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A DESOBEDIÊNCIA PODE SER INCIVIL?

CAN DISOBEDIENCE BE UNCIVIL?

DELMAS, Candice. . A Duty to Resist: when disobedience should be uncivil.Nova York, Oxford University Press, 2018, pp.313.

Candice Delmas é professora assistente de filosofia e ciências sociais na Northeastern University de Boston, Massachusetts (EUA) e vem trabalhando, ao longo de sua carreira, com o tema da desobediência civil, tendo publicado uma série de artigos sobre o assunto em importantes periódicos de filosofia, direito e ciências sociais. Em 2018, publicou pela Oxford Unversity Press seu livro A duty to resist: when disobedience should be uncivil, título que pode ser traduzido livremente para o português como “Um dever de resistência: quando a desobediência deve ser incivil”. Na obra, Delmas pretende mostrar que os mesmos princípios que sustentam o dever de obediência também impõem deveres de desobediência em condições de injustiça; assim, o dever natural da justiça, o princípio de equidade, o dever do samaritano e a associação entre política e a dignidade, que fundamentam os princípios liberais e democráticos para a obediência à lei, também fundamentariam um dever de resistir às leis injustas. Nos próximos parágrafos, apresentarei e examinarei cada um desses princípios e, por meio deles, a argumentação de Delmas.

Além de fundamentar a resistência às injustiças em princípios liberais, Delmas afirma que esta deve ir além da desobediência civil. A definição atual de desobediência civil está ancorada no pensamento de John Rawls, filósofo político estadunidense do século XX, professor de filosofia de Harvard, que ganhou notoriedade sobretudo a partir de 1971, com a publicação do livro Uma teoria da justiça, visto por muitos como a principal obra de filosofia política do século passado. Apesar do objetivo rawlsiano ser, grosso modo, “[...] elevar a um nível maior de abstração a ideia do contrato social: formalizar um ponto de vista imparcial para a escolha de princípios para a estrutura básica de uma democracia constitucional já consolidada” (Werle, 2010WERLE, D. L. Vontade geral, natureza humana e sociedade democrática justa. Rawls leitor de Rousseau.In: Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 7, n. 4. 2010,pp. 31-52., p. 39), Rawls (1997 [1971]) também fez considerações importantes sobre a desobediência civil. Para ele, esta é “[...] um ato público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas do governo [...]” (Rawls, §55, p. 404).

Para Delmas, o problema da desobediência civil rawlsiana é que poucas ações desobedientes, hoje e historicamente, atendem a esses requisitos. Ela afirma, por exemplo, que apesar de Thoreau, Gandhi e Luther King serem a “santíssima trindade” da desobediência civil, seus atos e pensamentos não seriam vistos como tal segundo a definição tradicional dos filósofos (decorrente da visão rawlsiana) sobre esse tipo de dissensão. O ato desobediente de Thoreau, o não pagamento de impostos, não foi público (tornou-se conhecido apenas quando ele escreveu e lecionou sobre o assunto) e apelava para a questão da tributação. No pensamento de Rawls, a dissensão de Thoreau seria vista como um ato de objeção de consciência, algo que diz respeito à ideia de vida boa e de valores morais, filosóficos e/ou religiosos do cidadão, cidadã ou grupo de cidadãos. Da mesma forma, a luta de Gandhi contra a colonização exploradora do Reino Unido sobre a Índia não estaria enquadrada na definição rawlsiana da desobediência civil, por possuir objetivos revolucionários. O boicote realizado por Luther King não foi um ato ilegal e, assim, não se tratava de uma desobediência rawlsiana.

Dessa forma, mesmo reconhecendo o potencial emancipatório da teoria rawlsiana, Delmas afirma que a concepção ordinária da desobediência civil, baseada em Rawls, tenderia a minar as lutas emancipatórias, pois é moldada por uma teoria idealizada e uma leitura irrealista da luta pelos direitos civis afro-americanos; assim, desestimularia o descumprimento da lei, reforçando o status quo.1 1 Segundo Delmas, a leitura oficial do movimento dos direitos civis não é apenas imprecisa em sua apresentação das atitudes e dos ideais de seus agentes, como também funciona em parte, graças a esta imprecisão, como uma ideologia de contra-resistência, que ignora as contribuições de ideologias, grupos e movimentos como o nacionalismo negro, o Partido dos Panteras Negras, a Nation of Islan, o pan-africanismo, movimentos de trabalhadores negros, de direitos dos prisioneiros, o feminismo negro, o terceiro-mundismo e diversas organizações de libertação marxista. Segundo a autora, adeptos de alguns desses grupos menos reconhecidos recorreram à violência e exigiram a derrubada do sistema racista e imperialista; mas a história oficial põe estes ativistas e movimentos radicais de lado, mesmo que tenha sido graças a seu fracasso que Luther King foi visto como moderado e angariou, assim, o apoio dos liberais brancos. Delmas afirma que há uma consonância entre a perspectiva de Rawls e a narrativa oficial dos movimentos por direitos civis que forma o imaginário público acerca da desobediência civil, mas que essa é, portanto, uma concepção ideológica de contra-resistência, que defenderia o status quo por meio de uma série de movimentos conformistas. Ademais, para a autora, nem mesmo os relatos inclusivos de desobediência civil oferecidos por Celikates e Brownlee são suficientes.2 2 Para a autora, as concepções inclusivas de Celikates e Brownlee mantêm a visão central de Rawls de que a desobediência civil é, essencialmente, um ato comunicativo que visa à mudança política; dessa forma, o conceito de desobediência civil, apesar de ser estendido para além do reconhecimento, tem poucas chances de convencer o público e, portanto, baixa pontuação no coeficiente político-útil. Para Delmas, esses relatos inclusivos da desobediência civil também perdem o ponto de muitas ações desobedientes, pois os agentes destas por vezes se recusam a seguir o roteiro padrão da desobediência civil; eles querem ser percebidos como radicais e provocadores, em vez de civis. Dessa forma, a civilidade pode ser abertamente rejeitada pelos desobedientes, e a não civilidade (ou incivilidade), ser usada como estratégia para divulgar a causa de um grupo. Assim, deve-se expandir o repertório da desobediência civil para modos potencialmente aceitáveis de resistência ilegal; é necessário abrir a possibilidade de que haver justificativa para atos de desobediência incivil. É necessário, para Delmas, um repertório mais rico de resistência política que inclua, portanto, a desobediência incivil.

A desobediência incivil, portanto, pode incluir atos encobertos ou secretos (covert), evasivos (evasive), anônimos; mais do que minimamente destrutivos ou deliberadamente ofensivos, eles são geralmente incivilizados (uncivil), especialmente se apresentarem mais de uma dessas características. Para Delmas, atos de desobediência incivil podem ser mais eficazes do que atos de desobediência civil, pois têm maior capacidade de alterar radicalmente o status quo; os desobedientes incivis forçam a comunidade a enfrentar a desconexão entre sua realidade e seus ideais professados, fazendo com que as pessoas questionem a “amizade cívica” (civic friendship), a autenticidade do compromisso entre a comunidade e essa amizade. Amizade cívica, segundo o conceito moderno e liberal utilizado pela autora, consiste na disposição dos cidadãos e cidadãs de viver juntos, em cooperação, por meio do apoio comum à reciprocidade mútua, apesar de suas diferenças individuais. Para Delmas, atos de desobediência incivil não corroem necessariamente a amizade cívica; mas, mesmo quando o fazem, podem ser justificadas com base no argumento (amplamente liberal e democrático) de que contribuem para o avanço da justiça e da democracia, sacudindo o público para que reconheça queixas de opressão prementes.

Assim, mesmo que atos de desobediência incivil sejam contraproducentes em relação ao objetivo mais amplo de causar uma mudança sociopolítica, eles ainda podem constituir expressões intrinsecamente válidas de dissidência, solidariedade e ação. O ponto, para Delmas, é que não é razoável esperar que aqueles que suportam os fardos da opressão satisfaçam as exigências da civilidade, já que estas visam preservar laços cívicos que não se estendem a eles e servem mesmo para manter a opressão sobre seus ombros. A incivilidade pode, portanto, ser apropriada – e a desobediência incivil, justificada – nas situações em que os agentes são oprimidos, silenciados e marginalizados. Além disso, segundo a autora, a desobediência incivil ainda questiona as regras do engajamento público e os limites da civilidade e da razão pública, colocando em questão quem pode falar, onde, quando e como. Ao desafiar as regras, a desobediência incivil ajuda a isolar as decepções da amizade cívica; ao não obedecer às regras estabelecidas, os desobedientes incivis apontam para seus efeitos excludentes e convidam à reflexão.

É nesse contexto que Delmas afirma que o dever de resistir à injustiça é parte essencial das obrigações políticas das pessoas, fundamentado pelo mesmo dever natural da justiça (ou obrigação política) que exige obediência às leis. Já que o dever de justiça define as pessoas como agentes morais livres e iguais, não pode exigir o cumprimento de leis, políticas, práticas e instituições que desprezam o status de liberdade e igualdade inerente a todos os seres humanos. Desrespeitar esse status equivaleria a endossar ataques e violações à igualdade democrática, o que é proibido pelo dever de justiça. Assim, o próprio dever primeiro de justiça fornece bases para o dever de protestar e, às vezes, de desobedecer civilmente, com base na natureza comunicativa desses atos e no potencial de realização de reformas. Delmas vai além: afirma que atos de desobediência incivil também seriam justificados pelo princípio de obrigação política.

O dever de justiça, nessa visão, não é apenas cumprir os desígnios de instituições democráticas justas, mas também resistir à injustiça, por meios civis e potencialmente incivis, quando a lei viola a justiça ou mina a igualdade democrática. O dever de justiça obriga moralmente as pessoas a resistir à injustiça, seja em estados legítimos ou ilegítimos. Isto é, mesmo em estados democráticos legítimos, o dever de justiça não pode obrigar as pessoas a cumprir a lei se isso contribuir para negar o status igual e livre de todos e/ou se a lei se apoiar instituições corruptas. Para Delmas, ele exige resistir à injustiça e, no processo, apoiar a desobediência de princípios; como as instituições políticas estão abaixo do ideal, a obediência à lei não é a única obrigação política e nem necessariamente a mais importante.

A resistência pode ou não reconhecer a legitimidade do sistema; da mesma forma, os princípios que a fundamentam podem ou não ser dignos de reconhecimento público. A resistência em busca do nacionalismo branco, por exemplo, seria injustificável. De modo geral, Delmas define resistência como um “[...] continuum multidimensional de atos e práticas dissidentes, todos eles expressando a condenação e/ou a recusa em conformar-se com as normas do sistema dominante [...]” (Delmas, p. 10; p. 127). Assim, para a autora, a resistência pode ser exercida por meio de um vasto leque de atividades, incluindo petições, manifestações, greves, desacelerações (slowdowns), boicotes e esforços para atuar dentro dos canais políticos e legais apropriados.

Além do dever de justiça implicar na resistência às injustiças, mesmo que na forma de desobediência de princípios, inclusive incivil, o princípio da equidade ou fair-play (intercambiáveis na obra da autora) também impõe que as pessoas resistam à injustiça e desobedeçam às leis, recorrendo a formas incivis de desobediência se for o caso. Segundo Delmas, uma vez que o princípio de equidade exige reciprocidade (reciprocity) dos cidadãos e cidadãs em um sistema de cooperação, estes assumem partes equitativas do ônus associado à produção de benefícios. O dever do fair-play proíbe tirar proveito da disposição das pessoas de cumprir as regras de um esquema voltado para o benefício de todos; quando uma pessoa se aproveita dos benefícios produzidos pelas demais sem fazer sua parte, isso configura uma espécie de jogo sujo (foul play), conhecido como “parasitismo” (free-riding). O princípio da equidade protege contra dois tipos de esquemas sociais cooperativos injustos, exploradores (exploitative) e prejudiciais (harmful). O primeiro caracteriza-se por distribuir encargos e benefícios de forma sistematicamente questionável, pois um grupo trabalha mais e recebe menos que outro; no segundo tipo, apesar de benefícios e encargos serem distribuídos entre os participantes de modo justo, impõem-se aos não membros externalidades negativas ou danos. Para Delmas, em casos de esquemas injustos, a desobediência de princípio incivil afirma que todos os participantes devem se recusar à cooperar, inclusive aqueles que se beneficiam deles.

Segundo a autora, portanto, sob certas condições a equidade proíbe o benefício e requer reformas e resistências a esquemas de cooperação exploratórios ou prejudiciais. A equidade pode fundamentar tanto a obrigação de cooperar com um sistema social como a de reformar e resistir aos sistemas sociais injustos. O conceito de equidade constitui, assim, o segundo pilar na revisão do conceito de obrigação política; em condições injustas e não ideais, obedecer à lei não é a única nem a mais importante obrigação política e, consequentemente, pode-se desobedecer de maneira incivil. Um dos fundamentos mais usados para fundamentar o dever moral de obedecer à lei, o princípio da equidade também sustenta a obrigação política de resistir à injustiça.

Delmas diz que o dever de samaritano é também um dos pilares liberais da defesa da obediência às leis. O samaritanismo (Samaritanism) é o ativismo que se preocupa com o outro; diz respeito aos deveres da pessoa em relação às demais. O dever do samaritano obriga uma pessoa a ajudar outra que esteja em perigo ou extrema necessidade, quando os custos de tal ação não for oneroso demais para o agente. O dever de samaritano é considerado uma das exigências mais rigorosas da moral comum e crítica; ele surge em situações em que 1.algum interesse humano fundamental ou necessidade básica não contingente (vida, segurança e integridade física) esteja ameaçada; 2. a ameaça for imediata, iminente ou provável; e 3. alguém (normalmente um transeunte ou espectador inocente) é capaz de ajudar sem custos excessivos para si e para os outros.

O dever samaritano de ajudar o próximo pode ser estendido a casos de “perigos samaritanos persistentes” (persistent Samaritan perils), nos quais uma injustiça gera, possibilita ou agrava perigos samaritanos, generalizando-os. Assim, é necessário eliminar ou corrigir a raiz do perigo da injustiça, ou seja, reformar leis, políticas ou instituições injustas. Aqui, portanto, a desobediência de princípios, civil ou incivil, pode se tornar uma ferramenta eficaz, sinalizando ao público que o perigo existe e estimulando a reforma necessária. Leis e instituições injustas devem ser eliminadas ou revistas para corrigir ou impedir um perigo sistemático. Portanto, o dever samaritano exige uma reforma estrutural da lei ou instituição que gera um perigo samaritano persistente. Questões samaritanas não são questões de caridade, mas de justiça; obrigações samaritanas e deveres de justiça não se excluem. Para Delmas, então, o dever moral samaritano de ajudar alguém que está em perigo iminente também fundamenta a resistência às injustiças cometidas pelos Estados.

Como se viu, para Delmas os princípios que fundamentam o apoio ao dever de obediência à lei – o dever natural da justiça, o princípio da justiça e o dever samaritano – também fundamentam a obrigação política de resistir à injustiça, inclusive em estados decentes e legítimos. Para a autora, o mesmo ocorreria com a associação política e a dignidade. A ideia de Delmas sobre obrigação política associativa baseia-se no pensamento de Dworkin, que tem a vantagem de recorrer ao conceito de dignidade,3 3 Delmas afirma que, “[...] de acordo com Dworkin, se as pessoas têm o dever moral de obedecer à lei, elas estão sujeitas a um caso especial de obrigação associativa, não performativa (isto é, voluntariamente incorrida), uma vez que geralmente nascemos em filiação política. O escopo, o conteúdo e os limites das obrigações especiais são determinados por convenções contingentes, incluindo o que é habitual em um determinado meio social. Dworkin nega que convenções e práticas sociais sejam fontes independentes de deveres morais, mas ele argumenta que eles desempenham um papel importante no esclarecimento e cumprimento das obrigações que as pessoas mantidas em relacionamentos especiais têm [...]” (p. 172). que permite às pessoas partilharem a responsabilidade por suas próprias vidas com os outros desde que haja reciprocidade, assim como na democracia. A associação política deve, portanto, ser estruturada por uma preocupação recíproca, para não comprometer a dignidade. Endossando a teoria de Dworkin, Delmas afirma que apenas em associações políticas legitimas (aquelas que respeitam a dignidade de todas as partes envolvidas) há obrigações políticas, pois essas decorrem da legitimidade do Estado e da associação política. Assim, cidadãos e cidadãs são moralmente obrigados a obedecer às leis da sua comunidade quando, e na medida em que, estas emanam de um governo legítimo. Como as obrigações políticas dos cidadãos são plurais e as condições, não ideais, porém, as obrigações de resistência que decorrem da responsabilidade de não dominar nem aderir unilateralmente aos outros são mais centrais para o papel da cidadã e do cidadão que a obrigação de obedecer à lei. Logo, o próprio conceito de associação (ou filiação) política, em conjunção com o conceito de dignidade, fundamenta uma obrigação geral de resistir às violações da dignidade das pessoas participantes de um Estado. Assim, em certas circunstâncias, justifica-se a resistência incivil, violenta e indiferente.

Salienta-se que, para Delmas, diferentemente de injustiças praticadas por agentes morais contra outra pessoa, quando o horror envolvido é perceptível e anormal –, em casos de injustiças estruturais nada de incomum acontece. Os danos da injustiça estrutural são, sobretudo, consequência da interação normal entre instituições, processos e normas sociais; é mais difícil percebê-los do que aqueles que resultam de ações intencionais e flagrantes de indivíduos. Assim, a resistência a eles é mais difícil. A injustiça estrutural tem como traço central dificultar a auto-realização dos membros de um determinado grupo social (negros, mulheres, LGBTQIA+ etc.) e beneficiar outras pessoas (brancos, homens, heterossexuais, cisgênero etc.)4 4 Delmas refere-se à concepção de Alison Bailey de privilégios como “bens não adquiridos conferidos sistematicamente”. Privilégios não são adquiridos porque o grupo privilegiado os desfruta como resultado da pura sorte de pertencer a um grupo social cuja raça, sexualidade, gênero ou status confere privilégio. Uma das funções do privilégio, diz Bailey, é “estruturar o mundo para que os mecanismos de privilégio sejam invisíveis – no sentido de que não são examinados – para aqueles que se beneficiam deles”. Como consequência, o privilégio gera uma cegueira que reforça o privilégio: o privilegiado pode e é encorajado a não ver o sistema opressivo e os privilégios que possui. Tende a enganar-se e pensar que merece seus status e benefícios, que obteve com talento e esforço (a boa e velha meritocracia, mas com pontos de partidas diferentes). com privilégios. Assim como o privilégio é invisível para a pessoa beneficiada, a opressão também é para quem é subjugado.

Para combater as injustiças perpetuadas pelas práticas sociais, Delmas afirma que as pessoas, especialmente os cidadãos privilegiados, devem cultivar as virtudes cívicas da vigilância e da compreensão (open-mindedness). São, segundo ela, virtudes genéricas que implicam em uma série de capacidades, disposições e hábitos, como o pensamento crítico e a imaginação empática. Para a autora, entre estas virtudes cívicas, os cidadãos podem criar crenças corretas e estabelecer um diálogo crítico sobre justiça e práticas necessárias para cumprir a obrigação de resistir à injustiça. O diálogo é essencial para desenvolver o pensamento e a motivação, e perceber as obrigações políticas devidas às outras pessoas.

Delmas diz que, à exceção de William Edmundson (2006)EDMUNDSON, William A. (2006), “The Virtue of Law-Abidance”. In: Philosophers’ Imprint. v. 6, n. 4. pp. 1-21., os filósofos têm geralmente prestado pouca atenção à observância da lei enquanto virtude cívica. Mostra-se cética, porém, quanto ao fato de a observância da lei ser, de fato, uma virtude cívica em condições não ideais. Desobedecer a ordens diretas pode ser necessário em alguns casos, afirma, mesmo que a obediência virtuosa à lei o proíba. Assim, Delmas recomenda a vigilância e a compreensão, pois elas nunca esgotam as virtudes cívicas. E mesmo não sendo suficientes para constituir a boa cidadania, são cruciais para ajudar as pessoas a identificar responsavelmente suas obrigações políticas. Desse modo, se a forte tendência à lealdade e ao cumprimento da lei produz incredulidade, preguiça, auto-decepção (self-deception) e mente fechada (close-mindedness), a vigilância e a compreensão nutrem um entendimento mais informado e empático. Para a autora, se seus argumentos estiverem corretos, deve ficar claro que as obrigações políticas dos cidadãos e cidadãs são múltiplas.

Para a autora, portanto, os conceitos liberais de obediência à lei, o princípio da justiça, o dever de equidade, o dever samaritano e a associação política e a dignidade também afirmariam a necessidade de resistência às injustiças. Concorda-se com Delmas que os princípios liberais de obediência podem ser usados para justificar a resistência. Há três pontos aqui que merecem atenção especial, porém. O primeiro é que se julga que a teoria de Delmas faz exigências morais demasiadas, i.e., julga-se que os princípios liberais exigem mais dos agentes morais quando são utilizados para justificar a resistência do que para justificar a mera obediência à lei. Esta, em condições de normalidade democrática, exige apenas que cidadãs e cidadãos sigam determinados códigos de condutas; já o dever de resistência obriga as pessoas a considerar todas as suas ações, ininterruptamente, com vistas à melhor consequência para a sociedade (haveria aqui uma obrigação utilitarista extraída dos princípios liberais de resistência à injustiça).

Imagine-se, por exemplo, uma situação em que um(a) motorista se encontra diante de um cruzamento no qual é proibido virar à esquerda, e seu destino fica a quinze metros do local, justamente à esquerda. Ao pegar o trajeto correto e virar à direita, seguindo as regras de trânsito, o motorista levará quinze minutos para chegar ao seu destino; se virasse à esquerda, levaria no máximo um minuto. Além disso, como não há qualquer carro, pedestre ou ciclista no cruzamento, não haveria riscos de acidente. Pode-se pensar que, nesse caso, haveria motivo suficiente para o motorista virar à esquerda, desobedecendo às leis de trânsito. Suponhamos que, em cada cruzamento, os motoristas tenham de decidir se seguirão ou não as placas de sinalização, levando em conta todas as possíveis consequências – por exemplo, causar um acidente. Isso não exigiria muito mais das pessoas do que, simplesmente, obedecer às leis de trânsito? Julga-se que sim e que, portanto, desobedecer às leis e resistir às injustiças exige mais, do ponto de vista moral, do que simplesmente seguir as leis. Com isso, não se quer defender que as pessoas se omitam ou fiquem apáticas; apenas reconhece-se que a resistência exige mais moralmente que a obediência.

O segundo ponto a salientar é que, apesar de ser o principal acerto da autora partir dos pressupostos liberais, julga-se que seja por meio do liberalismo político que o dever de desobediência incivil deva ser rejeitado em Estados democráticos decentes e quase-justos. Os atos de desobediência incivil podem ser secretos, evasivos, anônimos, violentos ou deliberadamente ofensivos; uma vez que a desobediência incivil abandona a civilidade, a consequência é a quebra do diálogo entre os pares, algo que vai além da amizade cívica pressuposta por Delmas. No abandono da civilidade, as pessoas não se veem mais como livres e iguais em um sistema de cooperação, não veem mais seus concidadãos como último recurso de apelação e não apelam ao senso de justiça da maioria política. Assumida a possibilidade de atos incivis de desobediência, restaria, apenas, uma desconfiança mútua entre as pessoas, já que os dois pilares básicos do liberalismo – a legitimidade e a soberania popular – são abandonados (lembremos que Delmas é uma teórica liberal, que pretendeu apresentar mecanismos de resistência à injustiça por meio dos princípios liberais de obediência à lei). Além disso, julga-se que a desobediência de princípios incivil também desrespeita o pluralismo: como não precisar ser pública e, portanto, não apela ao senso de justiça da maioria, grupos organizados ou facções da sociedade poderiam tentar impor suas visões de mundo aos demais.

Esse segundo ponto está diretamente ligado a um terceiro, mais exegético: o fato da autora rejeitar a desobediência civil rawlsiana, que ela considera um estorvo à emancipação das pessoas oprimidas (mesmo reconhecendo o potencial emancipatório do restante da teoria da justiça como equidade), já que seria moldada por uma teoria idealizada e uma leitura irrealista das lutas pelos direitos civis afro-americanos (p. 23). A teoria constitucional da desobediência civil também reforçaria o status quo (p. 23). Julga-se, porém, que não há qualquer elemento na definição rawlsiana de desobediência civil que permita afirmar que ela mine as lutas emancipatórias. A teoria constitucional da desobediência civil de Rawls é, sim, exigente e formalista. Diferentemente do que o filósofo estadunidense do século XX previu, ela não precisa ser sempre um ato ilegal, nem publicamente planejado ou publicizado; pode ser secreta na organização, mas apelando aos princípios públicos de justiça.5 5 Para Rawls, a desobediência civil é um ato público em dois sentidos: por se dirigir a princípios públicos e por acontecer em público, com comunicação aberta, sem ser encoberto ou secreto; é um apelo público, uma expressão de convicção política profunda e consciente no fórum público. Se o caráter público implicar em perda significativa para o ato de desobediência (ou para os ativistas), ele pode ser deixado de lado; o apelo aos princípios públicos de justiça nunca pode ser abandonado, porém, porque isso implicaria em abandonar, de certo modo, a soberania popular. Julga-se também que, apesar de a não-violência ser preferível, a violência pode ser justificada em alguns casos. Para Delmas, não bastaria uma definição mais inclusiva de desobediência civil. Apesar disso, julga-se que a desobediência civil ainda é preferível à desobediência incivil em Estados legítimos, decentes e quase-justos, pois neles é possível lançar mão de um mecanismo de dissensão que respeita a maioria democrática sem excluir as minorias (preservando, assim, o pluralismo) e, portanto, não abandona nem a legitimidade nem a soberania popular. Assim, levando-se em conta o dever natural de justiça de cooperar para a criação de organizações justas, nos Estados ilegítimos, quando essas não existem, a desobediência incivil pode ser vista como o principal método de dissensão. Por meio dela pode-se resistir à injustiça, visando à construção de um Estado democrático, liberal, constitucional, legítimo e quase-justo. O mesmo não valeria, porém, para Estados quase-justos e legítimos: apesar do argumento de que os princípios liberais podem justificar a resistência à injustiça, neles apenas a resistência civil será válida.

A obra de Delmas é importante para a discussão sobre as obrigações políticas nesse início de século XXI, quando muitos dos pressupostos liberais e democráticos estão sendo revistos. Com uma linguagem clara, pode ser lida com fluidez, ao mesmo tempo em que é filosoficamente rigorosa e realiza uma boa exegese dos deveres morais de obediência à lei e de desobediência civil. Além disso, é um livro atualizadíssimo no que tange às dissensões contemporâneas e históricas, não apenas nos EUA, mas também na Europa. Assim, torna-se peça fundamental para estudantes, professores e pesquisadores das mais variadas áreas da teoria política e das ciências sociais, que estão preocupados com os rumos da democracia– sobretudo diante do avanço da extrema-direita no mundo– e se propõem a pensar possíveis formas de resistência.

Julga-se que o principal ponto positivo do livro de Delmas é o fato da autora usar princípios liberais para argumentar em favor das dissensões em Estados democráticos, constitucionais, liberais e “quase-justos”. Ao fazer isso, ela escapa às pesquisas que querem, de antemão, rejeitar o liberalismo político ou os sistemas liberais (algumas das quais, para cumprir seus ideais, fazem “mil piruetas”), sem deixar de fazer uma crítica imanente, e de excelente qualidade, aos pressupostos liberais e suas aplicações no mundo real contemporâneo. É a partir dessa crítica do liberalismo político que Delmas chega à sua tese mais impactante: a de que deve-se desobedecer de maneira incivil, inclusive em Estados liberais, democráticos e quase-justos.

É também em relação ao liberalismo político, porém, que Delmas comete sua principal falha, ao não perceber que, na incivilidade, a reciprocidade – que as pessoas livres e iguais devem umas as outras em esquemas de cooperação social – é solapada, abrindo um estranho caminho em que a luta contra as injustiças acaba permitindo que determinadas pessoas imponham suas visões de mundo às demais como válidas, o que dilacera o pluralismo diretamente e enfraquece tanto a legitimidade quanto a soberania popular. Desse modo, julga-se que A duty to resist: when disobedience should be uncivil peca em sua tentativa de fundamentar uma desobediência incivil para Estados legítimos, mas consegue apresentar um método de dissensão verdadeiramente revolucionário para pessoas que vivem em Estados decentes e que pretendem caminhar rumo à democracia e a justiça social.

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    Segundo Delmas, a leitura oficial do movimento dos direitos civis não é apenas imprecisa em sua apresentação das atitudes e dos ideais de seus agentes, como também funciona em parte, graças a esta imprecisão, como uma ideologia de contra-resistência, que ignora as contribuições de ideologias, grupos e movimentos como o nacionalismo negro, o Partido dos Panteras Negras, a Nation of Islan, o pan-africanismo, movimentos de trabalhadores negros, de direitos dos prisioneiros, o feminismo negro, o terceiro-mundismo e diversas organizações de libertação marxista. Segundo a autora, adeptos de alguns desses grupos menos reconhecidos recorreram à violência e exigiram a derrubada do sistema racista e imperialista; mas a história oficial põe estes ativistas e movimentos radicais de lado, mesmo que tenha sido graças a seu fracasso que Luther King foi visto como moderado e angariou, assim, o apoio dos liberais brancos. Delmas afirma que há uma consonância entre a perspectiva de Rawls e a narrativa oficial dos movimentos por direitos civis que forma o imaginário público acerca da desobediência civil, mas que essa é, portanto, uma concepção ideológica de contra-resistência, que defenderia o status quo por meio de uma série de movimentos conformistas.
  • 2
    Para a autora, as concepções inclusivas de Celikates e Brownlee mantêm a visão central de Rawls de que a desobediência civil é, essencialmente, um ato comunicativo que visa à mudança política; dessa forma, o conceito de desobediência civil, apesar de ser estendido para além do reconhecimento, tem poucas chances de convencer o público e, portanto, baixa pontuação no coeficiente político-útil. Para Delmas, esses relatos inclusivos da desobediência civil também perdem o ponto de muitas ações desobedientes, pois os agentes destas por vezes se recusam a seguir o roteiro padrão da desobediência civil; eles querem ser percebidos como radicais e provocadores, em vez de civis. Dessa forma, a civilidade pode ser abertamente rejeitada pelos desobedientes, e a não civilidade (ou incivilidade), ser usada como estratégia para divulgar a causa de um grupo. Assim, deve-se expandir o repertório da desobediência civil para modos potencialmente aceitáveis de resistência ilegal; é necessário abrir a possibilidade de que haver justificativa para atos de desobediência incivil.
  • 3
    Delmas afirma que, “[...] de acordo com Dworkin, se as pessoas têm o dever moral de obedecer à lei, elas estão sujeitas a um caso especial de obrigação associativa, não performativa (isto é, voluntariamente incorrida), uma vez que geralmente nascemos em filiação política. O escopo, o conteúdo e os limites das obrigações especiais são determinados por convenções contingentes, incluindo o que é habitual em um determinado meio social. Dworkin nega que convenções e práticas sociais sejam fontes independentes de deveres morais, mas ele argumenta que eles desempenham um papel importante no esclarecimento e cumprimento das obrigações que as pessoas mantidas em relacionamentos especiais têm [...]” (p. 172).
  • 4
    Delmas refere-se à concepção de Alison Bailey de privilégios como “bens não adquiridos conferidos sistematicamente”. Privilégios não são adquiridos porque o grupo privilegiado os desfruta como resultado da pura sorte de pertencer a um grupo social cuja raça, sexualidade, gênero ou status confere privilégio. Uma das funções do privilégio, diz Bailey, é “estruturar o mundo para que os mecanismos de privilégio sejam invisíveis – no sentido de que não são examinados – para aqueles que se beneficiam deles”. Como consequência, o privilégio gera uma cegueira que reforça o privilégio: o privilegiado pode e é encorajado a não ver o sistema opressivo e os privilégios que possui. Tende a enganar-se e pensar que merece seus status e benefícios, que obteve com talento e esforço (a boa e velha meritocracia, mas com pontos de partidas diferentes).
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    Para Rawls, a desobediência civil é um ato público em dois sentidos: por se dirigir a princípios públicos e por acontecer em público, com comunicação aberta, sem ser encoberto ou secreto; é um apelo público, uma expressão de convicção política profunda e consciente no fórum público. Se o caráter público implicar em perda significativa para o ato de desobediência (ou para os ativistas), ele pode ser deixado de lado; o apelo aos princípios públicos de justiça nunca pode ser abandonado, porém, porque isso implicaria em abandonar, de certo modo, a soberania popular.

REFERÊNCIAS

  • DELMAS, Candice. (2016), “Civil Disobedience”. In: Philosophy Compass, v. 11, n. 11, pp. 681-691.
  • DELMAS, Candice. (2017 [2014]), “Disobedience, civil and otherwise”. In: Criminal Law, Philosophy, v. 11, n. 1. doi: https://doi.org/10.1007/s11572-014-9347-9
    » https://doi.org/10.1007/s11572-014-9347-9
  • EDMUNDSON, William A. (2006), “The Virtue of Law-Abidance”. In: Philosophers’ Imprint. v. 6, n. 4. pp. 1-21.
  • RAWLS, John. (1997 [1971]), Uma teoria da justiça Tradução de Almiro Pisseta e Linita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes.
  • TOMÉ, Julio. (2018), Rawls e a desobediência civil Dissertação de mestrado em filosofia. Programa de Pós-graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • WERLE, D. L. Vontade geral, natureza humana e sociedade democrática justa. Rawls leitor de Rousseau.In: Doispontos, Curitiba, São Carlos, v. 7, n. 4. 2010,pp. 31-52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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