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“LIBERTAÇÃO”, “CARIDADE” E O REGIME DA TROCA COM DEUS*

“DELIVERANCE”, “CHARITY” AND THE REGIME OF EXCHANGE WITH GOD

“DÉLIVRANCE”, “CHARITÉ” ET LE RÉGIME D’ÉCHANGE AVEC DIEU

Resumos

Este artigo, oriundo de trabalho de campo etnográfico realizado entre os anos de 2013 e 2016 com cristãos pertencentes a uma comunidade católica na cidade de São Paulo/SP, aborda a problemática concernente à “libertação” e à “caridade” por meio do denomino de regime da troca com Deus. Argumentarei que a consideração da caridade enquanto uma dádiva “livre” - na qual se renuncia à retribuição porque se espera uma recompensa futura que culmina na vida eterna, isto é, a libertação em termos soteriológicos – seria, no caso desses católicos, um equívoco. No regime da troca com Deus, a caridade liberta porque a libertação (e/ou liberdade) é definida como vínculo (aliança ou comunhão) com Ele, em lugar de autonomização e emancipação. Por isso, as ações caritativas localizam a presença divina no aqui e agora e são determinadas por formas específicas de retribuição a Ele.

Libertação; Caridade; Troca; Deus; Cristianismo


This article is based on ethnographic fieldwork conducted from 2013 to 2016 among Christians belonging to a Catholic community in the city of São Paulo, Brazil. It addresses the problems of “deliverance” and “charity” in terms of what I propose to call the regime of exchange with God. I argue that to regard charity as a “free” gift - one in which the giver renounces return in expectation of a future reward that culminates in eternal life, that is, deliverance (or liberation) in soteriological terms - would be a misunderstanding in the case of these Catholics. In the regime of exchange with God, charity delivers because deliverance (or freedom) is defined as an attachment (alliance or communion) to Him, instead of autonomy and emancipation. Therefore, charitable actions locate the divine presence in the here and now and are determined by specific ways of reciprocating Him.

Deliverance; Charity; Exchange; God; Christianity


Cet article est issu d’un travail ethnographique de terrain mené entre 2013 et 2016 parmi des chrétiens appartenant à une communauté catholique de la ville de São Paulo, au Brésil. Il aborde les questions de « délivrance » et de « charité » en termes de ce que j’appelle un régime d’échange avec Dieu. Je soutiens que dans le cas de ces catholiques, la charité ne doit pas être envisagée comme un don « gratuit » / « libre » - où l’on renonce à la rétribution au nom d’une compensation future qui culminera dans la vie éternelle, c’est-à-dire, la délivrance en termes sotériologiques. Dans le régime d’échange avec Dieu, la charité délivre parce que la délivrance (et/ou la liberté) est définie comme un lien (une alliance ou une communion) avec Dieu, et non comme une autonomisation et une émancipation. Par conséquent, les actions de charité situent la présence divine dans l’ici-maintenant et sont déterminées par des moyens spécifiques de rétribution à Dieu.

Délivrance; Charité; Échange; Dieu; Christianisme


Introdução

O objetivo deste artigo é problematizar a inferência, segundo a qual a “caridade” conduziria à “liberdade” porque, enquanto uma dádiva “livre” (ou “pura” ou “gratuita”), não criaria laços entre doadores e donatários, devido, em primeiro lugar, à suposta ausência de retribuição: o doador renunciaria a algo em retorno e o donatário nem sempre poderia reciprocar. Em segundo lugar, a caridade libertaria devido à presunção de que a recompensa ocorreria no além-vida. Buscarei assinalar, todavia, que entre alguns católicos na cidade de São Paulo/SP a caridade liberta, porque a própria “libertação [e/ou liberdade]” é definida enquanto vínculo (aliança ou comunhão) que se estabelece com Deus no aqui e agora, ao contrário da autonomização e emancipação em termos quer individuais, quer soteriológicos. Assim, a relação com Deus termina por modificar a maneira como se define geralmente a relação entre doador e donatário no que concerne à caridade.

As considerações etnográficas, nas quais se baseia a discussão, advêm de minha convivência1 1 A pesquisa foi realizada entre 2013 e 2016 e resultou em minha tese de doutorado ( Costa, 2017 ), cujo tema é a libertação. com a Missão Eucarística Clamor dos Pobres (doravante Missão ou comunidade), fundada por Luís.2 2 A maioria dos nomes são fictícios. Sua pele é branca. Eu o conheci em 2013, quando tinha ainda trinta e nove anos. Trabalhava como serralheiro. Adianto ao leitor que meu intuito não é realizar uma descrição pormenorizada da Missão.3 3 Para maiores informações acerca da biografia de Luís e de alguns dos “missionários” que são mencionados ao longo deste artigo, ver Costa (2017) . Esta cultiva uma devoção que pode ser alcunhada de carismática ( Csordas, 1997CSORDAS, Thomas J. (1997), Language, charisma, and creativity: the ritual life of a religious movement. Berkeley, University of California Press. ; Carranza, 1998CARRANZA, Brenda. (1998), Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências . Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. ), na qual preponderam os “dons carismáticos” (ou carismas4 4 No uso do vocábulo carisma, tenho em perspectiva como as inspirações divinas são fundamentais na vida desses católicos. Não discorrerei sobre indivíduos específicos com uma liderança pessoal e carismática, e também não me deterei na importância da Renovação Carismática Católica na vida dessas pessoas. Acerca desta última observação, consultar Costa (2017) . ou dons do Espírito Santo) descritos biblicamente (1 Coríntios, 12, 1-11).

Viceja no Carismatismo igualmente a asserção de que os dons podem surgir como novidades que “inspiram” o estabelecimento de uma “Associação Privada de Fiéis”, tal como a Missão. Ou seja, ao contrário de ordens e congregações, seus membros – casais, solteiros e celibatários – eram leigos que se consagravam ao carisma. Desse modo, não havia religiosos consagrados e tampouco esta abrigava padres em suas casas ou os formava. Era denominada de “nova comunidade” ( Carranza e Mariz, 2009CARRANZA, Brenda & MARIZ, Cecília L. (2009), “Novas comunidades católicas: por que crescem?”, in B. Carranza et al. (orgs.), Novas comunidades católicas: em busca do espaço pós-moderno , Aparecida, Ideias e Letras. ) laical. Sua fundação ocorreu em 2009.

A vida comunitária organizava-se ao redor de dois conjuntos de membros de igual importância: de “vida” e de “aliança”. No primeiro, estavam pessoas que faziam “votos de castidade, pobreza e obediência”. Ainda que fossem leigas, eram chamadas de “celibatárias” ou “religiosas”, viviam em lares exclusivamente masculinos ou femininos – onde coabitavam com pessoas que se permanecessem em “situação de rua” iriam a óbito (poderiam morrer), os “irmãos acolhidos” – e recebiam os títulos de frei e freira. Na segunda, estavam os solteiros ou casados que não deixavam suas residências de origem. Eram chamados simplesmente de “leigos”.

A Missão era diocesana. Submetia-se a uma Região Episcopal da Arquidiocese de São Paulo. Contava com o apoio do bispo e de alguns dos sacerdotes das paróquias da região onde se localizava. O auxílio estendia-se entre outros à realização da “consagração”5 5 A consagração era o momento em que acontecia a investidura do título de frei (Irmão) ou freira (Irmã). nas paróquias – o que envolvia impreterivelmente a participação de um padre nessas ocasiões – e à celebração semanal de missas nas casas habitadas pelos celibatários. Ao longo da pesquisa, a comunidade permanecia sob o ad experimentum: uma aprovação eclesiástica por tempo determinado para que, nas palavras de Luís, o “carisma amadurecesse. Você tem esse tempo, [de dois a três anos e renovável por mais dois] para entender bem o que Deus espera dessa comunidade, para depois você fazer um estatuto definitivo”.

A comunidade denominava-se franciscana6 6 Um aprofundamento na história do franciscanismo excederia o escopo deste artigo. e congregava pouco menos de quinhentos missionários ao longo do período da pesquisa. Esses católicos, muitos dos quais se tornaram meus amigos, afirmavam que “ser missionário” implicava em um “chamado” para “estar com Jesus nos irmãos de rua [irmãos ou pobres] e nos doentes”. Faziam isto guiados pelos carismas fundacionais da Missão: a “adoração eucarística” (o zelo com Jesus Cristo Sacramentado, a hóstia já transubstanciada) e a “caridade” (devotar ao pobre o mesmo zelo que se destinava a Jesus na Eucaristia). A comunidade pode ser definida, segundo essas pessoas, como um grupo de “irmãos” ( Garcia, 2019GARCIA, Ypuan. (2019), “‘Irmãos em Cristo’, ‘mãe na fé’ e ‘pai espiritual’: filiação a Deus e parentesco humano”. Religião & Sociedade , 39 (1): 77-100. ) que descobriu sua germanidade por meio desses dois carismas. Estes os levavam a afirmar que Deus “está em tudo”, é onipresente.

Luís apontava que o carisma era “um presente, um dom, algo concedido gratuitamente” por Deus. Ademais, “discernia”7 7 O “discernimento” é um presente de Deus que possibilita realizar a distinção entre ações oriundas d’Ele, do Diabo e dos seres humanos. que em uma comunidade católica o carisma “é a forma como aquela comunidade presta contas8 8 Retomarei essa expressão na terceira seção. a Deus e vive uma vida pastoral para os irmãos... O carisma é a essência de uma comunidade. É a inspiração que Deus deu a essa comunidade... Cada [comunidade] deve dar a Deus em cima daquilo [do carisma] que a ela foi confiado”.

O modo como a retribuição a Deus acontece é especificado pela qualidade distintiva dos carismas comunitários. Não é o caso, entretanto, de precipitadamente justapor essas observações a algo discutido na literatura antropológica através do que se chama de dádivas destinadas aos “deuses” ou a “Deus” (de caráter geralmente sacrificial:9 9 Para uma visada nas abordagens contemporâneas do conceito de sacrifício, ver Maya Mayblin (2014 , pp. 346-350, 356-359, 361). Neste texto, a referência que faço ao conceito restringe-se à circunstância em que a dádiva livre concerne a “um preço de compra da salvação” ( Parry, 1986 , p. 468). destrói-se uma posse com a expectativa de ganhar outra no futuro) e aos “homens” (de caráter dadivoso: a qual mantém o circuito de trocas em funcionamento) ( Gregory, 1980GREGORY, Christopher A. (1980), “Gifts to men and gifts to God: gift exchange and capital accumulation in contemporary Papua New Guinea”. Man , 15 (4): 626-652. , pp. 626-627, 647; Strathern, 1998STRATHERN, Marilyn. (1998), “Novas formas econômicas: um relato das terras altas da Papua-Nova Guiné”. Mana , 4 (1):109-139. , pp. 120-121; Mauss, 2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , pp. 203-208; Mauss e Hubert, 2005MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. (2005), Sobre o sacrifício . São Paulo, Cosac Naify. , pp. 49-50).

Essas duas formas de dádivas – que, segundo Marcel Mauss (2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , p. 207), podem ter efeitos similares e concomitantes para a criação e manutenção da vida coletiva – são, via de regra, subsumidas ao que eu intitulo aqui de “regime normal da troca” ( Idem , p. 88). Neste, as posições de doador e de recebedor são intercambiáveis por meio de obrigações recíprocas (predominantemente interessadas10 10 Ao enunciar esse regime, não estou apartando dádiva e mercadoria. Ambas suscitam alguma forma de reciprocação ( Gregory, 1980 , p. 640). Não se trata, porém, de justapor o interesse à instrumentalidade. Pretendo acentuar o equívoco relativo ao contraste realizado entre interesse (compromisso) e desinteresse (ausência de compromisso). O último é atribuído negativamente à caridade. ). Tal regime é a face dominante da “moeda” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 458) da teoria moderna da troca que, consequentemente, determina que a dádiva livre (exclusivamente desinteressada) é negativa e/ou sacrificial. Em tais circunstâncias, o sacrifício (a renúncia a uma posse) diz respeito à ausência de expectativa de retribuição por parte da pessoa a quem se oferta algo diretamente. A caridade no mundo moderno desponta na dita dádiva livre.

Atentando às pessoas com quem estive, contudo, insistir analiticamente nessas duas formas de dádivas e em suas possíveis relações redunda na opacificação do que eu alcunho de “regime da troca com Deus”. Neste as posições de doador e recebedor não são, em termos de perspectiva, intercambiáveis. Não há nenhuma reificação envolvida nessa diferenciação de regimes, mas sim a tentativa de descrever que a incomensurabilidade entre Deus e os seres humanos na vida desses católicos não deve ser trivializada.

Considerando o caráter familiar do Cristianismo e o fato dos vocábulos libertação (e/ou liberdade) e caridade estarem simultaneamente na vida desses católicos e dos analistas, pretendo realçar que essas semelhanças não produzem equivalências. São, entretanto, um solo privilegiado para instaurar novos modos de conceptualizar a diferença. A maneira como meus amigos enunciavam habitualmente os dois vocábulos não coincidia com a aparição deles em algumas análises. Essa incongruência me deixa à vontade para fazer a seguinte pergunta: que especificidades possuiria uma teoria da libertação e da caridade que partisse do regime da troca com Deus, em lugar do regime normal da troca?

As remissões à libertação e à caridade afastam-se aqui da já contestada ( Cannell, 2005CANNELL, Fenella. (2005), “The christianity of anthropology”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 11 (2): 335-356. , pp. 338, 340-341) ênfase na “descontinuidade” e na “ruptura” enquanto características majoritárias do Cristianismo, conforme suscita Joel Robbins (2011ROBBINS, Joel. (2011), “Transcendência e antropologia do cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião & Sociedade , 31 (1): 11-31. , pp. 17-21). Tal ênfase, diga-se de passagem, decorre predominantemente dos estudos da variação cristã de matiz protestante.11 11 Um(a) dos(as) pareceristas, a quem sou grato, interrogou oportunamente como eu defino a ruptura e se no caso apresentado houve ou não ruptura. Como bem aponta Liana Chua, não obstante Robbins reconheça a pluralidade de modos de vida cristãos, ele tende a “usar o modelo ideal [protestante] orientado para ruptura [o antes e o depois] [...] como uma sinédoque para o Cristianismo como um todo” (Coleman apudChua, 2012 , p. 14; ver também pp. 15, 17-18), indo além da etnografia entre os Urapmin da Melanésia - seu ponto de partida. Cecília L. Mariz e Roberta B. C. Campos (2011, pp. 106, 115) assinalam com precisão que a descontinuidade e igualmente a continuidade devem ser encaradas “metodologicamente”, uma vez que seria um truísmo reter-se na prevalência empírica de uma e outra. O caráter primordialmente transformativo do Cristianismo as englobaria. Por meu turno, sublinho que este artigo não adere a essas duas noções, as quais seriam extremidades do pêndulo analítico que daria um lugar restrito a uma terceira dimensão que detém um sentido forte entre meus amigos católicos: o vínculo com Deus. Opacificar essa aliança redunda em perder de vista, por exemplo, a especificidade das concepções que essas pessoas têm a respeito do “eu” e da “liberdade”. É impressionante que Luís e várias pessoas com quem estive sempre se opusessem à liberdade espúria que “o mundo e a sociedade pregavam”. Rejeitavam a possibilidade de alguém considerar que se “bastava”. Essas críticas voltam-se a perspectivas que geralmente possuem contornos modernos e as quais são consideradas, por elas, formas de “escravidão” e de “fraqueza”, visto que o “eu” e a “liberdade” são doações de Deus, isto é, decorrem da união com Ele. Descrever a persistência da relação com Deus talvez seja um trampolim para repensar e escapar das tensões, algumas vezes essencializadas, entre continuidade e descontinuidade nos estudos acerca do Cristianismo. O acento nessas duas noções retroalimenta a importância conferida ao entrelaçamento entre Protestantismo/modernidade/individualismo/ruptura, algo que o entendimento de Robbins (2011) corrobora, o que vai de encontro às argumentações aqui desenvolvidas. A última tem assegurado o seu “excepcionalismo” ( Hann, 2007HANN, Chris. (2007), “The anthropology of christianity per se”. Archives Européennes de Sociologie , 48 (3): 383-410. , pp. 385-386; Coleman, 2015COLEMAN, Simon. (2015), “On Mauss, masks, and gifts: christianities, (in-)dividualities, modernities”. Hau: Journal of Ethnographic Theory , 5 (1): 295-315. , pp. 298-299) histórico e teórico por ter sido supostamente decisiva para a emergência moderna do indivíduo e da liberdade como emancipação e feitura do eu ou de “si”.12 12 Neste artigo, as diferenças entre protestantismo e catolicismo são consideradas heuristicamente. Ver Maya Mayblin et al . (2017, p. 24) para as armadilhas relativas a uma possível suposição de que as diferenças entre essas duas vertentes cristãs sejam passíveis de congelamento. A predominância analítica do Protestantismo acarreta uma reificação: a descontinuidade e a ruptura, por serem refrações da “nossa” própria teoria moderna/protestante relativa ao indivíduo, tornam-se equivocadamente as características abrangentes da libertação e da caridade.

A assimilação da caridade à liberdade acontece muitas vezes porque a primeira é definida como uma dádiva livre. Ou seja: é caracterizada pela ausência de retribuição ou recusa à reciprocidade ou expectativa de recompensa futura. Essas designações constituem a superfície comum, a partir da qual a caridade é diversamente problematizada ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. ; Laidlaw, 2000LAIDLAW, James. (2000), “A free gift makes no friends”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 6 (4): 617-634. ; Douglas, 2002DOUGLAS, Mary. (2002), “Foreword: no free gifts”, in M. Mauss, The gift: the form and reason for exchange in archaic societies, Londres/Nova York, Routledge. ; Campos, 2003CAMPOS, Roberta B. C. (2003), “Utopia e sociabilidade: imagens de sofrimento e caridade no Juazeiro do Norte”. Revista de Antropologia , 46 (1): 211-250. ; Argyrou, 2007ARGYROU, Vassos. (2007), “The philosopher’s gift”. Critique of Anthropology , 27 (3): 301-318. ; Dullo, 2011DULLO, Eduardo. (2011), “Uma pedagogia da exemplaridade: a dádiva cristã como gratuidade”. Religião e Sociedade , 31 (2): 105-129. ; Pitt- Rivers, 2011; Venkatesan, 2011VENKATESAN, Soumhya. (2011), “The social life of a ‘free’ gift”. American Ethnologist , 38 (1): 47-57. ; Mayblin, 2014MAYBLIN, Maya. (2014), “The untold sacrifice: the monotony and incompleteness of self-sacrifice in Northeast Brazil”. Ethnos , 79 (3): 342-364. ; Benthall, 2017BENTHALL, Jonathan. (2017), “Charity”, in M. Candea etal. (orgs.), The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Disponível em http://www.anthroencyclopedia.com/printpdf/222, consultado em 25/02/2018.
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; Klaits, 2017KLAITS, Frederick. (2017), “Asking in time”, in F. Klaits (org.), The request and the gift in religious and humanitarian endeavors , Nova York, Palgrave Macmillan. ; Scherz, 2017SCHERZ, China. (2017), “Seeking the wounds of the gift: recipient agency in catholic charity and Kiganda patronage”, in F. Klaits (org.), The request and the gift in religious and humanitarian endeavors, Nova York, Palgrave Macmillan.13 13 Retomarei esses trabalhos sempre que necessário, embora sem dar conta minuciosamente de sua riqueza reflexiva. Antecipo que na terceira seção destacarei o de Jonathan Parry (1986) , que continua a ser basilar tanto para algumas dessas análises quanto para a discussão geral acerca da dádiva ( Sanchez, 2017 ). ) desde a publicação do trabalho de Mauss (2003)MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. .

Por ora cabe destacar, tendo em perspectiva esses estudos, que a caridade causa desconfiança, como sublinham Parry (1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , pp. 458-459), Roberta B. C. Campos (2003CAMPOS, Roberta B. C. (2003), “Utopia e sociabilidade: imagens de sofrimento e caridade no Juazeiro do Norte”. Revista de Antropologia , 46 (1): 211-250. , pp. 223-224), China Scherz (2017SCHERZ, China. (2017), “Seeking the wounds of the gift: recipient agency in catholic charity and Kiganda patronage”, in F. Klaits (org.), The request and the gift in religious and humanitarian endeavors, Nova York, Palgrave Macmillan. , pp. 48-51, 59-61), Mary Douglas (2002DOUGLAS, Mary. (2002), “Foreword: no free gifts”, in M. Mauss, The gift: the form and reason for exchange in archaic societies, Londres/Nova York, Routledge. , p. IX) e Mauss (2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , p. 294), em um mundo regido pelo indivíduo. A dádiva que não pode ser correspondida desestimularia, em primeiro lugar, a independência material do donatário, cativando-o, ao mesmo tempo que libertaria apenas o doador. Deveria, em segundo, ser suplantada por políticas de bem-estar social ( Benthall, 2017BENTHALL, Jonathan. (2017), “Charity”, in M. Candea etal. (orgs.), The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Disponível em http://www.anthroencyclopedia.com/printpdf/222, consultado em 25/02/2018.
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, p. 2). Impediria, em terceiro, a emergência da “consciência de classe” do proletariado. Essas perspectivas14 14 Atualmente, essas afirmações são questionadas pela crescente atenção às especificidades descritivas atinentes, por exemplo, aos atos de “pedir [ ask ]” e dar ( Klaits, 2017 ). se confundem, ainda que diferencialmente, com noções corriqueiras de liberdade nas quais prevalece a reificação assinalada acima.

A não retribuição leva à subsunção negativa e/ou pejorativa da caridade ao assistencialismo e ao filantropismo. Tal subsunção era denegada pelos meus amigos quando aludiam às suas ações caritativas. Eles, preferencialmente, posicionavam a caridade no seguinte tripé: como o maior dos dons divinos (1 Coríntios, 13, 1-13; Mateus, 25, 35-40) (escritural), como dom comunitário (fundacional) e, em decorrência deste, como dom que determinava o regime da troca com Deus (existencial).

Pretendo descrever que para esses católicos a caridade liberta, dado que, na libertação, eles reafirmavam o pertencimento a Deus através de um pacto relacionado, no Evangelho, ao “Código da Aliança” (Êxodo, 19-20, 24) e, consequentemente, à dissolução do cativeiro hebreu no Egito. Escapavam, assim, de noções corriqueiras de liberdade que realçam protestantizada e modernamente o eu, a “agência” humana, a autonomia, a emancipação etc. Libertar, ao contrário, era se aproximar cada vez mais de Deus, que entre eles “está nos pobres”. Uma das características da escravidão demoníaca dizia respeito em suas vidas ao modo como algumas pessoas buscavam “cegamente” ser “donas de si”. Afirmo que a compreensão da caridade, no caso que apresento, passa decisivamente pela maneira como meus amigos definiam a liberdade.

O artigo, além desta introdução e das considerações finais, divide-se em quatro seções. A primeira delimita que essas pessoas distinguiam a “ação profética”, determinante para seus atos caritativos, de formas estritamente humanas de assistência. A segunda seção descreve como elas reafirmavam a presença de Deus nos pobres. A terceira concerne à análise da libertação, da caridade e daquilo que estou denominando de regime da troca com Deus. A quarta seção precisa como elas falavam e se colocavam diante de Jesus por meio dos dois carismas fundacionais da Missão: a adoração eucarística e a caridade.

Ação profética e senso de justiça humano

Os carismas fundacionais definiam a atuação da comunidade. Frequentemente, havia nela um mal-estar acerca da “Pastoral de Rua”15 15 A “Pastoral de Rua” (ou “Pastoral”) era o momento no qual os missionários viviam a caridade, sendo definida como o motivo de existência da Missão. , devido à transformação da caridade em “vaidade” e autocongratulação. As pessoas quantificavam o “trabalho pastoral” (os cobertores e marmitas que distribuíam), divulgando-o em suas redes sociais eletrônicas. Muitos missionários, segundo seus irmãos de comunidade, “queriam aparecer, onde quem deveria se revelar seria Deus”.

Ainda em dezembro de 2013, Luís repreendeu alguns deles: “A Missão não é uma ONG”. A repreensão aludia a uma sentença pronunciada pelo Papa Francisco: “A Igreja não é uma ONG piedosa”. A caridade deveria conduzir, como meus amigos sublinhavam, à “mística”16 16 A “mística” era geralmente definida como aquilo que ultrapassava a razão humana, sendo relacionada ao mistério da missa. A mística indicava, ademais, uma presença divina que alguns sentiam, enquanto outros a viam. : enxergar a divindade no “irmão de rua [ou irmão]”, dando prosseguimento à mesma adoração que se devotava a Deus na Eucaristia. Isso era reafirmado quando eles repeliam as conclusões de que suas atividades pastorais seriam análogas às da Teologia da Libertação [ou TL17 17 Eles afirmavam que a TL foi do “Espírito para a carne”, pois a militância inspirada no marxismo levara seus integrantes a “matar” pela Igreja, em lugar de “morrer” por ela. Foge às finalidades deste artigo enfrentar a vasta literatura acerca da TL, embora meus amigos não se furtassem a dizer que conservavam dela a “parte [mística e profética] da luta pelos direitos dos pobres”. ], das “ONGs” e dos “comunistas”. Nestas prevaleciam, segundo eles, o “senso de justiça humano18 18 O substantivo “humano”, entre essas pessoas, equivalia ao sintagma “humano da pessoa”. Este era frequentemente associado ao substantivo “fraqueza”. A imperfeição indelével da natureza humana transformou a pessoa, a partir da “Queda do Paraíso”, em substancialmente “fraca”. ... o ativismo”.

Havia, além disso, outro problema: eles diziam que o demônio não se importava com aquele senso de Justiça humano, com o ativismo, que preenchia o “excesso de atividade pastoral”, mas sim com o seu motivo condutor “profético”19 19 O termo designava uma ação, inspirada por Deus, que se manifestava na forma irrestrita de defender os “pobres”. O vocábulo pobre sofria, entretanto, várias inflexões na vida missionária. Não era apenas o desvalido ou o doente, mas todos aqueles que sofriam por qualquer motivo. Ser pobre na comunidade dizia respeito também, segundo Luís, a “se abandonar ao querer de Deus”. Tratava-se de uma pobreza que, em termos proféticos, era uma recusa à autossuficiência. : “encontrar com Jesus no altar da calçada [a caridade]”. Se a carida- de não tivesse como origem de sua força o “altar de Deus [a adoração eucarística]”, a relação com os pobres seria reduzida ao ativismo. Este seria, segundo essas pessoas, uma “brecha para o demônio”, que através dela levaria alguém a “cair” em uma de suas “ciladas” ou “tentações”.

Ricardo, um jovem de pele parda, tinha vinte e cinco anos quando nos conhecemos em 2013. Era balconista em uma loja de ferragens. Além de integrar a Missão, é primo materno de Luís. Ricardo deixou o celibato naquele mesmo ano. Já em 2015, ele disse algo que salientava como a Missão era inspirada pelo “profetismo bíblico”:

A vivência do missionário é uma ação profética porque a gente segue o que Jesus fala: “A cada um desses pequeninos que fizeste, é a mim que o fizeste”. Está no capítulo de Mateus [(25, 35-40)]... A questão de a gente ver, enxergar o Cristo nos pobres e nos doentes é uma visão cristã, não só católica... Deus é tão onipresente que Ele deixa a gente encontrar Ele [“por vários meios”]. Um dos meios é esse: poder identificar Ele nos mais necessitados [, a caridade].20 20 Na “doutrina cristã da diakonīa ou serviço, [...] qualquer coisa feita para beneficiar os famintos, sedentos, sem-teto, nus, doentes ou presos é equivalente a realizar o mesmo serviço para Deus (Mateus 25: 31-46)” (Silber apudBenthall, 2017 , pp. 3-4; ver também Carlos A. Steil, apudCampos 2003 , pp. 223, 231, 237-238; Scherz, 2017 , p. 53, 58-59).

Era preciso, para viver os carismas comunitários profeticamente, estar com Jesus na Eucaristia e também no pobre, ainda que a possibilidade de enxergar a divindade no segundo dependesse da relação com o primeiro. Sugerir que a caridade no caso dos meus amigos opere na ordem do assistencialismo, ao qual eles eram refratários, obscurece a qualidade do vínculo com a divindade que a impulsiona. Para essas pessoas, repito, Deus é onipresente e tal onipresença decorre do fato de Ele se deixar encontrar por meio do dom ou da dádiva que Ele dá: os carismas fundacionais. O aspecto dadivoso da caridade, no entanto, não era uma exclusividade da Missão. Ricardo observou também que o “carisma de Pastoral de Rua” foi doado a comunidades católicas eclesiasticamente similares à Missão: a Aliança de Misericórdia, a Toca de Assis (doravante Toca21 21 A Toca é tida como próxima da Missão pelos meus amigos, devido ao carisma de inspiração franciscana. A menção a essa proximidade pode levar a questionamentos oportunos sobre as relações entre essas duas comunidades. Ainda assim, da mesma maneira que na tese, mantenho aqui o compromisso que constituí etnograficamente com esses católicos, ou seja, lançarei mão de pouquíssimos nomes próprios. Admito que essa forma de apresentar a pesquisa crie algumas limitações, contudo se trata de condições irremediáveis do trabalho que realizei. Para análises acerca das atividades pastorais da Toca, ver Rodrigo Portella (2009 , pp. 188-189), Cecília L. Mariz e Paulo V. L. Lopes (2009, pp. 94-95) e Flávia S. Pinto (2012 , p. 123). Para o primeiro, as ações caritativas desses católicos não passam de um “trabalho social” de “cunho assistencialista” porque não visam à melhoria das condições de vida dos pobres. Já os últimos salientam que os integrantes dessa comunidade negavam, de forma análoga às pessoas com quem estive, que suas atividades pastorais pudessem ser alcunhadas de assistencialistas. Para desdobramentos dessa discussão, consultar Pierina Angélica S. Jacinto (2010) . ), a Missão Belém, a Fraternidade O Caminho. Essas comunidades lidavam com os pobres em situação de rua na capital paulista.

Dito isso, é preciso assinalar algo fundamental: a qualidade da presença divina na vida dessas pessoas. É o que farei nas próximas páginas. Descrever, tentativamente, a forma como elas se relacionavam com Deus é crucial para a análise de suas ações cotidianas, visto que faziam o que fosse preciso em nome d’Ele. A argumentação a seguir não deve ser confundida com uma empresa de cunho teológico22 22 As relações entre antropologia e teologia têm sido exploradas recentemente em reflexões de Robbins (2006 , 2013 ). Jon Bialecki (2014) aborda o problema da elisão de Deus na antropologia do Cristianismo por meio da análise do trabalho seminal de Tanya M. Luhrmann, When God talks back: understanding the American Evangelical relationship with God , publicado em 2012. J. Derrick Lemons, em coletânea publicada a respeito do assunto, indica que o capítulo assinado pela antropóloga Naomi Haynes sinaliza que “um dos problemas mais incômodos da antropologia da religião” consiste no desafio de “colocar Deus em nossas análises” (2018, p. 14). Consultar Mísia L. Reesink (2005) para uma abordagem mais específica acerca dos modos como alguns católicos pernambucanos relacionam-se com Deus. Esta nota de rodapé está reproduzida, com ligeiras alterações, em Garcia (2018b, pp. 166-167 n. 44). , mas sim com a impossibilidade de ofuscar ou reduzir o que essas pessoas diziam ser a verdade. Baseado nisto, enfrentarei a renitência de Deus na vida delas, ao invés de fantasmagorizá-Lo ou abordá-Lo através de um relativismo contraproducente, uma vez que elas se remetiam a Ele incessantemente e no singular.

“A gente acredita piamente que Jesus está nos pobres”

Recordo-me que ainda em 2013 conversava a respeito da associação entre caridade e assistencialismo com Francisco, um rapaz de pele branca, que completaria vinte e cinco anos. Seu nome de batismo era Osmar. Antes de se tornar missionário celibatário, exercia a profissão de técnico em manutenção de computadores. O “nome religioso”23 23 O nome religioso é anunciado na consagração. completo era Irmão Francisco Alegria dos Pobres. O frei firmemente insistia: “A caridade não é assistencialismo, mas é amor, porque não pedimos nada em troca. A gente acredita piamente que Jesus está nos pobres. Em todo aquele que sofre, Jesus está presente”.

Em maio de 2014 estive com Pedrinho, outro missionário. Era um homem negro. Tinha aproximadamente quarenta anos. Quando o conheci, trabalhava como pintor de paredes. Ele não teve dificuldade em expor que “pelo carisma, pela graça e pelo dom, nós [missionários] conseguimos enxergar, no pobre, a presença de Cristo. Nas suas feridas, nós vemos as feridas do Senhor”. A caridade depende, assim, do que se vê quando se vai em direção ao pobre. O que é visto está sujeito decisivamente à “abertura para Deus”, que tem como corolário o “discernimento”. O carisma, ao ser dado gratuitamente por Deus, é aceito por meio dessa abertura. Decorre daí que Ele se revela na especificidade daquilo que foi doado: a caridade. No caso da Missão, Ele se deixava ver no pobre.

Meus amigos discorriam acerca dessas questões com bastante facilidade, conquanto não desconsiderassem a necessidade do discernimento. As palavras de Ricardo, a quem retorno, eram precisas naquela mesma ocasião, já citada, em 2015: “Claro que ali [no pobre] não é Jesus. Jesus está. Jesus está nele. Diferente da presença real da Eucaristia, porque Jesus é a Eucaristia”. O problema capital, a meu ver, é dar conta etnograficamente da percepção da onipresença. Esses católicos afirmavam em várias circunstâncias que na Eucaristia “Jesus é” e no pobre “Ele está”. Quando iam à Pastoral, asseguravam: “Vamos ver [e/ou “encontrar com”] Jesus”.

Lembro-me que em um “Retiro Vocacional”24 24 Na Missão, os “Retiros” eram simultaneamente os momentos em que seus membros se reuniam e a oportunidade de atrair novos missionários. Um Retiro Vocacional visava discernir novas vocações para a vida celibatária. realizado em agosto de 2014 um padre, chamado Cristiano, foi convidado para pregar acerca da caridade, atendendo às finalidades devocionais da comunidade. Definia-a como o carisma mais “forte”: “A caridade é Jesus no irmão, onde você pode adorá-lo. Quando alguém descobre que Jesus está no irmão necessitado, Satanás fica raivoso”. É o próprio ato de ver Jesus no pobre que leva o demônio furiosamente a tentar ofuscar a revelação de que Deus sempre esteve lá: visível e tocável. O padre realçou algo fundamental: “A presença real de Deus na Eucaristia é passiva... Independe da vontade do padre no rito de consagração [de transubstanciação]... No pobre, a presença real de Jesus é ativa. É real, mas ativa. É preciso ir lá ver Jesus no irmão. Ativa é porque preciso [por meio da vontade] ativar essa presença, assim posso adorar o irmão”.25 25 Viria a saber depois que a pregação do padre Cristiano baseou-se em um dos escritos de Raniero Cantalamessa, o pregador da Casa Pontifícia.

Duas semanas depois, estive com Luís. No âmbito da comunidade, era costumeiro que as distinções atinentes à presença divina fossem, segundo ele, realizadas da seguinte maneira:

Na Eucaristia, o pão não existe mais. É Jesus. É o pão que vira Jesus. [Em um irmão de rua], é Jesus presente numa forma diferente, mas é a pessoa [de Jesus] presente, com a mesma intensidade, só que não o anula [o irmão]. [A presença] é real tanto no pobre quanto na Eucaristia, mas a presença na Eucaristia é a presença que exclui toda a outra pessoa [a do pão]. É só Ele ali. Quando eu explico para os missionários esse tipo de diferença, eu sempre dou um exemplo: “Imagina uma casa, onde está uma pessoa [Jesus]. Ela está na casa, mas ela não é a casa... A pessoa está [na casa]. É como a gente aqui. Jesus está na gente, em todos nós, e é real a presença. A forma de presença é diferente”.26 26 Isso se afasta do “paradoxo” que Matthew Engelke diz sobressair do que ele alcunha de “problema da presença”: “uma das dinâmicas centrais do pensamento cristão [especialmente protestante] é o entendimento paradoxal da presença e ausência simultâneas de Deus” (2007, p. 12).

Indaguei, então, se a mística estava ali, naqueles (irmãos de rua) cujas palavras eram desconexas. Ele decretou:

Ainda mais! Na Pastoral acontece de o irmão falar coisas também que só você sabe, e você pega a palavra e você sabe que aquela palavra é para você... Ele não sabe o que ele está te falando, mas você, muitas vezes, sabe por que ele está falando... Nem sempre tudo que os irmãos de rua falam é inspiração [divina], lógico que não. Mas nos momentos mais difíceis da minha vida, fui aconselhado pelo irmão de rua.

Obviamente, a revelação devia ser discernida e, simultaneamente, não precisava ser procurada enquanto o primeiro motor da Pastoral de Rua. Ansiar por isso era uma tentação demoníaca que se desdobrava na maximização daquilo que alguns missionários ofertavam nas Pastorais, o que levava ao ofuscamento da adoração que deveria ser devotada ao pobre. Essas observações exigem a nossa atenção. Os dois carismas fundacionais da Missão são dados em conjunto porque não se descobre o irmão, a própria divindade, e não se vai até ele sem o vínculo primeiro (o motor fundamental da libertação) com Deus, o Pai.

Se a caridade concerne à germanidade universal, segundo a qual todos são filhos de Deus, é porque implica uma determinada relação com Ele que redunda na doação gratuita dos carismas. Os últimos na vida desses católicos detêm, como já dito na Introdução, uma qualidade ternária: escritural (bíblica), fundacional (comunitária) e existencial (própria do regime da troca com Deus). Nas páginas adiante, faço uma digressão com o intuito de especificar o que esses católicos pareciam estar asseverando quando definiam a caridade, enquanto dom comunitário e oferta aos desvalidos, como algo gratuito e que liberta.

Libertação, caridade e o regime da troca com Deus

Em agosto de 2013, Luís pregava acerca da libertação para um auditório lotado durante a gravação de um programa televisivo de uma emissora católica, sediada no interior do estado de São Paulo:

Para que essa libertação seja verdadeira, ela precisa ser fruto de um encontro pessoal com o Senhor Jesus [, que] nos ensina que [o] consolo vem pelo consolar... Toda vez que nós cuidamos da chaga de um irmão... Deus vai [nos] sarando... porque o amor sara. A sequência da libertação... é o amor gratuito por todos aqueles que sofrem [, que não podem dar nada em troca]. Amar aqueles que estão à margem da nossa sociedade, aqueles que não entra[m] em um encontro católico, porque estão mal vestidos, porque são pobres.

As palavras de Luís eram reverberadas por Pedrinho, a quem regresso, naquela mesma conversa, já mencionada, em 2014: “A caridade liberta... O demônio odeia mais a caridade do que Jesus. A caridade é a moção do Espírito que nos move a praticar o ato naquela pessoa que é o próprio Cristo”. Pedrinho disse que aquilo que se ofertava aos moradores de rua – cobertores, marmitas, café, pão, cortes de cabelo, assepsia de feridas, palavras etc. – “não é uma troca de favores, uma busca interesseira. É interessante que você busque não este interesse. A troca é natural. Você não vai percebendo, mas Deus vai dando...”.

Essa é a questão-chave que me leva a pensar que a caridade, na vida dessas pessoas, não se define pela ausência de recompensa ou pela expectativa estrita de que esta ocorra a posteriori . De fato, o esforço desmedido por obtê-la é que não incomodava o demônio, pois se estava exigindo que Deus desse em troca.27 27 Habitualmente, meus amigos estavam atentos ao fato de que a “dúvida” e a “desconfiança” eram estados contra os quais eles se precaviam quando uma sucessão de infortúnios se interpunha ao vigor devocional: adorar, comungar, realizar atividades pastorais etc. O início e a persistência de uma “atribulação” configuravam ocasiões privilegiadas em que o demônio armava uma “cilada”, levando as pessoas a questionarem Deus e, não raramente, a se revoltarem contra Ele. O maligno agia na tensão entre a renitência da insondabilidade divina e das limitações humanas. Estas últimas eram o fio condutor da culpabilização d’Ele através da emergência de uma relação baseada demoniacamente na cobrança, na exigência e na obrigação. A exigência era uma tentativa insólita diante da assimetria irreversível entre a divindade e os seres humanos.28 28 No caso que descrevo, não me parece plausível postular, tal como Mark S. Mosko, que Deus, o Diabo e os seres humanos são “divíduos” porque, enquanto entes compósitos, suas partes provêm das trocas que estabelecem entre si (2010, p. 217), tornando possível a permuta de perspectivas, isto é, vão de agentes a pacientes e vice-versa (Garcia, 2018a, p. 274 n. 14). Partindo da etnografia melanésia, Mosko (2010 , p. 219) assenta o entendimento geral de que prevalece no Cristianismo a troca de feição “dividual”. Ele insiste nessas conclusões quando cita, por exemplo, o trabalho de Bruce Knauft entre os Gebusi da Papua Nova-Guiné: “Knauft argumenta [...] que os cristãos [Gebusi] não podem barganhar com Deus [...] No entanto, os conversos percebiam claramente a sua igreja e outras observâncias (orar, cantar, pecar etc.) como transações recíprocas de eliciação [ elicitive ] entre Deus, Jesus, Satanás, o pastor e eles mesmos” ( Mosko, 2010 , p. 225). Em suma, o que, para meus amigos, surge como uma tentação demoníaca é tratado analiticamente por Mosko enquanto um aspecto constitutivo das relações entre esses entes, as quais segundo ele se baseariam em “mer[as] [...] contraprestações” (2010, p. 232). Em síntese, esses católicos enfatizavam que a troca acontecia, não obstante ela tivesse uma qualidade específica devido ao caráter divino do ente/parceiro em questão, como veremos adiante. Tendo em perspectiva que a “caridade liberta”, faço uma indagação: a caridade liberta porque sua gratuidade advém do a priori de que o destinatário não tem condição de retribuir?

Parry, quando retornou ao pensamento de Mauss, notou que a leitura majoritária do Ensaio sobre a dádiva corroborava a premissa de que “ de fato a dádiva nunca é livre [gratuita ou pura]” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 458). Ele, no entanto, vai além e traz à baila algo crucial: “[E]u penso que ele [Mauss] realmente está nos dizendo como nós desenvolvemos uma teoria de que ela [, a dádiva,] deveria ser [livre ou pura]” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 458; ver Mauss, 2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , pp. 265-266), pois a emergência da “ideologia de uma dádiva desinteressada” seria concomitante ao aparecimento da “ideologia de uma troca puramente interessada” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 458).

Parry opõe a dádiva livre (imaterial) à mercadoria (material) heuristicamente. Sua lição mais importante consiste, a meu ver, na presunção de que a desmaterialização precipitada na dádiva livre, a perda do caráter imediato/material que se atribui à troca econômica, é própria de uma “moral” difundida através da “grande ênfase que todas as principais religiões mundiais [as salvacionistas] colocam no mérito das dádivas e esmolas, idealmente dadas em segredo e sem expectativa de qualquer retorno mundano” ( Idem , p. 467). Em outras palavras, ele delimita que a dádiva livre é a criação de uma “moralidade secular” capitalista, isto é, resulta da preeminência da troca interessada consolidada nas relações de mercado.

O resultado é a constituição de uma religião ética29 29 Parry equaciona a ética com a moral, algo que viria a ser criticado no surgimento da antropologia da ética. Nesta, afirma-se que a ética é antes uma “disposição” ordinária que uma “convenção” moral ou socialmente determinada ( Keane, 2016 , p. 10). : a recompensa posterior seria uma consequência de boas ou más condutas, orientadas para uma “existência futura” ( Idem , ibidem ). A gratificação é direcionada para o além e “o retorno no aqui e agora deve ser negado. Ademais, a noção de salvação desvaloriza o mundo profano do sofrimento. A dádiva não retribuída torna-se uma libertação da escravidão [ liberation from bondage ] a ele [, ao mundo profano], uma negação do eu profano, uma expiação de um pecado e daí um meio para a salvação” ( Idem , p. 468). O “desprezo pelo mundo” culmina na renúncia, de modo que a caridade seria uma expressão sacrificial e leiga do ascetismo ( Idem , ibidem ). A caridade nesta perspectiva, à qual me contraponho, libertaria e seria um dos desenvolvimentos de um mundo em que a proeminência do interesse pessoal/material ligado ao mercado seria um entrave ao verdadeiro eu, a alma/imaterial.

Apesar de Parry ter apontado magistralmente que a “ideologia moderna” é a fomentadora da noção de dádiva livre – uma consequência do divisor entre secular e religioso –, é Fenella Cannell (2005CANNELL, Fenella. (2005), “The christianity of anthropology”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 11 (2): 335-356. , pp. 337-338) quem posiciona a hipótese dele como uma variação dessa mesma cesura. As conclusões de Parry provêm de uma abordagem já desgastada do Cristianismo que, a partir de sua vertente reformada, é tido como ascético e promotor da seguinte litania: do Catolicismo vai-se ao Protestantismo; daqui em diante, o ponto de chegada, finalmente, é o capitalismo secular ( Idem , p. 341).

Retorno à indagação disposta acima: a caridade liberta porque sua gratuidade advém do a priori de que o destinatário não tem condição de retribuir? É capital frisar que a inferência segundo a qual caridade liberta porque é gratuita coloca-nos novamente diante de uma conclusão correlata, mas equivocada se considerarmos a vida de meus amigos católicos: a importância da “autotransformação” na “conversão protestante”, decisiva para as “visões euro-americanas de modernidade” ( Keane, 2007KEANE, Webb. (2007), Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter . Berkeley, University of California Press. , p. 179) e liberdade.

Não surpreende que libertar seja se autonomizar, se destacar e se emancipar. Nesta perspectiva, a caridade (dádiva desinteressada ou livre/recompensa imaterial), ao se opor ainda que complementarmente ao capitalismo secular (troca interessada ou compromissada/recompensa material), é definida como uma ação libertadora de um sujeito que visa se autonomizar. Sua finalidade seria obter resultados em um domínio superior ou transcendente, por meio de dádivas imediatamente gratuitas, livres, nas quais se renuncia sacrificialmente a uma posse.

Meus amigos atribuíam a qualidade dessa renúncia a pessoas que “querem viver uma fé que leva à construção de um céu particular”, uma forma de “escravidão”, pois se estaria colocando um “preço” na salvação. Partindo desses católicos, eu afirmo que a caridade liberta porque, como vimos, reconhece-se Deus no destinatário. Não esqueçamos que a libertação (e/ou liberdade) era definida por meio do vínculo que se estabelecia com Ele. Fazia-se a caridade porque já se estava envolvido com a divindade e próximo a ela. Assim, as ações caritativas desses católicos afastam-se do suposto moderno/secular de que os assuntos divinos se restringiriam ao extramundano, ao transcendente, e/ou ao interior dos adeptos.

Há mais a ser dito: meus amigos afirmavam, sem pestanejar, que os dons divinos eram gratuitos e que a caridade baseava-se no “amor gratuito [cf. Luís acima]” pelos pobres. Realçavam igualmente um caráter indelével da “libertação”, o salvífico. Ainda assim, essa congruência lexical não se amolda aos sentidos que alguns desses vocábulos ganham em determinadas análises. Isso me de deixa à vontade para evitar o estabelecimento de reduções que subsumam as considerações deles a um modelo analítico influenciado pelas particularidades do Cristianismo protestante (McDannell apudColeman, 2004COLEMAN, Simon. (2004), “The charismatic gift”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 10 (2): 421-442. , p. 424). Trata-se, ao contrário, de descrever as especificidades das asserções das pessoas com quem estive, o que farei nas páginas abaixo. Continuarei a responder à pergunta já assinalada: a caridade liberta porque sua gratuidade advém do a priori de que o destinatário não tem condição de retribuir?

“Carisma... é a forma como aquela comunidade presta contas a Deus”

Meus amigos jamais se afastavam da gratuidade simultânea do carisma e da caridade. Penso que é possível designar que a caridade, para eles, era inconcebível sem a presença de um terceiro: Deus, o elemento suprimido ou ausente da divisão moderna entre troca interessada (secular/material/profana/com cálculo) e dádiva desinteressada (moral/ imaterial/ sagrada/com liberalidade). O terceiro antecedia e determinava algo que esses católicos não cesuravam, devido à fraqueza humana: a liberalidade e o interesse na dádiva ( Mauss, 2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , p. 188).30 30 Um(a) dos(as) pareceristas, a quem agradeço, salientou de maneira pertinente que “a regra da reciprocidade não é simétrica quando engaja homens e deuses”. A esse respeito, consultar Mauss (2003 , pp. 206-208) e Marcel Mauss e Henri Hubert (2005, pp. 71, 106). Em Sobre o Sacrifício , lê-se o seguinte comentário: “Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá [...] Mas essa abnegação e essa submissão não suprimem um retorno egoísta [...] Se ele [o sacrificante] dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O desprendimento mistura-se ao interesse. Eis por que ele foi frequentemente concebido sob a forma de um contrato” ( Mauss e Hubert, 2005 , p. 106). Isso me leva também a concordar com o(a) parecerista, visto que ele(a) ressalta “que a teoria de Mauss sobre o dom é fundamentalmente dialética” e “desconstr[ói] o a priori da época de que o dom era pura gratuidade”. No entanto, chama a atenção que Mauss e Hubert concluam em seguida, no que toca ao Cristianismo, que o sacrifício tenha sido purgado de “todo cálculo egoísta. Trata-se do sacrifício do deus, pois o deus que se sacrifica dá sem retorno [, gratuitamente]” (Idem, 2005, pp. 106-107). Essa ausência de retribuição só poderia ocorrer em uma religião em que prevalece “o limite ideal da abnegação irrestrita” (Idem, p. 107). Mauss e Hubert conceptualizam o cristianismo enquanto “uma religião [...] abstrata [...] [,] moral [e desmaterializada]” ( Idem , pp. 87, 99). Essas considerações vão de encontro às apostas deste artigo. Adiante retomaremos a discussão acerca da ausência de retribuição na relação com Deus.

Por isso, eles tentavam neutralizar tanto a “busca interesseira”, em razão do caráter irremediável daquela fraqueza, quando ofertavam algo para os irmãos de rua (para Jesus no pobre), conforme as palavras de Pedrinho nesta seção, quanto marcavam que a caridade enquanto carisma comunitário era divinamente gratuita. Não se trata de duas ordens opostas e contra-intuitivas, segundo consta nas inferências modernas que guiam algumas análises, mas sim que é preciso discerni-las, como vou mostrar adiante.

Se remeto à realização de uma Pastoral de Rua, é preciso dizer que ela dependia da aquisição prévia de objetos alienáveis, uma relação comercial entre pessoas que à primeira vista estavam em uma “situação de independência recíproca” ( Gregory, 1980GREGORY, Christopher A. (1980), “Gifts to men and gifts to God: gift exchange and capital accumulation in contemporary Papua New Guinea”. Man , 15 (4): 626-652. , p. 640). As mercadorias obtidas seriam redistribuídas como uma doação caritativa. Há, no entanto, algo a ser enfatizado. O ato de adquirir a mercadoria era, simultaneamente, uma “intenção” fundada em uma inspiração divina (doada por Deus), muitas vezes súbita e imprevisível. O discernimento da origem da inspiração refreava as brechas para o demônio que a troca interesseira com Ele poderia provocar. Isso me faz ponderar que a inspiração do terceiro, cuja qualidade aqui é a gratuidade, impulsiona a obtenção, a redistribuição e, mais importante, a retribuição de meus amigos a Deus. Em acréscimo, os carismas comunitários fundacionais doados por Ele são também gratuitos. Aqui me volto mais detidamente à retribuição, o que nos levará ao regime da troca com Deus.

Em sua excelente etnografia com católicos carismáticos da comunidade Canção Nova, que tem como carisma a evangelização pelos meios de comunicação, Evandro de S. Bonfim afirma que Deus concede suas dádivas de “forma voluntária” (2012, p. 62; ver Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 466) e como “doador inicial [...] renuncia à retribuição” (2012, p. 68). Isso leva o autor a se remeter ao caráter gratuito da graça divina ( Idem , p. 65 n. 13; ver Eduardo Dullo31 31 Dullo aponta com precisão que uma das finalidades “da ação gratuita cristã é criar vínculos” (2011, p. 114). No entanto, sua análise de um centro social católico, localizado na cidade de São Paulo, deixa em aberto a importância de Deus na criação e proliferação desses vínculos. , 2011, pp. 112-115; Julian Pitt-Rivers, 2011PITT-RIVERS, Julian. (2011), “The place of grace in anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory , 1 (1): 423-450. , pp. 430-431). Se me ativesse aos meus amigos, eles concordariam com essas suposições menos pela liberalidade do que pela incomensurabilidade de Deus. Aquilo que Ele dá cria as formas como Ele se deixa buscar. Se Deus é onipresente, não é por acaso que Ele se revela no pobre para aqueles a quem deu a caridade como carisma ou dádiva ou dom.32 32 Outro modo de se reportar ao problema da retribuição diz respeito a reconhecer habilmente, tal como Mariz e Lopes, que na Toca de Assis o carisma de Pastoral de Rua (a caridade) efetua a constituição e a manutenção da “aliança com Deus” (2009, p. 97). Os autores, todavia, assinalam que essa aliança se dá por meio do “sacrifício contratual” (ou “sacrifício-contrato”) (Mauss apudMariz e Lopes, 2009 , p. 97; ver Mauss, 2003 , pp. 207-208), que pressupõe a coexistência da liberalidade e de alguma forma de obrigação recíproca entre as partes. Insistem que, em termos sacrificiais, o pobre é um “meio” (ou uma “vítima”) através do qual se restabelece a continuidade com Deus ( Mariz e Lopes, 2009 , p. 97; ver Mauss e Hubert, 2005 , p. 103). Ainda que meus amigos afirmem que Deus está no pobre, é improvável concluir que ele seja equivalente a uma vítima sacrificial em termos maussianos. Não estou ignorando que a morte de Jesus ocorreu sacrificialmente, porém o paradoxo do sacrifício entre coletivos cristãos consiste no caráter kenótico da Segunda Pessoa divina (Filipenses 2, 5-8): o esvaziamento/apagamento de Sua natureza divina como o cumprimento do desejo de Deus, implicado na Crucificação. Ao se deixar sacrificar, em sua transfiguração humana, Ele expurgou a necessidade do sacrifício humano ou animal. Embora Maya Mayblin e Magnus Course critiquem Mauss e Hubert, pois o sacrifício cristão ultrapassaria os limites da Eucaristia através da “imitação de Cristo”, não perdem de vista que essa tentativa restringe-se a “imitar o inimitável” ( Mayblin e Course, 2014 , pp. 317-318 n. 3). Se parto das pessoas com quem convivi, trata-se preferencialmente de “discernir”, de distinguir ( Costa, 2017 ; Garcia, no prelo), as presenças ativa e passiva de Deus considerando respectivamente a Eucaristia e os seres humanos, o que também é uma maneira de delinear a qualidade da troca com um ser onipresente. Feitas essas observações, abordarei com mais vagar a questão da gratuidade e da renúncia à retribuição, as questões renitentes na caridade.

Retorno agora a um apontamento de Luís disposto na introdução: “Quando se fala carisma, no sentido de comunidade, é a forma como aquela comunidade presta contas a Deus”. Esta prestação de contas é uma maneira de destacar algo crucial acerca da qualidade específica do que essas pessoas chamam de gratuidade: o que elas podem ofertar a Deus vem d’Ele, não há nada que já não seja d’Ele mesmo. Por isso, só resta prestar contas. Deus não renuncia à retribuição. A gratuidade do dom recebido e a gratuidade da caridade especificam que a retribuição é feita a Deus, que está no pobre, na condição de prestação de contas. A gratuidade٣٣ não é um aspecto inerente à caridade, o que ocorre quando ela é oposta analiticamente à reciprocidade, mas é a própria modalidade da relação que se estabelece com um ente incomensurável e insondável.34 34 Campos, quando lida com a “prática da caridade” (2003, p. 220) entre uma comunidade católica de penitentes cearenses, demarca que não é possível equacionar a reciprocidade imediatamente com a troca, enquanto correspondência mútua, mas sim com práticas de “solidariedade”. No entanto, ela subsume a persistência de Deus ( Idem , pp. 212, 220-222, 238-241) em tais práticas a relações baseadas em uma “moralidade” ( Idem , p. 223) enquanto um conjunto de valores estritamente humanos.

O problema consiste, penso, em considerar que o carisma fundacional de uma comunidade é um presente gratuito dado por Deus e que a caridade é o resultado daquela gratuidade primeira. A gratuidade da caridade, no caso que apresento, não pode ser definida pela não retribuição por parte daqueles que a recebem – missionários (como dom fundacional) e pobres (como doação em favor deles). Deve, preferencialmente, ser discutida a partir do regime da troca com Deus. O último é um ente/parceiro cuja incomensurabilidade desfaz o regime normal da troca: aquele em que o tripé dar, receber e retribuir cria, mesmo que temporariamente, a oscilação entre posições recíprocas e intercambiáveis, as de doador/donatário, redundando assim em assimetrias reversíveis.

Notemos que a caridade é englobada pelo regime normal quando ela é analiticamente definida como um domínio complementarmente oposto à troca interessada, sendo a face opaca da “moeda” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 458) em que está gravada a teoria moderna da troca. Algo distinto vem à tona quando a assimetria de perspectivas entre doadores e donatários não é reversível em momento algum devido aos atributos incomensuráveis e inerentes aos parceiros. Isto ocorre no regime da troca com Deus, o terceiro. Como vimos acima, obrigá-Lo e cobrá-Lo era uma tentação dada pelo demônio. Meus amigos esperavam que Deus retribuísse a gratuidade da ação caritativa, mas discerniam a qualidade específica da retribuição. Esta não podia ser opacificada pela fraqueza do humano da pessoa.

Na caridade, eles diziam, apenas “Deus sabe” como Ele retribuirá o que se faz por Ele, que está nos pobres. Os últimos são vistos por meio do vínculo com Ele. Por isso, o pobre, que não possuía nada e agradecia, o fazia por motivos acessíveis somente a Deus, que ao mesmo tempo estava nele. Uma das maneiras de abordar a gratuidade tão enfatizada por esses católicos concentra-se na impossibilidade de acessar a intenção divina e as inspirações também advindas dela. A intenção humana em uma relação incomensuravelmente assimétrica resume-se a “caminhar” com Deus que, por não se subsumir ao regime normal da troca, não exige ou tampouco renuncia à retribuição. Ele mostra onde a última deve preferencialmente acontecer, mas não obriga, pois concomitantemente o livre-arbítrio (a vontade humana) é uma dádiva divina.35 35 Quando saliento a incomensurabilidade divina, não estou minorando a ação dessas pessoas. Um(a) parecerista sublinhou acertadamente que “agência não implica, ou está ligada, necessariamente a uma concepção do sujeito/indivíduo moderno”. Estou de acordo, uma vez que é preciso especificar a qualidade da ação, pois corre-se o risco de opacificar, segundo ele(a), a “análise da agência dos sujeitos”. Ainda assim, enfrentar a existência simultânea de diferentes noções de agência excede os propósitos deste artigo. Não custa lembrar, em todo caso, que o modo como esses católicos definem a liberdade constitui um paradoxo em relação a concepções modernas de sujeito. Digo isso porque a certeza de meus amigos acerca das recompensas e qualidades divinas depende efetivamente da consideração de que tudo vem d’Ele, inclusive a vontade. Não por acaso, entre eles, a “obediência” e a “submissão” a Deus libertam e definem a pessoa e seus feitos mais notáveis. Sobre a problematização dessas questões, ver Costa (2017) e Garcia (2018b, no prelo).

A onipresença de Deus impede que se defina a caridade pelas duas faces da moeda da teoria moderna da troca: como ação desinteressada (soteriológica/celestial) ou interessada (contratual/mundana). Partindo das pessoas com quem convivi, o interesse era ver, era encontrar com Jesus no pobre. Este encontro correspondia ao modo como Ele revelava de forma insondável Sua grandiosidade, deixando-se buscar e ver na simplicidade cotidiana e desprezível dos pobres. Meus amigos diziam que estavam “com Deus o tempo todo”, que a salvação decorria de tal imediatidade e que a convivência com o pobre já “anuncia o Céu”.

O modo de se desviar do impasse acerca da gratuidade aqui é colocar a caridade onde meus amigos a localizavam. A premissa básica, infiro, é a seguinte: quando você fazia pelos pobres, você estava fazendo por Deus, que estava fazendo pelos pobres através de você e fazendo por você (libertando) pela Sua presença nos pobres. A retribuição não é eliminada da gratuidade, como dom divino e como oferta aos pobres. Preferencialmente, é consumada no interior da própria ação: cuidar dos pobres, de Jesus. A caridade liberta triplamente porque a pessoa começa a ver, a discernir, a presença de Deus nos pobres; porque é através do vínculo com Ele, o Pai, que a germanidade universal é revelada; e porque a salvação acontece neste mundo visto que já se está próximo de Deus.36 36 Simon Coleman (2004 , pp. 432-433) sugere que as doações monetárias de cristãos aderentes à “Teologia da Prosperidade”, na Suécia, realizam os propósitos divinos no aqui e agora. A conceptualização que esse autor faz do que ele alcunha de “dádiva carismática”, por meio da conclusão de que o poder de tal dádiva reside no modo como ela trafega entre dois reinos distintos, o “‘sagrado’” e o “‘secular’” ( Idem , p. 432), afasta-se da posição que tenho defendido, a partir de meus amigos, por conta da onipresença de Deus.

Nas páginas seguintes, dou conta dessa proximidade através da maneira como os missionários se colocavam diante de Deus a partir dos dois carismas comunitários: a adoração eucarística (Jesus é) e a caridade (Jesus está). É possível conversar com Deus exposto no ostensório37 37 O ostensório é uma peça de ourivesaria ricamente ornada em que se deposita a hóstia já consagrada. e também na rua.

Adoração eucarística e Pastoral de Rua

Na Missão, a adoração eucarística (a Jesus transubstanciado no ostensório) era diária em suas casas. Em um Retiro, que durava em média três dias, ocorriam entre outras atividades dez adorações. Cada uma delas se prolongava por aproximadamente trinta minutos. As pessoas totalizavam quase seis horas genuflexas, embora se pudesse adorar em pé ou sentado, intermitentemente. Louvava-se a Deus usando um microfone. Todos os presentes escutavam o que estava sendo dito para Ele, no altar. A adoração possibilitava chegar à caridade: a calçada, o altar dos pobres.

“Eu te peço, Jesus, que possamos dar água ao Senhor nos mais pobres...”

Das muitas adorações que presenciei, apresentarei de passagem apenas uma, que foi conduzida por César, cofundador da Missão e irmão consanguíneo de Luís, no Retiro de Carnaval de 2015. Como o último, ele também era serralheiro; a cor da pele, branca. Tinha trinta e seis anos. Com o microfone em punho e ajoelhado, César ficou de costas para a assembleia e, com o olhar fixo na hóstia depositada no ostensório, começou a adorar:

Obrigado, Senhor Jesus, por mais uma vez estarmos aqui na Tua presença. Trazemos em nosso coração o agradecimento dos pobres [dos quais] o Senhor nos encarregou de cuidar. Agradecemos ao Senhor, porque nos escolheu para estarmos junto com os pobres pelo Senhor. O Senhor que nos ensina muito no Santíssimo Sacramento do altar. O Senhor nesse Retiro foi colocando em meu coração alguns momentos que vivi, que passei com os pobres, para mostrar nesses momentos a sensibilidade de nosso Senhor Jesus Cristo com os pobres, o cuidado de Deus com os pobres.

Ele enumerou alguns fatos que desvelavam esse cuidado ou zelo. Retorno a dois deles.

O Senhor sabe tudo isso porque Ele inspirou tudo isso. Há muito tempo atrás, a Irmã Mariana [uma freira] veio falar para mim que tinha uma família muito pobre que estava sem nada em casa. Ela pediu dinheiro, conseguiu e fez a compra para essa família... A irmã, na hora que estava saindo do mercado, voltou. Tinha sobrado um pouquinho de dinheiro. Ela pegou um saco de salgadinho, daquele Cebolitos, que é uma rodelinha. Depois de ter entregado toda a compra, o pai falou: “A gente não tinha nada, e a minha filhinha só tinha falado que ela tinha vontade de comer um salgadinho que ela tinha comido na escola, que era um salgadinho de cebola que era uma rodelinha, que ela encaixava nos dedos e ia comendo”. A irmã não sabia porque tinha pego o salgadinho... Deus quis levar o alimento [para aquela família], mas o que ela [a menina] pediu Deus teve o cuidado de levar para ela.

É a onipresença de Deus que torna admissível apontar essa triangulação que caracteriza a ação divina. César em nenhum momento se afastou daquela condição fundante do vínculo com Ele. Em seguida, emendou: “Quando Deus nos coloca na rua para cuidar dos pobres, é porque Ele cuida dos pobres através de nós. Que o Senhor nos ensine a servir, que nos ajude a ir ao encontro do Senhor”.

César prosseguiu e testemunhou mais um fato. Rememorou que certo dia estava em casa meditando em suas orações acerca da “samaritana” (João, 4). Um irmão de rua, cujo apelido era Ki-Suco, apareceu no mesmo instante e pediu um copo de água: “Nesse momento que ele pediu o copo d’água, eu vi que... podia dar um copo d’água para o Senhor, porque eu sei que todas as vezes que nós fazemos isso aos que estão precisando, aos mais pobres, é a Jesus que estamos fazendo. Eu te peço, Jesus, que possamos dar água ao Senhor nos mais pobres...”.

Deus, por ser onipresente, é depositado em um ostensório, uma peça rica e artisticamente fabricada com ouro ou material dourado, onde o Corpo de Cristo é exposto. Ou pode estar nas ruas, bêbado, sujo de fezes, de urina, faminto, deitado sobre um papelão, com escrófulas expostas. Nas duas circunstâncias, meus amigos desejavam literalmente tocar essas duas presenças verdadeiras: a eucarística (portentosa/passiva) e a martirizada (desprezível/ativa). O regime da troca com Deus eucarística e caritativamente fundamenta-se no zelo pelas Suas manifestações e constitui paradoxos irredutíveis a qualquer tentativa analítica fixada no regime normal da troca. É o cuidado de Deus com os pobres, conforme César, que me leva agora à Pastoral de Rua. Nas próximas páginas, vou adiante com uma premissa geral de meus amigos: Jesus está no pobre. Farei isto através de uma das várias Pastorais em que estive.

“Eu era filho da pobreza, da miséria”

Daqui em diante meu propósito, a partir do encontro dos missionários com os irmãos de rua, é apresentar a maneira como Jesus fala nessa forma de presença. Todos os sábados,38 38 Não existia um dia específico para realizar Pastorais. Os missionários podiam fazê-las sempre que desejassem. com exceção daqueles em que havia algum Retiro ou um imprevisto, aproximadamente quarenta missionários iam à missa em uma igreja no centro da capital paulista.39 39 Essas Pastorais começavam pela missa, onde se comungava; depois, ia-se ao encontro do pobre; por fim, adorava-se Jesus Sacramentado em alguma igreja da localidade. Assim que a celebração acabava, a Pastoral começava. Luís sempre a conduzia. Com a ausência dele, quem fazia isso era um frei ou freira ou outro missionário leigo. Em uma dessas ocasiões, uma freira, cujo nome religioso era Irmã Salete do Lado Traspassado da Cruz, ficou encarregada. Ela era uma mulher branca. Tinha trinta e cinco anos em 2013. Possuía a formação de técnica em enfermagem.

A Pastoral começou na Praça da Sé. Os irmãos de rua se aproximavam, conforme os missionários ofertavam biscoitos e café com leite. Um deles começou a falar de maneira acelerada. O nome do homem de pele parda, natural do estado do Maranhão, era Fabiano. Parecia ter menos de trinta anos. Salete e eu sentamo-nos com ele.

Ele contou que havia morado no Rio de Janeiro. Assim que chegou à capital fluminense, foi acolhido por uma pessoa. Conseguiu comprar rapidamente um terreno que valia cem mil reais. Cedeu uma parte dele para que outra pessoa construísse uma casa. Simultaneamente, conheceu uma moça. Em meio à decepção amorosa por conta do relacionamento, recordou: “Teve um momento dentro do meu barraco que tinha uma Bíblia. Eu não tinha falta de conhecimento. Eu lia as coisas, mas não tinha discernimento para entender... Nesse período, eu estava usando um entorpecente, a maconha. Foi quando a minha mente mais desenvolveu... Aquilo ajudou o meu conhecimento dentro da palavra de Deus”.

Fabiano relatou que depois de consumir o entorpecente abriu a Bíblia, leu Gênesis e começou a “ficar curioso”. Ele continuou a leitura e folheou o Livro dos Provérbios “para conhecer a sabedoria, a inteligência”. Deparou-se com as seguintes palavras: “‘Filho, entregue a si mesmo. Filho que se envergonha sua estrela apaga’ [Provérbios, 29, 1540 40 As remissões sucessivas ao Evangelho nas próximas páginas dão o tom da persistência de Deus na vida dos irmãos de rua. O testemunho de Fabiano não é nem um pouco incomum, visto que os irmãos, muitas vezes, avizinham a situação de rua com algumas passagens do Evangelho. Agradeço a Salete por pacientemente me ajudar a recuperar as passagens bíblicas enunciadas por Fabiano. ]. Aquilo estava acontecendo comigo”.

Ele retornou ao Maranhão. O término do relacionamento o entristecera. Reviu sua família. A mãe o ajudou a voltar para o Rio de Janeiro: “Eu vim com mais confiança. Eu conhecia um pouco mais da Palavra. No Livro de Provérbios [31, 2-3] fala: ‘O filho meu é o filho das minhas promessas. Não dê teu vigor às mulheres...’. Eu sabia que não devia ter mais caso com mulher e deveria lutar pela minha mãe e meus irmãos”. Quando regressou, Fabiano vendeu uma parte do terreno a um playboy ”por cinco mil e quinhentos reais (o terreno custara cem mil reais41 41 Não há nenhuma dificuldade de assinalar que, em muitos momentos, as palavras articuladas pelos irmãos de rua nem sempre são emitidas para criar coerência entre datas, quantificações e eventos. O que deve reter a nossa atenção é como “Jesus está” nessas pessoas. ). Enviou algum dinheiro para a mãe, pagou a passagem para que uma das irmãs viesse para o Rio de Janeiro e comprou material de construção para fazer uma casa de tijolos, o seu sonho.

Logo depois, recebeu uma oferta de emprego em um posto de gasolina perto de sua residência. Aos poucos, o dono do estabelecimento, a quem ele chamava de “dono de tudo”, começou a ter simpatia por ele, promovendo-o: “Ele me propôs um certo cargo, mas tirou a minha alma... sem o meu consentimento”. Fabiano não detalhou a “maldade” que o patrão fez com ele. Remeteu-se mais uma vez ao Livro dos Provérbios [23, 1-3]:

“Quando tu te assentares à mesa com um governador, considera quem está diante de ti... Se tu sentes muito apetite, põe uma faca na tua garganta”. Eu fui sentar com um governador. Meu patrão tirou a vista dos meus olhos porque ele mandou eu ter cobiça, ganância... A Bíblia fala que há dois caminhos: um estreito e um largo [Mateus, ٧, ١٣-١٤]. A minha casa de baixo, do primeiro andar, era a porta estreita... Eu quebrei a porta estreita para meter aquelas de aço, uma porta larga. Eu fiquei tão ganancioso que... minhas irmãs tinham se afastado de mim por causa do que eu fui capaz de fazer... Eu era filho da pobreza, da miséria. Eu já conhecia a palavra de Deus, mas eu jamais desconfiei que o meu patrão... queria me escravizar.

Naquele instante, olhei para trás e vi que um homem cambaleava com um copo de plástico nas mãos. Ele se aproximou de um bueiro entupido e sem grelha, onde afundou o copo e, em seguida, bebeu o esgoto. Salete pediu que duas missionárias comprassem água e foi ao encontro dele. Eu ameacei levantar. Ela solicitou, todavia, que naquele momento eu ficasse sentado e continuasse a ouvir Fabiano. Minha atenção dispersou-se, pois eu estava consternado. O homem bebeu a água ofertada. Recusou, entretanto, o curativo em uma grande ferida em seu tornozelo; em seguida, deitou-se em um banco. Salete retornou e voltou a falar com Fabiano: “Sua vida dá um livro...”. Despedimo-nos dele, pois outros irmãos de rua precisavam de curativos.

“Por isso, Ele manifesta assim”

Instantes depois, Salete comentou comigo acerca do que tinha se passado: “Foi muito difícil ver aquele irmão beber o esgoto”. Admiti que tinha ficado atordoado. A freira, que me fez permanecer imóvel ao perceber a minha intenção de ir ao encontro do homem, decretou: “Quando você encontra muitas feridas é o que Deus quer curar em nós. Por isso, Ele manifesta assim. Ali foi uma manifestação de feridas: desde o Fabiano, uma atrás da outra. O Fabiano deu o testemunho. Ele precisava falar”.

Retornei à imagem do homem e admiti que iria chamar a atenção dele. Salete, no entanto, disse que impedir não era o melhor a ser feito: “Nós não temos nada melhor para dar para ele. Não dá nem para chamar a atenção. Nós não temos melhoria para fazer se a sociedade não dá nada. Nós só podíamos fazer aquilo: ficar junto e perto”. Meus amigos, quando ofertavam algo para os irmãos de rua, consideravam improvável impor obrigações recíprocas a eles, que eram chamados também de “a Eucaristia viva”.42 42 Acerca da oscilação entre “compaixão” (a empatia e a benevolência com o pobre que marcaria o “ideal romantizado da caridade cristã” enquanto uma dádiva “incondicional” ou livre) e a “responsabilidade [ accountability ]” individual (a imposição de “obrigações recíprocas” aos pobres para a continuidade da compaixão, tal como afastar-se de maus hábitos e de pecados recorrentes), ver o trabalho de Omri Elisha com evangélicos estadunidenses (2008, pp. 156, 160-163, 165, 172-173). Consultar Bialecki (2014 , pp. 38-39) para uma crítica à ausência de Deus na análise de Elisha, apesar da insistência desses adeptos de que são compelidos à caridade por Ele.

Eu estava perturbado com uma atitude de Salete: ela pediu para que mostrassem a escrófula daquele homem que bebeu o esgoto quando finalmente pude me aproximar. Eu não sabia o que ela pretendia. Salete não demorou a expor:

O que os [seus] olhos viram ali na perna dele é o que te doeu. Neles [nos “irmãos”] está o que tem dentro de nós [Jesus]. Fora deles [dos “irmãos”] está o que tem [também] dentro de nós. O povo vê o irmão sujo, fedido. E o que tem dentro de nós muitas vezes? Temos as nossas limitações, misérias, pecados, impurezas que são muito mais fétidas que um pobre sentado cheio de fezes na calçada. Você vê fora o que está dentro de você.

Perguntei se houve “libertação” naquela Pastoral. Salete rematou: “É Deus curando e libertando...”. Por um lado, as palavras da freira não se afastam em nenhum momento daquelas de Luís e Pedrinho na seção anterior. Por outro lado, ressaltam o caráter revelatório daquelas feridas, afinal Deus se manifesta também dessa maneira. O zelo que se tem por Ele no ostensório é o mesmo que se nutre por Ele no pobre. Salete continuou: “Deus é real. É preciso ser livre junto a Deus. A sociedade te oferece uma falsa liberdade”.

Partindo da adoração eucarística e chegando à caridade na Pastoral de Rua, é pertinente afirmar que elas reverberam, seguindo meus amigos, a onipresença divina, seja nos belos ostensórios e edificações que a exibem, seja nas situações de extrema pobreza. O contraste entre as formas pelas quais ela se dá a ver é próprio, continuando com esses católicos, do seguinte paradoxo: “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens [...] O que é estulto no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios, e o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes; e o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são” (1 Coríntios, 1, 25, 27-28). A maneira como Ele se deixa buscar ou encontrar, através de Sua “loucura”, prolifera os vínculos com suas manifestações na Eucaristia e no pobre. Prestar contas é a única forma de retribuir a um ser sem limites, que é “dono” de tudo o que há e de quem tudo provém.

Considerações finais

Depois das observações dispostas ao longo deste artigo, é pertinente destacar que a vinculação, desde sempre assimétrica, com o divino, incide entre esses católicos na própria definição da pessoa. Partindo deles, a pessoa “próxima de Deus” e a “pessoa longe de Deus” correspondiam, respectivamente, aos termos livre e junto (próxima d’Ele) e autônomo e afastado (distante d’Ele).

A distância em relação a Deus, resultado também da opressão do demônio, levava ao estabelecimento de juízos orientados estritamente pela fraqueza humana. O êxito da opressão concernia igualmente às circunstâncias em que as pessoas, segundo esses católicos, “pensavam cada vez mais em si próprias”. A escravidão advinha da inferência de que o demônio era um ser fragmentador. Não por acaso, eles afirmavam que o mal gostava de “destruir, causar divisão, discórdia, ciúme, brigas”. A qualidade dessa fragmentação confundia-se com formas ordinárias de individualismo, de emancipação, de atomização, de subjetivação e, principalmente, de liberdade ou, como dizia Salete e muitos de meus amigos, de uma “falsa liberdade”.

Prosaicamente, essas pessoas estavam assinalando os motivos pelos quais o mundo capitalista que eu compartilhava com elas “deu errado”, definindo o que chamo de caráter “contra humanista” da liberdade que elas viviam. Isto não se confunde, porém, com uma tendência em que se renuncia ao mundo. Libertar, como observamos, não é afastar, emancipar, mas sim vincular e aproximar cada vez mais a Deus, que está nos desvalidos. A imanência d’Ele só é possível, na vida desses católicos, porque Ele se revela em toda parte, o que define a própria qualidade de Sua transcendência.

Convém sublinhar que meus amigos enfrentavam, tal como outras pessoas, a renitência da desigualdade em uma grande metrópole. O que os diferenciava era que eles correlacionavam a desigualdade ao próprio modo como a “sociedade”, ao se afastar das “coisas de Deus”, era apenas mais uma versão do caráter irremovível da fraqueza humana. Eles concluíam que apenas o encontro com Ele remediaria a fraqueza, dado que Sua presença se revelaria em todas as pessoas. Sempre me pareceu que estavam assentando que o surgimento de uma vida mais justa passava pelo reconhecimento da onipresença divina.

Quando zelavam pela divindade na Eucaristia e cuidavam das feridas dos irmãos de rua, esses católicos estavam lidando com as maneiras inesperadas e insondáveis por meio das quais Deus se deixava buscar e enxergar. A caridade liberta porque a liberdade, em lugar de autonomizar e emancipar, caracteriza-se pelo vínculo com Deus o qual ocorre através do regime da troca com Ele. Neste regime, é improvável desviar-se das inferências de que tudo vem d’Ele e a Ele pertence, logo só resta retribuir prestando contas. Na vida de meus amigos, a gratuidade das ações caritativas era o modo específico da relação que, por ser estabelecida com um ente incomensurável, era definida como prestação de contas. Consequentemente, aquilo que era gratuito permanecia irredutível à oposição complementar (as faces da mesma “moeda”) entre a reciprocidade (obrigação de retribuir) e a caridade (renúncia à retribuição) advinda teoria moderna da troca.

* Agradeço a Ciméa B. Bevilaqua pelas observações valiosas durante a elaboração do texto. Sou grato também aos(às) pareceristas pela leitura cuidadosa.

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  • VENKATESAN, Soumhya. (2011), “The social life of a ‘free’ gift”. American Ethnologist , 38 (1): 47-57.

Notas

  • 1
    A pesquisa foi realizada entre 2013 e 2016 e resultou em minha tese de doutorado ( Costa, 2017COSTA, Ypuan G. (2017), “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. ), cujo tema é a libertação.
  • 2
    A maioria dos nomes são fictícios.
  • 3
    Para maiores informações acerca da biografia de Luís e de alguns dos “missionários” que são mencionados ao longo deste artigo, ver Costa (2017)COSTA, Ypuan G. (2017), “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. .
  • 4
    No uso do vocábulo carisma, tenho em perspectiva como as inspirações divinas são fundamentais na vida desses católicos. Não discorrerei sobre indivíduos específicos com uma liderança pessoal e carismática, e também não me deterei na importância da Renovação Carismática Católica na vida dessas pessoas. Acerca desta última observação, consultar Costa (2017)COSTA, Ypuan G. (2017), “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. .
  • 5
    A consagração era o momento em que acontecia a investidura do título de frei (Irmão) ou freira (Irmã).
  • 6
    Um aprofundamento na história do franciscanismo excederia o escopo deste artigo.
  • 7
    O “discernimento” é um presente de Deus que possibilita realizar a distinção entre ações oriundas d’Ele, do Diabo e dos seres humanos.
  • 8
    Retomarei essa expressão na terceira seção.
  • 9
    Para uma visada nas abordagens contemporâneas do conceito de sacrifício, ver Maya Mayblin (2014MAYBLIN, Maya. (2014), “The untold sacrifice: the monotony and incompleteness of self-sacrifice in Northeast Brazil”. Ethnos , 79 (3): 342-364. , pp. 346-350, 356-359, 361). Neste texto, a referência que faço ao conceito restringe-se à circunstância em que a dádiva livre concerne a “um preço de compra da salvação” ( Parry, 1986PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , p. 468).
  • 10
    Ao enunciar esse regime, não estou apartando dádiva e mercadoria. Ambas suscitam alguma forma de reciprocação ( Gregory, 1980GREGORY, Christopher A. (1980), “Gifts to men and gifts to God: gift exchange and capital accumulation in contemporary Papua New Guinea”. Man , 15 (4): 626-652. , p. 640). Não se trata, porém, de justapor o interesse à instrumentalidade. Pretendo acentuar o equívoco relativo ao contraste realizado entre interesse (compromisso) e desinteresse (ausência de compromisso). O último é atribuído negativamente à caridade.
  • 11
    Um(a) dos(as) pareceristas, a quem sou grato, interrogou oportunamente como eu defino a ruptura e se no caso apresentado houve ou não ruptura. Como bem aponta Liana Chua, não obstante Robbins reconheça a pluralidade de modos de vida cristãos, ele tende a “usar o modelo ideal [protestante] orientado para ruptura [o antes e o depois] [...] como uma sinédoque para o Cristianismo como um todo” (Coleman apudChua, 2012CHUA, Liana. (2012), The christianity of culture: conversion, ethnic citizenship, and the matter of religion in Malaysian Borneo . Nova York, Palgrave Macmillan. , p. 14; ver também pp. 15, 17-18), indo além da etnografia entre os Urapmin da Melanésia - seu ponto de partida. Cecília L. Mariz e Roberta B. C. Campos (2011, pp. 106, 115) assinalam com precisão que a descontinuidade e igualmente a continuidade devem ser encaradas “metodologicamente”, uma vez que seria um truísmo reter-se na prevalência empírica de uma e outra. O caráter primordialmente transformativo do Cristianismo as englobaria. Por meu turno, sublinho que este artigo não adere a essas duas noções, as quais seriam extremidades do pêndulo analítico que daria um lugar restrito a uma terceira dimensão que detém um sentido forte entre meus amigos católicos: o vínculo com Deus. Opacificar essa aliança redunda em perder de vista, por exemplo, a especificidade das concepções que essas pessoas têm a respeito do “eu” e da “liberdade”. É impressionante que Luís e várias pessoas com quem estive sempre se opusessem à liberdade espúria que “o mundo e a sociedade pregavam”. Rejeitavam a possibilidade de alguém considerar que se “bastava”. Essas críticas voltam-se a perspectivas que geralmente possuem contornos modernos e as quais são consideradas, por elas, formas de “escravidão” e de “fraqueza”, visto que o “eu” e a “liberdade” são doações de Deus, isto é, decorrem da união com Ele. Descrever a persistência da relação com Deus talvez seja um trampolim para repensar e escapar das tensões, algumas vezes essencializadas, entre continuidade e descontinuidade nos estudos acerca do Cristianismo. O acento nessas duas noções retroalimenta a importância conferida ao entrelaçamento entre Protestantismo/modernidade/individualismo/ruptura, algo que o entendimento de Robbins (2011)ROBBINS, Joel. (2011), “Transcendência e antropologia do cristianismo: linguagem, mudança e individualismo”. Religião & Sociedade , 31 (1): 11-31. corrobora, o que vai de encontro às argumentações aqui desenvolvidas.
  • 12
    Neste artigo, as diferenças entre protestantismo e catolicismo são consideradas heuristicamente. Ver Maya Mayblin et al . (2017, p. 24) para as armadilhas relativas a uma possível suposição de que as diferenças entre essas duas vertentes cristãs sejam passíveis de congelamento.
  • 13
    Retomarei esses trabalhos sempre que necessário, embora sem dar conta minuciosamente de sua riqueza reflexiva. Antecipo que na terceira seção destacarei o de Jonathan Parry (1986)PARRY, Jonathan. (1986), “ The gift , the Indian gift and the ‘Indian gift’”. Man , 21 (3): 453-473. , que continua a ser basilar tanto para algumas dessas análises quanto para a discussão geral acerca da dádiva ( Sanchez, 2017SANCHEZ, Andrew. (2017), “The novelty of the gift: a British anthropologist & the trends of ethnography”. History and Anthropology , 28 (5): 553-559. ).
  • 14
    Atualmente, essas afirmações são questionadas pela crescente atenção às especificidades descritivas atinentes, por exemplo, aos atos de “pedir [ ask ]” e dar ( Klaits, 2017KLAITS, Frederick. (2017), “Asking in time”, in F. Klaits (org.), The request and the gift in religious and humanitarian endeavors , Nova York, Palgrave Macmillan. ).
  • 15
    A “Pastoral de Rua” (ou “Pastoral”) era o momento no qual os missionários viviam a caridade, sendo definida como o motivo de existência da Missão.
  • 16
    A “mística” era geralmente definida como aquilo que ultrapassava a razão humana, sendo relacionada ao mistério da missa. A mística indicava, ademais, uma presença divina que alguns sentiam, enquanto outros a viam.
  • 17
    Eles afirmavam que a TL foi do “Espírito para a carne”, pois a militância inspirada no marxismo levara seus integrantes a “matar” pela Igreja, em lugar de “morrer” por ela. Foge às finalidades deste artigo enfrentar a vasta literatura acerca da TL, embora meus amigos não se furtassem a dizer que conservavam dela a “parte [mística e profética] da luta pelos direitos dos pobres”.
  • 18
    O substantivo “humano”, entre essas pessoas, equivalia ao sintagma “humano da pessoa”. Este era frequentemente associado ao substantivo “fraqueza”. A imperfeição indelével da natureza humana transformou a pessoa, a partir da “Queda do Paraíso”, em substancialmente “fraca”.
  • 19
    O termo designava uma ação, inspirada por Deus, que se manifestava na forma irrestrita de defender os “pobres”. O vocábulo pobre sofria, entretanto, várias inflexões na vida missionária. Não era apenas o desvalido ou o doente, mas todos aqueles que sofriam por qualquer motivo. Ser pobre na comunidade dizia respeito também, segundo Luís, a “se abandonar ao querer de Deus”. Tratava-se de uma pobreza que, em termos proféticos, era uma recusa à autossuficiência.
  • 20
    Na “doutrina cristã da diakonīa ou serviço, [...] qualquer coisa feita para beneficiar os famintos, sedentos, sem-teto, nus, doentes ou presos é equivalente a realizar o mesmo serviço para Deus (Mateus 25: 31-46)” (Silber apudBenthall, 2017BENTHALL, Jonathan. (2017), “Charity”, in M. Candea etal. (orgs.), The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Disponível em http://www.anthroencyclopedia.com/printpdf/222, consultado em 25/02/2018.
    http://www.anthroencyclopedia.com/printp...
    , pp. 3-4; ver também Carlos A. Steil, apudCampos 2003CAMPOS, Roberta B. C. (2003), “Utopia e sociabilidade: imagens de sofrimento e caridade no Juazeiro do Norte”. Revista de Antropologia , 46 (1): 211-250. , pp. 223, 231, 237-238; Scherz, 2017SCHERZ, China. (2017), “Seeking the wounds of the gift: recipient agency in catholic charity and Kiganda patronage”, in F. Klaits (org.), The request and the gift in religious and humanitarian endeavors, Nova York, Palgrave Macmillan. , p. 53, 58-59).
  • 21
    A Toca é tida como próxima da Missão pelos meus amigos, devido ao carisma de inspiração franciscana. A menção a essa proximidade pode levar a questionamentos oportunos sobre as relações entre essas duas comunidades. Ainda assim, da mesma maneira que na tese, mantenho aqui o compromisso que constituí etnograficamente com esses católicos, ou seja, lançarei mão de pouquíssimos nomes próprios. Admito que essa forma de apresentar a pesquisa crie algumas limitações, contudo se trata de condições irremediáveis do trabalho que realizei. Para análises acerca das atividades pastorais da Toca, ver Rodrigo Portella (2009PORTELLA, Rodrigo. (2009), Em busca do dossel sagrado: a Toca de Assis e as novas sensibilidades religiosas. Tese de doutorado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. , pp. 188-189), Cecília L. Mariz e Paulo V. L. Lopes (2009, pp. 94-95) e Flávia S. Pinto (2012PINTO, Flávia S. (2012), A loucura da cruz: sobre corpos e palavras na Toca de Assis . Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. , p. 123). Para o primeiro, as ações caritativas desses católicos não passam de um “trabalho social” de “cunho assistencialista” porque não visam à melhoria das condições de vida dos pobres. Já os últimos salientam que os integrantes dessa comunidade negavam, de forma análoga às pessoas com quem estive, que suas atividades pastorais pudessem ser alcunhadas de assistencialistas. Para desdobramentos dessa discussão, consultar Pierina Angélica S. Jacinto (2010)JACINTO, Pierina Angélica S. (2010), Pobreza e alianças: análise das relações entre uma comunidade de vida e aliança no Espírito Santo e a cidade de São Paulo . Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo. .
  • 22
    As relações entre antropologia e teologia têm sido exploradas recentemente em reflexões de Robbins (2006ROBBINS, Joel. (2006), “Anthropology and theology: an awkward relationship?”. Anthropological Quarterly , 79 (2): 285-294. , 2013ROBBINS, Joel. (2013), “Afterword: Let’s keep it awkward: anthropology, theology, and otherness”. The Australian Journal of Anthropology , 24 (3): 329-337. ). Jon Bialecki (2014)BIALECKI, Jon. (2014), “Does God exist in methodological atheism? on Tanya Luhrmann’s When God Talks Back and Bruno Latour”. Anthropology of Consciousness , 25 (1): 32-52. aborda o problema da elisão de Deus na antropologia do Cristianismo por meio da análise do trabalho seminal de Tanya M. Luhrmann, When God talks back: understanding the American Evangelical relationship with God , publicado em 2012. J. Derrick Lemons, em coletânea publicada a respeito do assunto, indica que o capítulo assinado pela antropóloga Naomi Haynes sinaliza que “um dos problemas mais incômodos da antropologia da religião” consiste no desafio de “colocar Deus em nossas análises” (2018, p. 14). Consultar Mísia L. Reesink (2005)REESINK, Mísia L. (2005), “A antropologia, os católicos e a noção de Deus”. Religião & Sociedade , 25 (1): 11-38. para uma abordagem mais específica acerca dos modos como alguns católicos pernambucanos relacionam-se com Deus. Esta nota de rodapé está reproduzida, com ligeiras alterações, em Garcia (2018b, pp. 166-167 n. 44).
  • 23
    O nome religioso é anunciado na consagração.
  • 24
    Na Missão, os “Retiros” eram simultaneamente os momentos em que seus membros se reuniam e a oportunidade de atrair novos missionários. Um Retiro Vocacional visava discernir novas vocações para a vida celibatária.
  • 25
    Viria a saber depois que a pregação do padre Cristiano baseou-se em um dos escritos de Raniero Cantalamessa, o pregador da Casa Pontifícia.
  • 26
    Isso se afasta do “paradoxo” que Matthew Engelke diz sobressair do que ele alcunha de “problema da presença”: “uma das dinâmicas centrais do pensamento cristão [especialmente protestante] é o entendimento paradoxal da presença e ausência simultâneas de Deus” (2007, p. 12).
  • 27
    Habitualmente, meus amigos estavam atentos ao fato de que a “dúvida” e a “desconfiança” eram estados contra os quais eles se precaviam quando uma sucessão de infortúnios se interpunha ao vigor devocional: adorar, comungar, realizar atividades pastorais etc. O início e a persistência de uma “atribulação” configuravam ocasiões privilegiadas em que o demônio armava uma “cilada”, levando as pessoas a questionarem Deus e, não raramente, a se revoltarem contra Ele. O maligno agia na tensão entre a renitência da insondabilidade divina e das limitações humanas. Estas últimas eram o fio condutor da culpabilização d’Ele através da emergência de uma relação baseada demoniacamente na cobrança, na exigência e na obrigação.
  • 28
    No caso que descrevo, não me parece plausível postular, tal como Mark S. Mosko, que Deus, o Diabo e os seres humanos são “divíduos” porque, enquanto entes compósitos, suas partes provêm das trocas que estabelecem entre si (2010, p. 217), tornando possível a permuta de perspectivas, isto é, vão de agentes a pacientes e vice-versa (Garcia, 2018a, p. 274 n. 14). Partindo da etnografia melanésia, Mosko (2010MOSKO, Mark S. (2010), “Partible penitents: dividual personhood and christian practice in Melanesia and the West”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 16 (2): 215-40. , p. 219) assenta o entendimento geral de que prevalece no Cristianismo a troca de feição “dividual”. Ele insiste nessas conclusões quando cita, por exemplo, o trabalho de Bruce Knauft entre os Gebusi da Papua Nova-Guiné: “Knauft argumenta [...] que os cristãos [Gebusi] não podem barganhar com Deus [...] No entanto, os conversos percebiam claramente a sua igreja e outras observâncias (orar, cantar, pecar etc.) como transações recíprocas de eliciação [ elicitive ] entre Deus, Jesus, Satanás, o pastor e eles mesmos” ( Mosko, 2010MOSKO, Mark S. (2010), “Partible penitents: dividual personhood and christian practice in Melanesia and the West”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 16 (2): 215-40. , p. 225). Em suma, o que, para meus amigos, surge como uma tentação demoníaca é tratado analiticamente por Mosko enquanto um aspecto constitutivo das relações entre esses entes, as quais segundo ele se baseariam em “mer[as] [...] contraprestações” (2010, p. 232).
  • 29
    Parry equaciona a ética com a moral, algo que viria a ser criticado no surgimento da antropologia da ética. Nesta, afirma-se que a ética é antes uma “disposição” ordinária que uma “convenção” moral ou socialmente determinada ( Keane, 2016KEANE, Webb. (2016), Ethical life: its natural and social histories . Princeton/Oxford, Princeton University Press. , p. 10).
  • 30
    Um(a) dos(as) pareceristas, a quem agradeço, salientou de maneira pertinente que “a regra da reciprocidade não é simétrica quando engaja homens e deuses”. A esse respeito, consultar Mauss (2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , pp. 206-208) e Marcel Mauss e Henri Hubert (2005, pp. 71, 106). Em Sobre o Sacrifício , lê-se o seguinte comentário: “Em todo sacrifício há um ato de abnegação, já que o sacrificante se priva e dá [...] Mas essa abnegação e essa submissão não suprimem um retorno egoísta [...] Se ele [o sacrificante] dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta assim sob um duplo aspecto. É um ato útil e é uma obrigação. O desprendimento mistura-se ao interesse. Eis por que ele foi frequentemente concebido sob a forma de um contrato” ( Mauss e Hubert, 2005MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. (2005), Sobre o sacrifício . São Paulo, Cosac Naify. , p. 106). Isso me leva também a concordar com o(a) parecerista, visto que ele(a) ressalta “que a teoria de Mauss sobre o dom é fundamentalmente dialética” e “desconstr[ói] o a priori da época de que o dom era pura gratuidade”. No entanto, chama a atenção que Mauss e Hubert concluam em seguida, no que toca ao Cristianismo, que o sacrifício tenha sido purgado de “todo cálculo egoísta. Trata-se do sacrifício do deus, pois o deus que se sacrifica dá sem retorno [, gratuitamente]” (Idem, 2005, pp. 106-107). Essa ausência de retribuição só poderia ocorrer em uma religião em que prevalece “o limite ideal da abnegação irrestrita” (Idem, p. 107). Mauss e Hubert conceptualizam o cristianismo enquanto “uma religião [...] abstrata [...] [,] moral [e desmaterializada]” ( Idem , pp. 87, 99). Essas considerações vão de encontro às apostas deste artigo. Adiante retomaremos a discussão acerca da ausência de retribuição na relação com Deus.
  • 31
    Dullo aponta com precisão que uma das finalidades “da ação gratuita cristã é criar vínculos” (2011, p. 114). No entanto, sua análise de um centro social católico, localizado na cidade de São Paulo, deixa em aberto a importância de Deus na criação e proliferação desses vínculos.
  • 32
    Outro modo de se reportar ao problema da retribuição diz respeito a reconhecer habilmente, tal como Mariz e Lopes, que na Toca de Assis o carisma de Pastoral de Rua (a caridade) efetua a constituição e a manutenção da “aliança com Deus” (2009, p. 97). Os autores, todavia, assinalam que essa aliança se dá por meio do “sacrifício contratual” (ou “sacrifício-contrato”) (Mauss apudMariz e Lopes, 2009MARIZ, Cecília L. & LOPES, Paulo V. L. (2009), “O reavivamento católico no Brasil e o caso da Toca de Assis”, in F. Teixeira e R. Menezes (orgs.), Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas , Petrópolis, Vozes. , p. 97; ver Mauss, 2003MAUSS, Marcel. (2003), “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”, in M. Mauss, Sociologia e Antropologia , São Paulo, Cosac Naify. , pp. 207-208), que pressupõe a coexistência da liberalidade e de alguma forma de obrigação recíproca entre as partes. Insistem que, em termos sacrificiais, o pobre é um “meio” (ou uma “vítima”) através do qual se restabelece a continuidade com Deus ( Mariz e Lopes, 2009MARIZ, Cecília L. & LOPES, Paulo V. L. (2009), “O reavivamento católico no Brasil e o caso da Toca de Assis”, in F. Teixeira e R. Menezes (orgs.), Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas , Petrópolis, Vozes. , p. 97; ver Mauss e Hubert, 2005MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. (2005), Sobre o sacrifício . São Paulo, Cosac Naify. , p. 103). Ainda que meus amigos afirmem que Deus está no pobre, é improvável concluir que ele seja equivalente a uma vítima sacrificial em termos maussianos. Não estou ignorando que a morte de Jesus ocorreu sacrificialmente, porém o paradoxo do sacrifício entre coletivos cristãos consiste no caráter kenótico da Segunda Pessoa divina (Filipenses 2, 5-8): o esvaziamento/apagamento de Sua natureza divina como o cumprimento do desejo de Deus, implicado na Crucificação. Ao se deixar sacrificar, em sua transfiguração humana, Ele expurgou a necessidade do sacrifício humano ou animal. Embora Maya Mayblin e Magnus Course critiquem Mauss e Hubert, pois o sacrifício cristão ultrapassaria os limites da Eucaristia através da “imitação de Cristo”, não perdem de vista que essa tentativa restringe-se a “imitar o inimitável” ( Mayblin e Course, 2014MAYBLIN, Maya & COURSE, Magnus. (2014), “The other side of sacrifice: introduction”. Ethnos , 79 (3): 307-319. , pp. 317-318 n. 3). Se parto das pessoas com quem convivi, trata-se preferencialmente de “discernir”, de distinguir ( Costa, 2017COSTA, Ypuan G. (2017), “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Garcia, no prelo), as presenças ativa e passiva de Deus considerando respectivamente a Eucaristia e os seres humanos, o que também é uma maneira de delinear a qualidade da troca com um ser onipresente.
  • 33
    As contraposições de James Laidlaw (2000LAIDLAW, James. (2000), “A free gift makes no friends”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 6 (4): 617-634. , pp. 622-624), Soumhya Venkatesan (2011VENKATESAN, Soumhya. (2011), “The social life of a ‘free’ gift”. American Ethnologist , 38 (1): 47-57. , pp. 47-48) e Mayblin (2014MAYBLIN, Maya. (2014), “The untold sacrifice: the monotony and incompleteness of self-sacrifice in Northeast Brazil”. Ethnos , 79 (3): 342-364. , p. 350) a Jacques Derrida, que contesta a própria ideia de dádiva (ver Vassos Argyrou, 2007ARGYROU, Vassos. (2007), “The philosopher’s gift”. Critique of Anthropology , 27 (3): 301-318. , pp. 301-306), consistem em destacar que, embora a dádiva livre seja impossível na perspectiva crítica desse filósofo, as pessoas buscam torná-la tangível. Ainda assim, a argumentação que apresento não segue por esta senda que se mantém contígua às implicações do regime normal da troca.
  • 34
    Campos, quando lida com a “prática da caridade” (2003, p. 220) entre uma comunidade católica de penitentes cearenses, demarca que não é possível equacionar a reciprocidade imediatamente com a troca, enquanto correspondência mútua, mas sim com práticas de “solidariedade”. No entanto, ela subsume a persistência de Deus ( Idem , pp. 212, 220-222, 238-241) em tais práticas a relações baseadas em uma “moralidade” ( Idem , p. 223) enquanto um conjunto de valores estritamente humanos.
  • 35
    Quando saliento a incomensurabilidade divina, não estou minorando a ação dessas pessoas. Um(a) parecerista sublinhou acertadamente que “agência não implica, ou está ligada, necessariamente a uma concepção do sujeito/indivíduo moderno”. Estou de acordo, uma vez que é preciso especificar a qualidade da ação, pois corre-se o risco de opacificar, segundo ele(a), a “análise da agência dos sujeitos”. Ainda assim, enfrentar a existência simultânea de diferentes noções de agência excede os propósitos deste artigo. Não custa lembrar, em todo caso, que o modo como esses católicos definem a liberdade constitui um paradoxo em relação a concepções modernas de sujeito. Digo isso porque a certeza de meus amigos acerca das recompensas e qualidades divinas depende efetivamente da consideração de que tudo vem d’Ele, inclusive a vontade. Não por acaso, entre eles, a “obediência” e a “submissão” a Deus libertam e definem a pessoa e seus feitos mais notáveis. Sobre a problematização dessas questões, ver Costa (2017)COSTA, Ypuan G. (2017), “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. e Garcia (2018b, no prelo).
  • 36
    Simon Coleman (2004COLEMAN, Simon. (2004), “The charismatic gift”. Journal of the Royal Anthropological Institute , 10 (2): 421-442. , pp. 432-433) sugere que as doações monetárias de cristãos aderentes à “Teologia da Prosperidade”, na Suécia, realizam os propósitos divinos no aqui e agora. A conceptualização que esse autor faz do que ele alcunha de “dádiva carismática”, por meio da conclusão de que o poder de tal dádiva reside no modo como ela trafega entre dois reinos distintos, o “‘sagrado’” e o “‘secular’” ( Idem , p. 432), afasta-se da posição que tenho defendido, a partir de meus amigos, por conta da onipresença de Deus.
  • 37
    O ostensório é uma peça de ourivesaria ricamente ornada em que se deposita a hóstia já consagrada.
  • 38
    Não existia um dia específico para realizar Pastorais. Os missionários podiam fazê-las sempre que desejassem.
  • 39
    Essas Pastorais começavam pela missa, onde se comungava; depois, ia-se ao encontro do pobre; por fim, adorava-se Jesus Sacramentado em alguma igreja da localidade.
  • 40
    As remissões sucessivas ao Evangelho nas próximas páginas dão o tom da persistência de Deus na vida dos irmãos de rua. O testemunho de Fabiano não é nem um pouco incomum, visto que os irmãos, muitas vezes, avizinham a situação de rua com algumas passagens do Evangelho. Agradeço a Salete por pacientemente me ajudar a recuperar as passagens bíblicas enunciadas por Fabiano.
  • 41
    Não há nenhuma dificuldade de assinalar que, em muitos momentos, as palavras articuladas pelos irmãos de rua nem sempre são emitidas para criar coerência entre datas, quantificações e eventos. O que deve reter a nossa atenção é como “Jesus está” nessas pessoas.
  • 42
    Acerca da oscilação entre “compaixão” (a empatia e a benevolência com o pobre que marcaria o “ideal romantizado da caridade cristã” enquanto uma dádiva “incondicional” ou livre) e a “responsabilidade [ accountability ]” individual (a imposição de “obrigações recíprocas” aos pobres para a continuidade da compaixão, tal como afastar-se de maus hábitos e de pecados recorrentes), ver o trabalho de Omri Elisha com evangélicos estadunidenses (2008, pp. 156, 160-163, 165, 172-173). Consultar Bialecki (2014BIALECKI, Jon. (2014), “Does God exist in methodological atheism? on Tanya Luhrmann’s When God Talks Back and Bruno Latour”. Anthropology of Consciousness , 25 (1): 32-52. , pp. 38-39) para uma crítica à ausência de Deus na análise de Elisha, apesar da insistência desses adeptos de que são compelidos à caridade por Ele.
  • ERRATA

    No artigo “LIBERTAÇÃO”, “CARIDADE” E O REGIME DA TROCA COM DEUS, DOI: 10.1590/3410113/2019, de Ypuan Garcia, publicado no periódico Revista Brasileira de Ciências Sociais, 34(101): e3410113 , foram detectados dois erros:
    Na página 4, no subtítulo, onde se lê:
    Ação profética e senso de justiça humano
    Leia-se:
    “Ação profética” e “senso de justiça humano
    e
    Na página 13, nota de rodapé nº 4, onde se lê:
    No uso do vocábulo carisma
    Leia-se:
    Quando me dirigir ao vocábulo carisma

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2018
  • Aceito
    20 Maio 2019
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