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Sobre associativismo, desigualdades e democracia

About associativism, inequality, and democracy

À propos de l'associationnisme, des inégalités et de la démocratie

Resumos

Este artigo trata das relações entre associativismo e democracia na presença de desigualdades sociais significativas, por meio de um percurso na literatura especializada. Observando que essas relações são turbulentas por razões ligadas à resiliência das desigualdades sociais, assim como a limites peculiares ao ativismo associativo, o autor sugere que o mais seguro para a redução de desigualdades políticas e ampliação da legitimidade democrática parece ser o caminho direto da redução de desigualdades sociais via políticas redistributivas.

Desigualdades sociais; Igualdade política; Apatia política; Associativismo; Democracia


This paper approaches the relationship between associativism and democracy in the presence of significant social inequality. Relying on specialized literature, it suggests that such relationship is boisterous because of social inequalities resilience, as well as limitations peculiar to associational practices. A safer way to cope with political inequality, thus enhancing democratic legitimacy, seems to be the straight line that goes from the reduction of social inequality to a lesser political inequality.

Social inequality; Political equality; Political apathy; Associativism; Democracy


Cet article aborde les relations entre l'associationnisme et la démocratie dans la présence des inégalités sociales significatives, par un précurseur dans la littérature spécialisée En observant que ces relations sont turbulentes pour des raisons liées à la résistance des inégalités sociales ainsi qu'à des limites propres à l'activisme associatif, l'auteur suggère que le plus sûr pour la réduction des inégalités politiques et l'élargissement de la légitimité démocratique semble être le chemin direct de la réduction des inégalités sociales par des politiques redistributives.

Inégalités sociales; Égalité politique; Apathie politique; Associationnisme; Démocratie


Sobre associativismo, desigualdades e democracia* * Devo a José Eisenberg a idéia de escrever este artigo, que apresentei em 2002, no GT 19: "República e cidadania: teorias e debates contemporâneos", da Anpocs, coordenado por ele e por Cícero Araújo. Agradeço, ainda, os comentários, à época, de Gildo Marçal Brandão, Rubem Barboza Filho e dos participantes da sessão, de Elisa Reis e do Comitê Acadêmico desta revista.

About associativism, inequality, and democracy

À propos de l'associationnisme, des inégalités et de la démocratie

Celia Lessa Kerstenetzky

RESUMO

Este artigo trata das relações entre associativismo e democracia na presença de desigualdades sociais significativas, por meio de um percurso na literatura especializada. Observando que essas relações são turbulentas por razões ligadas à resiliência das desigualdades sociais, assim como a limites peculiares ao ativismo associativo, o autor sugere que o mais seguro para a redução de desigualdades políticas ­ e ampliação da legitimidade democrática ­ parece ser o caminho direto da redução de desigualdades sociais via políticas redistributivas.

Palavras-chave: Desigualdades sociais; Igualdade política; Apatia política; Associativismo; Democracia.

ABSTRACT

This paper approaches the relationship between associativism and democracy in the presence of significant social inequality. Relying on specialized literature, it suggests that such relationship is boisterous because of social inequalities resilience, as well as limitations peculiar to associational practices. A safer way to cope with political inequality, thus enhancing democratic legitimacy, seems to be the straight line that goes from the reduction of social inequality to a lesser political inequality.

Key words: Social inequality; Political equality; Political apathy; Associativism; Democracy

RÉSUMÉ

Cet article aborde les relations entre l'associationnisme et la démocratie dans la présence des inégalités sociales significatives, par un précurseur dans la littérature spécialisée En observant que ces relations sont turbulentes pour des raisons liées à la résistance des inégalités sociales ainsi qu'à des limites propres à l'activisme associatif, l'auteur suggère que le plus sûr pour la réduction des inégalités politiques ­ et l'élargissement de la légitimité démocratique ­ semble être le chemin direct de la réduction des inégalités sociales par des politiques redistributives.

Mots-clés: Inégalités sociales, Égalité politique; Apathie politique; Associationnisme; Démocratie.

Introdução

Prima facie, uma sociedade rica em vida associativa ­ por contraste com um agregado indiferenciado de indivíduos que trocam bens e serviços ­ evoca a imagem de uma comunidade que se autogoverna, que faz democracia "com as próprias mãos". Mas, se a idéia de democracia envolve a condição, moralmente mais exigente, de igualdade política, será necessariamente virtuosa a relação entre associativismo e democracia? De que maneira, por exemplo, a presença de importantes e persistentes desigualdades na trama social interage com o ativismo associativo e afeta a condição de igualdade política?

O exame da literatura revela um conjunto de problemas, emergentes, sobretudo das relações antigas e íntimas entre apatia política e desigualdades socioeconômicas. Esses problemas recomendam cautela com relação à postulação de um vínculo automático entre densidade associativa e democracia. Ou, mais propriamente, com relação a uma imputada "benignidade política" da vida associativa, reputação esta adquirida por conta de sua alegada qualidade de redutora de desigualdades políticas. A bem da verdade, esse ceticismo nutre-se, em parte, da complicação introduzida pelas desigualdades socioeconômicas no cenário, de outro modo quase plácido, das relações entre associativismo e igualdade política; em parte, de limites próprios ao associativismo.

Tenho em mente dois problemas específicos. Por um lado, quando as desigualdades socioeconômicas são "duráveis" e elevadas é bem plausível que se repliquem no interior da vida associativa, bem como entre grupos organizados e não organizados, enfraquecendo a habilidade de inclusão política da participação associativa. Além disso, não parece claro que a intensificação da vida associativa conduza a uma redução das desigualdades sobre as quais se plasma. Esse é o tipo de interação entre associativismo, desigualdades e democracia que põe em dúvida sua relevância para incrementar a igualdade política.

Por outro lado, há evidências preocupantes de que a participação associativa seria compatível com a produção ativa de apatia política, por meio, por exemplo, de uma etiqueta cívica apolítica, coletivamente elaborada. Aqui a sugestão é que "participação", ainda que seja uma forma esclarecida de cuidado para com o interesse do grupo, não é necessariamente uma virtude política, "republicana". Em outras palavras, parece duvidoso que a participação associativa seja capaz de neutralizar os efeitos negativos das desigualdades socioeconômicas sobre a igualdade política, bem como seja em si mesma uma incubadeira de discursos politicamente abrangentes.

O problema da participação política, com seu desiderato implícito de igualdade nessa dimensão, pode bem requerer manejo político no sentido tradicional: se há energia dispersa que pode ser drenada para superar a inapetência associativa, pode também ser canalizada na direção de uma redefinição de nosso acordo distributivo, na medida em que este afeta inequivocamente a desigualdade política. Dito de outra forma, se parece haver benefícios próprios de uma vida associativa particularmente rica, o potencial desta em reduzir desigualdades socioeconômicas e, por extensão, desigualdades políticas, não parece claro; um ataque direto à distribuição pode ser mais produtivo. E inversamente, se a redução de desigualdades sociais contribui para melhorar o equilíbrio associativo, este mais se aproximaria da imagem de uma comunidade que legitimamente se autogoverna, possibilitando, inclusive, a exploração de interações virtuosas entre o sistema político e modalidades mais diretas de participação.

Este artigo está organizado como uma coleção de argumentos que: 1) estabelecem, a partir de uma breve revisão da literatura, a apatia política como uma das conseqüências plausíveis das desigualdades sociais, na primeira seção; 2) problematizam, com auxílio de literatura específica, aspectos das relações entre apatia política e vida associativa, em especial o alegado potencial da vida associativa em neutralizar os efeitos da desigualdade social sobre a participação política, na segunda seção; e, 3) sugerem, na seção final, sem demonstração adicional, a hipótese de que um ataque direto à distribuição pode tanto mitigar a desigualdade política e estimular a participação, como infundir vida nova ao associativismo (via, por exemplo, a redução dos incentivos à incivilidade) e torná-lo mais equilibrado.

Uma última palavra sobre o que quero (e o que não quero) dizer. Exploro, aqui, alguns pontos de tensão entre participação associativa e participação política (e igualdade política), que compõem a natureza problemática da ligação entre essas duas militâncias, e entre associativismo e democracia. Não quero com isso negar os méritos próprios do associativismo, especialmente em termos de sociabilidade, dos quais, em última instância, se beneficia a democracia, muito embora questione aspectos de legitimidade ligados à idéia não qualificada de autogoverno. O objetivo maior é ensejar reflexão e pesquisa futura.

Desigualdade e apatia política

Desigualdades socioeconômicas, sobretudo quando intensas, estão associadas a várias conseqüências indesejadas: crescimento econômico insuficiente, ineficiência, pobreza, violência e democracia de baixa qualidade, em termos, sobretudo, da efetividade de direitos civis, mas também da efetiva igualdade de direitos políticos (Kerstenetzky, 2002). A própria longevidade das democracias parece depender do nível das desigualdades. Em busca de fatores responsáveis pela duração das democracias, Przeworski et al. (1997) chegaram à conclusão de que as democracias com nível de desigualdade declinante ao longo do tempo teriam uma maior propensão a sobreviver.

[E]stas descobertas [observam os autores] contradizem qualquer noção de que pressões distributivas ameaçam a sobrevivência da democracia: as pessoas esperam que a democracia reduza a desigualdade de renda, e as democracias estão mais propensas a sobreviver quando o fazem (p. 120).

À lista de malefícios da desigualdade pode-se acrescentar, ainda, a apatia política dos grupos sociais menos favorecidos. O declínio, por exemplo, nos Estados Unidos, da mais convencional das formas de participação política ­ o voto ­, a partir dos anos de 1970, se não pode ser associado ao crescimento da desigualdade (que ocorre apenas a partir dos anos de 1980), é mais pronunciado entre os mais pobres e menos educados, e os afeta cada vez mais (Jencks, 2002). A influência política desse segmento tende a ser sempre menor, entre outras razões, pelo peso crescente das contribuições pecuniárias nas campanhas políticas (Idem, ibidem).

De fato, particularmente em décadas recentes, a associação entre desigualdades e não-participação política, sobretudo dos segmentos sociais em desvantagem, torna-se corriqueira na literatura sobre participação política e na teoria democrática.

Uma ligeira revisão da literatura sobre apatia/participação, entre os anos de 1960 e os dias de hoje, revela curiosas inflexões no tratamento do tema. Nos anos de 1960 e início da década de 1970, na análise empírica da democracia, que de resto coincidia com a teoria democrática, domina a cena a percepção da apatia política, então revelada por uma série de estudos empíricos, como, na pior das hipóteses, uma benigna irracionalidade ou miopia. Amplos setores da população pelos mais variados motivos, todos de alguma forma relacionados com a saciedade da demanda por democracia, disfranchise themselves (Dahl, 1956) contra um pano de fundo de grandes oportunidades de participação política. Isso, entretanto, se dá para benefício da democracia, que resultaria paralisada se todos os cidadãos fossem acometidos de compulsão participatória. A tese do imobilismo político ou da apatia benigna é defendida, entre outros próceres da teoria democrática pluralista, por Almond e Verba (1963), Lipset (1963) e pelo próprio Dahl (1956).

Revisão posterior, sobretudo nos anos de 1980 e 1990, conclui, a partir de uma reflexão agora explicitamente normativa, que a apatia política tem sua razão de ser: ela seria uma reação, nada idiossincrática, a condições objetivas vigentes em sociedades contemporâneas que influenciariam o estoque (limitado) e a distribuição (desigual) de oportunidades de participação.

Nesse caso, caberia a indagação, já devidamente impregnada da resposta: seria a apatia uma benção ou uma ameaça à democracia? Se a democracia é, idealmente, um processo de decisão coletiva que respeita a autonomia dos indivíduos, seria necessário examinar a hipótese de os processos decisórios reais estarem alienando cidadãos de fato interessados em assuntos públicos e de governo, ao subtrair-lhes o acesso a oportunidades efetivas de participação. Seria conveniente, portanto, captar a extensão dessa demanda reprimida por democracia. Com efeito, trabalhos empíricos nos anos de 1980 (Bennett, 1986, por exemplo) atestam que enquanto o comparecimento para votar ­ indicador convencional de participação política ­ cai, o mesmo não acontece com a "atenção a assuntos públicos", medida por uma série de indicadores engenhosos, reforçando a tese de que haveria alienação, não apatia. Trata-se, portanto, de "exclusão" política, não desinteresse.

Em The two faces of political apathy (1995), De Luca resume a nova disposição na teorização sobre a apatia política, em termos da tendência em diferenciar a apatia como responsabilidade individual, resultante da livre escolha de cidadãos bem informados, daquela de responsabilidade não individual (elites, práticas institucionais, estruturas sociais etc.). Essa nova configuração corresponderia à distinção sugerida acima entre apatia (responsabilidade individual) e alienação ("responsabilidade" de estruturas e práticas, e relações de poder). E o próprio Dahl, que no Preface (1956) enfatizara a apatia como uma escolha, possivelmente míope mas não disfuncional, de responsabilidade de indivíduos que disfranchise themselves, mais tarde, como em After the revolution (1990), aponta o dedo acusatório para as assim chamadas causas remediáveis da não-participação, todas passíveis de eliminação em uma highly egalitarian society, onde "differences [in participation] would result more from the exercise of personal choice over an array of opportunities and less from objective differences in the opportunities available" (apud De Luca, 1995, p. 93, grifo meu).

Já no A preface to economic democracy (1985), em fase neo-pluralista, Dahl advertia para o risco de contração das liberdades democráticas, indiretamente decorrente de acessos muito diferenciados a recursos econômicos que, por sua vez, afetariam o acesso a recursos diretamente necessários à efetivação de liberdades políticas iguais::

Ownership and control contribute to the creation of great differences among citizens in wealth, income, status, skills, information, control over information and propaganda, access to political leaders, and, on the average, predictable life chances, not only for mature adults but also for the unborn, infants, and children. After all due qualifications have been made, differences like these help in turn to generate significant inequalities among citizens in their capacities and opportunities for participating as political equals in governing the state. (Dahl, 1985, p. 55, apud Held, 1996, p. 214).

Outro mecanismo que conecta desigualdades econômicas e desigualdades de participação política é indiretamente sugerido por Lindblom (1977). Na medida em que em uma economia de mercado, funções públicas como geração de empregos, decisões de produção e de investimento, fixação de preços, crescimento e padrões de vida são "exercidas" privadamente por "homens de negócios", ocorreria uma contaminação natural da agenda política, estando as políticas públicas significativamente limitadas pelos interesses das comunidades de negócios (empresas privadas e poder corporativo). As implicações em termos da igualdade política são evidentes, conforme observa Held (1996): "the business corporation wields disproportionate influence over the state and, therefore, over the nature of democratic outcomes" (Held, 1996, p. 216). A percepção dessa desproporção, é plausível inferir, poderia estar causalmente relacionada ao declínio da participação de segmentos sociais em desvantagem.

Seria preciso notar, ainda, sugere Lukes (1974), a influência exercida pela desigualdade sobre o processo de formação de crenças e preferências, substrato de escolhas ditas de responsabilidade individual. Na descrição de sua terceira dimensão do poder (a primeira, a coerção; a segunda, o poder de agenda), Lukes indaga:

[...] it is not the supreme and most insidious exercise of power to prevent people, to whatever degree, from having grievances by shaping their perceptions, cognitions, and preferences in such a way that they accept their role in the existing order of things, either because they can see or imagine no alternative to it, or because they see it as natural and unchangeable [...]? (1974, p. 24).

Essa forma difusa de poder, gerador de dissonância cognitiva nos segmentos sociais mais vulneráveis, seria parasitária de estruturas sociais muito desiguais. A alquimia do conformismo em desejo, e simulacro de autonomia, é o próximo passo: os mecanismos endógenos pelos quais os indivíduos ajustariam seus desejos e identidades à sua impotência, e se ensinariam a love one's fate, são desnudados por Bourdieu (1990). E aqui, de novo, estruturas sociais, com desigualdades ossificadas, teriam parte substancial da responsabilidade pela peculiar vulnerabilidade dos segmentos menos favorecidos ao exercício dessa terceira dimensão de poder.

Em suma, a nova agenda de pesquisa viria impor ao esforço de teorização a necessidade de abarcar a alienação política ­ ou apatia que não seja de responsabilidade individual ­, as duas faces da apatia e a terceira dimensão lukesiana e bourdieuana do poder, no que elas iluminam a gestação de crenças e preferências. Trata-se de purgar o tema de resíduos psicologizantes e reinstalá-lo no território da sociologia e da ciência política. Há razões estruturais, políticas e sociais a serem escrutinadas (desigualdades, instituições viesadas); há estruturas de cognição e de formação de preferências, cujos determinantes estão em território sociológica e politicamente mapeável.

Na realidade, em vista dessa reconstrução, o veredito de apatia como desinteresse político puro e simples seria no mínimo precipitado, e certamente opaco. A apatia como escolha "não racional" só poderia ser adequadamente apreciada depois que se procedesse a um desconto das condições objetivas e cognitivas que desconectam os indivíduos de sua cidadania. E uma seqüência de revelações descortinar-se-ia, pois uma vez descontadas aquelas condições, a apatia se revelaria, então, menor do que aparece, por exemplo, nas evidências de queda do comparecimento eleitoral nos anos de 1980, nos Estados Unidos: não votando, os indivíduos, em vez de se revelarem não racionais, estariam de fato enviando um feedback negativo ao sistema político.

Na mesma direção de "despatologização" da não-participação política, nos anos de 1990, literatura pós-modernista sugere, ainda mais radicalmente, que a apatia política é na realidade um erro de percepção dos discursos sobre participação: ela seria efetivamente reveladora de uma escolha libertária, não míope, nada apática ainda que apolítica, que deveria ser reconhecida como um direito, uma vez que "to leave people with their apathy is to recognize their liberty or their preoccupation with other matters" (Fox e Miller, 1996, apud Patterson, 2000, p. 227).

Finalmente, ainda na seqüência de idéias que afirmam ser "a apatia menor do que parece", textos como o de Patterson, sugerem que a porção política da expressividade humana é sub-apreciada caso se tome como participação política apenas o referencial de virtude incorporado nas personagens da interação comunicativa ideal de Habermas. Haveria todo um conjunto de comportamentos e práticas não convencionais, que mesmo não seguindo os ditames do ideal virtuoso de participação seriam ainda políticos; "não-virtude não é apatia", afirma Patterson, mas possivelmente o resultado da inexistência de condições como a igualdade social para a igualdade política efetiva. Essa circunstância credenciaria a ironia, a insinceridade e o humor como manifestações ainda políticas, mesmo que mal comportadas, dos que não podem ou conseguem se expressar pelos canais convencionais de participação. A não-participação no sentido convencional (como o não exercício do voto e da deliberação "bem comportada") seria, positivamente, uma forma de dissenso: a desigualdade social inibiria a participação cidadã convencional ­ na medida, por exemplo, em que o dissenso desapareceria da visão pública por meio da supressão de agendas e perspectivas ­, mas o dissenso reapareceria travestido em formas menos abonadoras de expressão, numa espécie de "retorno do recalcado".

E, enquanto uma interpretação "convencional" sugere que, uma vez que o discurso político bem comportado seria negado aos participantes, estes se tornariam dependentes, ignorantes, impotentes e mistificados, em uma outra chave de leitura, privilegiada por Patterson, o dissenso jamais seria erradicado, e se precipitaria em um conjunto heterogêneo de arts of resistance. Só então a real dimensão da apatia poderia ser vislumbrada, isto é, uma vez levados na devida conta o discurso leigo, impolido, indireto ou meramente expressivo, e reconhecida, portanto, a maior variedade de sujeitos discursivos, estilos e intenções of resistance. Segundo Patterson, "[d]iscourse will not require sincerity and appropriateness in advance of any serious effort toward social equality" (2000, p. 246).

Em síntese, a despeito da diversidade de apropriações normativas do ideal de participação aqui descritas, e das simpatias ou antipatias que possam inspirar, as desigualdades sociais se apresentam como essenciais na geração de desigualdades na participação política (convencional). Corrigidas as condições objetivas ­ sobretudo as desigualdades sociais que alimentam a desigualdade política ­ a apatia (como não-participação convencional) tenderia a desaparecer, ou a se confinar à dimensão legítima da escolha (ou, finalmente, a se precipitar em resíduo indomável que de todo modo as teorias social e política não tem como nem por que lidar).

Apatia política e vida associativa

A leitura de Tocqueville, e de tocquevillianos contemporâneos como Robert Putnam, sugere que a participação política é tributária do ativismo associativo. Em momento de grande entusiasmo pela experiência norte-americana, Tocqueville proclamara, em Democracy in America, o sucesso da democracia norte-americana o melhor fruto de sua exuberante vida associativa, responsável quer pelo cimento social quer pela prática de uma peculiar concepção de autogoverno.

Quase dois séculos mais tarde, em solitárias partidas de boliche precedidas por refeições igualmente solitárias, Putnam (2000) concluiria que a democracia norte-americana elanguesce precisamente em virtude do refluxo generalizado das associações. Com a retração da atividade cívica, encolheria também a participação política, e com ela, o componente genuinamente democrático da democracia norte-americana. Se é a qualidade da democracia que se quer restaurar, tratar-se-ia de estimular a vida associativa, seja mediante a esfera pública informal de modo a afetar a cultura pública, seja diretamente, por um refinado desenho institucional que fortalecesse as associações de modo a formalizar sua presença na esfera pública.

Pode-se inferir que o fortalecimento desse espaço societário de deliberação e decisão contribuiria, entre outras vantagens, para compensar ou reduzir certas deficiências da sociedade política, que afetariam negativamente a igualdade política, incluindo o privatismo, a relativa opacidade dos processos decisórios e, finalmente, o próprio desequilíbrio societário (Avritzer, 1997).

A expectativa, pois, é que o associativismo possa reduzir desigualdades políticas, quer diretamente via redução do privatismo e da opacidade dos processos decisórios, característicos da "sociedade política", quer indiretamente via compressão das desigualdades sociais. Chama a atenção aqui, em primeiro lugar, a não problematizada conflução de participação associativa e participação política, que seria atualmente reforçada por características do "novo" associativismo ­ tais como a pluralização temática e a heterogeneidade de atores. Sob o ângulo da cultura política estimulada pela participação associativa, algumas evidências preocupantes emergem, entretanto, da literatura.

Estudos recentes, como a cuidadosa etnografia de Eliasoph (1998), por exemplo, sugerem que a atividade novo-associativa pode ser, em um sentido importante, "despolitizante".

Tendo freqüentado reuniões e participado de atividades de um conjunto variado de associações, com filiação e temáticas bastante heterogêneas (grupos de voluntários, grupos de recreação e grupos de ativistas), durante dois anos e meio, Eliasoph observou que o discurso propriamente político "evaporou" da vida das associações voluntárias, num processo que reúne intensa atividade associativa, para a provisão de um bem coletivo específico, e produção ativa de apatia política.

Para além das razões estruturais ou subjetivas da apatia política, normalmente enfatizadas pela literatura, Eliasoph identifica o espaço das associações voluntárias que estudou como também relevante na produção ativa ­ antes que na prevenção ­ de apatia política, negociada em troca da coesão do grupo. Essa coesão seria obtida às custas da observância estrita de uma etiqueta cívica, isto é, uma linguagem pública compartilhada pelo grupo, que exerceria a função de censura intersubjetiva, por meio da eliminação de temários e representações mais gerais, e mais polêmicos "políticos" nesse sentido.

Essa evaporação do político refletir-se-ia na recusa sistemática dos grupos em articular o local com o abrangente, ou ainda na extensão do discurso do "auto-interesse" às questões de interesse público. O localismo e o momism ­ expresso, por exemplo, na alegada preocupação exclusiva com o "futuro de nossas crianças" ­ desses grupos rejeitam conversas, potencialmente disruptivas, sobre instituições políticas e políticas mais abrangentes.

Nas palavras de Eliasoph, em que ela esclarece o tipo de conversação política que tem em mente,

[...] the farther the voice from a whisper and the larger the audience, the less eager were speakers to ponder issues of justice and the common good, to criticize institutions, to invite debate; to speak in a publicly minded way. Common sense considered the public sphere to be a place for dramatically airing self- interest [momism] into short-sighted public policies; this folk definition of the public sphere kept most interesting debate out of public circulation (p. 255, grifo meu).

A conversação política ­ nessa acepção, por assim dizer, vertical ­, cuidadosamente evitada por meio de uma refinada etiqueta cívica, retraiu para a esfera privada, enquanto a esfera pública passou a acomodar apenas os temas locais e o "momismo", aparentemente sancionados como mais autênticos.

Analisando criticamente os self-confessional shows freqüentes na TV norte-americana, Eliasoph encontra ressonâncias nas crenças e práticas dos grupos que acompanhou:

They are (the self-confessional shows) like Cathy of the Buffalo Club who described to me, in great detail, her ex-husband's drug problem and his failed efforts of quitting, and her unhappy childhood, and more, but said that disclosing how she voted for president or disclosing her party affiliation was too private (1998, p. 260).

Uma redefinição da clivagem entre intimidade e espaço público, ativamente construída e reforçada no interior desses grupos, parece surgir dessa rejeição do discurso político no espaço público e sua substituição pelo aparentemente menos disruptivo discurso momista ou localista. Ao fim e ao cabo, a "despolitização" do discurso seria o preço a ser pago pela coesão associativa.

Outro conjunto de iniciativas associativas, reportadas em Beall (2000), levanta dúvidas semelhantes quanto à relação entre participação cívica e política. As cozinhas comunais de Lima, as cooperativas da água em Cochabamba, os pré-vestibulares para negros e carentes no Rio de Janeiro ou em Salvador afirmam-se como estratégias associativas de sobrevivência que proliferam como e com as crises fiscais das duas últimas décadas em substituição ou complementação à provisão pública, sem necessariamente exercer impactos mais significativos na arena política nacional, onde a distribuição de recursos públicos é decidida, e reforçando a clivagem local/abrangente.

A essa altura, ainda não é clara a resultante desse movimento de inclusive cities, e a leitura ambígua pode acomodar tanto a percepção de auto-suficiência, como a de dependência desses grupos organizados em relação a instituições e políticas mais abrangentes, às quais se acomodariam de modo acrítico e complementar. Ou seja, parece importante apreciar adequadamente o grau de "conformismo" associado à atividade novo-associativista, sobretudo em contexto de desigualdades sociais significativas. Embora a associação pareça aumentar a capacidade de autoproteção de grupos organizados, e nesse sentido acomodar uma certa visão de política, não é claro em que medida isso representaria um avanço qualitativo para a democracia. Se a ambição aqui é resgatar o princípio da igualdade política, parece importante levar em consideração outros sentidos relevantes de política que estariam sendo descurados, tais como participação na formulação da agenda mais abrangente, na decisão quanto aos modos de enfrentamento das crises fiscais, na distribuição de seus custos e oportunidades. Justamente, a fragilidade de algumas soluções locais encontradas remete à ausência de participação política no nível das macroquestões. Nesse particular, é preciso estar atento para os conhecidos problemas de dissonância cognitiva apontados por Lukes e Bourdieu (cf. seção precedente).

Quanto à capacidade de uma vida associativa intensa de neutralizar o privatismo e aumentar a visibilidade da esfera pública, parece parasitar ligações controversas, por exemplo, entre associativismo e universalismo, ou transparência e inteligibilidade.

O potencial universalizante da competição associativa não pode ser tomado como garantido. Ainda que, por exemplo, a lógica de interesses privados seja superada, na competição associativa, por outra de interesses mais abrangentes (Avritzer, 1997), há pelo menos dois problemas, em certo sentido simétricos, a dificultar o vínculo entre associação e universalismo, nesse caso. São eles o localismo (como em Eliasoph), que não exclui atividades "altruístas", mas afasta o diálogo político que relacionaria o local com o abrangente, e o sectarismo ou facciosismo. Este último estaria representado pela disputa, no caso em que tenha havido superação do localismo, entre distintas visões abrangentes, "comunitárias", que, somada à distribuição desigual de recursos associativos, poderia engendrar uma forma de privatismo sectário ­ de apropriação por parte dos grupos organizados de uma parcela dos recursos públicos para implementação de seu repertório favorito de políticas públicas, não controlada por critérios genuinamente públicos. Um exemplo natural aqui é o das políticas de segregação racial norte-americanas, e, mais próximo de nós, a legislação do trabalho na transição do trabalho escravo para o livre, no Brasil.

Do ponto de vista do ganho em transparência e inteligibilidade, Schmitter (1995, apud Whitehead, 1999) prevê que a complexidade pode ser um problema também para o novo-associativismo, na medida em que a miríade de associações temáticas pode exercer pressões cuja resultante é tudo menos previsível, transparente ou inteligível, a despeito de boas intenções, resultando, por exemplo, em políticas com as quais ninguém se identifica ou deseja.

Finalmente, a capacidade do associativismo de reduzir desigualdades sociais, e por esse meio, operar seus efeitos benignos sobre a desigualdade política parece também pouco clara. É frágil postular, por exemplo, que desigualdades sociais não se repliquem em desigualdades associativas ­ entre associações com acessos diferenciados a recursos, entre grupos organizados e não-organizados. Aqui, é de se indagar em que medida o acúmulo de "capital social" seria significativamente independente da distribuição de outros recursos, de modo, por exemplo, a tornar mais competitiva (menos hierarquizada) a distribuição de recursos que afetam a igualdade política. De outra parte, o sucesso da ação coletiva de grupos menos favorecidos, se não necessariamente melhora sua posição relativa aos mais favorecidos na distribuição de recursos políticos, engendra novas desigualdades que mais deprimem as expectativas dos não-organizados quanto à sua localização nessa mesma distribuição. Exemplo importante aqui é o das redes de imigrantes, e seus efeitos sobre o mercado de trabalho local nos Estados Unidos, estudadas por Charles Tilly (1998). O desequilíbrio societário muito provavelmente contagia a vida associativa.

Em contrapartida, a abordagem de Whitehead (1999) sugere um critério de avaliação da vida associativa ("sociedade civil") que diverge da sugestão de que haveria uma necessária congruência entre participação associativa e política:

[...] qualquer que tenha sido o caminho histórico seguido, os padrões resultantes de vida associativa e comunicação social serão altamente estruturados, com setores tradicionalmente mais favorecidos e centrais e outros marginais ou excluídos. Dependendo da localização de cada pessoa nessa estrutura de privilégios e oportunidades, e do grau de abertura e flexibilidade do sistema, é possível considerar a sociedade civil resultante tanto como a expressão mais autêntica e a garantia durável de uma democracia política, quanto como a mais flagrante negação de sua promessa universalista (p. 21).

Observa ele que, enquanto a "relevância moral" da sociedade civil é assim indeterminada ­ em termos, pode-se acrescentar, de sua capacidade de produzir comunidades políticas menos desiguais, mais transparentes e universalizantes ­, sua importância parece mais clara no embate entre a sociedade civil e o que chama de "interstícios incivis", que se situariam no espaço intermediário entre a sociedade civil e a comunidade política mais abrangente. A presença desses interstícios seria característica (ainda que não exclusividade) de democracias recentes, onde, por um lado, direitos civis e políticos são universalizados mas, por outro, haveria ainda um número considerável de indivíduos e grupos à margem das normas informais da sociedade civil.

Seguindo a conceituação de Schmitter, a sociedade civil seria, segundo Whitehead

[...] um conjunto ou sistema de grupos intermediários auto-organizados que (a) são relativamente independentes tanto das autoridades públicas quanto das unidades privadas de produção e reprodução, isso é, firmas e famílias; (b) são capazes de deliberar sobre e realizar ações coletivas na defesa/promoção de seus interesses ou paixões; (c) não tentam substituir nem os agentes estatais nem os (re)produtores privados ou aceitar responsabilidades de governar a comunidade política como um todo; (d) não aceitam agir sob regras preestabelecidas de natureza "civil" ou legal (p. 19).

Basicamente, a virtude da sociedade civil, assim definida, seria precisamente sua "civilidade" (tolerância interpessoal) ­ que não se confunde com "legalidade" ­ em contraposição à incivilidade, seja majoritária (tipo poder incivil exercido por grandes grupos econômicos que, por hipótese, controlam a mídia) ou de grupos marginais (tipo "máfia" ou crime organizado). Esses grupos não respeitariam princípios como autonomia dual (em relação ao Estado e à esfera privada de produção), não-usurpação (em relação à esfera pública legítima), deliberação (que precede a ação coletiva) e tolerância (respeito à autonomia dos indivíduos).

Do ponto de vista de nossa discussão, que privilegia as relações entre desigualdades sociais e políticas, uma sociedade civil densa, formada por associações que respeitam aqueles princípios, funcionaria como um amortecedor das pressões exercidas por grupos incivis que visam a "cooptação ou o controle político de amplos setores da população", justamente os estratos socialmente mais vulneráveis, aumentando a efetividade do sistema legal. De todo modo, se é plausível que uma sociedade civil particularmente ativa reduza os incentivos à incivilidade, uma vez que protege indivíduos e grupos da cooptação e do controle, seu impacto sobre o equilíbrio na participação política, não obstante, permanece indeterminado. Ela poderia, como indicado anteriormente, acomodar uma certa "criatividade" conformista, ou, talvez pior, a política de facções.

Apatia e redistribuição

Se o que nos ocupa aqui (e preocupa) é a desigualdade política, uma das expressões da qual é a relativamente baixa participação política dos menos favorecidos, e se não há como garantir que um estímulo ao associativismo se traduza em maior participação e menor desigualdade políticas, quer diretamente quer por meio de seu impacto sobre as desigualdades socioeconômicas, restaria examinar a eficácia de um ataque direto à distribuição em termos de mitigar aquela desigualdade.

Essa, pode-se dizer, é essencialmente a aposta de John Rawls (1971, 2001). A desigualdade política resultaria da desigualdade econômica, e a contaminação poderia ser minimizada seja via isolamento do sistema político por intermédio de uma reforma pontual (por exemplo, legislação específica regulando o financiamento de campanhas políticas, regulamentação da mídia), seja via instituições e políticas redistributivas incidindo principalmente sobre a concentração de riqueza e, em particular, sobre a perpetuação dessa concentração.

Dessa forma, a apatia política remediável, no sentido da seqüência de idéias desenvolvida na segunda seção, seria relativamente contornada, e teríamos, finalmente, o resíduo de irracionalidade humana (na versão escolha racional) ou de escolha bem informada e autônoma (na versão pós-moderna) a dar conta do desinteresse pela política, sem necessariamente passar um juízo de irracionalidade sobre o sistema político. É possível ainda que a redistribuição exerça um impacto propulsor sobre o associativismo, desde que este tenha sido previamente inibido pela desigualdade, além de possivelmente torná-lo mais equilibrado. Outro benefício plausível para o associativismo adviria dos efeitos que uma redução da desigualdade exerceria sobre os interstícios incivis, reduzindo os incentivos à incivilidade via redução da vulnerabilidade dos grupos sociais menos favorecidos.

Esses resultados alvissareiros certamente dependeriam da capacidade de tal esquema de justiça distributiva de mitigar desigualdades excessivas. É honesto reconhecer, entretanto, que também o igualitarismo rawlsiano encontra-se sob pressão em virtude precisamente de sua resiliência a desigualdades que, não obstante venham em benefício dos menos favorecidos, seriam ainda excessivas e contaminariam de modo indesejado a igualdade política. A aposta implícita de Rawls (Cohen, 2002) é que a sua justiça procedimental seria capaz, ao longo do tempo, de engendrar as condições de sua sustentabilidade, especialmente por estimular a emergência de um ethos solidarista.

Resta saber se a máquina de inovações (e geração de riqueza sem precedentes) em que se converteu o capitalismo contemporâneo, movida a rendas e novas desigualdades, seria compatível com uma eventual inapetência, agora, econômica, por parte dos proprietários de inovações. Se esse não for o caso, a institucionalidade rawlsiana pode se mostrar ainda insuficiente para conter desigualdades econômicas promotoras de desigualdade política. Outros desenhos institucionais teriam de ser pensados, entre os quais se poderia incluir o monitoramento direto da distribuição via tributação, ou ainda a implementação de uma renda básica incondicional a maior possível (Van Parijs, 1995), que atasse o sucesso dos inovadores e as expectativas de realização de todos os demais. A discussão destes últimos problemas, entretanto, não pode nos ocupar aqui.

NOTAS

1 Ver, por exemplo, Berelson et al. (1954) e Campbell et al. (1960).

2 Oportunidades, tais como, liberdade de organização/associação, liberdade para pressionar demandas do grupo de interesse e direito de voto, o qual implica, entre outras coisas, a possibilidade de destituir governantes que se revelam insatisfatórios. Ver Held (1996).

3 A definição implícita de apatia seria desinteresse por assuntos públicos e de governo, na presença de oportunidades de participação, enquanto a de alienação envolveria a exclusão dos cidadãos das oportunidades de participação. Optei por não propor, de antemão, um conceito "preciso" de apatia/participação/alienação justamente porque me interessa recuperar os deslocamentos semânticos que esses conceitos sofreram ao longo do tempo, no interior das diversas perspectivas, em reação a evidências e argumentos.

4 Poderia ser aqui sugerida a relação causal simétrica, isto é, das desigualdades na participação para as desigualdades socioeconômicas, e creio ser natural pensar essa associação. O que me parece mais problemático é postular que quanto maior a igualdade política, necessariamente menor a desigualdade socioeconômica, considerando-se que o determinante "oportunidades eqüitativas de exercício das liberdades políticas" é apenas um dos fatores causais que movimentam as desigualdades sociais. Se outros fatores intervierem com força considerável ­ por exemplo, o ethos social à la G. A. Cohen, ações coletivas variadas, ou ainda problemas de informação ­, a própria sustentabilidade do cenário inicial de igualdade política pode achar-se ameaçada.

5 Os grupos estudados, bem como suas interações com instituições mais abrangentes (imprensa, escolas, agências de serviço social, representantes políticos eleitos, entre outras) foram os seguintes: Grupos de voluntários ­ dois grupos anti-drogas, um grupo de pais de estudantes do ensino médio, um centro de reciclagem e uma liga de mulheres eleitoras; grupos recreativos ­ um clube de dança country-western e uma classe de dança country-western; e grupos de ativistas ­ um grupo contra a instalação de um incinerador tóxico na cidade e um grupo de pacifistas (vigilantes permanentes com a intenção de evitar o envio de armas norte-americanas a outros países).

6 Esse parece ter sido o caso da provisão de água em Cochabamba que, após solucionado por meio de iniciativas comunitárias, foi administrado pelo governo federal em arranjo com empresa multinacional e em detrimento dos interesses locais. Mas, é também, importante considerar o grau de impregnação das soluções locais no sistema político mais abrangente, como parece estar ocorrendo com os cursos preparatórios para o ensino superior no Brasil. As relações entre ativismo associativo e sistema político, parece-me, requerem atenção específica.

7 De fato, o próprio Putnam menciona dois tipos de capital social, o bonding e o bridging, reunindo semelhantes e diferentes, aptos a acomodar, respectivamente, os valores de "comunidade" e "tolerância". O segundo tipo seria mais benéfico à democracia. Mas é fácil perceber que, em alguma dimensão, qualquer forma viável de capital social é bonding, e, em combinação com as desigualdades societárias, pode reforçar, antes que aliviar, a desigualdade política.

8 De resto, o facciosismo fantasmagoriza a teoria democrática desde Madison, democrata recalcitrante (nas palavras de Held, 1996) que via no voto (e no sistema representativo) e nos arranjos constitucionais antídotos eficazes na defesa de maiorias e minorias, umas das outras. Antes dele, Hume (1994) ensinara que a lógica dos interesse privados é moralmente superior à das facções, como grupos exclusivos e excludentes, baseados em opiniões compartilhadas, e cuja afirmação freqüentemente demanda a negação da alteridade, além da dissolução da própria individualidade.

9 Ver Kerstenetzky (2002). Evidentemente, também a "política concreta" desse processo não é o tema deste artigo, problema espinhoso tanto para redistributivistas como para advogados do novo associativismo. Cabe, entretanto, o registro da reviravolta que a questão distributiva sofreu no Brasil no arco de um ano, em 2001, quando deixa de ser uma "não-agenda" e torna-se o item principal da agenda de virtualmente todos os partidos políticos. Algo que possivelmente resultou de uma combinação complexa de informação, intervenção midiática e calendário eleitoral.

BIBLIOGRAFIA

Artigo recebido em outubro/2002

Aprovado em maio/2003

Celia Lessa Kerstenetzky, Ph.D. cum laude em ciência política pelo European University Institute, com pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do Massachusetts Institute of Technology, é professora-adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense. Publicou vários artigos em periódicos especializados nacionais e estrangeiros, na área de teoria política.

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  • *
    Devo a José Eisenberg a idéia de escrever este artigo, que apresentei em 2002, no GT 19: "República e cidadania: teorias e debates contemporâneos", da Anpocs, coordenado por ele e por Cícero Araújo. Agradeço, ainda, os comentários, à época, de Gildo Marçal Brandão, Rubem Barboza Filho e dos participantes da sessão, de Elisa Reis e do Comitê Acadêmico desta revista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2003

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2003
    • Recebido
      Out 2002
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