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O brasileiro é, antes de tudo, um autoritário

The Brazilian is, above all, an authoritarian

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 280

Em seu mais recente livro, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz revisita temas de pesquisas pregressas com o objetivo de realizar uma espécie de genealogia do autoritarismo brasileiro e entregar um competente esforço de compreensão acerca da ascensão ao poder de um populismo de direita, com características (ultra)liberais na economia, reacionárias em relação aos costumes e autoritárias na prática política. Isso após três décadas do início de nosso último período democrático, quando certas conquistas civilizatórias relacionadas à garantia de direitos individuais e coletivos pareciam consolidadas, mas agora se encontram ameaçadas pelo poder constituído. No melhor espírito de uma ciência social rigorosa, a autora procura desconstruir sensos comuns e mitos, notadamente os de que vivemos em uma sociedade composta por homens e mulheres cordiais e em uma democracia racial nos trópicos.

A obra é dividida em oito capítulos, introdução e epílogo. Nos três capítulos iniciais, Lilia Schwarcz apresenta as origens do autoritarismo nacional: destrincha as condições socioeconômicas presentes na história brasileira – que possibilitaram a emergência de práticas autoritárias na vida doméstica e na esfera pública – e demonstra a consolidação desses expedientes ao longo dos séculos. A autora nos relembra, porém, de que a história não é estática nem cíclica, ou seja, tais características não permaneceram imutáveis, nem retornam de tempos em tempos às suas expressões anteriores. Isso não a impede de identificar continuidades onde a historiografia tradicional prefere enxergar rupturas: identificá-las é um importante exercício das ciências sociais para compreensão do presente.

Retornando ao tema central de suas primeiras obras, a questão racial (Schwarcz, 1987SCHWARCZ, L. (1987), Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, Companhia de Letras., 1993SCHWARCZ, L. (1993), O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.), a pesquisadora defende que as particularidades dos usos da mão de obra escrava no Brasil, a violência intermitente de suas práticas e a longevidade da escravidão resultaram na produção de um racismo estrutural direcionado à população não branca, sobretudo negros e negras, com consequências que se estendem para muito além da abolição formal. A amplitude e duração da instituição “escravidão” no Brasil atrasou e até certo ponto impossibilitou a formação de estamentos intermediários entre o senhoriato rural e a multidão escrava, fazendo com que a pequena parte de população livre e não proprietária desenvolvesse uma forte dependência econômica, cultural e política em relação aos senhores de engenho. Senhores estes que, posteriormente, se tornariam os coronéis da República, justamente em função da preservação do poder e do prestígio consolidado no período anterior.

Se, ao longo dos séculos XVII e XVIII, a consolidação do sistema escravocrata fomentou a criação de práticas de mando centradas na figura de um paternalismo hierárquico extremamente rígido, essa história iniciou-se ainda no século XVI, quando a Coroa portuguesa optou por povoar e explorar seus novos domínios doando vastas terras e delegando amplos poderes a colonos considerados de boa reputação pelos serviços prestados ao reino. Essa escolha deu início a um vil processo de concentração de terras e acumulação de poderes na mão de poucas famílias, o que, por sua vez, reforçava as práticas autoritárias de condução da vida; isso é o que nos demonstra a autora no segundo capítulo, intitulado “Mandonismo”.

Diferentemente da nobreza europeia, essas novas aristocracias coloniais compunham uma espécie de “aristocracia meritória”, pois dependiam da acumulação de recursos e prestígio e não contavam com a garantia da sucessão pelo sangue nobre. Dessa forma, se dedicaram à construção de genealogias míticas, buscando estabelecer num passado longínquo (e fictício) sua nobreza inventada. Esse processo de falsificação do passado, aliás, não é um recurso exclusivo das elites coloniais, mas um expediente recorrente de exercícios autoritários do poder, como demonstra Lilia Schwarcz com exemplos nacionais, históricos e contemporâneos.

Esse caldo cultural, atravessado pela escravidão e pelo mandonismo, vai sustentar um modelo social patriarcal-autoritário extremamente violento, primeiramente no interior das unidades de produção colonial (entendidas como família estendida), depois se expandindo para o pequeno setor intermediário de homens livres e libertos, os quais findavam sendo permanentemente dependentes, econômica e socialmente, desse senhoriato rural, quadro que perdurou durante todo o Império.

Comprovando a sabedoria popular sobre as dificuldades de superação de velhos hábitos e da máxima de que o costume de casa vai à praça, esse “etos masculino”, gestado nos tempos coloniais e reforçado durante o Império, chegou até os tempos da República, quando se continuava a regular a distribuição do poder por meio da hierarquia e da força política de senhores de terra, que, de maneira hábil, souberam utilizar suas posições econômicas e sociais para galgar postos representativos via eleições (ou lá colocar quem lhes aprouvesse como representantes de seus interesses). Desenvolviam-se ali as práticas de organização das relações sociais que comporiam o quadro do coronelismo.

A autora sustenta sua análise na categoria tal como descrita no clássico Coronelismo, enxada e voto (Leal, 2012LEAL, V. N. (2012), Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo, Companhia das Letras.), mas empreende um esforço de interpretação que atravessa nossas diferentes experiências republicanas para chegar à atual composição da bancada dos latifundiários e à ligação de clãs políticos tradicionais com a histórica concentração fundiária. Ela afirma, por exemplo, que, no Rio Grande do Norte, poucos sobrenomes dominam a política estadual, se revezando entre cargos a cada eleição.

Ainda que esse modelo de fazer política tenha sido “arranhado” nas últimas eleições, a suposta nova política que emergiu da crise político-econômica nacional se apoia no mesmo mandonismo de outrora e “nunca esteve tão firme a imagem de um presidente-pai [...], autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e ‘próximo’ para quem o segue e compartilha de suas ideias” (Schwarcz, 2019, p. 63).

A terceira chave de interpretação do autoritarismo nacional, o patrimonialismo, tem uma afinidade eletiva com o mandonismo, uma vez que esses traços se retroalimentam e não é possível depurar qual deles é condição de possibilidade do outro. Apoiada em Weber, Schwarcz entende o patrimonialismo como uma “relação viciada” entre sociedade e Estado, favorecendo a apropriação do bem público como se privado fosse; em suma, “a utilização de interesses pessoais, destituídos de ética ou moral, por meio de mecanismos públicos” (Schwarcz, 2019, p. 65).

A autora segue com a apresentação de clássicos da sociologia brasileira que lidaram com a categoria weberiana, indo de Sérgio Buarque de Holanda, passando por Raymundo Faoro e Caio Prado Junior, para chegar a Antonio Candido e Roberto da Matta. Utiliza esses autores para demonstrar a presença do patrimonialismo na gênese do Brasil e sua continuidade até a contemporaneidade, apesar das mudanças nas formas políticas do Estado brasileiro.

Se a escravidão, o mandonismo e o patrimonialismo são as condições de possibilidade e permanência do autoritarismo brasileiro, a corrupção, a desigualdade social e a violência são as suas consequências. São justamente esses os temas tratados nos capítulos 4 a 8 da obra.

A autora segue o seguinte método: os temas da corrupção, da desigualdade e da violência são quantificados com a apresentação de relatórios, documentos oficiais e pesquisas acadêmicas recentes para então serem confrontados em sua dimensão histórica ao se fazer a reconstrução dessas características na colônia, Império, repúblicas e ditaduras. Seguem daí análises acerca das permanências desses traços na sociedade brasileira, sem cair em reducionismos históricos, econômicos ou culturais. Dessa forma, evitam-se os usos da história na busca de uma narrativa linear que explique o presente como resultado inequívoco de um passado específico – pois a história sempre poderia ter sido diferente –, bem como não se responsabiliza preferencialmente nem o sistema capitalista, nem a propensão cultural do brasileiro à informalidade (o famoso jeitinho) pelas mazelas nacionais, ainda que, naturalmente, as crises econômicas e os aspectos culturais não deixem de influenciar tais processos.

No epílogo da obra, num processo de aproximação do ensaio à contemporaneidade, a autora inicia alertando para o fato de a história ser uma disciplina frequentemente definida por sua capacidade de lembrar ou como uma ciência que descreve a mudança no tempo, mas raramente é vista por seu poder de produzir esquecimento e sua genuína potencialidade de reiterar e repetir. Em seus esforços nessa direção, Lilia Schwarcz procurou demonstrar como a concentração de renda (e terra), a imensa desigualdade social, o racismo e o sexismo estruturais e a violência nas relações sociais em geral são problemas e contradições estruturais do Brasil, os quais permanecem praticamente inalterados no tempo.

Não se trata de deixar de reconhecer eventuais avanços nessas questões, ocorridos sobretudo durante e em função do mais longo período de experiência democrática nacional, mas de destacar que tais avanços provavelmente atingiram um ponto de inflexão e que, nos últimos anos, passamos a escrever um novo capítulo do autoritarismo brasileiro.

E esse “novo” certamente mantém muito do velho, como as tentativas de reescrever a história a seu favor, revisitando e recriando o passado na busca de uma narrativa falseada que justifique a autoridade do presente. É importante que se diga, não se trata de uma particularidade nacional, antes, o fenômeno brasileiro está inscrito numa espécie de internacional da extrema direita, que, além da narrativa mítica, se sustenta numa plataforma anti-intelectual, patriarcal, militarista e particularmente agressiva contra minorias sexuais, raciais e econômicas. Nesse ponto, Lilia Schwarcz, apoiada em outras leituras, destaca o incentivo à extrema polarização da população, entre um “nós”, portadores e realizadores das reais virtudes nacionais, contra um “eles”, composto por toda sorte de usurpadores de posições sociais e agentes de degradação da moral tradicional. Nas eleições brasileiras de 2018, esse “eles” se materializou em um grande guarda-chuva comunista-globalista, no qual foram encaixados todos os grupos que ofereceram e oferecem alguma resistência ao movimento da extrema direita, que dificilmente pode ser chamado de “projeto”.

O que há efetivamente de novidade talvez seja o papel desempenhado pelas tecnologias de informação e comunicação hoje disponíveis. Essas ferramentas possibilitam ampla comunicação sem qualquer mediação entre o líder carismático e o povo, utilizada para disseminação das chamadas fake news como ferramentas de desqualificação da política e instigação e manutenção da mobilização polarizada mencionada anteriormente.

O campo jurídico, naturalmente, não poderia ter deixado de dar sua contribuição em mais esse episódio do autoritarismo nacional. Segundo a autora, lançados a uma posição de destaque ante uma Constituição exaustiva e programática, a que se somou um quadro de crise de representatividade esgarçada pelo desvelamento da corrupção sistêmica, os agentes jurídicos tiveram sua autoridade ampliada e extrapolaram e abusaram de suas funções, frequentemente sob os aplausos da opinião pública e publicada.

De maneira comedida, Lilia Schwarcz nos fala de “juízes” que se transformaram em “heróis nacionais” ao combaterem a corrupção, mesmo “quando abusaram de seu poder de forma muitas vezes subjetivas e ao sabor de afetos políticos” (Schwarcz, 2019, p. 232), ainda que atuando dentro dos limites do direito. Infelizmente, a obra veio a público antes da divulgação das conversas entre membros do Ministério Público e um desses juízes heróis, nas quais fica claro que as regras do Estado de Direito foram subvertidas na busca de objetivos compartilhados entre acusação e juízo. Resta-nos apenas especular se a autora teria mantido o tom mais brando caso estivesse de posse dessas revelações.

Um pouco na contramão do diagnóstico sombrio até então traçado, Lilia Schwarcz encerra numa nota de esperança, destacando que toda crise, apesar de “deletéria”, “é capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança” (Schwarcz, 2019, p. 237). Para aproveitar essa fresta, no entanto, seria necessário o velho otimismo na ação, pois o que a vida requer de nós é coragem, parafraseia a autora. Esse resenhista não se permite discordar do diagnóstico, mas prefere ao fim sublinhar a sabedoria nunca tão atual do filósofo do Meyer, Millôr Fernandes, ao dizer que o que de fato se apresenta no horizonte é que, infelizmente, o Brasil tem um enorme passado pela frente.

BIBLIOGRAFIA

  • LEAL, V. N. (2012), Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo, Companhia das Letras.
  • SCHWARCZ, L. (1987), Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, Companhia de Letras.
  • SCHWARCZ, L. (1993), O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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