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A agenda institucional

A agenda institucional

Marta Arretche

We seek not dogma, but disciplined thought.

(King, Keohane e Verba, 1994, p. 7)

A análise do efeito das instituições políticas sobre o comportamento dos atores políticos ou sobre o conteúdo das decisões políticas ganhou grande proeminência nos estudos em ciência política realizados no Brasil. O postulado básico de que "as instituições importam" foi incorporado à agenda de pesquisa da ciência política brasileira, assim como parte expressiva do debate entre os cientistas políticos está voltada a responder à pergunta de quais são as instituições mais adequadas para que tenhamos um sistema democrático, representativo e estável.

De fato, o tema das instituições tem grande apelo tanto para os cientistas sociais motivados a produzir orientações normativas e/ou recomendações políticas como para aqueles motivados a produzir conhecimento científico. Como demonstraram Ferejohn e Pasquino, a longa história da teoria política é reveladora das estreitas conexões entre os projetos normativo e positivo, posto que:

O teórico interessado em persuadir uma audiência [...] [visa a] nos convencer de como a vida política deveria ser vivida, e tentando fazer isso nos trata como capazes de acompanhá-lo na contemplação de como as instituições alternativas ou os sistemas normativos deveriam funcionar. [Ora], quem prescreve uma ação deve ser capaz de antecipar suas conseqüências relevantes [...]. Para que uma teoria normativa seja atrativa, ela deve ser ao menos um pouco plausível, assim como atrativa, à luz da teoria positiva. Ela deve conseguir acertar (ao menos na maior parte das vezes), caso contrário qual seria a atração das prescrições normativas que se apóiam nela? (Ferejohn e Pasquino, 2001, p. 6).

Em outras palavras, qualquer prescrição normativa sobre um estado desejável de vida social deve ser capaz de demonstrar que as instituições propostas produzirão efeitos compatíveis ou próximos deste estado de coisas. Simetricamente, a justificativa para a mudança institucional está assentada sobre uma condenação dos efeitos produzidos pelas instituições presentes. Portanto, as relações entre instituições e seus efeitos desejáveis ou indesejáveis devem estar assentadas sobre um conhecimento de natureza positiva. Em suma, proposições normativas devem se apoiar em conhecimentos relativos às regularidades da vida social, campo da ciência social positiva. Obviamente, esta proposição é válida para qualquer nível de abrangência, desde propostas que envolvam amplas reformas políticas até recomendações de mudança em políticas específicas.

O apelo da agenda institucional – tanto normativo como positivo – assenta-se sobre o suposto de que o comportamento humano – as preferências e os valores dos indivíduos – não é manufaturável, ao passo que as instituições são um artefato humano, passível de construção consciente. Nesse contexto, o que importa para a vida social são os comportamentos dos indivíduos e não suas preferências. Logo, a contribuição desse programa de pesquisas consistiria na possibilidade de identificar o modo como as instituições afetam os comportamentos, de tal sorte que seja possível influir na vida social propondo instituições políticas que criem incentivos favoráveis aos comportamentos desejados.

Tal conexão – entre teorias normativas e positivas – remete para questões relativas à teoria do conhecimento e de metodologia. No campo da primeira, falar de uma ciência social positiva supõe admitir que seu objetivo é descobrir regularidades da vida social (King, Keohane, e Verba, 1994), negando a perspectiva que Tilly (2001) chamou de cética, por postular que as ações políticas seriam totalmente indeterminadas e, portanto, imprevisíveis.

Na evolução recente das ciências sociais, a negação das premissas dos paradigmas holísticos, assim como a refutação empírica de suas explicações, implicou a aceitação do postulado de que a ciência social positiva não é capaz de estabelecer leis gerais. Os argumentos de que os desejos e as ações humanos não podem ser totalmente determinados (Elster, 1994), de que eventos sociais são afetados por fatores não-sistemáticos (King, Keohane e Verba, 1994), ou, ainda, de que um mesmo fenômeno geral pode ocorrer através de trajetórias distintas (Esping-Andersen, 1991; Bendix, 1996), todos eles conduziram à ampla aceitação de que o objetivo da ciência política positiva – pelo menos, em seu estágio atual – é produzir conhecimentos de natureza probabilística – isto é, cuja capacidade de previsão estaria limitada à alta probabilidade de termos "B" como resultado, caso sejamos capazes de identificar "A" (Pierson, 2004) – e de portabilidade limitada, concentrados em teorias de médio alcance (Merton, 1970) – isto é, orientados a explicar um conjunto restrito de fenômenos sociais.

No plano metodológico, o reconhecimento do caráter probabilístico e de portabilidade limitada da ciência social positiva não torna menos necessário o emprego de regras de inferência lógica que deixem confiáveis as conclusões alcançadas (King, Keohane e Verba, 1994). Ao contrário, é o fato mesmo da incerteza do conhecimento que torna absolutamente necessário o respeito a regras de inferência que permitam estabelecer uma relação de causalidade entre um determinado fenômeno social ou político (B) e outro fenômeno que lhe dá origem (A). Daí a importância da citação que inicia este artigo, uma vez que este é talvez o maior desafio de nossas análises em ciência política, qual seja, o de produzir pensamento disciplinado por regras de método. Basicamente, a diferença entre uma especulação – uma hipótese plausível sobre a causa de um fenômeno – e uma explicação causal (Elster, 1994) supõe o respeito a regras básicas que disciplinem o pensamento do analista, protegendo-o de suas próprias preferências.1 1 A definição de estratégias de pesquisa que construam proposições explicativas empiricamente falsificáveis e internamente consistentes (King, Keohane e Verba, 1994) é distinta da escolha das técnicas de coleta de dados (Tilly, 2001). Na verdade, a excessiva concentração das atenções na superioridade das técnicas qualitativas ou quantitativas tem deslocado o ponto central da discussão. De fato, para obter resultados analíticos confiáveis, a decisão mais importante diz respeito à estratégia de pesquisa. As técnicas de coleta de dados são apenas conseqüências da estratégia de pesquisa, que, por sua vez, depende da pergunta a ser respondida. Técnicas qualitativas ou quantitativas não são superiores em si mesmas, mas devem ser avaliadas por sua adequação à pergunta a ser respondida, à natureza dos dados e indicadores a serem construídos e à qualidade da informação disponível.

Para a agenda institucionalista – como de resto para todos os programas de pesquisa orientados a produzir teorias de médio alcance –, isto implica que não são todos os fenômenos políticos que podem ser explicados por estas teorias, mas apenas aqueles cujas características se ajustem às suas premissas. O postulado de que as "instituições importam", porque afetam as estratégias dos atores e o conteúdo das decisões políticas, deu origem a um extenso programa de pesquisa que busca explicar tanto as relações entre instituições, comportamentos e resultados – as teoria institucionais – como a origem das próprias instituições políticas – as teorias das instituições (Diermeier e Krehbiel, 2003).

A ampla difusão dos pressupostos das teorias institucionalistas causaria, entretanto, grande desserviço à causa da produção de conhecimento se esta se convertesse em um novo dogma, que oferecesse respostas fáceis para fenômenos complexos. Em outras palavras, explicar um fenômeno político qualquer afirmando que as "as instituições importam" tornou-se quase uma trivialidade. Na verdade, a contribuição central está em identificar quais instituições de fato afetam comportamentos e decisões, e como, isto é, por meio de que processos e mecanismos.

Um exemplo desse desafio é a análise das relações entre a forma de Estado e o welfare state. Desenvolvimentos recentes no campo da análise comparada contribuíram para "questionar a amplamente aceita premissa [...] de que o federalismo é inimigo do crescimento do Estado de Bem-Estar em todos os países e em todas as eras" (Leibfried, Castles e Obinger, 2005, p. 307). A análise comparada de decisões e resultados de políticas públicas tem concluído que é praticamente sem significado analítico a divisão binária entre estados federativos e unitários (Filippov, Ordeshook, Shvetsova, 2004; Obinger, Leibfried e Castles, 2005).

Confrontados com conclusões desse tipo, os cientistas sociais estão normalmente propensos a afirmar que o fenômeno em questão é complexo. Esta, entretanto, não constitui uma solução satisfatória, uma vez que nada mais é do que uma confissão do insuficiente desenvolvimento da teoria existente, posto que quer dizer que não sabemos quais são as variáveis que explicam o comportamento do fenômeno analisado (King, Keohane e Verba, 1994). Alternativamente, poder-se-ia afirmar que esta é uma evidência de que as instituições não importam, uma vez que diferentes instituições não produzem diferenças relevantes nos resultados. A aceitação dessa resposta implicaria, evidentemente, o abandono da agenda institucionalista e a adoção de outro paradigma de investigação. Uma terceira alternativa seria admitir que não são estas as instituições que de fato importam, qual seja, os estudos empíricos que admitiram a premissa da existência de uma distinção fundamental entre estados federativos e unitários não estavam observando as instituições de fato relevantes para explicar a emergência e o desenvolvimento das políticas de proteção social.

Longe de significar um fracasso desse programa de pesquisa, isso na verdade indica sua maturação, na direção de excluir – com base em sólida investigação empírica – variáveis explicativas que não se mostraram relevantes. Assim, o avanço desse programa exigiria examinar quais instituições políticas favorecem o desenvolvimento e a ampliação de políticas de proteção social abrangentes e inclusivas.

Além disso, o avanço desse programa envolveria examinar como tais instituições políticas afetam as decisões, problema este ainda mais difícil de ser enfrentado, pois implica abrir a "caixa preta" do processo decisório e identificar os mecanismos postos em marcha (Elster, 1994) pelas instituições identificadas (Tilly, 2001). Examinar mecanismos institucionais é distinto de examinar instituições, pois diferentes instituições podem por em marcha mecanismos institucionais similares. Por exemplo: a dispersão ou a centralização da autoridade política são mecanismos institucionais centrais na análise do desempenho dos estados federativos. Tanto a facilidade para aprovar emendas constitucionais como a concentração de recursos tributários na União favorecem a centralização da autoridade política, na medida em que limitam a autonomia decisória dos governos locais. Embora sejam instituições distintas, põem em marcha um mecanismo institucional similar.

Não menos relevante nessa agenda de pesquisa é a controvérsia relativa à questão da seleção de casos para análise. Muitos trabalhos no campo da escolha racional pretendem identificar leis gerais, parcimoniosas, com base na investigação de um grande número de casos. Na teoria do neoinstitucionalismo histórico, a prioridade dada aos efeitos derivados da combinação de variáveis em contextos específicos e ao caráter endógeno da formação das preferências dos atores implicou que a grande maioria dos trabalhos desta corrente seja feita com base em comparações de um pequeno número de casos. Tais divergências de método dão a impressão de que as divergências entre essas duas correntes estão centradas em técnicas de pesquisa, quando, na verdade, se referem a tipos de explicação válida (Tilly, 2001). Mais do que isto, difundiu-se a errônea proposição de que o método dos neo-institucionalistas enfatizaria a singularidade dos casos.

É claro que para um analista interessado em fazer recomendações para um determinado país, o conhecimento de suas especificidades é da maior relevância. Entretanto, para a produção de conhecimento positivo, relativo às regularidades da vida social, os fenômenos singulares podem ser apenas expressão de eventos estocásticos (King, Keohane e Verba, 1994) e, portanto, sem relevância. Por outro lado, um caso singular pode ter grande relevância para a teoria social se suas características particulares desafiam o conhecimento teórico existente. A relevância do caso norte-americano em Weir et al. (1988) e Skocpol (1992) não está em descrever as particularidades da política social nos Estados Unidos, mas em explicitar que as diferenças dos resultados no desenho daquele sistema de proteção social poderiam ser atribuídas a variáveis ainda não examinadas pelas teorias existentes. Não é a singularidade do caso que motiva sua seleção, mas sua capacidade de trazer luz à teoria existente. Portanto, o que interessava não era o que é particular ao caso norte-americano, mas o que é geral e ainda não havia sido descoberto pelo conhecimento disponível. Tratava-se, portanto, de converter "nomes próprios em variáveis" (Przeworski e Teune, 1970).

Em suma, entre os cientistas políticos envolvidos na agenda de pesquisa institucionalista, não há apenas divergência quanto aos postulados básicos – facilmente acessíveis em resenhas e artigos (Levi, 1997; Immergut, 1998; Hall e Taylor, 2003), mas também quanto aos métodos a serem empregados para fazer inferências sobre a regularidade da vida social (Lieberman, 2001; Levi, s.d.).

Contudo, não me parece produtivo empenhar-se na defesa da superioridade de qualquer uma de suas vertentes, particularmente a teoria das escolhas racionais e o neoinstitucionalismo histórico. Extensa e produtiva produção recente (Bates, 1998; Elster, 2000; Skocpol, 2000; Mahoney e Rueschemeyer, 2003; Pierson, 2004) dedicou-se a enfrentar pontos de controvérsia entre as duas correntes, explicitando divergências e produzindo algumas convergências em torno de questões substantivas, tais como a formação das preferências dos atores (se endógenas ou exógenas), as causas da mudança institucional (se endógenas ou exógenas), o postulado do equilíbrio institucional, as disciplinas com as quais deve dialogar preferencialmente a ciência política (se a economia ou a sociologia) e a influência do fator "tempo" no desenvolvimento institucional. A atitude intelectualmente mais produtiva neste caso seria enfrentar tais questões e argumentos específicos.

Notas

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    A definição de estratégias de pesquisa que construam proposições explicativas empiricamente falsificáveis e internamente consistentes (King, Keohane e Verba, 1994) é distinta da escolha das técnicas de coleta de dados (Tilly, 2001). Na verdade, a excessiva concentração das atenções na superioridade das técnicas qualitativas ou quantitativas tem deslocado o ponto central da discussão. De fato, para obter resultados analíticos confiáveis, a decisão mais importante diz respeito à estratégia de pesquisa. As técnicas de coleta de dados são apenas conseqüências da estratégia de pesquisa, que, por sua vez, depende da pergunta a ser respondida. Técnicas qualitativas ou quantitativas não são superiores em si mesmas, mas devem ser avaliadas por sua adequação à pergunta a ser respondida, à natureza dos dados e indicadores a serem construídos e à qualidade da informação disponível.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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