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DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE: 60 ANOS APÓS A SUA PUBLICAÇÃO

TWO CONCEPTS OF LIBERTY: 60 YEARS AFTER ITS PUBLICATION

DEUX CONCEPTIONS DE LA LIBERTÉ : 60 ANS APRÈS SA PUBLICATION

Resumos

Este artigo analisa criticamente o ensaio “Dois conceitos de liberdade”, de Isaiah Berlin. Para isso, compara a primeira edição de 1958 com a edição de 1969 e o ditado oral de 1957, à luz de trabalhos anteriores e posteriores do autor. Abordam-se as críticas ao ensaio, feitas por CrawfordBrough MacPherson, Gerald MacCallum Jr., Charles Taylor e James Tully, e também são recuperadas interpretações distintas da obra de Berlin, feitas por John Gray e George Crowder. Para a interpretação do ensaio, mobilizou-se a ideia de “pluralismo de valores”, presente em toda a obra de Berlin, cujos fundamentos são: a diversidade cultural e a decisão do sujeito com relação a valores últimos. De todo modo, como há certa instabilidade teórica no conceito de pluralismo de valores, buscar-se-á uma nova fundamentação com base em suas interpretações contemporâneas.

Teoria política contemporânea; Pluralismo de valores; Isaiah Berlin


This paper proposes a critical analysisof the essay “Two concepts of Liberty”, by Isaiah Berlin. We compare the editions of 1958, 1969 and the oral dictation of 1957, in light of earlier and later works. We discuss the criticisms of the essay authored by Crawford Brough MacPherson, Gerald MacCallum Jr., Charles Taylor and James Tully. We also take into consideration different interpretations of Isaiah Berlin’s works, the ones made by John Gray and George Crowder. For the interpretation of the essay, the idea of “Value Pluralism”, present throughout the work of Berlin, was mobilized, for which the foundations are: cultural diversity and the subject’s decision regarding ultimate values. In any case, since there is some theoretical instability in the concept of Value Pluralism, a new grounding for the concept will be sought, based on its contemporary interpretations.

Contemporary political theory; Value pluralism; Isaiah Berlin


Cet article propose une analyse critique de l’essai « Deux conceptions de la liberté » par Isaiah Berlin. Il comparela première édition de 1958, l’édition de 1969 et le texte dicté de 1957, à la lumière des travaux antérieurs et postérieurs de l’auteur. Les critiquesà l’essai faites par C. B. MacPherson, Gerald MacCallum Jr., Charles Taylor et James Tully sont également abordées et les interprétations distinctes de l’œuvre de Berlin, proposées par John Gray et George Crowder, sont évoquées. Pour l’interprétation de l’essai, nous avons mobilisé l’idée de pluralisme des valeurs, présente tout au long de l’œuvre de Berlin et dont les fondements sont : la diversité culturelle et la décision du sujet par rapport aux valeurs ultimes. De toute façon, comme il existe une certaine instabilité théorique dans le concept de pluralisme des valeurs, une nouvelle justification fondée sur ses interprétations contemporaines sera recherchée.

Théorie politique contemporaine; Pluralisme des valeurs; Isaiah Berlin


Introdução

Em 1958 era publicado o ensaio “Dois conceitos de liberdade” (DCL), de Isaiah Berlin, originado de palestra proferida por ele na Higham Chichele Society. Em 1969, foi relançado com uma extensa introdução em um livro que reunia três outros ensaios. DCL viria a ser o trabalho de Berlin mais conhecido. Em parte, essa difusão obscureceu seu argumento, reduzindo-o a um confronto simples entre as liberdades positiva e negativa.

A partir dos anos de 1990, surgiram diversos trabalhos sobre temas específicos de sua obra ( Crowder, 2016CROWDER, George. (2016), “After Berlin: the literature since 2002”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/lists/onib/after-berlin.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
http://berlin.wolf.ox.ac.uk/lists/onib/a...
). É possível assinalar claramente, pari passu , um conjunto de autores que, apoiados nas ideias de Berlin, buscaram analisá-las criticamente, a partir das quais se voltaram para temas contemporâneos (Gray, 2000a; 2000b; Crowder, 2002CROWDER, George. (2002), Liberalism & value pluralism , Nova York, Continuum. ; 2004; Galston, 2002GALSTON, William A. (2002), Liberal pluralism , Cambridge, Cambridge University. ; Hirschmann, 2003HIRSCHMANN, Nancy. (2003), The subject of liberty . Princeton, Princeton University. ). Todo esse esforço resultou num corpus teórico específico, que é designado como pluralismo de valores (PV). DCL permanece como um dos ensaios mais importantes da teoria política do século XX, com repercussões no debate do século XXI. À comemoração dos 60 anos de sua primeira publicação, mostrou-se oportuno realizar um balanço crítico do ensaio.

Neste artigo, considerei necessário percorrer o conjunto de temas que emergem no DCL – reconhecimento, liberdade interior, democracia –, de maneira a não ficar restrito a uma análise dicotômica liberdade negativa x liberdade positiva . Assim, mobilizo o texto original de DCL, o ditado oral, a introdução escrita em 1969 1 1 Na “Introdução”, de 1969, foram respondidas diversas críticas e efetuadas reformulações significativas no argumento original. Berlin reconhecia, nesse texto, que diversas ideias haviam recebido críticas “pertinentes e justas”, algumas por falta de clareza sua mesmo, necessitando esclarecer certos aspectos; por fim, houve críticas resultantes de ideias que lhe haviam atribuído, mas que não eram suas (Berlin, 1969, p. ix). Assim, foi nesse momento que Berlin respondeu aos seus críticos posteriores, sendo fundamental a sua leitura para uma análise crítica do seu pensamento. Na minha visão, os principais pontos abordados foram os seguintes: a discussão sobre intervenção com vistas a assegurar os direitos sociais e sua relação com a liberdade ( Idem , pp. xlv-xlvi, lii-liv), a relevância e a importância da liberdade positiva e a traição da liberdade pelos teóricos da liberdade positiva ( Idem , pp. xliii-xlv) e, por último, a discussão sobre o pluralismo ( Idem , pp. l-lii). e seus trabalhos anteriores e posteriores. 2 2 Comparadas as edições de 1958 e de 1969, em grande medida seu conteúdo é o mesmo. Porém, há algumas alterações que serão mencionadas ao longo do artigo. Entre o ditado oral e o texto publicado existem algumas diferenças pontuais: trechos foram excluídos, enquanto outros foram adequados para a escrita. A edição brasileira de 2002 provém da coletânea organizada por Henry Hardy, que, por sua vez, toma como base o texto publicado em 1969 na coletânea Four essays on liberty . Essa edição é ligeiramente diferente da de 1958; a fim de evidenciar quando utilizo qual edição, considerei o ditado oral como 1957, a primeira edição de 1958 e a edição de Four essays como de 1969. Ao longo do artigo, especifico a página da edição de 1958 e a página correspondente da edição nacional (Berlin, 2002c). Uma vez que o artigo pretende analisar as ideias de Berlin a partir do texto de 1958, traduzi os trechos citados; entretanto, para que o leitor possa comparar com o texto original, coloquei a página correspondente em português. Berlin gravou em dictabelts o conteúdo da palestra; a transcrição encontra-se disponível em Berlin (1957) . Todos os grifos são meus, exceto quando assinalados.

Apresento também dois outros aspectos. Em primeiro lugar, considero quatro críticas ao seu argumento (MacCallum Jr., 1967; MacPherson, 1973MACPHERSON, C. B. (1973), “Berlin’s division of liberty”, in C. B. Macpherson, Democratic theory , Oxford, Clarendon. ; Taylor, 1979TAYLOR, Charles. (1979), “What’s wrong with negative liberty”, in A. Ryan (ed.), The idea of freedom , Oxford, Oxford University. ; Tully, 2014TULLY, James. (2014), “Two concepts of liberty in context”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. ), discutidas nos momentos em que dizem respeito diretamente aos temas em questão. Em segundo lugar, discuto as interpretações da obra de Berlin efetuadas por autores que apontam impasses presentes em sua obra, bem como sugerem desenvolvimentos teóricos possíveis.

Este artigo sustenta que a compreensão do ensaio requer a mobilização da ideia de pluralismo de valores ( Crowder, 2002CROWDER, George. (2002), Liberalism & value pluralism , Nova York, Continuum. ; Gray 2000a). Tal ideia emerge, em vários momentos do texto, e, claramente na última seção do ensaio. O pluralismo de valores consistiria num dado central da condição humana; a experiência humana ordinária mostra que somos confrontados com diversos fins razoáveis – justiça, piedade, fraternidade, busca da realização individual etc. – e estes são, não apenas distintos, mas, em certas circunstâncias, conflitivos. Tais confrontos nos forçam a fazer escolhas, que se revelam trágicas, porque esses fins correspondem a dimensões relevantes do florescimento humano. 3 3 É interessante observar como Berlin, no final da vida, ao fazer um balanço da sua trajetória, se referiu ao pluralismo. Segundo ele, quando percebeu o alcance desta ideia foi “como um choque” que “solapou” todo o seu conhecimento anterior (Berlin, 2002f (1988), p. 47). Chamou-me a atenção Berlin destacar como sendo sua ideia central não o tema da liberdade negativa, mas do pluralismo.

Tendo por base essa ideia, o argumento de Berlin oscilou entre dois pontos teóricos, que se manifestaram no ensaio e em obras posteriores. O primeiro: a diversidade e o conflito de fins conduziriam a um decisionismo moral, em outras palavras, qualquer preferência será sempre uma escolha arbitrária. Isso ocorre porque não é possível estabelecer uma métrica comum entre os fins, capaz de mensurar as perdas e ganhos. O segundo: a partir de um compromisso prático construído em função do contexto, é possível estabelecer um acordo temporário entre os fins diversos e conflitivos.

As duas liberdades: um choque inevitável ou compromisso prático?

A liberdade negativa é definida como a área desobstruída, na qual o indivíduo ou um grupo pode agir sem a interferência de outro(s) indivíduo(s), grupo(s) ou do Estado: “A liberdade política, nesse sentido, é simplesmente a área dentro da qual um homem pode fazer o que ele quer sem ser obstruído por outras pessoas de fazer o que ele quer” ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 7; 2002c, p. 229). Por sua vez, a liberdade positiva corresponde a: “O sentido positivo da palavra liberdade deriva do desejo de o sujeito ser seu próprio senhor” ( Idem , p. 16; p. 236). A natureza desse desejo implica a recusa ao papel de um ser passivo: o sujeito, individual ou coletivo, requer o direito de escolher seus fins e os meios para atingi-los.

Berlin já discutira esse conceito em trabalhos anteriores, “A ideia de liberdade” (IL) e em “Dois conceitos de liberdade: o romântico e o liberal” (DCLRL). 4 4 Os dois ensaios são originários de palestras proferidas em 1952 no Bryn Mawr Collegue, chamadas de conferências Mary Flexner. Em IL, o conceito de liberdade engloba os valores que mais tarde estarão associados às liberdades negativa e positiva: “O desejo de liberdade” consiste no “desejo de não sofrer interferências de outros indivíduos ou grupos”; os seres humanos têm desejos e qualquer coisa “que os impeça de realizar esses desejos é chamada de obstáculo” (Berlin, 2009b, p. 149). Num mesmo conceito, Berlin reúne a ideia de autonomia, a realização de desejos, de fins almejados pelo sujeito, com uma área desobstruída. Esse conceito, Berlin atribuía a Rousseau e Kant. Segundo ele, a partir desses autores, a liberdade passa a ser entendida como um bem absoluto, não negociável, pois é a característica definidora dos homens enquanto homens, aquilo que os torna detentores de direitos e deveres. Retirar a sua liberdade seria negar que eles são responsáveis pelos seus atos: “A verdade, a justiça, a maldade somente poderiam existir se ao homem lhe fosse dada a liberdade de escolha” (Berlin, 2009b, p. 175). Nessa discussão, já emerge o valor central do conceito de liberdade: a escolha; este será o coração do conceito de liberdade em DCL. Entretanto, essa reunião será parcialmente rompida em DCLRL: os valores ligados à ausência de obstrução pertenceriam à tradição intelectual liberal, enquanto o ideal romântico reuniria tanto os valores positivos da ideia de liberdade – autonomia, autorrealização, criação de novos ideais – quanto os valores negativos – a coação em nome da adequação à lei natural. Na definição de liberdade, emerge apenas a ideia de que esta consiste na ausência de obstáculos à ação dos sujeitos (Berlin, 2009a, p. 218). Porém, ao longo do texto, Berlin volta a rearticular os valores, quando estabelece que essa área desobstruída não é um fim em si mesma, mas uma proteção para fins mais valiosos – amor, amizade, justiça etc. A separação sucede em razão de o movimento romântico ter carregado em seu bojo duas ideias: a identificação da liberdade com o ato de criar – “a criação e a liberdade são idênticas” ( Idem , p. 242) – e a liberdade como adesão a uma estrutura externa (a história, a igreja, a nação, a razão), em que o sujeito é livre enquanto age conforme essa lógica. De acordo com a segunda ideia do romantismo, qualquer condução do sujeito ao padrão da estrutura externa não se constituiria numa violação da sua liberdade, mas num ato de liberdade; dessa forma, a educação ou a coação pura e simples seriam passíveis de ser aceitas, pois cumpririam uma função legítima perante o fim superior. A separação dos valores do conceito de liberdade decorre de um movimento interno do romantismo, que nega o valor central, a liberdade de escolha: “A liberdade reduzida a seus mínimos termos é, pelo menos, a liberdade de escolher entre alternativas: não pode ser menos do que isso” ( Idem , p. 249). Isso denota que não há uma separação ontológica entre os valores que constituem o conceito de liberdade; em princípio, a ideia chave reside na liberdade de escolha, e o distanciamento se dá à medida que esta é negada por um movimento contingencial.

Em 1958, o autor reafirma essa unidade lógica. Do ponto vista conceitual, “são não mais que formas negativas e positivas de dizer a mesma coisa” ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 16; 2002c, p. 237). Além desse vínculo conceitual, estão também interligadas “a área na qual eu ajo desimpedido requer que eu possa formular e buscar os fins que eu almejo” ( Berlin, 1969BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. , p. xliii). Entretanto, historicamente houve conflitos entre essas duas concepções; tais choques não estavam inscritos nas suas respectivas definições, mas decorreram do uso que foi feito de ambas. A maneira pela qual a liberdade positiva foi pensada gerou um conflito com os valores que orientavam a liberdade negativa. A igualdade social, entendida como um requisito para o uso da liberdade positiva, chocou-se com a liberdade negativa, pensada como uma área desimpedida para a ação de sujeitos na busca de fins particulares.

Os membros de uma sociedade marcada pela desigualdade social podem se sentir ofendidos com tal situação, fato que os conduziria a postular a adoção de políticas públicas que restrinjam a liberdade de alguns em favor de maior igualdade social. Essas medidas influenciariam positivamente na situação social dos menos favorecidos, gerando um sentimento de virtude e harmonia social em substituição à vergonha do convívio com a desigualdade. Entretanto, tais medidas não deixam de afetar a liberdade individual de sujeitos que faziam uso dela para atingir seus fins. Conclui Berlin (1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 10; 2002c, p. 232):

Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não é igualdade, equidade, justiça, felicidade ou consciência apaziguada. Se a minha liberdade ou de minha classe ou nação depende da miséria de um vasto número de seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto e imoral. Mas se restrinjo ou perco minha liberdade para atenuar a vergonha de tal desigualdade, e com isso não aumento materialmente a liberdade individual de outros, ocorre uma perda absoluta de liberdade.

Berlin não nega que a igualdade social seja um valor legítimo. Porém, uma vez que cada fim é pensado como uma medida absoluta, torna-se impossível qualquer acordo. O autor não estabelece que a liberdade negativa seja o padrão a partir do qual os fins existentes na sociedade sejam avaliados. Outros fins são igualmente razoáveis: “A liberdade não é a única meta dos homens” (Berlin, p. 10, nota 1; 2002c, p. 232). Existem diversos fins razoáveis na sociedade, que dizem respeito a valores fundamentais para o desenvolvimento do ser humano: justiça, solidariedade, piedade, amizade, liberdade de opinião, segurança etc.; todavia, em certas circunstâncias, tais valores colidem e não há uma regra universalmente aceita que estabeleça uma hierarquia entre eles ( Idem , p. 52; 2002c, p. 268; 2002f, p. 50).

A perspectiva de que não seja possível um acordo entre igualdade social e a liberdade negativa foi base para certa crítica. Numa abordagem marcada pelo contextualismo histórico, 5 5 Por contextualismo histórico, entendo fundamentalmente a reflexão de Quentin Skinner. Tully (2014)TULLY, James. (2014), “Two concepts of liberty in context”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. sustenta a seguinte perspectiva: DCL foi escrito em meio ao conflito que dividia o mundo em dois sistemas, a Guerra Fria, pertencendo o ensaio àquele contexto histórico específico. Nesse contexto, a resposta de Berlin foi em sentido oposto ao movimento do liberalismo social. O contexto político e as ideias que geraram o New Deal e o Welfare State acenavam para a combinação entre direitos sociais e direitos civis; a novidade do ensaio de Berlin foi “o esforço em definir o liberalismo nos termos da liberdade negativa exclusivamente e postular que era por esta que o capitalismo ocidental estava em guerra aberta” ( Tully, 2014TULLY, James. (2014), “Two concepts of liberty in context”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. , p. 25).

Em linha teórica distinta, Macpherson (1973)MACPHERSON, C. B. (1973), “Berlin’s division of liberty”, in C. B. Macpherson, Democratic theory , Oxford, Clarendon. elabora uma crítica em parte semelhante. Segundo ele, o argumento berliniano seria marcado pelo conflito entre as liberdades negativa e positiva, entendidas como dois conceitos portadores de fins incomensuráveis e ambos razoáveis do ponto de vista do florescimento humano. Entretanto, o polo forte da concepção de liberdade em Berlin residiria na liberdade negativa entendida como uma esfera protegida de qualquer intervenção, em razão da qual o sujeito poderia formular os fins que desejasse alcançar. A lei deveria apenas proteger essa esfera sem nenhum conteúdo específico; seu papel principal seria o de não intervir na liberdade de ação do sujeito. Essa ideia de não intervenção estaria entrelaçada em outra: a incomensurabilidade dos fins. Como os fins são sempre incomensuráveis, é impossível mensurar um ganho ou uma perda produzida por determinada intervenção. As tentativas de ampliar a igualdade seriam sempre contrabalançadas pela perda da liberdade negativa. Tal efeito geraria uma impossibilidade de adotar qualquer medida de intervenção que vise alterar a condição social presente, o que tornaria a concepção berliniana favorável às injustiças presentes numa sociedade liberal de mercado ( Macpherson, 1973MACPHERSON, C. B. (1973), “Berlin’s division of liberty”, in C. B. Macpherson, Democratic theory , Oxford, Clarendon. , p. 105).

De modo a compreender esse conflito, que está no coração dos dois conceitos de liberdade, é interessante analisar a articulação interna do texto e as ênfases distintas ao longo da trajetória de Berlin. Na edição original de 1958, há uma longa nota na qual Berlin discute a necessidade de que as exigências da liberdade individual possam ser sacrificadas em favor de maior justiça social. Na edição de 1969, Berlin deslocou esse trecho para o corpo do texto e acrescentou uma frase que não constava da edição original.

Um ou outro de tais princípios ou regras conflitantes deve ceder, pelo menos na prática: nem sempre por motivos que podem ser claramente expressos, quanto mais generalizados em regras ou máximas universais. Ainda assim um compromisso prático tem que ser encontrado ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 10, nota 1; 2002c, p. 232).

Esse deslocamento e esse acréscimo representam a intenção do autor em reforçar duas ideias. A primeira: tomar certos fins como único, um valor sagrado inegociável representa uma dimensão da ideia de incomensurabilidade – determinados fins são fins em si mesmos e busca-se a sua realização por esse próprio fim e não por qualquer outro. Eles são a sua própria medida. Entretanto, tomá-los dessa maneira espelha uma incapacidade em tolerar e compreender a razoabilidade de outros fins. A segunda: a possibilidade de que sejam realizados acordos entre esses fins, de maneira a estabelecer uma convivência pacífica, sem que esse compromisso oculte o fato de que houve perdas e ganhos na composição. Discutindo o conflito entre liberdade e justiça social, Berlin sustenta que em uma situação em que a sociedade considera a injustiça social algo a ser superado, torna-se necessário encontrar um compromisso prático entre os dois princípios.

Ao afirmar essa ideia, Berlin estabelece que é impossível pensar num acordo universal estável em torno de princípios que suprimam o conflito; o que é possível são soluções políticas gestadas, alicerçadas na conjuntura de cada sociedade. Em 1988, Berlin retomou o tema do conflito entre liberdade individual e justiça social, atribuindo uma dimensão nova à ideia de compromisso prático .

Mas os conflitos, mesmo que não possam ser evitados, podem ser suavizados. As reivindicações podem ser equilibradas, soluções de compromisso podem ser alcançadas: em situações concretas nem toda reivindicação tem igual força – um tanto de liberdade e um mesmo tanto de igualdade [...]; para alimentar os famintos, vestir os nus, curar os doentes, abrigar os sem-teto. Devem-se estabelecer prioridades, jamais finais e absolutas (Berlin, 2002f, p. 55).

O compromisso prático exige não apenas a moderação das reivindicações, mas também o estabelecimento de prioridades. A ideia de incomensurabilidade dos fins é contida pela exigência de estabelecer certas prioridades. As exigências de justiça social teriam prioridade perante reivindicações da liberdade individual propiciada pelo mercado livre de restrições. Esta última noção não é uma novidade no argumento berliniano, como veremos mais adiante, quando observarmos a distorção da liberdade negativa. O que é reforçado no argumento é a ideia de prioridades. A incomensurabilidade dos fins pode ser controlada quando estes são comparados, procedimento que permitiria aos sujeitos e às sociedades estabelecer certas prioridades. Para tanto, torna-se necessário compreender outros fins que não aqueles postulados pelo grupo e tolerar a diversidade de fins, reconhecendo que ela é um dado permanente e que, em certas circunstâncias, alguns fins terão precedência sobre outros.

Quando os fins são pensados de modo absoluto, é impossível qualquer acordo e qualquer escolha individual; intervenções públicas que visem moderar ou estabelecer uma hierarquia entre eles são entendidas como produtoras de perdas irreparáveis, entre quaisquer fins. No caso, o conflito ocorre entre a liberdade individual e a intervenção com a finalidade de promover a justiça social.

Na introdução escrita em 1969, Berlin aborda o problema da intervenção pública com vistas a diminuir a desigualdade social. Em primeiro lugar, ele afirma a centralidade da liberdade de escolha entre fins diversos e conflitantes como valor central de sua abordagem. Em segundo, ele indica a possibilidade de estabelecer prioridades numa intervenção pública. Como exemplo dessa perspectiva, ele nota que discorrer sobre a importância da leitura como um alargamento das fronteiras do sujeito para aqueles que não possuem o acesso à escola pode propiciar um discurso belo, porém inócuo.

É importante discriminar entre liberdade e as condições de exercício da liberdade. Se um homem é muito pobre, muito ignorante ou doente para fazer uso dos seus direitos legais, a liberdade que esses direitos lhe conferem é nada para ele, mas disso não resulta que eles sejam suprimidos. A obrigação de promover educação, saúde, justiça, de aumentar o nível de vida, de propiciar oportunidades para o crescimento das artes e das ciências, de impedir políticas ou sociais reacionárias ou desigualdades arbitrárias, não se torna menos rígida pelo fato de não se voltar diretamente para a promoção da liberdade, mas para as condições nas quais a posse da liberdade possui valor, ou de valores que podem existir independentemente da liberdade. Mas, ainda assim, a liberdade é uma coisa e as condições para a liberdade são outras ( Berlin, 1969BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. , p. liii).

As condições para o exercício da liberdade são tão importantes quanto o exercício dela, mas a liberdade não se dissolve nas pré-condições para o seu exercício. A ausência de condições efetivas para a prática da liberdade, na forma de oportunidades para educação, emprego e reflexão crítica, produzirá um ganho vazio . Na citação anterior, Berlin se refere à obrigação de promover educação, justiça, saúde etc. Quando o faz, ele não discute se cabe ou não distribuir esses bens, mas salienta a imperiosa necessidade de que eles sejam distribuídos igualmente. Tal ação implica conflitos entre fins últimos. Mas se trata de sacrificar alguns fins em favor de outros, a despeito de resistências existentes na própria sociedade.

A educação constitui-se em uma ferramenta poderosa para abolir distinções sociais arbitrárias, decorrentes de fatores casuais como nascimento. Propiciar educação teria diversas consequências, como um reforço da solidariedade social e uma preparação maior e mais eficaz de adultos para o mercado de trabalho. Essas consequências são importantes, mas também há um valor que se constitui em ponto central de uma intervenção pública sob a ótica pluralista: “a necessidade de prover oportunidades de livre escolha ao maior número de crianças, o que provavelmente crescerá com a igualdade de ensino” ( Berlin, 1969BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. , p. liv). Tal intervenção pública encontra resistências.

Se dissessem-me que isso reduziria a liberdade dos pais que reivindicam o direito de não sofrer interferências nesse assunto – que é um direito elementar poder escolher o tipo de educação a ser dado aos filhos, determinar as condições intelectuais, religiosas, sociais e econômicas em que cada criança deve ser criada –, eu não teria capacidade de negar tal opinião ( Idem , p. liv).

A redução da área de não interferência seria o resultado de uma ação que visa propiciar condições igualitárias a todos, de maneira a que todos possam desfrutar de uma educação que lhes permita exercer a liberdade de escolha entre diversos fins. Há perda da liberdade negativa, mas essa não é a métrica absoluta que rege todas as esferas da sociedade. Se a análise aponta que um sistema de educação uniforme para todos aumenta as oportunidades de escolha do sujeito e desobstrui barreiras arbitrárias a certos bens, não há por que bloquear a intervenção em nome de outro fim igualmente incomensurável – no caso, um fim relacionado à liberdade negativa. Tal prioridade não exclui a dimensão trágica da escolha.

Mas eu devo manter que quando (como neste caso) os valores colidem genuinamente, devem-se fazer escolhas. Nesse caso, ocorre a colisão entre a necessidade de preservar a liberdade existente de algum pai para determinar o tipo de educação que busca para seus filhos e a necessidade de promover outros fins sociais; finalmente, a necessidade de criar condições nas quais aqueles que delas não disponham tenham oportunidades de exercer esses direitos (liberdade de escolha) que detêm legalmente, mas de que não podem, sem tais oportunidades, usufruir ( Idem , p. liv).

Portanto, fica claro que perante resistências é legítimo invocar a intervenção pública como uma forma de ação para que se estabeleçam certos fins, no caso: igualdade social, fim de barreiras arbitrárias e, fundamentalmente, proporcionar a liberdade de escolha a todos entre fins diversos e contraditórios.

Berlin pontua que o surgimento do conflito decorre do uso feito da liberdade positiva. Esse uso, ele qualifica como uma perversão que transformou uma doutrina da liberdade em uma apoteose da autoridade . A distância entre ambas alargou-se “à medida que a noção de self padeceu de uma fissura metafísica durante a qual se transformou, por um lado, em um self real, ou mais alto, e com isso se tem a pretensão de dominar o self mais baixo, empírico ou psicológico” ( Idem , p. xliv). Essa operação transformou a liberdade positiva, que contém diversos valores favoráveis à liberdade de escolha, em uma “doutrina da autoridade e da opressão” ( Idem , p. xlvii).

O que houve foi que a liberdade de escolha entre fins incomensuráveis foi substituída pela ideia de liberdade para escolher um único fim desejável. O desejo que orientou várias das indagações em torno da liberdade positiva envolveu a pergunta “como devo ser governado de maneira a que leve determinada forma de vida”, a forma mais justa e racional que seria a única possível e desejável. Nessa indagação, predomina a ideia de que a liberdade significa levar apenas “uma” determinada forma de vida, aquela prescrita pela razão ou por um livro religioso.

A lógica presente na distorção da liberdade positiva suprime um valor fundamental da liberdade, em qualquer uma de suas várias formas, qual seja, a liberdade de escolha. Historicamente, essa traição de fato ocorreu, mas não estava inscrita na lógica da liberdade positiva; ainda assim, a sua pergunta fundamental permitia essa distorção. Nesse sentido, a distorção da liberdade positiva foi historicamente contingencial, mas não acidental ( Crowder, 2004CROWDER, George. (2004), Isaiah Berlin: liberty and pluralism , Cambridge, Polity. , p. 69). A crítica de Berlin não incidia sobre a liberdade positiva tout court , mas sobre a sua distorção. 6 6 Macpherson (1973 , p. 109) percebeu claramente esse aspecto e propôs uma divisão entre LP1 (liberdade positiva 1), LP2 e LP3, de maneira a concentrar a sua crítica não na distorção, com a qual ele concordava, mas em outros aspectos.

A distorção da liberdade positiva é um ponto estabelecido. 7 7 Ver, por exemplo, Crowder (2004 , pp. 69-70) e Macpherson (1973 , p. 109). Entretanto, considero que sucedeu outro movimento de distorção; este no conceito de liberdade negativa. Na “Introdução”, Berlin menciona que, durante o período do capitalismo liberal, este conduziu a uma distorção da liberdade negativa. O capitalismo liberal do século XIX advogou a tese de que não deveria haver nenhuma forma de interferência na vida social, o que permitiria à sociedade civil um equilíbrio saudável, designado por Berlin (1969, p. xlv), de maneira crítica, como “um darwinismo social”. O resultado disso foi que, em nome da liberdade individual, foram “encorajadas e permitidas violações brutais da liberdade negativa” ( Idem , p. xlv). A não interferência afetou não apenas as liberdades civis, associadas usualmente apenas à liberdade negativa, mas também os valores da liberdade positiva, como a livre expressão e o direito de associação , valores altamente importantes para o florescimento humano. Assim, durante o século XIX, os muros que a liberdade negativa propiciava foram destruídos e os valores que encorajam a participação pública foram constrangidos:

[...] a falência do sistema em promover o mínimo de condições nas quais qualquer nível de liberdade negativa possa ser exercido por indivíduos ou grupos, sem as quais é de pouca ou nenhuma valia para aqueles que teoricamente a possuem. O que são direitos sem poder para implementá-los? ( Idem , p. xlvi).

Ao final, ele infere que a liberdade advinda dessa situação resultou num ganho vazio . Essa interpretação da liberdade negativa propiciou que ela se tornasse um instrumento de dominação de poucos sobre muitos. Tornar a liberdade individual um fim absoluto significa reduzir a uma única medida todos os demais fins aceitáveis para o florescimento dos indivíduos: participação, bem-estar material, justiça social etc. A conclusão de Berlin sobre a distorção da liberdade negativa é fundamental: “Cada conceito pode se tornar uma perversão para a qual ele foi criado para resistir” ( Idem , p. xlvi). Isso é passível de acontecer com qualquer fim razoável para o florescimento humano e que se torne uma medida absoluta: quando um fim é apresentado como um fim incomensurável, que não admite conflito com outros, porque os considera falsos, quando todos os demais fins são sinais de erro e devem ser suprimidos, quando o florescimento humano somente admite um modelo – tem-se aí a sua perversão. 8 8 Só é possível entender plenamente as duas distorções se compreendemos o papel da diversidade, tema discutido na seção “A luta pelo reconhecimento”.

A retirada para a cidadela interior

Ao longo do DCL, Berlin delineia o conceito de liberdade a partir da liberdade de escolha entre diversos fins. Entretanto, essa escolha pode ser constrangida, o que lhe retiraria o papel de uma escolha adequada. Um dos sinais da presença desse constrangimento está na ideia de retirada para uma cidadela interior.

A retirada para a cidadela interior corresponde a um movimento provocado por uma ação intencional ou não, que tolhe direta ou indiretamente a busca dos fins pretendidos pelo sujeito. Digamos que eu seja um sujeito com autonomia e tenha desejos manifestados por certos fins; pretendo alcançá-los, mas sou impedido pela ação de outros sujeitos. De maneira a evitar a frustração e suas consequências (humilhação social, tortura, prisão etc.), efetuo uma retirada estratégica para uma cidadela interior . Nessa esfera, posso fruir os valores dos fins almejados; nessa esfera acolhedora, permaneço fiel aos desejos iniciais, ainda que não os manifeste abertamente ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 19; 2002c, p. 240).

A ideia de retirada para a cidadela interior contém um segundo movimento, no qual o sujeito constrói seus desejos mais imediatos, mas percebe a impossibilidade de realizá-los, em razão do constrangimento realizado por terceiros, e, então, efetiva um movimento de adequação, reduzindo o atrito e eliminando os desejos anteriores. Nas palavras de Berlin: “Eu identifico-me com o controlador e escapo da escravatura do controle” ( Idem , 1958, p. 21; 2002c, p. 241).

Esse segundo movimento, Berlin o associa a uma ação na qual o sujeito, pelo uso da razão, adapta-se ao contexto em que vive. Em tal acepção, ser livre é compreender as leis que regem a ação humana e eliminar tudo aquilo que vai em sentido contrário a elas: “O único método verdadeiro de obter a liberdade, dizem-nos, é pelo uso da razão crítica, da compreensão do que é necessário e do que é circunstancial” ( Idem , 1958, p. 25; 2002c, p. 245). O sujeito deve ser racional, não deve desejar que aquilo que se manifesta daquela forma seja diferente, pois ele é o que deve ser; isso se dá dessa maneira e não de outra, porque as premissas que regem o mundo assim o determinam. Não compreender as regras racionais que regem os fenômenos conduz o sujeito à irracionalidade . Dessa forma, o sujeito elimina seus desejos imediatos, produtos do seu self empírico, e se submete a uma razão externa, que o conduz a agir em conformidade a ela ( Idem , 1958, p. 28; 2002c, p. 248).

No argumento berliniano, quando as leis da razão ou as leis sociais desempenham um papel determinante nas concepções morais, seu efeito é o de oprimir os desejos imediatos. Nesse modelo, as leis desempenham um papel semelhante ao leito de Procusto: todo ser humano deve constranger seus desejos e adaptar-se a esse constrangimento: “A liberdade não é a liberdade de fazer o que é irracional, estúpido ou errado. Forçar os eus empíricos a adaptarem-se aos padrões corretos não é tirania, mas libertação ” ( idem , 1958, p. 31; 2002c, p. 251). O tema da retirada para a cidadela interior permite uma análise do tema da coerção sobre o sujeito e a partir deste o estudo de quatro aspectos teóricos relacionados: (1) a proteção que a liberdade negativa deve oferecer ao sujeito; (2) a existência de um fim para a ação livre; (3) os constrangimentos sociais sobre a construção dos desejos e (4) o papel dos desejos de segunda ordem.

Em primeiro lugar, fica evidente pelo argumento de Berlin que a retirada para a cidadela interior é resultado de uma ausência de proteção contra interferências arbitrárias. Em segundo lugar, esse fato chama a atenção para a função cumprida pela liberdade negativa: ela é um instrumento para proteger o sujeito ou grupos sempre que estes indiquem a presença de ações que os constrangem. Tal ideia visa destacar que o uso da liberdade negativa não requer que o sujeito, individual ou coletivo, formule um conteúdo específico para querer a presença dessa proteção, mas simplesmente o sentimento de que uma ação constrange o seu eu. Essa ideia tem consequências mais relevantes do que aparenta. De maneira a compreender esses desdobramentos, seguem dois exemplos históricos, um proveniente do movimento dos trabalhadores no surgimento da sociedade de mercado, o outro originário dos novos movimentos sociais da pós-modernidade.

Os trabalhadores oriundos do campo foram incorporados à sociedade de mercado num processo histórico descrito por Polanyi como “moinho satânico” – controle total da vida social pelo mercado, o qual funcionava como o único padrão para as relações sociais. Esse traço foi uma inovação radical da contemporaneidade: a economia de mercado deveria estar livre dos constrangimentos produzidos pelas relações sociais (Polanyi, 1980, p. 60). Ao longo desse processo histórico, os trabalhadores manifestaram o seu descontentamento para com a maneira pela qual esse processo era conduzido. Esse movimento de resistência requereu, entre outros elementos, a presença de barreiras que protegessem os cidadãos, que lhes permitissem o direito de recusar certos fins, de proteger certos bens que cabem somente ao indivíduo decidir o que fazer com eles. Qual projeto político aqueles trabalhadores tinham? Esse projeto era viável? Ou apenas reminiscências de uma sociedade “arcaica”? Nessa lógica, pode ser dito que à resistência faltava um projeto político-social mais claro, em razão de as condições objetivas para a superação da ordem de mercado não estarem ainda maduras. Mas da ótica pluralista, lhes era legítimo requerer uma proteção contra o esforço em subordinar todas as esferas da vida social a um único critério (o mercado), mesmo que não pleiteassem um projeto político-social alternativo.

A mesma lógica aplica-se a uma situação de opressão de gênero. Uma mulher que não se identifica com uma relação heteronormativa marcada pela naturalização opressiva do patriarcado não necessita justificar essa recusa em nome de outro modelo de relação afetiva; simplesmente, ela deve dispor de uma esfera na qual possa recusar tal padrão. Se, no futuro, ela escolher uma relação heteroafetiva ou homoafetiva ou de qualquer outra natureza, isso não a impede de requerer barreiras contra o constrangimento. Por outro lado, a situação social da mulher que não se identifica com um padrão afetivo marcado pelo patriarcalismo e retira-se para tornar-se “a rainha do lar” representa um exemplo da retirada para a cidadela interior. Tal ação não é um exercício de liberdade, mas de adaptação a uma opressão. A leitura feita por Nancy Hirschmann do argumento berliniano indica a importância da liberdade negativa nos contextos sociais marcados pela opressão patriarcal. Segundo a autora, a liberdade negativa oferece a possibilidade de pensar sobre a importância de proteger a escolha individual da mulher acerca da reprodução, contra o assédio sexual e a discriminação no emprego (Hirschmann, 2003, cap. 1). Barreiras são fundamentais para conter a opressão, mesmo que o sujeito oprimido não tenha clareza quanto ao destino que dará à sua liberdade.

Considerado esse argumento, é possível compreender a fundamentação da recusa de Berlin à crítica de MacCallum. Segundo este autor, a liberdade está alicerçada em uma relação triádica: X é livre (ou não) de Y para fazer (ou não) Z (MacCallum Jr., 1967, pp. 314-316). Vários elementos importantes emergem da crítica de MacCallum. Mas quando se reflete na discussão acima, a refutação de Berlin faz todo sentido:

Sugeriu-se que a liberdade é sempre uma relação triádica [...]. Isso se constitui, para mim, em um erro. Um homem pode lutar contra os seus grilhões ou um povo pode lutar contra a escravização sem que possuam conscientemente quaisquer objetivos ou uma situação futura . Um homem não precisa saber como ele usará sua liberdade: o que ele quer é remover a opressão. O mesmo vale para nações e classes ( Berlin, 1969BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. , p. xliii, nota 1).

Em razão dessa ideia, Berlin enfatiza em vários momentos a centralidade do ato de escolher, sem que esse esteja atrelado necessariamente a um fim. Caso estivesse, o sujeito, ou a classe, somente poderia fazer uso dessa proteção quando possuísse um fim aceitável conforme os padrões sociais. Tal postulado ignoraria o peso que as convenções sociais jogam sobre as escolhas que buscam recusar os padrões socialmente aceitáveis. Assim, é possível pensar que ser livre tem, também, esta consequência: recusamos ou não uma ação intencional que consideramos opressiva, mesmo sem termos um fim objetivo que justifique a recusa. 9 9 Segundo Silva (2015 , p. 199), Coser (2014 , p. 59) teria feito uma afirmação “imprecisa” ao considerar que “Berlin rejeita, radicalmente, a ideia de um fim necessário à ação livre”. Para Silva, Berlin teria rejeitado a ideia de um fim específico para a ação livre. Em Berlin, a liberdade de escolha envolve o direito à recusa, sem que se requeira a existência de um fim, específico ou necessário. O sujeito carrega o sentimento de opressão, ou seja, a percepção de que aquele fim não corresponde à sua vontade, desconhece ainda um fim alternativo, mas tem o direito de recusar a situação com que se defronta. Em suma, Berlin rejeita radicalmente, com razão, a necessidade de um fim para ação livre.

Essa discussão permite ainda desenvolver um segundo aspecto relacionado à crítica formulada por Taylor (1979)TAYLOR, Charles. (1979), “What’s wrong with negative liberty”, in A. Ryan (ed.), The idea of freedom , Oxford, Oxford University. . Hirschmann (2014)HIRSCHMANN, Nancy. (2014), “Berlin, feminism, and positive liberty”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. destaca um elemento central no conceito berliniano de liberdade apresentado posteriormente à publicação de DCL: a ideia de escolha forçada. Em um trabalho publicado em 1964, Berlin (2002a, p. 151) afirma: “Ser livre é ser capaz de fazer uma escolha não forçada ; e a escolha acarreta possibilidades concorrentes – no mínimo duas alternativas ‘abertas’ desimpedidas”. Na “Introdução”, ele relata mecanismos sociais produzidos pelo Estado, mas também por grupos sociais poderosos, que constrangem a liberdade de escolha de maneira camuflada , com tanta eficácia quanto os métodos abertamente opressivos ( Berlin, 1969BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. , p. xlvii-xlviii). Entretanto, observa Hirschmann, se Berlin apontou a possibilidade de que as escolhas fossem constrangidas indiretamente, ele não atentou para um problema que afeta o momento anterior: a construção social dos desejos (Hirschmann, 2003, cap. 1).

A crítica que mobilizou esse aspecto foi desenvolvida por Charles Taylor (1979)TAYLOR, Charles. (1979), “What’s wrong with negative liberty”, in A. Ryan (ed.), The idea of freedom , Oxford, Oxford University. . Segundo esse autor, a mera existência de alternativas não assegura o exercício da liberdade. As portas podem encontrar-se abertas, mas em razão de medo e constrangimentos sociais, o sujeito nem sequer as enxerga. Taylor reapresenta os dois conceitos: a liberdade positiva envolveria o exercício , enquanto a liberdade negativa estaria voltada para a existência da oportunidade de agir . Ao separar os dois polos, Taylor destaca a possibilidade da existência de uma área desimpedida com oportunidades possíveis, mas que não seria utilizada. Tal fato decorreria não de uma escolha racional, mas de um bloqueio. Esse sujeito pode estar vivendo uma situação de opressão difusa, mas sem sofrer nenhum constrangimento explícito. O bloqueio se dá em razão de o sujeito ter internalizado sentimentos de inferioridade que tolhem sua ação, mas ele disporia formalmente de um campo de ação extenso. Segundo Taylor, no conceito de liberdade de Berlin, caso um sujeito que dispusesse de um leque de opções, mas não agisse com o receio de violar normas repressoras internalizadas, ele seria considerado livre.

A crítica de Taylor distingue entre os desejos de primeira e segunda ordens. É a partir do desejo manifesto pelo sujeito que o reconhecimento de si mesmo começa a manifestar-se; mas este pode ser apenas um aparecimento irrefletido. A maneira pela qual o sujeito supera esse elemento irrefletido consiste na atividade reflexiva, por meio da qual se realiza o desejo conforme o conhecimento do self no mundo. Introduzindo as categorias de avaliações fraca e forte, Taylor busca estruturar sua concepção de ação moral do sujeito como uma atividade reflexiva. Ao proceder assim, ele estabelece que os desejos do sujeito devem resultar de uma profunda avaliação, mas isso não implica negar que existam incompatibilidades entre os objetos do desejo. Ao identificar que os desejos do sujeito são o resultado de uma avaliação forte, Taylor aponta que o sujeito procede a partir de contrastes entre os valores últimos envolvidos.

Essa discussão permite refletir a respeito de alguns limites do argumento berliniano. A primeira questão remete à crítica efetuada por Taylor e Macpherson: por que quando o self empírico faz um movimento de depuração das suas escolhas iniciais esse movimento deve ser chancelado como “autoritarismo”? A resposta possível indica que nem sempre esse movimento deve ser avaliado dessa maneira. Tal ideia sugere a possibilidade de que os valores da liberdade positiva desempenhem um papel relevante na construção da ação do sujeito, retomando a ideia inicial de que os dois conceitos não são logicamente antagônicos ( Dimova-Cookson, 2013DIMOVA-COOKSON, Maria. (2013), “Defending Isaiah Berlin’s distinctions between positive and negative freedom”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. ).

A luta pelo reconhecimento

Se se prestar atenção ao conteúdo da ideia de reconhecimento, se irá perceber que é pouco claro o motivo pelo qual o assunto entra em DCL. Berlin estabelece que o conteúdo da ação que almeja o reconhecimento não pertence nem à liberdade negativa e nem à positiva, sendo uma forma híbrida , ou seja, uma terceira forma de liberdade. Se o título do ensaio refere-se a dois conceitos, por que não o intitular de “Os três conceitos de liberdade”? Creio que Berlin tinha sérias dúvidas de que os valores contidos nessa ideia pudessem ser enquadrados num conceito de liberdade.

O liberalismo de Berlin apresenta um forte componente comunitário, que reside na compreensão de que o sujeito está envolvido pela comunidade. Segundo Berlin (1958, p. 40; 2002c, p. 257), quando me pergunto o que sou, respondo:

[...] sou um inglês, um chinês, um mercador, um homem sem relevância, um milionário, um criminoso condenado: descubro pela análise que possuir esses atributos implica ser reconhecido como pertencente a um grupo ou classe [...] e que esse reconhecimento é parte da maioria dos termos que denotam algumas das minhas características mais pessoais e permanentes.

O sujeito não é um Robinson Crusoé isolado, que cultiva seu self apartado dos demais, tomando seu julgamento como o único critério para avaliar os fatos. O prazer ou a dor que o sujeito sente, ele os sente em razão dos valores presentes no grupo a que pertence. Um evento que me proporciona alegria somente o faz porque os valores que determinado grupo elege como valiosos são atendidos por esse evento. O prazer que tenho em usufruir um bem reside na possibilidade de compartilhar tal sentimento com os membros do meu grupo, pois não desejo fruir solitariamente o bem.

Com a formulação anterior e seu desenvolvimento, Berlin afasta-se de toda tradição liberal que, partindo de Hobbes, toma o indivíduo como uma unidade autônoma e independente, que deve ser considerado isoladamente e, a partir da qual, toda a engenharia social e política deveria ser pensada. No argumento berliniano, o ponto de partida é o desejo de o sujeito participar de formas culturais comuns e de pertencer a comunidades autogovernadas ou reconhecidas no seu Estado-nação.

Tendo em mente essa perspectiva, deve-se compará-la com a crítica efetuada por Taylor (2000)TAYLOR, Charles. (2000), “Propósitos entrelaçados”, in C. Taylor, Argumentos filosóficos , Belo Horizonte, Loyola. ao pensamento liberal. Um dos pontos centrais da crítica de Taylor à teoria liberal consiste no seu abandono do tema do bem comum. O liberalismo procedimental recusa radicalmente a ideia de bem comum no sentido estrito , porque o arranjo político social deve ser neutro no que diz respeito à questão da boa vida ( Idem , p. 210). Ao postular essa ideia, o liberalismo procedimental perde de vista o bem comum imediato partilhado . Existem coisas que não teriam o mesmo valor se a sua fruição fosse feita solitariamente. Essa dimensão da vida dos sujeitos é fundamental para a existência dos indivíduos. Porém, o liberalismo procedimental termina operando uma separação entre o que é valioso em termos de grupo e o arranjo político. Os teóricos do liberalismo procedimental acreditam que o Estado deve se afastar da produção desses bens, pois crê que o afastamento é a garantia de que se manifeste a diversidade de concepções de boa vida. O resultado final desse arranjo político é a produção de uma cisão entre os sujeitos e os assuntos públicos. As instituições são vistas pelos diversos grupos da sociedade como instrumentos a serem manipulados, despidas de qualquer sentido comum; em face dessa ausência, a participação ganha a forma de reivindicações judiciais, centradas na forma, sem qualquer fundo de bem comum ( Idem , pp. 217-218). O fundo dessa concepção, para Taylor, deve-se a que o liberalismo procedimental permanece preso a noções atomistas e à visão de um modelo instrumental das instituições ( Idem , p. 219).

O argumento berliniano guarda em si a ideia de que o desejo do sujeito de possuir bens relevantes somente ganha sentido na medida em que ele pertence a um grupo. Esse pertencimento não é um dado secundário; os valores e os fins compartilhados pelo grupo devem ser não apenas garantidos, mas também reconhecidos como válidos pela comunidade mais ampla, na qual o sujeito e o grupo estão inseridos. A crítica de Taylor ao liberalismo “procedimental” não atinge o PV. Porém, o argumento berliniano discorda de qualquer modelo de bem comum, não porque ele acredite que não exista internamente aos grupos, mas em razão da existência de diversas concepções de bem comum e porque elas são diversas e conflitantes. O acordo prático em torno de políticas comuns, que venham a estabelecer metas, nunca é perfeito ou harmônico, é apenas uma tênue linha desenhada com material fugaz, destinada a ser em breve refeita.

Em DCL, Berlin menciona, em primeiro lugar, o pertencimento do sujeito a um grupo; em segundo, faz compreender que os valores que guiam as ações do sujeito são inseparáveis do grupo; em terceiro lugar, o sujeito e o grupo ao qual pertence lutam para o reconhecimento desse grupo e dos seus valores na comunidade mais ampla em que vivem.

O que as classes ou as nações oprimidas demandam não é simplesmente uma liberdade desembaraçada de ação para seus membros, nem, acima de tudo, igualdade social ou econômica de oportunidades, menos ainda o estabelecimento de um lugar sem atritos num Estado orgânico desenhado por um legislador. O que desejam, frequentemente, é o simples reconhecimento (de sua classe, nação, cor ou raça) como uma fonte de atividade humana autônoma com vontade própria [...], em vez de ser educado, guiado, mesmo que por mão suave ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 41; 2002c, p. 259).

O trecho indica que o valor atribuído à liberdade negativa está relacionado ao reconhecimento das identidades e das formas de vida presentes no grupo. Assim, esse reconhecimento tem de estar refletido nas instituições sociais e na atitude da sociedade como um todo para com o grupo. Não se trata apenas do direito do grupo de se organizar – aspecto importante –, mas do desejo de o grupo ser reconhecido como uma parte autônoma, capaz de realizar suas escolhas. O grupo não deseja ser aceito na sociedade como um menor de idade que tem seus valores entendidos como fruto de um atraso que lentamente será superado, mas exige ser visto como um sujeito pleno. O reconhecimento por parte da sociedade na qual o sujeito vive é parte fundamental para que as possibilidades garantidas pelas barreiras sejam concretizadas. Dessa forma, Berlin recusa a ideia de que o respeito e a autoestima humanas requerem exclusivamente a posse de direitos e liberdades individuais (Gray, 2000a, p. 122).

No contexto histórico de DCL, estava em evidência o tema da luta pela autonomia dos povos colonizados. Berlin compreendia a legitimidade dessa luta baseado em sua ideia de que os indivíduos conferem um valor fundamental ao pertencimento a dada etnia, tradição, língua e religião, os quais são marcos da sua identidade. O que os povos colonizados desejavam era ser governados por alguém que representasse esses elementos. A pauta principal desses povos não era a forma de governo (democracia, ditadura, socialismo ou capitalismo), mas a luta por reconhecimento (Berlin, 2002e, p. 263). Mesmo que se imaginasse uma forma colonial irreal, uma colonização benéfica, ainda assim a luta contra ela seria legítima. Os povos colonizados preferem ser oprimidos por algum membro do seu grupo a ser tratados com tolerância por alguém que não os reconhece e que não pertence ao seu grupo ( Idem , p. 259). Para todos esses povos, existe uma luta comum: o combate ao paternalismo. Entretanto, paira uma dúvida sobre o pertencimento da luta pelo reconhecimento ao campo liberal; ela manifesta-se nesse trabalho e aprofunda-se em obras posteriores, nas quais Berlin buscou delinear quatro tipos diferentes de nacionalismo.

O primeiro tipo postularia que os sujeitos pertencem a um grupo específico, o que os conduz a compreender que seu modo de vida difere do de outros grupos. Em virtude disso, se pode dizer que os traços de personalidade dos indivíduos são modelados a partir do grupo, ou seja, do todo para as partes, em que estas não podem ser entendidas sem referência ao todo (Berlin, 2002e, p. 594).

Um segundo modelo afirmaria a crença arraigada de que a sociedade é análoga a um organismo biológico: as necessidades do organismo tomado como um todo determinam os objetivos das partes; as energias e os objetivos parciais dos subgrupos – família, igreja, província etc. – devem subordinar-se às necessidades e aos objetivos da unidade superior. Mais importante: em situações de conflito com outros valores – provenientes da religião, da economia, dos direitos da pessoa humana entendidos como universais, de um ideal de verdade científica –, os valores do grupo deverão prevalecer sempre (Berlin, 2002e, p. 595).

O terceiro tipo sustenta que o motivo pelo qual os sujeitos buscam um fim particular é que este é o do grupo a que pertence. O motivo pelo qual esse fim é buscado não significa que ele conduza à justiça, à igualdade ou à liberdade, nem que ele seja estabelecido por Deus, pela ciência e muito menos que contenha valores universais reconhecidos em qualquer local ou contexto, mas porque corresponde ao fim estabelecido pelo meu grupo, pela minha nação ( Idem , p. 595).

O quarto tipo é o do nacionalismo que, quando plenamente desenvolvido, pratica a mesma distorção que a dos teóricos da liberdade positiva: quando os fins almejados pelo organismo a que o sujeito pertence revelam-se incompatíveis com as metas desejadas por grupos particulares ou sujeitos individuais, a coação é uma medida necessária e que deve ser usada plenamente ( Idem , p. 596).

Analisado o argumento anterior, percebe-se que o nacionalismo compreende um sentido positivo e um sentido negativo. Das características descritas, a primeira representa o sentido positivo, porém ocorre que, num movimento decrescente, o nacionalismo vai perdendo seu sentido positivo. O positivo emerge quando grupos mantêm o espaço interno para que seus membros disponham de liberdade de escolha enquanto sujeitos capazes de se compreenderem autonomamente. O sentido negativo – ou, como ele designou no ditado oral, “uma perversão do sentido da ideia de fraternidade” ( Berlin, 1957BERLIN, Isaiah. (1957), “Two concepts of liberty. Original dictation (A)”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/published_works/tcl/tcl-a.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
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, p. 29) – surge quando, em vez de união entre os membros, emerge o valor de uma fusão indistinta, na qual desaparece o sujeito como alguém capaz de avaliar e escolher, gerando em seu lugar uma visão organicista do grupo. Berlin enfatiza que, quando isso acontece, os indivíduos “estão preparados para trocar o doloroso privilégio da escolha – o fardo da liberdade – por paz, conforto e relativa despreocupação de uma estrutura autoritária ou totalitária” (Berlin, 1958, p. 44; 2002c, p. 261). Tal avaliação chama a atenção do valor chave que ordena o argumento berliniano: a liberdade de escolha entre diversos fins. É essa ideia que empresta o caráter positivo ou negativo às características do nacionalismo.

Existe ainda outro traço do nacionalismo, decisivo para o argumento berliniano, também ligado à diversidade de fins: ele representa a natural expressão da diversidade de culturas. Tal ideia emerge nos seus ensaios sobre Herder e Vico (Berlin, 2002b; 2005a). São trabalhos com preocupações distintas, mas que permitem destacar uma linha que os une: o pluralismo cultural. O ensaio no qual essa ideia assoma com mais impacto é o sobre Herder. Nele, Berlin aponta como a descoberta mais revolucionária do pensador alemão, a ideia de que cada cultura nacional ou cada época histórica abarca um conjunto de valores que são “uma expressão de uma manifestação particular do espírito humano, valioso em si mesmo, e não como um passo para uma ordem mais elevada” (Berlin, 2002b, p. 438). Entretanto, a interpretação de Berlin vai mais além. Numa mesma época histórica, emergem culturas distintas, com fins e valores radicalmente distintos entre si, sendo irracional tentar submeter um conjunto ao outro. A atividade humana produz incessantemente novos valores que orientam os sujeitos a novos fins, que ganham a forma de culturas num movimento sempre diverso, no qual cada forma cultural é distinta e perfaz um conjunto de valores próprios, que lhe confere sentido, que não se pode reduzir a um pretenso conjunto de valores universais. Em outras palavras, cada cultura nacional tem valor em si mesmo, ideia que terá importância para balizar as escolhas dos sujeitos.

A ameaça da democracia majoritária à liberdade

Ao longo de DCL podem-se recortar dois sentidos distintos do conceito de democracia: (1) de liberdade positiva, como participação nos assuntos públicos ou autogoverno; (2) como um governo consentido pela maioria, que age sem limites e que impõe determinada forma de vida para toda a sociedade ( Myers, 2014MYERS, Ella. (2014), “Berlin and democracy”, in B. Baum e R. Nichols (eds.), In Isaiah Berlin and the politics of freedom , Nova York, Routledge. ). Em alguns trechos, Berlin utiliza o termo “democracia” com o sentido de participação pública; em outros, o termo denota a intervenção do poder soberano para coagir a sociedade a adotar determinada forma de vida.

O primeiro sentido de democracia está associado à ideia de participação, valor prezado pelos grupos desejosos de limitar a extensão da soberania e por aqueles que pretendem ampliar esse poder. A liberdade positiva corresponde a uma dimensão fundamental da ideia de democracia: “desejo ser alguém”, “desejo participar das decisões públicas que dizem respeito à minha vida” ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 16; 2002c, p. 236). Esse valor corresponde ao sentimento de repulsa por qualquer forma de paternalismo, presente na raiz do conceito de democracia.

Em DCI (“Democracy, communism and the individual”), Berlin (1949)BERLIN, Isaiah. (1949), “Democracy, communism and the individual”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/lists/nachlass/demcomind.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
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apresentava de maneira precisa o vínculo entre democracia e liberdade. A democracia é o sistema político que legitima a vontade política do sujeito ordinário. Numa democracia, o sujeito, sem ser senhor de virtudes heroicas ou de uma capacidade intelectual elevada, encerra o mesmo peso que aqueles dotados dessas qualidades; já os sujeitos que, porventura, acreditem ter essas virtudes podem almejar o poder, mas, para alcançá-lo, deverão contar com o apoio dos cidadãos ordinários, aproximando-os por meio da mobilização das paixões e dos interesses desses cidadãos. Nessa concepção de democracia, o self empírico é erguido a uma posição central, sendo-lhe dado o direito de manifestar sua opinião sem que tenha de a justificar em termos altruístas ou racionalistas. E ainda com o direito de recusar formas autoritárias de imposição de determinada forma de vida ( Berlin, 1949BERLIN, Isaiah. (1949), “Democracy, communism and the individual”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/lists/nachlass/demcomind.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
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, p. 2).

Entretanto, a democracia pode gerar apatia política. A importância da preservação de um espaço protegido para o sujeito apresenta um problema: uma vez que dispõe de um espaço com barreiras que o protegem, o indivíduo recolhe-se e abandona a participação pública. O argumento berliniano não compartilha da ideia de que a apatia política seja funcional para a democracia. Num trecho presente no ditado oral, Berlin mostra a preocupação de liberais de que o prazer que o sujeito moderno encontra na vida privada termine levando-o a abandonar a participação política, fato que levaria à perda da liberdade privada (Berlin, 1957, p. 13).

O segundo sentido de democracia assoma ao ensaio quando Berlin associa democracia ao poder irrestrito de uma maioria impor determinada forma de vida às minorias que compõem uma sociedade.

O desejo [...] de participar do processo que controla minha vida pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para a ação [...]. Mas não é a mesma coisa. [...] Pois é isso, a concepção positiva de liberdade, não a libertação de, mas a libertação para – levar uma forma prescrita de vida – que os adeptos da noção negativa consideram, em certas ocasiões, nada mais do que um disfarce capcioso para uma tirania brutal (Berlin, 2002c, p. 236). 10 10 O trecho grifado foi inserido apenas na edição de 1969.

No argumento berliniano, a ideia de democracia torna-se uma ameaça à liberdade quando reúne a concentração de poderes sem limites e a presunção de estabelecer uma única forma aceitável de vida. Enquanto a democracia permite o surgimento de diversas formas de vida, ela não representa um problema, ao contrário, constitui-se em um dos pilares de uma sociedade plural. De novo, pode-se assinalar a presença da dupla conceitual pluralismo-monismo desempenhando um papel central no argumento berliniano.

Dessa forma, o argumento berliniano considera que, de maneira geral , a liberdade está mais bem protegida numa democracia do que em regimes autocráticos, o que não o impede de verificar tensões entre a democracia e a liberdade. Também historicamente, democracias majoritárias constrangeram e, eventualmente, suprimiram liberdades civis fundamentais para minorias. Nesse sentido, a liberdade não está ligada, ao menos do ponto de vista lógico, à democracia. O respeito ao direito das minorias envolve uma questão que permaneceu aberta na obra de Berlin: o arranjo político que forneceria sustentação à manifestação da diversidade.

O pluralismo

Analisar os escritos de Berlin anteriores a DCL permite destacar dois pontos. Em primeiro lugar, a formulação sobre as liberdades negativa e positiva já estava presente anteriormente. Em segundo lugar, a relação normativa entre esses dois conceitos já tomava como base a ideia de liberdade de escolha. Entretanto, DCL introduz um valor novo: a ideia de diversidade e de conflito. Essa ideia emerge em diversos momentos de DCL, mas é na última parte, “O um e o múltiplo”, que ela é caracterizada plenamente e na qual Berlin apresenta dois estilos de pensamento que perpassariam a teoria política ocidental: o monismo e o pluralismo.

O monismo pressupõe que, para todas as indagações humanas, deve existir uma única resposta verdadeira e, consequentemente, existiriam diversas respostas falsas. A existência da verdade única representa a possibilidade de que todos os conflitos sejam considerados resultado da má fé ou da ignorância e, daí, seriam obstáculos para a realização da única meta desejável, justificando-se a supressão deles. O fim único também representa a possibilidade de harmonizar em torno de si mesmo os diversos fins que antes entravam em choque: justiça, igualdade, liberdade, bem-estar material, indivíduo, coletividade. O fim único passaria a desempenhar a função de medida absoluta, a partir da qual todos os demais fins são hierarquizados; dessa forma, a imperiosa necessidade de escolher um dentre eles desaparece (Berlin, 2002c, p. 268).

Já o pluralismo guarda em si uma natureza radicalmente diversa: ele é tanto um estilo de pensamento quanto uma experiência que nasce da vida ordinária dos sujeitos.

O mundo que encontramos na experiência ordinária é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas; a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 53; 2002c, p. 269).

O pluralismo de valores (PV) sustenta que, para as questões éticas, existem várias respostas razoáveis, calcadas em valores distintos e conflitivos. Nessa visão, não se trata de condenar uma moral em favor de outra em nome de um fim único e verdadeiro, mas de reconhecer a existência de diversos fins razoáveis e que, em certas circunstâncias, não é possível estabelecer um acordo entre eles. Esse fato conduz o sujeito a uma escolha, que se revela trágica, porque os fins recusados correspondem a dimensões relevantes da condição humana. Esse painel leva Berlin à seguinte conclusão: “Portanto, é devido a tal situação que os homens conferem enorme valor à liberdade de escolha” ( Idem , p. 53; 2002c, p. 269).

Assim, a liberdade de escolha, que anteriormente nos definia como seres humanos capazes de escolhas carregadas de valores, ganha uma nova dimensão. No ditado oral, essa ideia está formulada com mais ênfase: “O poder de escolher entre alternativas incompatíveis, igualmente absolutas , é uma das características que nos torna humanos” ( Berlin, 1957BERLIN, Isaiah. (1957), “Two concepts of liberty. Original dictation (A)”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/published_works/tcl/tcl-a.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
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, p. 36). A liberdade de escolha encontra-se em meio a um mundo repleto de fins distintos e conflitivos, que, em certas circunstâncias, requerem escolhas que implicam sacrifícios de outros fins igualmente razoáveis.

A maneira pela qual Berlin apresenta a ideia de pluralismo torna compreensível o sentido político de DCL. Os fins últimos que perpassam os conflitos políticos – liberdade, igualdade, justiça, comunidade, desenvolvimento material etc. – podem ser compreendidos como portadores da verdade última e única, acarretando um movimento irracional e autoritário de bloquear a diversidade de fins presente na condição humana e impedir o exercício da liberdade de escolha. Sempre que um fim é apresentado como valor fundamental e único, a partir do qual todas as questões podem ser respondidas, encontramos um estilo monista de compreensão dos problemas morais. Esse impulso está presente em diversas concepções políticas. O liberalismo do século XIX foi moldado por uma visão monista quando ergueu a liberdade individual como princípio único da vida social e política. No contexto da Guerra Fria, foram as concepções distorcidas de liberdade positiva que buscaram tolher a diversidade de fins.

Dessa maneira, para Berlin o foco na liberdade negativa decorre de outro fim, pois esta só tem relevância à medida que, naquele contexto específico, ela acolhe o princípio da diversidade e do conflito entre fins, permitindo que se manifeste a liberdade de escolha dos sujeitos.

O pluralismo e a dose de liberdade “negativa” que carrega parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano [...]. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas mensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras (Berlin , 1958, p. 56; 2002c, p. 272).

Como destaquei, no ensaio DCLRL as barreiras que formam a ideia de liberdade negativa não são fins em si mesmas; já em DCL, a liberdade negativa recepciona um valor que lhe fornece sentido: a manifestação da diversidade de fins perante os quais a escolha será exercida. Nesse sentido, a ideia que estrutura as duas liberdades é o pluralismo de valores.

Ato arbitrário ou compromisso prático

Se a liberdade de escolha entre fins diversos e conflitantes é o valor central do PV, pode-se indagar quais são os seus fundamentos. Seria uma escolha calcada, em última instância, na tradição? É aceitável um ato que busca, mesmo que introduzindo mudanças, manter uma paz interna entre os modos de vida predominantes? Ou seria mais aceitável uma escolha, justificada publicamente, calcada em valores que assegurassem a diversidade e a tolerância, mesmo que, com isso, a paz interna da sociedade fosse afetada?

Num primeiro momento, Berlin apresenta a ideia de que a escolha dos sujeitos é determinada por conceitos morais que são uma expressão de tradições e costumes (Berlin, 2002c, p. 272). Essa ideia é extremamente importante no argumento berliniano, porque remete à relevância do sentimento de pertencimento a uma coletividade e ao tema do pluralismo cultural.

A ideia da importância do pertencimento a um grupo ou a uma cultura ampliou-se e radicalizou-se na sua análise. Em DCL, ele escreve que talvez o valor da tolerância para a diversidade seja fruto da civilização capitalista ; ou seja, um valor específico de determinada cultura ( Idem , p. 272). Nesse sentido, o liberalismo democrático é também uma manifestação cultural particular, que não pode aspirar a ser uma norma universal.

Com essa perspectiva, é razoável indagar: culturas que restringem a diversidade de formas de vida são aceitáveis como base para o exercício da liberdade de escolha? Numa sociedade democrática e plural, doutrinas abrangentes que buscam constranger modos de vida distintos são toleráveis?

Entretanto, no argumento berliniano é possível encontrar outro fundamento para a liberdade de escolha: um liberalismo agonístico (Gray, 2000a); a ideia de uma escolha entre diversos fins conflitantes não pode encontrar um fundamento inquestionável. Qualquer escolha trará sempre um cálculo aproximado do que foi perdido e do que foi ganhado; essa imprecisão não decorre da precariedade do método empregado, mas da inexistência de uma escala única de grandeza , capaz de medir perdas e ganhos ( Berlin, 1958BERLIN, Isaiah. (1958), Two concepts of liberty . Oxford, Clarendon. , p. 652, nota 19). Toda escolha será sempre uma escolha numa situação imprecisa, na qual só resta ao agente agir. Essa ideia, Berlin apresentou-a como tendo sido gestada no seu ensaio sobre Maquiavel, quando compreendeu ter sido o autor florentino o primeiro a tirar consequências morais da existência de concepções razoáveis e conflitantes. A ideia chave de Maquiavel consiste “na revelação da possibilidade de mais de um sistema de valores, sem nenhum critério comum aos sistemas que permitam uma escolha racional ” (Berlin, 2002e, pp. 340-341). Escolhemos sabendo que outras escolhas seriam não só possíveis, mas também razoáveis: tomamos uma decisão porque é necessário fazê-lo. As circunstâncias de que o conflito dispõe nos força a escolher. Por sua vez, essa escolha irá nos conduzir a meios que são coerentes com o fim que estabelecemos, justificado com relação a valores relacionados a esse fim. Nossa escolha é racional com relação ao fim que escolhemos, mas é irracional quando avaliada por outros fins. 11 11 Quando essa perspectiva é discutida na “Introdução”, Berlin (1969) chama a atenção da sua proximidade com Weber.

Todavia, essas duas alternativas contêm um forte componente de relativismo moral, de caráter cultural ou individual. Esses componentes pareceram a Berlin próximos demais do relativismo, o que o levou a buscar uma distinção entre pluralismo e relativismo:

Eu prefiro café, você prefere champanhe. Temos gostos diferentes. Não há nada mais a ser dito. Isso é relativismo (Berlin, 2002, p. 49).

Não há uma infinidade de valores: o número de valores humanos [...] é finito. O fato de que os homens são homens e as mulheres são mulheres, e não cachorros, gatos, mesas ou cadeiras, é um fato objetivo; parte desse fato objetivo é que há certos valores, e apenas aqueles valores, que os homens, continuando a ser homens, podem buscar. [...] Posso entrar num sistema de valores que não é o meu, mas ainda assim é algo que possa conceber como sendo buscado por homens que permanecem humanos, que permanecem criaturas com as quais posso comunicar-me, e com quem tenho alguns valores em comum [...]. É por isso que o pluralismo não é relativismo – os valores múltiplos são objetivos, fazem parte da essência da humanidade, em vez de criações arbitrárias das fantasias subjetivas dos homens (Berlin, 2005b, p. 30).

Os dois trechos apresentam ideias novas. Em primeiro lugar, há um limite para os fins humanos aceitáveis: aqueles que permanecem dentro do horizonte humano. Em segundo lugar, as escolhas devem ser publicamente apresentadas e discutidas, não apenas escolhas brutas – “eu escolho porque quero”. Esse debate tem como finalidade tornar os homens conscientes das categorias a partir das quais pensam (Berlin, 2002g, p. 117). Mas essa tarefa não suprime o conflito, pois há limites para a razão em ser uma medida que esclareça os sujeitos e conduza-os a um meio termo consensual. Em carta a John Rawls, Berlin (1988)BERLIN, Isaiah. (1988), “To John Rawls”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/published_works/a/l4supp.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
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exprime sua concordância com o uso que Rawls fez da ideia de pluralismo, mas manifesta seu ceticismo quanto à capacidade de o consenso sobreposto dirimir conflitos entre fins últimos, como aqueles ocorridos na segunda metade do século XX, desencadeados pela religião no Oriente Médio. Como pensar sobre os limites para a escolha? O que é aceitável e o que não é aceitável?

Berlin sustenta que a diversidade de fins e seus conflitos permanecem como um marco objetivo da condição humana e que negá-lo corresponde a negar essa condição. Tem-se aqui um primeiro elemento para responder àquelas questões. Em segundo lugar, se essa diversidade não é redutível a um fim único, torna-se necessário preservar a liberdade de escolha. É esta que assegura que não somos pedras. Um terceiro elemento corresponde à recusa ao monismo: é contrário à condição humana estabelecer um único fim como sagrado ou inegociável; em certas circunstâncias, é preciso firmar acordos.

Emergem daí duas ideias centrais no argumento berliniano: empatia e tolerância. Nos ensaios sobre Vico e Herder, Berlin destacou a importância da empatia no processo de conhecimento de outras sociedades. Para conhecer outra sociedade, devemos ser capazes de compreender os valores dessa sociedade, de recusar qualquer tentativa de reduzi-los a outro conjunto de valores. Somente assim, poderemos compreender essa cultura, mas isso não impede que formemos um julgamento sobre ela. A tolerância consiste em reconhecer a diversidade humana e em afastar quaisquer posturas que conduzam ao monismo. A tolerância é, por essência, antiutopista; ela recusa a possibilidade de que um fim possa conter todos os demais, afasta a erradicação do conflito, mas acredita na possibilidade de firmar compromissos entre os fins.

Modus vivendi ou pluralismo liberal

O compromisso corresponde a um modus vivendi? Ele requer que certos valores, como autonomia do sujeito e respeito à pluralidade, tenham precedência? Considero que essas indagações não encontram respostas estáveis em Berlin.

Quando Berlin foi indagado se a sua defesa do PV visava defender o liberalismo, sua resposta foi que os dois não eram conceitos idênticos, nem mantinham vínculos lógicos, e que várias correntes liberais não eram pluralistas. Mas ele acreditava no liberalismo, por este abrir espaço para que concepções diversas de vida se revelem, e que, a partir disso, emerjam seus valores incompatíveis e a possibilidade de compromissos que não destruam o mundo público ( Berlin e Jahanbegloo, 1996BERLIN, Isaiah & JAHANBEGLOO, Ramin. (1996), Isaiah Berlin . São Paulo, Perspectiva. , p. 73).

Essa questão retornaria quando lhe foi feita a crítica de que o PV propiciava a emergência de escolhas irracionais e, portanto, eventualmente contrárias à diversidade. Se a liberdade de escolha é um processo trágico, por que não a suprimir ou constrangê-la? Escolher essa alternativa é tão arbitrário quanto requerer um arranjo político-social que ampare e estimule a diversidade e o conflito ( Crowder, 1994CROWDER, George. (1994), “Pluralism and liberalism”. Political Studies , 42: 293-303. ).

A resposta de Berlin foi que o PV não postula uma hierarquia de valores; existem valores relevantes (ele lista alguns), mas não estabelece que sejam apenas estes: autonomia do sujeito e diversidade de fins. Escolher um dentre outros não é inconsistente com o PV, mas negar sua importância, sim. Quaisquer políticas públicas devem ser regidas pelas circunstâncias; em certos momentos, prevalecem alguns valores, em outros, outro conjunto de valores; não há um algoritmo moral para as decisões individuais ou de políticas públicas ( Berlin e Williams, 1994BERLIN, Isaiah & WILLIAMS, Bernard. (1994), “Pluralism and liberalism: a reply”. Political Studies , 41: 306-309. , pp. 307-308).

Segundo Gray, a obra de Berlin teria gerado uma tese radical em face da tradição da filosofia moral, ao postular o conflito agonístico entre as concepções de bem e, principalmente, ao estabelecer a incomensurabilidade entre os valores, na vida ordinária ou na cultura. O insight mais profundo da obra de Berlin residiria na constatação de que a incomensurabilidade entre os fins impede qualquer resolução dos conflitos por meio de um padrão racional (Gray, 2000a, p. 57).

Essa ideia ganharia contornos mais radicais nas sociedades pós-modernas, em que não existiriam mais elementos que permitam a tolerância liberal clássica: os sujeitos não têm um entendimento comum da moralidade e negam que exista um modo de vida que possa idealmente reunir o gênero humano. Não apenas não é viável a tolerância nos moldes do liberalismo como também não seria possível entre as concepções de bem construir um ponto arqui- mediano, como a religião ou o direito. Em meio a esse dilema, Gray propõe a categoria de modus vivendi , a qual representa o reconhecimento da impossibilidade de encontrar uma base racional entre os fins últimos e as formas de vida correspondentes. Trata-se de um arranjo político que permitiria a coexistência de formas de vida guiadas por fins conflituosos e incomensuráveis (Gray, 2000b, cap. 4).

As diversas formas de vida não precisam adotar sequer a ideia da diversidade de valores e de autonomia do sujeito. O modus vivendi pretende corresponder a um arranjo institucional que permita o convívio pacífico entre os diversos grupos e formas de vida, sem que estejam presentes valores fundamentais para o liberalismo, como indivíduo e livre mercado, entre outros. Na visão de Gray, o arranjo político liberal foi válido para as sociedades com certa tradição cultural, sobretudo os países da Europa ocidental, sem que possa ser exportado para sociedades com formação histórica radicalmente distinta (Gray, 2000b, cap. 4; 2000c).

Há outra interpretação que conduz a uma articulação maior entre PV e liberalismo ( Crowder, 2002CROWDER, George. (2002), Liberalism & value pluralism , Nova York, Continuum. ; Galston, 2002GALSTON, William A. (2002), Liberal pluralism , Cambridge, Cambridge University. ). A experiência ordinária diante da diversidade de valores não é uma descrição da perplexidade emocional sentida pelos sujeitos, mas corresponderia a uma estrutura da condição humana. Isso implica que tal dimensão não pode ser relevada em qualquer arranjo político. A pedra angular do PV reside no respeito à diversidade de fins e valores: trata-se de aceitar que o florescimento humano comporta várias dimensões e cada uma delas realiza fins distintos.

Nenhuma vida individual ou arranjo político pode realizar todos os fins ao mesmo tempo, nem dispor de todos os bens necessários, o que acarreta ter de fazer escolhas. Sem negar que os fins últimos são sempre incomensuráveis, eles podem ser pesados e comparados em razão das circunstâncias. Essas escolhas, feitas em meio a circunstâncias específicas, não são atos arbitrários, como se fosse possível decidir entre dois fins últimos jogando uma moeda ao alto ou por meio da referência a um elemento determinante que suprimisse o razoamento públi- co (como a tradição). O PV requer um compro- misso com uma razão prática.

Tendo em vista essa perspectiva, o PV adota como medida para os arranjos políticos a ideia de diversidade e recusa arranjos políticos que busquem a afirmação de um único fim, pois, se determinada sociedade promove um único fim, ela suprime o valor central da experiência mais ordinária da condição humana e bloqueia o florescimento dos sujeitos. Em contrapartida, o PV reconhece que é melhor a sociedade dispor de uma variedade maior de fins do que bloquear essa diversidade. O mesmo vale para concepções de boa vida postuladas por grupos de um Estado. Os grupos que negam a diversidade presente numa sociedade são passíveis de sofrerem interferências legais, o que não implica dizer que certo grupo deva postular valores como individualismo ou secularismo, mas todo grupo deve assegurar que seus membros tenham o direito de escolher entre diversos fins e de pertencer ou sair do grupo ( Galston, 2002GALSTON, William A. (2002), Liberal pluralism , Cambridge, Cambridge University. , cap. 5).

Existem tradições culturais distintas, para as quais a autonomia do sujeito, como pretende o liberalismo, não se coloca com um valor fundamental. Porém, da perspectiva do PV, não é a autonomia do sujeito tomado como unidade isolada que se apresenta como central, mas a diversidade de fins. É esse o valor central. A liberdade positiva, entendida como autonomia do sujeito em escolher entre fins, é fundamental para que essa diversidade se manifeste. Da mesma forma, uma esfera na qual o sujeito esteja protegido de interferências arbitrárias, a liberdade negativa, é um valor chave. Mas ambos são meios para um valor maior: a expressão e a diversidade de fins conflitantes.

Um dos problemas centrais da interpretação de Gray reside no seguinte: a incomensurabilidade dos fins pode ser o meio pelo qual se manifesta o valor oposto à diversidade: o monismo. Nesse sentido, a incomensurabilidade requer outros valores, a meu ver, dois: tolerância e empatia. Como destaca Galston, esses outros valores não são produtos da mão invisível, mas de arranjos políticos e de práticas sociais. Nesse sentido, considero que uma nova investigação para além do DCL requer um debate acerca desses dois conceitos.

DCL continua sendo um marco teórico relevante para o estudo de sociedades e de teorias que se veem perante a diversidade e o conflito entre fins. Ao longo de sua trajetória intelectual, Berlin sempre manifestou a recusa aos esforços utópicos. Tal estado lhe parecia o sono produzido pela morte: seu ensaio mais famoso não poderia ser lido de maneira diferente. Abre-se para novas questões e para outras que o próprio autor não conseguiu resolver.

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  • 1
    Na “Introdução”, de 1969, foram respondidas diversas críticas e efetuadas reformulações significativas no argumento original. Berlin reconhecia, nesse texto, que diversas ideias haviam recebido críticas “pertinentes e justas”, algumas por falta de clareza sua mesmo, necessitando esclarecer certos aspectos; por fim, houve críticas resultantes de ideias que lhe haviam atribuído, mas que não eram suas (Berlin, 1969, p. ix). Assim, foi nesse momento que Berlin respondeu aos seus críticos posteriores, sendo fundamental a sua leitura para uma análise crítica do seu pensamento. Na minha visão, os principais pontos abordados foram os seguintes: a discussão sobre intervenção com vistas a assegurar os direitos sociais e sua relação com a liberdade ( Idem , pp. xlv-xlvi, lii-liv), a relevância e a importância da liberdade positiva e a traição da liberdade pelos teóricos da liberdade positiva ( Idem , pp. xliii-xlv) e, por último, a discussão sobre o pluralismo ( Idem , pp. l-lii).
  • 2
    Comparadas as edições de 1958 e de 1969, em grande medida seu conteúdo é o mesmo. Porém, há algumas alterações que serão mencionadas ao longo do artigo. Entre o ditado oral e o texto publicado existem algumas diferenças pontuais: trechos foram excluídos, enquanto outros foram adequados para a escrita. A edição brasileira de 2002 provém da coletânea organizada por Henry Hardy, que, por sua vez, toma como base o texto publicado em 1969 na coletânea Four essays on liberty . Essa edição é ligeiramente diferente da de 1958; a fim de evidenciar quando utilizo qual edição, considerei o ditado oral como 1957, a primeira edição de 1958 e a edição de Four essays como de 1969. Ao longo do artigo, especifico a página da edição de 1958 e a página correspondente da edição nacional (Berlin, 2002c). Uma vez que o artigo pretende analisar as ideias de Berlin a partir do texto de 1958, traduzi os trechos citados; entretanto, para que o leitor possa comparar com o texto original, coloquei a página correspondente em português. Berlin gravou em dictabelts o conteúdo da palestra; a transcrição encontra-se disponível em Berlin (1957)BERLIN, Isaiah. (1957), “Two concepts of liberty. Original dictation (A)”. Disponível em: <http://berlin.wolf.ox.ac.uk/published_works/tcl/tcl-a.pdf>. Acesso em: 8 mar. 2018.
    http://berlin.wolf.ox.ac.uk/published_wo...
    . Todos os grifos são meus, exceto quando assinalados.
  • 3
    É interessante observar como Berlin, no final da vida, ao fazer um balanço da sua trajetória, se referiu ao pluralismo. Segundo ele, quando percebeu o alcance desta ideia foi “como um choque” que “solapou” todo o seu conhecimento anterior (Berlin, 2002f (1988), p. 47). Chamou-me a atenção Berlin destacar como sendo sua ideia central não o tema da liberdade negativa, mas do pluralismo.
  • 4
    Os dois ensaios são originários de palestras proferidas em 1952 no Bryn Mawr Collegue, chamadas de conferências Mary Flexner.
  • 5
    Por contextualismo histórico, entendo fundamentalmente a reflexão de Quentin Skinner.
  • 6
    Macpherson (1973MACPHERSON, C. B. (1973), “Berlin’s division of liberty”, in C. B. Macpherson, Democratic theory , Oxford, Clarendon. , p. 109) percebeu claramente esse aspecto e propôs uma divisão entre LP1 (liberdade positiva 1), LP2 e LP3, de maneira a concentrar a sua crítica não na distorção, com a qual ele concordava, mas em outros aspectos.
  • 7
    Ver, por exemplo, Crowder (2004CROWDER, George. (2004), Isaiah Berlin: liberty and pluralism , Cambridge, Polity. , pp. 69-70) e Macpherson (1973MACPHERSON, C. B. (1973), “Berlin’s division of liberty”, in C. B. Macpherson, Democratic theory , Oxford, Clarendon. , p. 109).
  • 8
    Só é possível entender plenamente as duas distorções se compreendemos o papel da diversidade, tema discutido na seção “A luta pelo reconhecimento”.
  • 9
    Segundo Silva (2015SILVA, Ricardo. (2015), “Visões da liberdade”. Lua Nova , 94: 191-215. , p. 199), Coser (2014COSER, Ivo. (2014), “The concept of liberty: the polemic between the neo-republicans and Isaiah Berlin”. Brazilian Political Science Review [ online ], 8 (3): 39-65. , p. 59) teria feito uma afirmação “imprecisa” ao considerar que “Berlin rejeita, radicalmente, a ideia de um fim necessário à ação livre”. Para Silva, Berlin teria rejeitado a ideia de um fim específico para a ação livre. Em Berlin, a liberdade de escolha envolve o direito à recusa, sem que se requeira a existência de um fim, específico ou necessário. O sujeito carrega o sentimento de opressão, ou seja, a percepção de que aquele fim não corresponde à sua vontade, desconhece ainda um fim alternativo, mas tem o direito de recusar a situação com que se defronta. Em suma, Berlin rejeita radicalmente, com razão, a necessidade de um fim para ação livre.
  • 10
    O trecho grifado foi inserido apenas na edição de 1969.
  • 11
    Quando essa perspectiva é discutida na “Introdução”, Berlin (1969)BERLIN, Isaiah. (1969), “Introduction”, in I. Berlin, Four essays on liberty , Londres, Oxford University. chama a atenção da sua proximidade com Weber.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2018
  • Aceito
    23 Nov 2018
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