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A universidade brasileira em questão

A universidade brasileira em questão

Hélgio TRINDADE (org.). Universidade em ruínas na República dos Professores. Petrópolis/Porto Alegre, Vozes/Cipede, 1999. 223 páginas.

Sérgio de Azevedo

O livro organizado por Hélgio Trindade discute o futuro da universidade brasileira de uma perspectiva interdisciplinar e comparativa, buscando romper com o paroquialismo desse debate por meio da análise de experiências internacionais. Ainda que o núcleo da reflexão seja a universidade pública brasileira, com ênfase no sistema federal de ensino superior, a coletânea propicia ao leitor um esboço do estado da arte desse debate também em nível internacional.

O livro apresenta quatro grandes seções: "Público e privado em questão?"; "Perspectiva internacional"; "Reformas ou contra-reformas?"; e "Naufrágio da universidade?", perfazendo um total de 16 artigos. No artigo de abertura, "Universidade, ciência e Estado", o organizador realiza um breve histórico da evolução da universidade desde a sua invenção no século XII até os dias atuais, terminando por analisar os impasses e desafios da universidade contemporânea, especialmente o decorrente da "contradição entre os cientistas que dependem crescentemente dos recursos do Estado mas não querem ser governados por ele e os governos que querem planejar a pesquisa e orientá-la para os setores economicamente mais promissores".

Público e privado em questão?

O primeiro artigo, "As universidades frente à estratégia do governo", também de autoria de Hélgio Trindade, objetiva discutir os pressupostos teóricos do projeto de reforma constitucional que pretende conceder autonomia às universidades públicas federais. Frisa o autor que, excetuando as estaduais paulistas, nunca as universidades públicas gozaram de autonomia administrativa e financeira, ainda que estas estejam previstas na Constituição Federal de 1988. Trindade lembra também que, estimuladas pelos governos militares, as instituições privadas cresceram de forma acelerada em três décadas, passando de 40% das matrículas no ensino superior para cerca de 75% do total, apesar de 90% da pesquisa científica e tecnológica continuar sendo realizada pelo sistema público de ensino superior. A partir de uma ampla análise de experiências internacionais sobre processos de autonomia universitária, o artigo faz um exame crítico das propostas governamentais recentes sobre o tema e defende um processo de implementação incremental da reforma, sempre respaldado pela participação dos diversos atores envolvidos.

Em "O público e o privado na educação superior brasileira: fronteira em movimento?", Luiz Antônio Cunha mostra que, do período colonial aos nossos dias, têm ocorrido mudanças significativas entre o espaço público e o espaço privado. Segundo ele, a partir do golpe de 1964 os governos militares ampliaram de forma significativa o ensino superior no país, principalmente pela expansão das universidades federais e por uma extensa gama de incentivos à iniciativa privada. Por outro lado, o processo de democratização aumentou significativamente o controle administrativo e financeiro das universidades federais por parte da União, o que dificultou um crescimento maior dos seus cursos. O panorama atual é de larga hegemonia do setor privado no que concerne aos cursos de graduação, embora não se possa subestimar o importante setor de pós-graduação stricto sensu, compreendendo 58 mil alunos, na sua esmagadora maioria lotados em instituições públicas e financiados por agências estatais.

Após fornecer um panorama do ensino superior no país, Luiz Antônio Cunha realiza análise detalhada das políticas para o setor público e daquelas voltadas para o setor privado. No que se refere ao primeiro, ressalta a forte heterogeneidade do sistema federal de ensino superior (algumas poucas universidades altamente produtivas e uma gama enorme de universidades onde ocorre um baixo trade-off entre ensino e pesquisa). Também o ensino privado apresenta forte heterogeneidade, dividido entre instituições privadas no sentido estrito, de um lado, e instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas, de outro. O autor finaliza o artigo referindo-se a uma convergência entre "`produtivistas' do setor público com os `moralistas' do setor privado", sugerindo que a principal delimitação, hoje, não é mais "entre o estatal e o privado", mas aquela que demarca "a diferença específica entre a excelência e a mediocridade".

O artigo de Dilvo Ristoff, "Privatização não faz escola", desmonta algumas das versões simplórias sobre as vantagens da privatização do ensino baseado na análise do caso norte-americano. Segundo o autor, diferentemente do Brasil, onde cerca de 75% dos estudantes de nível superior encontram-se matriculados em instituições privadas, nos Estados Unidos somente 3 milhões dos 14 milhões de universitários estão vinculados a organizações particulares. Ristoff destaca que, na segunda administração Clinton, a política de universalizar o acesso aos primeiros dois anos do nível superior (uma espécie de licenciatura curta) está se tornando realidade através não só da ampliação dos vários programas de bolsas e de crédito educativo tradicionais, mas sobretudo pela criação de dois novos programas em nível nacional, o "Hope Scholarship" e o "Tax Deduction", que estariam garantindo, atualmente, gratuidade completa nos colleges (primeira etapa da graduação) de pelo menos 37 dos 50 estados norte-americanos.

O último artigo dessa seção, "Avaliação e privatização do ensino superior", de José Dias Sobrinho, discute a complexidade do processo de avaliação institucional das universidades. O autor faz uma forte e detalhada crítica à "avaliação eficientista", calcada na correlação entre custos e benefícios e centrada exclusivamente na busca de aumento da produção, na racionalização dos gastos e na otimização dos custos operacionais, ou seja, em uma perspectiva de racionalidade mercadológica na qual o investimento em educação é vinculado ao retorno econômico mais imediato e visível. José Dias Sobrinho deixa bem claro que não é contra a utilização desses índices per se, mas adverte que, ao se restringir a esses indicadores quantificáveis, a avaliação deixa de lado a importância de processos que, por vezes, podem acarretar inúmeros resultados positivos somente percebidos a médio e longo prazos.

Perspectiva internacional

No artigo "Boyer Commission: o modelo americano em debate", Dilvo Ristoff define as três características básicas do ensino superior norte-americano: orientação pública, estadualização administrativa e diversidade de objetivos acadêmicos. Os EUA, com uma população de 265 milhões de habitantes, possui quase 14 milhões de universitários — enquanto o Brasil, com uma população aproximada de 160 milhões de habitantes, tem somente 2 milhões de universitários. As instituições públicas americanas respondem por 78% da capacidade instalada do ensino superior no país. Em termos de financiamento da pesquisa, 60,4% dos recursos são provenientes da União; 7,5% dos governos estaduais e municipais; 18,1% de recursos próprios; 6,8% da indústria e 7,85% de outras fontes. O autor chama a atenção para a pequena contribuição da indústria e para a forte participação da União em um país onde não há universidades federais. O mesmo ocorre em relação às bolsas de estudos, uma vez que a participação federal deverá ultrapassar 85% do total dos recursos após a implementação dos novos programas federais em curso. Ristoff ressalta ainda que uma das peculiaridades do sistema universitário americano é ter por base um tripé, com divisões de trabalho bem definidas: (1) universidades de pesquisa, com cursos de pós-graduação, altos investimentos em laboratórios e bibliotecas e corpo docente altamente qualificado; (2) universidades de ensino, que se dedicam a cursos de graduação tradicionais; (3) collegges (pós-secundários profissionalizantes), que oferecem cursos de dois anos voltados para atender as demandas operacionais imediatas do setor técnico e produtivo.

Apesar de todas essas conquistas, um estudo governamental recente conhecido como Relatório Boyer mostra o estado precário dos cursos de graduação das universidades de elite norte-americanas, que não usufruem de maneira adequada da rica infra-estrutura disponível e do corpo de professores altamente qualificados. Como alternativa, o documento propõe um novo modelo de ensino nessas universidades, "que efetivamente integre a experiência da graduação aos programas de mestrado e doutorado e aos trabalhos de pesquisa".

No artigo "Rapport Attalli: bases da reforma do ensino superior francês", Hélgio Trindade analisa propostas inovadoras dentro da tradição francesa. A França possui 87 universidades públicas e 92 institutos universitários tecnológicos que, juntos, absorvem cerca de 61% dos estudantes que concluem o segundo grau. Além desses cursos, há também as famosas "grandes écoles", instituições públicas especializadas, altamente prestigiadas, onde predomina um recrutamento extremamente seletivo e socialmente elitizado. Segundo o Relatório Attalli, elaborado por uma equipe de especialistas, apesar da grande expansão do sistema de ensino superior francês ao longo das últimas décadas, este paulatinamente se tornou confuso, burocrático e gerador de desigualdades. O artigo faz uma análise detalhada das propostas apresentadas, mostrando que a idéia central é buscar uma reaproximação entre os dois sistemas (universidades e "grandes écoles") e uma nova forma de estruturação do ensino superior francês, em moldes semelhantes ao padrão anglo-saxão (master degree e Ph.D.). A perspectiva de longo prazo seria a construção de um "modelo europeu" capaz de superar o sistema burocrático tradicional sem, no entanto, se submeter à lógica do mercado.

O artigo "Dearing Report: novas mudanças na educação superior inglesa?", de Valdemar Sguissardi, propõe-se a estudar o modelo inglês, apresentado por alguns especialistas como uma possível inspiração para os chamados "países emergentes", dentre os quais se incluiria o Brasil. A discussão das perspectivas do sistema de pesquisa e ensino superior inglês toma como referência o chamado "Dearing Report", relatório elaborado por uma comissão formada por representantes das universidades e de empresas privadas, ainda durante o final do governo conservador (1996), por iniciativa do parlamento britânico. O artigo começa afirmando que, diferentemente da maioria dos países desenvolvidos da Europa Ocidental, o sistema inglês é formado inteiramente por instituições privadas que, entretanto, têm cerca de 80% dos seus orçamentos financiados pelo Estado. No pós-guerra, o sistema teria passado de um sistema elitista para um sistema aberto a novos grupos sociais, através da criação dos chamados Politécnicos (polytechnics). Este sistema binário vai existir até 1992, quando o governo conservador realiza a unificação do mesmo.

Segundo o autor, as reformas empreendidas durante o período Thatcher orientaram-se fundamentalmente pelo enfoque mercadológico. Se antes cabia às universidades privadas definir a forma de emprego dos fundos governamentais, inclusive os destinados à pesquisa, com as novas políticas incentivos financeiros foram utilizados para induzir as instituições a aplicarem a maior parte dos recursos nas áreas consideradas estratégicas pelo governo. Essas políticas tiveram vários efeitos perversos (corte de verbas, diminuição dos salários, perda da estabilidade do emprego, aumento das anuidades estudantis etc.) mas também contabilizaram vários resultados positivos (ampliação do número de vagas, redução do custo per capita dos alunos, maior captação de recursos junto ao setor privado, aumento do desempenho das pesquisas etc.). Os autores do "Dearing Report" mostram preocupação com os impactos negativos para a competitividade internacional do país decorrentes das reduções previstas nos investimentos para a educação superior nas próximas duas décadas, e ressaltam a necessidade de se pensar em novas fontes de financiamento para o terceiro grau. Frisam que o ensino deve responder às necessidades do mercado de trabalho, o que inclui o desenvolvimento de habilidades gerais, em decorrência da rápida transformação tecnológica. Destacam, ainda, a importância da integração do ensino superior com o desenvolvimento local e regional. Como forma de diminuir o elitismo do ensino superior, sugere-se a sua massificação. A proposta é que nos próximos 20 anos o percentual atual de 32% de diplomados — em relação aos concluintes do ensino secundário — se eleve para cerca de 45%.

A questão mais polêmica refere-se a quem deve pagar pelo ensino superior. Os dados do Relatório, relativos ao biênio 1995-1996, indicam que, no que diz respeito ao ensino superior stricto sensu, os fundos públicos arcaram com 78,6% do custo total, os alunos ou suas famílias com 7,6%, e os 13,9% restantes foram financiados por outras fontes. No que diz respeito ao financiamento da pesquisa, os fundos públicos participaram com 74,3%, a indústria e o comércio, com 7,2%, as doações (charities), com 14%, e 4% veio de outras fontes. O Relatório recomenda que o percentual de participação do setor público aumente na mesma proporção do Produto Interno Bruto e que os estudantes, através de anuidades ou de empréstimos reembolsáveis, arquem com o equivalente a 1/4 dos custos dos respectivos cursos, o que corresponderia a um pagamento médio anual da ordem de U$1.620. O autor conclui afirmando que o governo trabalhista acatou a maior parte das sugestões do Relatório, excetuando as referentes ao pagamento das anuidades, às quais contrapôs uma proposta mais branda em relação aos setores de menor renda.

O artigo "Unesco e os cenários da educação superior na América Latina", de Hélgio Trindade, procura relacionar características das propostas governamentais de reforma do ensino superior no Brasil com processos similares de outros países latino-americanos. O autor destaca que as propostas da Unesco se chocam com as políticas do Banco Mundial para a região que vêm sendo implementadas, em ritmo diferenciado, por diversos países latino-americanos. A diferença central entre as propostas da Unesco e do Banco Mundial seria que, para a primeira, o Estado deve se comprometer explícita e firmemente com o financiamento estratégico de médio e longo prazos da pesquisa e do ensino superior, posição hoje majoritária na maioria dos países desenvolvidos, a começar pelos EUA, que rejeitaram a receita "thatcheriana". Em contrapartida, o autor percebe que parte considerável dos governos latino-americanos, a partir das orientações do Banco Mundial, encontra-se na contramão da história, sob a racionalização simplória de que "o financiamento estatal das universidades é um forma regressiva de distribuição que favorece os grupos de renda mais alta". Segundo Hélgio Trindade, a retórica governamental e a recente reformulação do sistema de avaliação do MEC apontam para um cenário possível onde as universidades federais autônomas mais qualificadas — junto com a USP e a Unicamp _ tornar-se-ão os grandes centros de pesquisa, de formação de quadros e de pós-graduação. As demais universidades federais não autônomas continuarão submetidas aos controles tradicionais e se dedicaram prioritariamente ao ensino de graduação. Ressalte-se, ainda, que nesse desenho institucional caberia às universidades, centros e faculdades privadas função primordial na expansão dos cursos de graduação.

Reformas ou contra-reformas?

No artigo de Luiz Antônio Cunha denominado "Reforma universitária em crise: gestão, estrutura e território", o primeiro assunto tratado diz respeito às especificidades das universidades em relação a outros tipos de organizações e à inadequação da aplicação a elas de métodos de gestão administrativa calcados em paradigmas empresariais tradicionais. Argumenta o autor que, como o objetivo da universidade é a produção de novos conhecimentos, há necessidade de convivência institucional entre grupos com perspectivas alternativas, não fazendo sentido imaginar nenhum tipo de sistema monolítico de poder.

Após apresentar um sucinto histórico da formação das universidades brasileiras, o artigo informa que essa estruturação ocorreu fundamentalmente por duas formas: pela fragmentação das antigas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras ou pela substituição das faculdades, escolas e institutos pelos centros. Depois de discutir em detalhes toda essa trajetória, o autor sugere que, atualmente, a maioria das universidades federais pode ser enquadrada em quatro modelos básicos: "(1) a agregação dos departamentos em alguns poucos centros; (2) a reunião dos departamentos em número maior de institutos, faculdades ou escolas; (3) a ligação dos departamentos diretamente à administração superior, sem instância intermediária alguma; (4) a superposição de centros às faculdades, aos institutos e às escolas". Segundo Luiz Antônio Cunha, a disputa entre os partidários da estrutura baseada em "unidades" e aqueles que defendem os "centros" acabou sem vencedores em um grande número de universidades que apresentam um formato institucional híbrido.

O autor também realiza uma primorosa análise da divisão interna do trabalho universitário decorrente da Lei no 5.540, de agosto de 1968, que extingue as cátedras e implanta o regime de departamentos e a divisão dos cursos de graduação entre ciclo básico e profissionalizante, com o surgimento dos colegiados de cursos. São relatadas diversas contradições, conflitos e dificuldades na interação entre os diversos atores.

O último grande tema tratado pelo artigo diz respeito às formas de organização territorial das universidades. O autor lembra que o campus se generalizou de tal forma no país, a partir dos anos 60 e 70, que mesmo instituições aspirantes a se tornarem universidades por vezes iniciavam a construção do mesmo antes de possuírem infra-estrutura acadêmica e corpo docente compatível com o status demandado. O autor faz várias críticas ao modelo de campus, ressaltando, entre outros, o excessivo custo das obras e as dificuldades de deslocamento para parte considerável dos corpos docente e discente e dos funcionários.

No artigo "Concepções de universidade e de avaliação institucional", José Dias Sobrinho resgata e aprofunda algumas de suas reflexões sobre "avaliação institucional" esboçadas no artigo já citado ("Avaliação e privatização do ensino superior") e realiza um contraponto entre as posições conflitantes do Banco Mundial e da Unesco, na mesma linha do artigo de Hélgio Trindade. Dias Sobrinho destaca que as avaliações não podem ser entendidas como a aplicação de um conjunto de técnicas neutras. Elas estão sempre inseridas em um contexto social marcado por valores que lhes oferecem certa consistência e legitimidade. Na atualidade, o centro do debate epistemológico se daria entre visões diferentes e mesmo antagônicas de "eficiência" e "qualidade" para o ensino superior (por exemplo, Banco Mundial versus Unesco). Dependendo do modo como se entende esses conceitos, chega-se a concepções distintas de universidade.

O artigo "A autonomia segundo o MEC: fragilidade política e ambigüidade conceitual", do professor Hélgio Trindade, faz um balanço sucinto das iniciativas políticas do Ministério da Educação para o ensino superior, mostrando sua debilidade diante dos "centros duros" de poder do governo, particularmente em relação à área econômica. Devido ao histórico de fragilidade institucional do Ministério, o autor mostra-se bastante cético acerca do novo documento do MEC sobre o tema. Este é analisado detalhadamente, sendo mostradas suas várias incoerências conceituais, dentre as quais o autor destaca a de confundir "autonomia" com "contrato de desenvolvimento institucional". Segundo Trindade, o MEC, na impossibilidade de viabilizar uma verdadeira "autonomia" para todas as universidades federais — devido à sua fraqueza institucional, aliada à não prioridade dessa questão na agenda da União —, ardilosamente acena com uma fórmula inovadora que buscaria "salvar do dilúvio algumas das grandes universidades federais".

Naufrágio da universidade?

O artigo "A universidade pública no Brasil: identidade e projeto institucional em questão", escrito por Afrânio Mendes Catani em parceria com João Ferreira de Oliveira, discute os elementos condicionantes do processo de transição institucional e a formação de possíveis novas identidades. Para os autores, o processo de transformação por que passa a universidade pública brasileira — particularmente as instituições federais de ensino superior — seria decorrência da confluência de diversos fatores. Do ponto de vista institucional, a asfixia paulatina das universidades federais decorrente dos crescentes cortes de recursos da União vem levando à utilização de diversas estratégias de sobrevivência, dentre elas a busca de recursos alternativos junto ao setor privado. No que se refere à sua interação com a sociedade, o atual processo de rápida transformação tecnológica e de circulação do conhecimento exige da universidade, segundo os autores, uma "dispersividade e multidiversidade de tarefas e ações". Por último, a busca de maior legitimidade institucional tem induzido a maioria dessas instituições (particularmente as de menor porte) a procurar uma maior aproximação com o setor produtivo e com a comunidade local. A resultante desse processo é a paulatina diferenciação das universidades em virtude da diversidade de projetos institucionais em curso, mesmo sem a existência de um processo real de autonomia institucional. A partir da análise das políticas governamentais para as instituições federais de ensino superior, vislumbra-se um cenário futuro onde teríamos, de um lado, as grandes universidades, com maior apoio de fundos públicos, realizando pesquisas de ponta e responsáveis pelos cursos de pós-graduação stricto sensu mais prestigiados e, de outro, as instituições de médio e pequeno portes — altamente diversificadas e especializadas regionalmente —, com maior ênfase nos cursos de graduação e menor respaldo governamental.

O artigo "Crise no financiamento das instituições federais de ensino", de Nelson Cardoso Amaral, caracteriza-se pela riqueza e clareza de informações e por uma análise bastante didática. O autor lembra que, por determinação constitucional, cabe à União arcar com 20% do total de investimentos em educação, cabendo aos estados e municípios os 80% restantes. Assim sendo, não se sustenta a tese de que a falta de recursos para o primeiro e segundo graus seria devida aos gastos da União com o ensino público de nível superior. Os recursos do erário público são divididos em duas grande rubricas, uma para pagamento de pessoal, que nos últimos anos engloba cerca de 94% do total, e outra para os custos de manutenção e investimentos, que se restringe a aproximadamente 6%. Por outro lado, no período 1995-99, do total de impostos vinculados à educação, houve um decréscimo de quase 5% daqueles destinados às instituições federais de ensino superior. Nesse mesmo período, houve também uma queda no percentual do Produto Interno Bruto gasto com essas instituições, que passa de 0,79% para 0,61%. Apesar dos índices mencionados, outros indicadores quantitativos levantados pelo autor sugerem um aumento da eficiência global do sistema federal de ensino superior nos sete primeiros anos da década de 90, decorrente do crescimento expressivo do número de estudantes de graduação e de pós-graduação e de teses e dissertações defendidas. Esses dados, no meu entender, demandariam uma discussão mais acurada do "sucateamento" das instituições federais de ensino superior, possivelmente mediante a incorporação de outras variáveis intervenientes envolvidas no processo.

No artigo "A tríplice crise da universidade brasileira", Dilvo Ristoff afirma que a universidade brasileira enfrenta hoje três crises: a financeira, a do elitismo e a do modelo. No que diz respeito à questão financeira, o autor busca mostrar a miopia do Estado brasileiro em procurar resolver questões financeiras de curto prazo por meio da diminuição do investimento público no ensino superior. Com base em exemplos interessantes de estudos realizados por economistas em diversos estados norte-americanos, Ristoff mostra que o investimento no ensino superior apresenta, a médio e longo prazos, um retorno em termos tributários muito acima das taxas médias de mercado.

A segunda crise diz respeito à nossa tradição elitista e à resistência implícita ou explícita à massificação do ensino superior. O Brasil possui apenas 10% da população na faixa etária do ensino superior cursando o terceiro grau, índice muito abaixo do encontrado nos países desenvolvidos e mesmo em nossos vizinhos latino-americanos. A terceira crise seria do nosso modelo, defasado diante da atual conjuntura nacional e internacional. Segundo o autor, seria necessário um novo modelo capaz de, concomitantemente, enfrentar três demandas relevantes e legítimas: (1) garantir os interesses pelo avanço desinteressado da ciência (demanda da comunidade científica); (2) responder aos interesses estratégicos e conjunturais do desenvolvimento econômico-social (demanda dos diferentes níveis de governo); (3) permitir a uma grande massa de excluídos o acesso ao ensino superior, visto como uma das alternativas de mobilidade social (demanda da população). Ristoff reconhece que essas expectativas não são necessariamente excludentes, mas adverte que deve haver cuidado para que, ao se tentar responder a uma delas, não se inviabilize as outras.

Finalmente, o autor explicita um novo formato institucional que se vem firmando como dominante na maioria dos países desenvolvidos. Trata-se de hierarquizar o ensino em três níveis: o primeiro seria formado pelas grandes universidades voltadas "para o avanço desinteressado da pesquisa" e para a maioria dos cursos de pós-graduação; o segundo, pelas universidades — públicas ou privadas — que priorizariam os cursos de graduação, objetivando responder às demandas do mercado e do Estado, realizando também algumas pesquisas aplicadas e cursos de pós-graduação profissionalizantes; o terceiro nível seria composto por numerosas e diversificadas instituições pós-secundárias (públicas e privadas), do tipo college norte-americano, especializadas em cursos de caráter profissionalizante.

No último artigo dessa seção, "A universidade em ruínas", escolhido também como título da coletânea, Marilena Chauí realiza uma dura crítica aos pressupostos do modelo de universidade defendido pelas correntes neoliberais e que estaria também presente na proposta de reforma do Estado no Brasil. A proposta neoliberal para o ensino superior, segundo ela, é transformar a universidade pública em uma "organização social", regida basicamente por meio de contratos de gestão com o Estado. Após realizar uma síntese do surgimento e crise do welfare state no mundo ocidental e do crescimento e hegemonia do pensamento neoliberal, a autora mostra que a universidade, ao se balizar pelas normas do mercado, perde sua marca registrada, ou seja, a autonomia. Chauí lembra que a universidade moderna legitimou-se a partir da conquista da autonomia frente ao Estado e à religião, baseada "na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão". Nesse sentido, a metamorfose operada pela concepção neoliberal é a de tentar transformar a universidade — tradicionalmente uma "instituição social" — em uma "organização", ou seja, em uma entidade particular e isolada onde a eficiência é medida em relação ao seu desempenho perante suas concorrentes. A uma organização não cabe refletir sobre sua própria existência, seu papel dentro da sociedade, sobre sua produção e para quem se produz, questões centrais da instituição universitária. Assim, enquanto a instituição social é voltada para a universalidade, ou seja, tem a sociedade, seus valores e paradigmas como referência, a organização tem a si mesma como referência, numa lógica de mercado que valoriza o quanto se produz, em quanto tempo e qual o custo do que é produzido. Ao voltar-se para si mesma, esse tipo de "universidade operacional" perderia legitimidade pública, seu papel social, e acarretaria deformações de suas atividades fins. A formação acadêmica correria o risco de se transformar em transmissão de conhecimentos e adestramento, e a pesquisa, de ser reduzida a "uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado", perdendo-se o significado do seu objetivo mais amplo de reflexão crítica, de questionamento do status quo, de descoberta, de tentar compreender a realidade a partir da elaboração de "sínteses abertas que suscitem a interrogação" e novas buscas.

SÉRGIO DE AZEVEDO

é professor da PUC-MG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2001
  • Data do Fascículo
    Out 2000
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