon em vários aspectos, importante na análise de Jean Cohen sobre a intimidade e o direito à privacidade (2012 [1997]).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      06 Jun 2012
    • Aceito
      01 Set 2012
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