Acessibilidade / Reportar erro

A possibilidade da política racional

La possibilité d'une politique rationnelle

The possibility of rational politics

Resumos

O autor critica as noções de engenharia social e planejamento econômico como formas modernas de aplicação da antiga idéia de que a ação política é uma ação individual em escala aumentada. Afirma que as sociedade tomam decisões e as executam de forma diversa à escolha individual e que, portanto, a concepção de racionalidade baseada no ator individual não consegue explicar a ação política. O autor argumenta que, dada a fragilidade da lógica instrumental em política, a justiça proporciona uma motivação alternativa para a reforma política. A partir da análise do surgimento do welfare state e da extensão do sufrágio, mostra que as principais reformas políticas deste século não se apoiaram em razões instrumentais. Ao contrário, foram defendidas por movimentos sociais ancorados em uma concepção de justiça que tinha por base o direito não instrumental à igualdade de consideração e respeito, incluindo a igualdade de participação nas decisões políticas e no bem-estar material. Sendo assim, a motivação para suportar os custos de transição e experimentar diversas modalidades de implementação de uma reforma política decorre não de seus resultados, mas da percepção de que o princípio a ela subjacente é justo.

Racionalidade; Política; Justiça; Reformas políticas; Engenharia social


Cette étude est une analyse des notions d'ingénierie sociale et de planification économique. L'auteur critique ces notions en tant que formes modernes d'application d'une certaine idée: celle selon laquelle l'action politique serait une action individuelle à une échelle élargie. Il cherche à démontrer que les sociétés prennent des décisions et les exécutent à l'insu des choix individuels. Cela serait la raison pour laquelle la conception de la rationalité - conception fondée sur l'acteur individuel - ne peut expliquer l'action politique. L'auteur soutient qu'en conséquence de la fragilité de la logique instrumentale en politique, la justice accorde une motivation alternative à la réforme politique. À partir de l'analyse de l'apparition du welfare state et de l'extension du droit de vote, il démontre que les principales réformes politiques de ce siècle ne se sont pas fondées sur des raisons instrumentales. Bien au contraire: elles sont défendues par des mouvements sociaux attachés à une conception de justice dont le fondement est le droit non instrumental à l'égalité, à la considération et au respect (qui inclue également l'égalité de participation aux décisions politiques et au bien être matériel). Ainsi, la motivation qui permet de supporter les coûts de transition et d'expérimenter les diverses modalités d'implantation d'une réforme politique découlerait non pas de ses résultats, mais de la perception selon laquelle le principe qui lui est sous-jacent est un principe juste.

Rationalité; Politique; Justice; Réformes politiques; Ingénierie sociale


The author criticizes the notions of social engineering and economic planning as modern guises of the old idea that political action is individual action writ large. He states that societies make decisions and execute them in ways that are different from individual choice and that therefore the conception of rationality based on the individual actor does not explain political action. The author argues that, given the fragility of instrumental rationality in politics, a conception of justice offers an alternative motivation for political action. Based on the analysis of the rise of the welfare state and the extension of franchise, he shows that the main political reforms implemented during this century were not founded on instrumental considerations. Rather, they were fought for by social movements anchored in a conception of justice based on the right to equal concern and respect, including the right to share equally in the making of political decisions and the right to equal material welfare. The motivation to bear the costs of transition and to experiment with various forms of implementation of political reform arises not from the benefits in results obtained therefrom but from the perception that the reform's underlying principle is a just one.

Rationality; Politics; Justice; Political reforms; Social engineering


A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL* * Texto publicado originalmente como o capítulo IV do livro Solomonic judgements (Cambridge, Cambridge University Press, 1989).

Jon Elster

Introdução

A idéia de organismo político, sugerindo que a ação política é uma ação individual em escala aumentada, é muito antiga. Entre suas versões modernas estão as noções de engenharia social e planejamento econômico. Podemos defini-la com mais precisão como a idéia de que as sociedades podem formar, e formam, preferências, coletam informações, tomam decisões e as executam de maneira estrita ou, pelo menos, aproximadamente análoga à escolha racional individual. Este artigo apresenta uma análise crítica dessa idéia.

A primeira seção examina até que ponto o aparato formal aplicado à escolha racional individual pode ser aplicado às decisões políticas, dando ênfase às diferenças entre a escolha individual e a escolha social.** ** No capítulo 1 do mesmo livro, intitulado "When rationality fails", Elster estabelece os elementos básicos da teoria da escolha racional e aponta suas falhas, decorrentes seja de sua indeterminação, seja de sua inadequação. O autor organiza a análise desenvolvida no capítulo 4, objeto desta tradução, de forma a torná-la comparável à discussão realizada naquele capítulo. As diferenças mais conhecidas surgem no processo de formação de preferências. O teorema da impossibilidade de Arrow e seus desdobramentos subseqüentes mostraram que, de maneira geral, a noção de preferências sociais não tem uma definição muito clara. Outro argumento, proposto pela primeira vez por Hayek, diz que as informações difundidas e espalhadas por toda a sociedade não podem ser reunidas em um centro para formar crenças sociais. Um argumento adicional, associado particularmente aos teóricos da escolha pública, é que a ação social tende a ser distorcida e deturpada pelos interesses privados dos agentes e das agências que os devem realizar. Concluo que o processo de tomada de decisões sociais tem, no melhor dos casos, uma semelhança grosseira com a escolha individual.

A seção seguinte enfatiza o amplo espaço de indeterminação que existe nas decisões sociais. As decisões de largo alcance produzem efeitos de equilíbrio muito difíceis de avaliar teoricamente, porque a habitual metodologia ceteris paribus não é aplicável. Mais ainda do que nas decisões individuais, imperam nas decisões sociais a incerteza e a ignorância. Além disso, nessas decisões, a ignorância não pode ser superada por procedimentos de ensaio e erro. O "aprendizado pela experimentação" desenvolve-se mediante inferências, no mais das vezes não confiáveis, que partem das conseqüências transitórias, de curto prazo e em pequena escala, para os efeitos de equilíbrio em larga escala e longo prazo. Por outro lado, a própria noção de "fazer experiências com a reforma" beira a incoerência, pois o fato de os agentes saberem que estão participando de uma experiência leva-os a adotar um horizonte de curto prazo que torna ainda menos provável o êxito da experimentação.

A terceira seção analisa a fraqueza de vontade e o excesso de vontade como formas de irracionalidade política. Ressalto as diferenças e as semelhanças entre a acrasia individual e a acrasia política, sendo a principal delas que as sociedades, por definição, não podem resolver seus problemas encarregando um agente executor externo de cumprir sua vontade. O excesso de vontade política também se diferencia do excesso de vontade individual, porque o sujeito e o alvo do primeiro podem ser indivíduos diferentes. Portanto, a tentação de adotar esse comportamento é maior, embora os prognósticos de êxito a longo prazo sejam igualmente reduzidos.

A quarta e última seção considera a justiça como uma alternativa à racionalidade para orientar a ação política. Dada a fragilidade da lógica instrumental em política, a concepção de justiça escolhida não pode ser conseqüencialista, como o utilitarismo. Ao contrário, o conceito de justiça deve focalizar os direitos inerentes aos indivíduos de obter igual participação no processo decisório e no bem-estar material. Nessa seção, baseio-me amplamente nos trabalhos de John Rawls, Ronald Dworkin e Jürgen Habermas. Advirto, porém, que meu objetivo não é propor ou mesmo esboçar uma teoria da justiça. Não sei como extrair de princípios fundamentais uma teoria da democracia. Contudo, dada a existência da democracia, principalmente da democracia limitada pelo debate público racional, acredito que algumas implicações para a escolha e para a ação política podem ser deduzidas.1 1 Essa é a maneira como compreendo os textos recentes de Rawls, principalmente Rawls (1985).

Escolha individual e escolha social

Para certa concepção, a política é como uma escolha individual em escala aumentada. Em primeiro lugar, as preferências políticas — objetivos, trade-offs e prioridades — são definidas pelo processo político democrático. Em segundo lugar, as agências governamentais coletam informações sobre assuntos concretos e sobre as relações entre meios e fins, com a finalidade de formar uma opinião acerca de quais políticas públicas poderiam melhor realizar esses objetivos. Finalmente, outras agências executam essas políticas consideradas ótimas. De acordo com essa concepção, o parlamento, o órgão central de estatística e o governo formam um sistema unificado de tomada de decisões políticas racionais.

Não estou interessado naqueles que (se os houver) acreditam que essa concepção é literalmente verdadeira, ou seja, que a escolha política pode ser entendida pelos desejos, crenças e ações de uma entidade supra-individual, a "sociedade". Ao contrário, estou interessado naqueles que, embora aceitando os cânones do individualismo metodológico, supõem ou argumentam que é possível proceder como se essa concepção fosse correta.2 2 De modo análogo, para determinados fins, as células podem ser entendidas como se fossem unidades fundamentais da análise médica ou biológica, independente do conhecimento de sua estrutura molecular. Em outras palavras, estes últimos supõem que não há mal algum em tratar a sociedade como um ator unitário, dotado de valores estáveis e coerentes, de crenças bem fundamentadas e de capacidade para pôr em prática suas decisões. Esse suposto tem predominado no estudo das relações internacionais3 3 Uma discussão desse ponto encontra-se em Snidal (1986, especialmente pp. 29-36). e na teoria do planejamento econômico.4 4 Uma discussão desse ponto encontra-se em Johansen (1977, cap. 2). Por razões óbvias, essa hipótese é menos evidente no estudo da política interna das democracias pluralistas. Mesmo nesses regimes, porém, há uma forte tentação de usar a linguagem própria do ator. Esta seção sustenta que tal linguagem, apesar de tentadora, também pode ser traiçoeira e levar a conclusões erradas.

O oportunismo oferece uma explicação geral para a diferença entre sociedades e indivíduos. É mais fácil para um indivíduo enganar a outros do que a si mesmo. Quando os indivíduos se entregam a ilusões que favorecem seus interesses pessoais, ou se entregam ao oportunismo, não se pode ter certeza de que o resultado agregado do seu comportamento corresponda ao modelo de racionalidade política do ator unitário. Gostaria de explicar o significado dessa proposição nas três dimensões da escolha que me proponho a analisar nesta seção: preferências, informações e ação.

Em primeiro lugar, cabe definir o problema mais cuidadosamente como uma dificuldade da política democrática. Isto é, excluímos as concepções que correspondem à máxima de Napoleão: "Tout pour le peuple, rien par le peuple". Mais especificamente, deseja-se que o método de agregação das preferências individuais não seja ditatorial e que, além disso, seja invulnerável ao oportunismo; quer dizer, que o indivíduo não seja capaz de, falsificando suas preferências, produzir um resultado melhor, de acordo com suas verdadeiras preferências, do que aquele que obteria se revelasse essas verdadeiras preferências. Por último, deseja-se que o mecanismo garanta resultados compatíveis com o ótimo de Pareto. O único método que satisfaz a esses requisitos é alguma forma de votação por loteria, mas este método comporta tantas outras desvantagens que não deve ser examinado com seriedade. Embora, para certos casos especiais, seja possível imaginar mecanismos à prova de estratégias para a revelação de preferências (ver, por exemplo, Ordershook, 1986, caps. 5 e 6), de uma maneira geral, não se pode supor que as pessoas sejam induzidas a agir com sinceridade por conta do interesse pessoal.

O problema da compatibilidade de incentivos estende-se ao da coleta de informações sobre assuntos concretos. Quando se solicita aos agentes econômicos que forneçam informações facilmente disponíveis para eles, mas que não seriam disponíveis ou teriam algum custo para os outros, pode-se assumir que eles se perguntarão se é do seu interesse atender ao pedido. Sabe-se, por exemplo, que a única forma de tributação não sujeita a deturpações é um imposto cobrado dos indivíduos de uma só vez [lump-sum tax] e calculado em função de sua capacidade produtiva, e não de sua verdadeira produção. Mas é raro que o indivíduo tenha interesse em informar corretamente sobre sua capacidade produtiva. Igualmente, talvez não seja do interesse dos indivíduos informar com exatidão quanto estariam dispostos a pagar pela provisão de bens públicos. É fato bem conhecido que as economias do tipo soviético criam incentivos perversos ao fornecimento da informação verídica. Às vezes, o medo de ser punido por trazer consigo más notícias cria um estímulo para pintar as coisas melhores do que, de fato, são; outras vezes, é o interesse próprio que leva uma pessoa a apresentar a situação como pior do que é. Um exemplo é o administrador que presta informações subestimadas sobre a produção a fim de evitar um aumento de sua cota. Problemas essencialmente semelhantes podem surgir em qualquer sistema que dependa da coleta de informações a partir de fontes descentralizadas. Mais uma vez, embora, em certos casos, o problema possa ser contornado, não há uma receita geral para induzir as pessoas a prestarem informações verdadeiras.

Finalmente, problemas com os incentivos também ocorrem no nível da implementação. No caso do indivíduo, geralmente não há nenhuma distância entre tomar uma decisão e executá-la, excluindo-se a fraqueza de vontade ou a inaptidão física. Em casos típicos, o caráter unitário do ator individual assegura que suas decisões, uma vez tomadas, serão executadas. A falta de unidade da sociedade torna essa hipótese muito mais problemática. Não se pode, em geral, confiar em que os agentes incumbidos da execução das decisões deixem de levar em conta seus próprios interesses ou sua concepção pessoal do interesse geral.5 5 Para uma análise da enorme literatura sobre burocracias interessadas em maximizar seus orçamentos ou outras práticas corruptas, ver Mueller (1979, cap. 8). Tampouco seu principal pode estar o tempo todo ocupado em monitorar as atividades desses agentes, no mínimo porque os agentes da monitorização podem ser, eles mesmos, corruptos.6 6 Andvig e Moene (1988) elaboraram um modelo que inclui essa possibilidade.

Não é necessário, porém, fundamentar nosso argumento nos perigos do oportunismo. Na verdade, não se deveria fazê-lo. Embora sempre exista o perigo de uma conduta voltada para a satisfação do interesse próprio, até que ponto esse comportamento está realmente presente varia muito. Boa parte da literatura sobre escolha social e escolha pública, com seu pressuposto sobre a universalidade do comportamento oportunista, parece simplesmente fora de contato com o mundo real, onde há muito de honestidade e senso do dever. Se as pessoas sempre se comportassem de maneira oportunista quando contassem com a impunidade, a civilização tal qual a conhecemos não existiria.7 7 Elster (1989) desenvolve uma defesa dessa possibilidade. Não se deve partir do pressuposto de que a única tarefa da política seja inventar instituições que submetam o interesse oportunista a objetivos socialmente úteis. Uma outra tarefa de igual importância é criar instituições que incorporem uma concepção válida de justiça. Se as pessoas não se sentirem enganadas pela sociedade, a tentação de enganar a sociedade se reduzirá muito (Rawls, 1971, pp.177-183 e 567-577).

O que se deve perguntar, então, é se uma sociedade justa, que conte com normas efetivas de honestidade e confiança, corresponde a uma boa aproximação do modelo de ator unitário da política racional. Uma resposta concisa é que apesar de, com certeza, ser esta uma aproximação melhor do que a noção de uma sociedade de oportunismo generalizado, continuam existindo sérias dificuldades. Embora desapareça o problema da implementação, os problemas da agregação de preferências e da centralização das informações não desaparecem. Ainda que as preferências sejam declaradas com sinceridade, a noção de "vontade popular" é incoerente. Mesmo que os indivíduos procurassem declarar suas preferências e capacidades da maneira mais verídica possível, e mesmo que deixemos de lado os custos de oportunidade de fazer relatórios e o risco de que a informação já esteja desatualizada quando for finalmente usada, o centro não a consideraria muito útil. As pessoas geralmente têm um conhecimento tácito, embutido e pessoal, e não explícito, verbal e abstrato, sobre seus estados mentais e suas capacidades produtivas (Polanyi, 1962). As empresas não têm acesso à totalidade da função de produção com que operam; precisam saber o que estão fazendo, mas não têm incentivos para saber o que poderiam fazer, até que sejam forçadas a isso pelas circunstâncias (Nelson e Winter, 1982, cap. 4 e passim). Os consumidores podem ser incapazes de dizer que compras planejam fazer nos próximos anos. Essas objeções bem conhecidas8 8 Ver especialmente os estudos de Friedrich Hayek, desde Hayek (1937) até Hayek (1982). ao planejamento central continuam sendo, a meu ver, irrefutáveis.

Os sistemas políticos concretos aproximam-se em diversos graus do modelo do ator unitário. Quanto mais tentam realizar seus objetivos por intermédio do planejamento deliberado, isto é, quanto mais sua auto-imagem é a do ator unitário, mais tendem a desviar-se desse modelo na prática. As economias de tipo soviético exemplificam bem esse paradoxo. As democracias pluralistas, ao contrário, tendem a realizar mais, em virtude de tentarem fazer menos. O planejamento macroeconômico que se utiliza do instrumento das políticas fiscais e monetárias tem mais probabilidade de alcançar seus objetivos do que as formas mais ambiciosas de planejamento físico. O planejamento físico centralizado requer informações muito detalhadas e também tende a gerar oportunismo. O primeiro problema é inerente ao planejamento físico; o segundo problema, se minha análise é correta, decorre da falta de legitimidade. Se as pessoas acham que estão sendo enganadas, por que não deveriam enganar o sistema de volta? Os sistemas políticos que deixam mais decisões a cargo do indivíduo, ao contrário, economizam informações e simultaneamente geram mais confiança.

Concluindo esta seção, cabe observar que a analogia entre escolha individual e escolha social também pode ser feita da perspectiva oposta. Em vez de alegar-se que a sociedade deve ser interpretada a partir do modelo do ator unitário, pode-se propor que o indivíduo deveria ser compreendido a partir do modelo da sociedade dividida.9 9 Os ensaios reunidos em Elster (1986) examinam várias analogias desse tipo. Primeiro, por causa dos problemas de agregação de preferências internos à própria pessoa; segundo, por causa do auto-engano e de outras formas de compartimentalização cognitiva; terceiro, por causa da fraqueza de vontade e de outros obstáculos à execução de decisões. Os indivíduos, como as sociedades, muitas vezes não sabem o que querem, ou não sabem o que sabem, ou deixam de realizar o que decidiram fazer. Acredito, porém, que a analogia falha em um ponto decisivo: os indivíduos, ao contrário das sociedades, têm um centro organizador — às vezes chamado de vontade, outras vezes de ego — que procura constantemente integrar as partes fragmentadas.10 10 Outros comentários sobre essa questão podem ser encontrados em Elster (1985 e 1986a). As sociedades, ao contrário, não têm nenhum centro.

Indeterminação política

Nesta seção, desenvolvo um argumento de duas partes contra a exeqüibilidade da engenharia social em grande escala. Primeiramente, alego que não existe nenhuma teoria que nos permita predizer os efeitos de equilíbrio a longo prazo de grandes reformas sociais. Segundo, afirmo que a metodologia do ensaio e erro não pode substituir a previsão teórica. Ou seja, a teoria é impotente, e não se pode aprender pela experiência e com a experimentação. Em conseqüência, as escolhas políticas são feitas em condições de radical indeterminação cognitiva.11 11 Não são essas as únicas fontes de indeterminação política. O problema da agregação de preferências, discutido na seção anterior, implica que a sociedade pode não ser capaz de avaliar as conseqüências da ação, mesmo que se suponha que são previsíveis.

Ora, essas afirmações são muito amplas. Não tentarei demonstrar sua validade como proposições gerais, embora acredite que muitos dos meus argumentos específicos possam ser generalizados.12 12 A teoria geral do second-best (Lipsey e Lancaster, 1956), principalmente, proporciona uma explicação mais abstrata e unificada de muitas das afirmações que faço a seguir. Em vez disso, procederei à análise de três exemplos: as transições da aristocracia para a democracia, da propriedade privada para a propriedade cooperativa e de uma economia planejada para uma economia de mercado. Nesta e nas seções seguintes, utilizarei as análises de Tocqueville sobre a democracia e o ancien régime.13 13 Elster (1988b) contém uma discussão mais extensa. Para usar um exemplo corrente e controverso, analisarei a proposta de substituir a propriedade privada dos meios de produção pela propriedade cooperativa.14 14 Baseando-me em Elster e Moene (1989). Por fim, farei algumas referências ocasionais às reformas econômicas em curso na China.

Acredito que a primeira parte do meu argumento não suscite grandes discordâncias. Imagine-se que a sociedade está em um estado (aproximado) de equilíbrio, no sentido de que os recursos pessoais, as crenças, as normas, os hábitos e os objetivos dos indivíduos estão bem ajustados entre si e ao ambiente natural e institucional.15 15 A análise do equilíbrio em Stinchcombe (1983) é um bom exemplo disso. Nossa intenção é prever as conseqüências de grandes mudanças no sistema de direitos de propriedade ou no sistema político. Numa primeira abordagem do problema, convém ponderar sobre duas perguntas básicas: como será o novo equilíbrio quando tudo o mais estiver adaptado à mudança institucional? E qual será a via de transição para o novo equilíbrio?

Retomarei essas questões mais adiante, mas cabe observar, primeiramente, que elas levantam muitos problemas. A existência de um estado de equilíbrio e a tendência para aproximar-se dele devem ser demonstradas, e não pressupostas. Referindo-se ao impacto da Revolução Francesa, em um texto escrito em 1855, Tocqueville observou: "Já ouvi dizer por quatro vezes na minha vida que a nova sociedade, conforme a criou a Revolução, havia enfim encontrado seu estado natural e permanente, mas os acontecimentos subseqüentes demonstraram que isso estava errado." (Tocqueville, 1953, p. 343). Nessas situações, devem ser levadas em conta quatro possibilidades: (a) que o processo está se aproximando de um equilíbrio, mas ainda não o alcançou; (b) em qualquer tempo dado, o processo encaminha-se para o estado de equilíbrio, mas este, em si mesmo, desloca-se constantemente devido a mudanças no ambiente externo; se a velocidade da mudança no ambiente externo for maior do que a velocidade da adaptação a este meio, o equilíbrio nunca será alcançado; (c) o sistema não tem um ponto de equilíbrio fixo, mas converge para um ciclo-limite. Já se disse, por exemplo, que a conseqüência permanente da Revolução Francesa foi introduzir uma mudança cíclica entre o orleanismo e o bonapartismo (Lévi-Strauss, 1960, p. 94; Aron, 1967, p. 292); que os sistemas políticos do Planalto Birmanês estavam em um estado de "equilíbrio móvel", contendo ciclos de 150 anos (Leach, 1954, p. xi); e que as sociedades modernas estão condenadas a oscilar entre dois sistemas terríveis — capitalismo e socialismo —, cada um deles parecendo sedutor quando visto da perspectiva do outro (Dunn, 1985).16 16 Para uma breve discussão dessas "preferências contra-adaptativas", ver também Elster (1983a, pp. 111-112). (d) O sistema é inerentemente instável. Mesmo que o ambiente seja estável, o sistema não comporta nem um estado de equilíbrio fixo nem um ciclo-limite. A primeira pergunta do parágrafo anterior pressupõe que (a) seja uma explicação adequada ao comentário de Tocqueville.

Meu argumento principal, todavia, não é que as perguntas são inadequadas, mas que não podem ser respondidas, mesmo que seus pressupostos sejam satisfeitos. No estado atual das ciências sociais, não se pode sequer imaginar como seria uma teoria do equilíbrio social geral — uma teoria em que tudo fosse endógeno, de modo que a metodologia usual de ceteris paribus seria inaplicável. Os cientistas sociais são, em geral, razoavelmente bons para prever os efeitos de curto prazo de mudanças marginais; para afirmar, por exemplo, que se a taxa de mulheres casadas reduzir-se em x por cento, a oferta de mão-de-obra crescerá em y por cento. Mas os impactos de longo prazo de mudanças nos padrões de trabalho sobre a religião, o casamento, os conflitos sociais ou a marginalidade continuam sendo inteiramente inacessíveis para nós. Para pensar em um exemplo mais dramático, imaginem-se os problemas enfrentados pelos planejadores chineses. Eles se defrontam com a tarefa extremamente complexa de estimar os efeitos de equilíbrio a longo prazo sobre o estado de equilíbrio produzido por reformas de mercado introduzidas numa sociedade predominantemente agrária e impregnada de duas poderosas ideologias antimercado: o confucionismo e o marxismo. Como podem os planejadores chineses dizer de antemão se essas ideologias irão frustrar as tentativas de introduzir um sistema de mercado, ou se o mercado é que se deixará corromper pelas ideologias?

A referência teórica para a análise da segunda parte do meu argumento deriva da argumentação desenvolvida por Tocqueville a respeito da democracia política na América. Sua discussão,17 17 Ou melhor, minha reconstrução do seu argumento. Apesar de sua metodologia muito complicada, Tocqueville, como historiador, orgulhou-se de esconder a estrutura do seu raciocínio. travada principalmente com os críticos franceses da democracia, toma a forma de uma refutação de uma série de falácias; ao todo, quatro. Essas falácias consistem em, partindo dos efeitos locais, parciais, a curto prazo ou de transição da democracia, fazer inferências erradas sobre os efeitos, no nível global, líquido, a longo prazo, do seu estado de equilíbrio. Observando que os primeiros efeitos eram em muitos casos negativos, os críticos franceses inferiram equivocadamente que a democracia era indesejável. O fato de as inferências serem injustificadas não prova, é claro, que as conclusões sejam falsas. Tocqueville alegou, porém, que os efeitos de equilíbrio da democracia podiam ser observados nos Estados Unidos18 18 Essa afirmação é um tanto simplificada. Tocqueville sabia que diversas correntes políticas ameaçavam a estabilidade da democracia na América. Em várias ocasiões, afirmou que o sistema poderia evoluir para uma tirania da maioria sobre a minoria, uma espécie de despotismo tutelar moderado, ou para uma plutocracia. Essa afirmação é coerente com seu pressuposto de que a sociedade americana que observou, por volta de 1830, havia adquirido uma estabilidade relativa e temporária, ao contrário do fluxo constante que encontrou na vida política francesa. e que sistematicamente demonstravam que as conclusões dos outros estavam erradas. No caso de reformas ainda não implementadas ou concluídas, não se pode mostrar da mesma maneira que as inferências levam a conclusões equivocadas, apenas que não há razões para crer que conduzam a conclusões corretas.

Efeitos locais versus efeitos globais

Tocqueville fornece um exemplo instrutivo da tendência falaciosa de generalizar o efeito de uma mudança institucional, introduzida em pequena escala, para o efeito obtido quando essa mudança é realizada em grande escala. Discutindo os efeitos do casamento por amor, prática muito difundida nas democracias, Tocqueville (1969, p. 596) escreve que "nossos ancestrais tinham uma opinião muito peculiar sobre o casamento. Notando que os poucos casamentos por amor no seu tempo quase sempre terminavam em tragédia, chegaram à decidida conclusão de que, nessas questões, era muito perigoso confiar no próprio coração". Em seguida, indica duas razões pelas quais essa opinião é indefensável. A primeira é a discriminação negativa: casar por amor numa sociedade em que isso é exceção é atrair desastre, pois ir contra a corrente tende a provocar a hostilidade dos outros e, por outro lado, a gerar rancor na própria pessoa. A segunda é a auto-seleção negativa: somente pessoas muito opiniáticas topam sair na frente contra a corrente — e isso não é uma característica favorável a casamentos felizes.

O desempenho de cooperativas de trabalhadores pode ser também influenciado pela discriminação (positiva ou negativa) e pela auto-seleção (positiva e negativa). Examinemos primeiro a discriminação positiva. Diz-se que, para as cooperativas sobreviverem numa economia capitalista, elas precisam contar com uma organização de apoio, fortemente motivada por uma ideologia (Gunn, 1984, pp. 57-61). Na medida em que essas organizações têm razão de ser, é evidente que o bom desempenho das cooperativas nelas apoiadas não nos permite inferir que um sistema de cooperativas se sairia igualmente bem. O caso da discriminação negativa é mais estudado. Freqüentemente se diz que o capitalismo, principalmente suas instituições financeiras, dá um tratamento desfavorável às cooperativas, de modo que o mau desempenho de algumas cooperativas isoladas não pode servir de argumento contra o princípio do cooperativismo (ver, por exemplo, Bowles e Gintis, 1976, p. 62). Uma objeção a essa interpretação afirma que, em um mercado financeiro competitivo, nenhuma instituição pode se dar ao luxo de perder uma oportunidade de lucro (Nozick, 1974, pp. 252-253), e ainda que, por sua estrutura de propriedade, as cooperativas são alvos imperfeitos para investimento e empréstimo (Miller, 1981). Mas nenhuma dessas objeções é inteiramente convincente.19 19 Para contestar a opinião de Nozick, pode-se citar a carta de John Stuart Mill em apoio a uma cooperativa que vinha sendo alvo da concorrência desleal de suas equivalentes capitalistas. "Tomo a liberdade de anexar uma contribuição de £ 10 para ajudar, na medida em que essa quantia seja útil, na luta que a cooperativa dos fabricantes de fechaduras de Wolverhampton vem sustentando contra a concorrência desleal dos mestres do ramo. Não é de meu desejo protegê-los da concorrência leal [...] mas vender com prejuízo com a finalidade de destruir os competidores não é fazer concorrência leal. Nessa concorrência, se prolongada, os competidores que dispõem dos menores recursos, apesar de que possam ter todos os outros fatores de sucesso, serão necessariamente esmagados sem que tenham cometido erro algum. [...] Estou agora convencido de que eles devem ser apoiados contra a tentativa de arruiná-los" ( apud Jones, 1968, p. 438). Como objeção ao argumento de Miller, cabe observar que a cooperativa seria até certo ponto mantida sob controle porque saberia que, no futuro, poderia precisar atrair novos capitais. Se os acionistas externos (sem direito a voto) não receberem dividendos satisfatórios, não serão encontrados futuros acionistas. Sabendo disso, é possível que os atuais acionistas não se desencorajem diante do fato de a cooperativa ter a liberdade formal de reduzir os dividendos a zero. (Jay, 1980, pp. 14-15).

A auto-seleção se dá quando as poucas cooperativas existentes em um meio predominantemente capitalista atraem (ou só contratam) pessoas muito motivadas e idealistas, dispostas a trabalhar com afinco, a suportar os custos da participação e, se necessário, a aceitar uma redução de salário. As cooperativas dos trabalhadores florestais do Nordeste dos Estados Unidos parecem adequar-se a essa descrição (Gunn, 1984, cap. 3). As cooperativas de Mondragon, na Espanha, também têm conseguido selecionar os candidatos e admitir apenas aqueles que se afinem com o sistema de valores cooperativistas (Bradley e Gelb, 1982). A auto-seleção positiva aparece em mais alto grau ainda nos kibutz de Israel (ver Ben-Ner e Neuberger, 1982). É claro que a viabilidade dessas cooperativas não implica que o modelo seja facilmente transferível para outros lugares. A situação é de certa forma análoga à das escolas particulares de forte motivação ideológica em comparação com as escolas públicas. Como as escolas particulares muitas vezes conseguem atrair professores excepcionalmente motivados, produzem resultados difíceis de encontrar em um sistema mais amplo, no qual o corpo docente constitui-se, em média, de um corte transversal da população. A auto-seleção negativa também poderia ser encontrada no exemplo de Tocqueville: "É possível que essas experiências de reforma atraiam indivíduos instáveis, demasiado propensos a correr riscos e pessoas sem orientação pragmática." (Putterman, 1982, p. 152).

A divergência entre os efeitos locais e globais também pode ocorrer sem que haja seleção e discriminação, se houver interferência de uma externalidade positiva ou negativa. Se uma cooperativa isolada pode pegar carona nas empresas capitalistas, seu desempenho será melhor do que obteria como participante de um sistema de cooperativas. Se as cooperativas forem ruins de inovação, mas boas em imitar, serão bem-sucedidas enquanto houver firmas capitalistas dinâmicas para imitar. Em termos mais conjecturais, a motivação para participar em empresas auto-administradas depende de um sentimento de superioridade moral que pressupõe que a maioria das firmas seja capitalista.

Por outro lado, cooperativas isoladas poderiam ser prejudicadas (a) pelas externalidades negativas criadas pelas empresas capitalistas ou (b) por não conseguirem internalizar externalidades positivas geradas por elas mesmas. Um exemplo do primeiro caso é a "externalidade ideológica" criada pela presença do trabalho assalariado na economia. Em um contexto predominantemente capitalista, as cooperativas bem-sucedidas serão tentadas a empregar trabalhadores assalariados a fim de aumentar sua flexibilidade de ajustamento a mudanças nas condições do mercado.20 20 Jones (1968) inclui vários exemplos desses "fracassos provenientes do sucesso". Com isso, no entanto, elas podem acabar perdendo tanto as vantagens intangíveis quanto as vantagens tangíveis decorrentes das intangíveis. Outro exemplo da primeira situação é a "externalidade da barganha coletiva", que Peter Jay (1980, p. 40) definiu da seguinte maneira: "Na medida em que a grande vantagem proporcionada pela economia gerida pelos trabalhadores é causar [...] o enfraquecimento da barganha coletiva, eliminando então o dilema catastrófico entre o aumento do desemprego ou a aceleração da inflação, isso não pode ser comprovado pela análise da experiência de cooperativas individuais numa economia gerida pelo capital, em que existe uma profunda percepção da necessidade da organização sindical e da barganha coletiva."

Um exemplo da situação (b) é a "externalidade empresarial" criada pelas cooperativas. Numa empresa de gestão democrática, os indivíduos dotados de talento empresarial não só tomam boas decisões: eles educam os companheiros. Os trabalhadores de Mondragon, por exemplo, têm sua própria escola técnica. Se os operários que se beneficiaram com o treinamento saem da empresa e arranjam emprego numa firma capitalista, o efeito é, na realidade, tornar disponível gratuitamente para outras empresas esse treinamento. Mesmo que a cooperativa seja expulsa do ramo porque os retornos de sua atividade são inferiores aos das firmas capitalistas típicas, o retorno social pode ser bem maior para a cooperativa do que para a firma capitalista. Outro exemplo da situação (b) é o da "externalidade política" criada pelas cooperativas. Se ser membro de cooperativas produz cidadãos melhores e se o espírito cívico é um bem público, as cooperativas geram benefícios difusos não captados pelo mecanismo de preços (Pateman, 1970; ver também Krouse e McPherson, 1986). Pode-se questionar essa interpretação alegando, primeiro, que, para muitas pessoas, a participação econômica diminui a participação nos assuntos políticos, em vez de aumentá-la. Parafraseando Oscar Wilde, há muitas noites para aproveitar. Segundo, há dúvidas de que a participação nas decisões econômicas tenha efeitos positivos em outras arenas, salvo se estas forem consideradas valiosas por si mesmas. Os efeitos irradiadores da participação são fundamentalmente subprodutos.21 21 A respeito dessa idéia, ver Elster (1983a, cap. 2, seção 9).

Efeitos parciais versus efeitos líquidos

Um exemplo engraçado formulado por Tocqueville é o seguinte: "como não existe nenhuma organização preventiva nos Estados Unidos, há mais incêndios lá do que na Europa, mas, em geral, eles são apagados mais depressa porque os vizinhos sempre chegam rapidamente ao local do perigo". (Tocqueville, 1969, p. 723). A estrutura da argumentação é a seguinte. Queremos analisar o efeito de uma variável independente (regime político) sobre uma variável dependente (número de casas destruídas pelo incêndio). Entre a causa e o efeito há duas variáveis intervenientes que interagem de maneira multiplicativa: o número de casas que pegam fogo e a proporção dos incêndios que não são rapidamente extintos. Não é difícil imaginar adversários da democracia americana enfatizando o primeiro efeito parcial e os defensores realçando o segundo. Mas a verdadeira questão é saber se o efeito líquido é positivo ou negativo. Na falta de informações mais precisas sobre a força das correntes adversárias, talvez não seja possível responder a essa pergunta.

Uma forma de raciocínio muito próximo desta é a seguinte: Tocqueville foi o primeiro a ter a ocasião de observar que a democracia tende a aumentar as oportunidades das pessoas de modo potencialmente perigoso e a assinalar, em seguida, que a democracia também tende a reduzir o desejo dessas pessoas de aproveitar essas oportunidades. Tocqueville (1969, p. 138) observou que a Constituição americana "conferiu muito poder ao presidente, mas tirou-lhe a vontade de usá-lo". O poder decorre de suas prerrogativas e de seu poder de veto, a falta de vontade de sua constante preocupação em reeleger-se. Raciocínio semelhante é aplicado à religião, conforme se pode conferir pela justaposição de duas passagens: "Enquanto a lei permite ao povo americano fazer tudo, existem coisas que a religião os impede de imaginar e proíbe de ousar fazer." (idem, p. 292). E prossegue Tocqueville: "Duvido que o homem seja capaz de suportar a completa independência da religião e a total liberdade política ao mesmo tempo. Sou levado a pensar que se ele não tem fé, precisa obedecer, e se é livre, precisa acreditar." (idem, p. 444). O ponto central da primeira passagem é que a religião é endógena nas democracias, ao passo que a segunda diz que a religião tende a restringir a liberdade potencialmente perigosa que também é parte integrante da sociedade democrática. Naturalmente, os adversários da democracia focalizam o que as pessoas podem fazer nesse regime, enquanto seus defensores dão ênfase aos limites, endogenamente gerados, sobre o que eles vão querer fazer.

Estruturas causais semelhantes podem surgir no caso do socialismo de mercado. De fato, o caráter dualista desse sistema é óbvio, pois mercado e socialismo têm conotações muito diferentes e podem apontar para direções bem opostas. Assim, é possível esperar que o aspecto socialista do sistema, ou seja, a propriedade dos meios de produção pelos trabalhadores, promova um espírito de cooperação e solidariedade, enquanto o aspecto de mercado tenderia a operar na direção de um espírito de competição e até de hostilidade. É difícil dizer a priori se as relações pessoais numa sociedade socialista de mercado seriam modeladas mais pelo primeiro do que pelo segundo aspecto.

O impacto sobre a distribuição de renda também é ambíguo. Por um lado, seria de esperar que a distribuição de renda dentro das empresas entre trabalhadores de diferentes níveis de qualificação fosse relativamente igualitária. Por outro lado, é possível que haja desigualdades duradouras entre trabalhadores de qualificações semelhantes em empresas diferentes. Como não há mercado de trabalho numa economia socialista de mercado, não existe nenhuma tendência natural para a uniformização dos níveis de salários. As empresas bem-sucedidas, além disso, não tendem a se expandir e, portanto, a absorver outros trabalhadores.22 22 Uma exposição simples e inteligente das razões dessas diferenças de comportamento entre cooperativas de trabalhadores e empresas capitalistas, dessa perspectiva, encontra-se em Meade (1972). E mesmo que convidem outros trabalhadores a entrar para essas empresas, os últimos a chegar poderiam receber um retorno inferior ao dos pioneiros, caso tenham de pagar o valor de mercado por uma ação da empresa.23 23 Meade (1980). Essa prática é seguida nas cooperativas madeireiras dos Estados Unidos (ver Gunn, 1984), mas não, por exemplo, nas cooperativas de Mondragon. Caberia a esperança de que, em um ramo lucrativo de atividades, a criação de novas empresas obtivesse o mesmo resultado que a expansão das firmas tem no capitalismo. Todavia, a criação de novas empresas leva mais tempo do que a expansão das antigas e, nesse meio tempo, a atividade pode perder em lucratividade. Quanto aos efeitos parciais, pode-se argumentar que a distribuição de renda no socialismo de mercado poderá ser mais ou menos igualitária do que no capitalismo.

Efeitos de curto prazo versus efeitos de longo prazo

Essa distinção é um caso especial da anterior, mas suficientemente importante para merecer uma reflexão em separado. Tocqueville (1969, p. 224) escreveu a esse respeito que, "a longo prazo, o governo democrático deveria aumentar as forças reais de uma sociedade, mas não pode reunir de imediato, em um ponto determinado e em um dado momento do tempo, forças tão poderosas quanto as que estão à disposição de um governo aristocrático ou de uma monarquia absolutista". Aplicado à guerra, o argumento diz que "um povo aristocrático que, ao lutar contra uma democracia, não conseguir destruí-la na primeira batalha, sempre correrá o risco de ser derrotado por ela" (idem, p. 658). Aplicado à tributação, o argumento alega que "a liberdade engendra muito mais mercadorias do que destrói, e nos países onde isso é compreendido, os recursos do povo sempre aumentam mais rápido do que os impostos" (idem, p. 209).

Posteriormente e de maneira independente (suponho), Schumpeter (1961, p. 83) fez a mesma afirmação em seu famoso comentário de que "um sistema — qualquer sistema, econômico ou não — que, em cada momento do tempo, utiliza da melhor forma todas as suas possibilidades pode, ainda assim, a longo prazo, ser pior que um sistema que não o faz em momento nenhum do tempo, porque seu fracasso pode ser uma condição necessária do nível ou velocidade do seu desempenho a longo prazo".24 24 Como se poderia prever, Leibniz formulou o mesmo argumento antes: " On pourrait dire que toute la suite des choses à l'infini peut être la meilleure qui soit possible, quoique ce qui existe par tout l'univers dans chaque partie du temps ne soit pas le meilleur" (Leibniz, 1875-90, vol. 6, p. 237; ver também vol. 3, pp. 582-583). Para avaliar a eficiência de um sistema, é preciso levar em conta sua capacidade de criar novos recursos e não simplesmente a de alocar os recursos existentes de modo ótimo.

Argumento semelhante pode ser aplicado ao caso da propriedade cooperativa. "Se o emprego parcimonioso e estático de capacidades decisórias escassas, que caracteriza as organizações hierárquicas, pode ser vantajoso a curto prazo, essa mesma característica pode ter a propriedade de retardar a multiplicação de capacidades que um sistema mais participativo ocasionaria, e que, na realidade, se revelaria muito benéfica." (Putterman, 1982, p. 149; grifos no original). Esta é uma transposição para a esfera da democracia econômica do argumento de Tocqueville acerca da democracia política. Note-se que a questão não é que os sacrifícios a curto prazo sejam uma condição necessária para o crescimento a longo prazo, conforme demonstra a necessidade de investimentos (sacrifício do consumo imediato), como uma forma de obter um aumento futuro do consumo. Ao contrário, trata-se de que a ineficiência no curto prazo (e a conseqüente perda de consumo) pode ser um subproduto inevitável do sistema que apresenta o melhor desempenho a longo prazo. O sacrifício imediato (a curto prazo) está correlacionado com o desempenho a longo prazo, mas não é sua causa.

Efeitos de transição versus efeitos do estado de equilíbrio

Tocqueville (1969, p. 688) escreveu que "é preciso ter cuidado para não confundir a realidade da igualdade com a revolução que logra introduzi-la nas condições da sociedade e nas leis". Os produtos do equilíbrio endógeno da democracia não devem ser confundidos com os produtos temporários da democratização. Os últimos podem ser indesejáveis, mas os primeiros muito desejáveis, como Tocqueville demonstra em uma grande quantidade de situações. Por exemplo, "enquanto a igualdade propicia a solidez dos princípios morais, a insurreição social que a promove tem uma influência muito perniciosa sobre eles" (idem, p. 599). E mais: "embora as ambições cresçam durante o processo de criação de igualdade, essa característica é perdida quando a igualdade se torna um fato da realidade" (idem, p. 629). Inversamente, em seus comentários ao segundo volume sobre a Revolução Francesa, Tocqueville questiona a noção de que os regimes sem liberdade política favorecem a criação literária, porque dão mais tempo para as pessoas se dedicarem aos seus interesses particulares. Muito pelo contrário, diz Tocqueville (1953, pp. 345-346), a transição da ausência de liberdade para a liberdade é que tende a estimular as artes. Quando a tirania se instala, o espírito criativo desaparece.

Esse argumento tem aplicações muito amplas. Para analisar um sistema econômico, social ou político, não se deve examinar seu desempenho imediatamente posterior à sua introdução, mas esperar até que as propriedades de equilíbrio do sistema tenham tido tempo de emergir.25 25 Note-se que as diferenças entre efeitos de transição e efeitos do estado de equilíbrio não coincidem com aquelas observadas entre os efeitos a curto e a longo prazo, pois é possível distinguir diferentes perspectivas temporais dentro do estado de equilíbrio. Quer o sistema de transição tenha um desempenho melhor ou pior do que o novo estado de equilíbrio, certamente será diferente deste em muitos e importantes aspectos. "Portanto, comparar a eficiência de uma instituição participativa, que conta com membros hierarquicamente adaptados, com a eficiência de uma instituição hierárquica com o mesmo tipo de membros pode ser um procedimento tendencioso, pois a instituição participativa que tem esse tipo de membros pode não ser uma proxy adequada para uma organização participativa bem constituída que poderia desenvolver-se em condições mais ideais" (Putterman, 1982, p. 149). Ao contrário, numa economia cooperativa bem organizada haveria ganhos de transição a ser alcançados com o retorno da hierarquia, pois, durante um certo tempo, seria possível usufruir tanto das capacidades geradas pelas cooperativas quanto da utilização eficiente dessas capacidades que a hierarquia havia possibilitado.

Além desses quatro argumentos usados por Tocqueville para mostrar que o aprendizado pela experiência e com a experimentação não pode substituir a teoria, gostaria de tratar de outra razão, ainda na linha de Tocqueville. Assim como alguns temas analisados até aqui, minha questão refere-se à dimensão temporal da mudança política. Ao contrário de Tocqueville, porém, abordo o tempo tanto do ponto de vista dos atores quanto de um observador externo. Em termos genéricos, e tudo o mais permanecendo constante, um sistema que estimula o planejamento a longo prazo terá, com o correr do tempo, um desempenho superior a um outro que leva os atores a adotarem horizontes muito curtos. Mas, é claro, os outros fatores podem não permanecer constantes. Tocqueville disse que a democracia americana é produtiva a longo prazo, apesar de induzir os atores a pensarem em horizontes de tempo muito curtos. Nas democracias, as pessoas "têm medo de si mesmas, temem que, com a mudança de seus gostos, venham a lamentar não terem sido capazes de abandonar algo que antigamente foi objeto de seu ardente desejo" (Tocqueville, 1969, p. 582). Por isso elas "realizam muitos empreendimentos com rapidez em vez de erigirem monumentos duradouros" (idem, p. 631). No entanto, seu desempenho a longo prazo é melhor do que o das pessoas capazes de enxergar mais longe. Cada realização isolada é menos impressionante, mas "sua incansável atividade, sua grande abundância de energia e força" (idem, p. 243) permite-lhes realizar muito mais.

Todavia, a estabilidade das preferências do consumidor é apenas um fator determinante do planejamento a longo prazo. Outro fator, muito mais importante, é a estabilidade do ambiente institucional. Os agentes econômicos relutam em realizar investimentos que demoram muito para produzir frutos se temem a imposição de novos impostos ou mudanças no sistema básico dos direitos de propriedade. As reformas em curso na China são uma boa ilustração desse ponto. Os reformadores chineses dizem claramente que estão empenhados numa gigantesca experiência. Em uma frase muito repetida, comparam o processo de reformas "a sentir as pedras debaixo dos pés quando cruzam o rio", sugerindo que pode ser necessário voltar a uma posição anterior, caso determinada linha de ação conduza a águas mais profundas. Essa atitude certamente induz os agentes econômicos a tomar uma perspectiva de tempo muito curta. Sabendo que, na hipótese de um fracasso da reforma, ela será imediatamente abandonada, adotam uma atitude prudente e cautelosa que, por sua vez, aumenta a probabilidade de fracasso. Essa tendência é reforçada pelas pressões políticas para obter resultados rápidos, devidas, em parte, ao fato de a reforma agrária de 1978 ter obtido um êxito tão rápido e tão notável que os operários agora esperam que a reforma industrial tenha igual sucesso; em parte porque os grupos conservadores tenderão a usar, a qualquer custo, qualquer prejuízo imediato como pretexto para bloquear o processo das reformas.

Isso implica, na prática, que os novos empresários somente se disporão a investir se houver perspectivas de superlucros, suficientes para recuperar seus investimentos em um prazo de dois a três anos. Numa economia que transita do planejamento centralizado para o regime de mercado há muitos desequilíbrios a ser explorados por empresários desejosos de enriquecer depressa.26 26 Por exemplo, estão aparecendo bancos privados cujos acionistas obtêm lucros de mais de 30% sobre o investimento. Em situações normais, seria de esperar que isso gerasse competição, com alguns bancos cobrando taxas de juros mais baixas para os empréstimos e taxas mais elevadas para os depósitos, a fim de atrair capitais para financiar os empréstimos. Mas não é isso que acontece, porque o Estado fixa um limite máximo para a taxa de juros sobre os depósitos. Esse limite é necessário por causa da taxa artificialmente baixa, determinada por razões políticas, para os empréstimos concedidos pelos bancos estatais às empresas públicas. Como os bancos estatais têm de financiar os juros sobre os depósitos com os juros que recebem pelos empréstimos, o nível baixo destes últimos força para baixo o limite dos primeiros. Há muito menos incentivos para investir produtivamente a longo prazo. Além disso, os empresários bem-sucedidos tendem a não reinvestir os lucros na empresa, preferindo empregá-los em mansões particulares, menos vulneráveis ao confisco pelo Estado. Da mesma maneira, os camponeses investem seus rendimentos em habitação, em vez da melhoria das suas terras, pois não estão muito convencidos da promessa do governo de respeitar o prazo de 15 anos de arrendamento das terras.

Por conseguinte, a situação dos planejadores é muito difícil. Em termos ideais, gostariam de apresentar cada nova reforma como definitiva e irreversível, já que a eficácia e os benefícios de uma reforma dependem muito da certeza que se tenha de que ela durará tempo suficiente para valer a pena fazer investimentos de longo prazo. Na prática, é claro que tais afirmações não são críveis na falta de instrumentos irreversíveis de comprometimento prévio. Na próxima seção argumento que os planejadores chineses talvez não tenham mesmo condições de assumir esses compromissos. Além do mais, não está claro se desejariam assumi-los, mesmo que pudessem. Se as reformas de mercado provocassem fome e desemprego generalizado, eles não desejariam se ver impedidos de abandonar tais compromissos.27 27 Em um artigo publicado em The Economist, 21/3/1981, F. Bates faz uma observação semelhante: "Será que um governo democrático pode comprometer-se de maneira confiável em aderir a uma política independentemente de suas conseqüências — assegurar que a base monetária não crescerá mais do que x%, ainda que os otimistas estejam errados e que a política gere desemprego em massa, rápido crescimento da capacidade ociosa e somente reduza a inflação gradualmente? O dilema é o seguinte: talvez a teoria esteja certa, mas a única maneira de testá-la é convencer o povo de que o governo persistiria nela mesmo que estivesse errada". Concluo, portanto, que a própria noção de "fazer experiências de reformas" não tem quase nenhum sentido, a não ser que os planejadores consigam enganar os agentes econômicos, levando-os a pensar que a reforma é definitiva e irreversível. Isso se faz uma vez ou duas, mas decerto não é possível enganar o povo o tempo inteiro. Cada reviravolta provoca uma perda de confiança; cada recuo na travessia do rio derruba algumas pedras e torna mais difícil a nova tentativa de atravessá-lo.

Irracionalidade política

De acordo com o modelo da ação racional individual,*** *** Modelo dezenvolvido no capítulo 1 do mesmo livro. a irracionalidade pode decorrer da fraqueza de vontade, do excesso de vontade e de distorções na formação das crenças ou preferências. Não discutirei aqui os análogos políticos da última classe de fenômenos. Pelas razões explicadas na primeira seção, não existe nenhum modelo canônico de crenças e preferências racionais na esfera da política; portanto, não existe uma noção clara do significado de crenças racionais e preferências racionais. Acredito, em vez disso, que a fraqueza de vontade e o excesso de vontade efetivamente surgem no decorrer da ação política; a primeira, porque a sociedade talvez não seja capaz de manter decisões passadas, já que nenhuma autoridade superior obriga-a a sustentá-las; o segundo, porque a sociedade, mais ainda do que o indivíduo, está constantemente sujeita à tentação de empregar meios cujo conhecimento os tornaria ineficazes. Não admira, portanto, que a analogia entre indivíduo e sociedade seja muito imperfeita. Na realidade, o valor da comparação está nas inúmeras dissimilitudes que ajudam a compreender claramente o que está envolvido nas duas modalidades de irracionalidade.

No indivíduo, a fraqueza de vontade pode decorrer seja do poder da paixão, seja da incapacidade de sustentar uma decisão tomada no passado. O primeiro caso é exemplificado pelo homem que abandona a mulher porque se apaixonou por outra; o segundo, pelo homem que promete a si mesmo começar a fazer ginástica no dia seguinte. Existem alguns análogos políticos imperfeitos às duas situações. As sociedades democráticas podem ceder a impulsos antidemocráticos mobilizados por temores irracionais ou pela demagogia. Impostos criados como medidas temporárias tendem a se tornar permanentes não obstante a firme intenção de aboli-los assim que desaparecer a situação que os provocou. Em um nível mais geral, os políticos empenhados na sua reeleição estão constantemente sujeitos à tentação de postergar a resolução dos problemas.

No caso do indivíduo, as respostas gerais à fraqueza de vontade são o comprometimento prévio [precommitment] (Elster, 1984; Schelling, 1984, caps. 3, 4 e 6) e o bunching**** **** O termo bunching, neste contexto, significa tomar várias decisões ao mesmo tempo e não uma de cada vez. (Ainslie, 1982, 1984 e 1986). Para um homem, o casamento é um comprometimento prévio com uma mulher que torna menos provável, embora legalmente possível, o divórcio. O tempo que demora concluir um processo de divórcio cria uma oportunidade para que a paixão esfrie um pouco e ele reflita melhor. Posso me forçar a fazer ginástica fixando um contrato de pagar uma grande quantia a uma instituição de caridade se não cumprir a decisão. O último problema, ao contrário do primeiro, também pode ser resolvido por bunching: se eu não começar a correr hoje, será que algum dia o farei? Na discussão que se segue, deixarei de lado o bunching, que não me parece ser um mecanismo importante na política, e me concentrarei no comprometimento prévio como solução para a fraqueza de vontade política.

Numa análise anterior do problema, Spinoza estabeleceu uma analogia clara entre o comprometimento prévio do indivíduo e o da política:

Não é de modo algum contrário à prática que as leis sejam tão firmemente estabelecidas que o próprio rei não as pode revogar. Os persas, por exemplo, costumavam adorar os reis como deuses, no entanto os próprios reis não tinham poder para revogar as leis já estabelecidas, como revela claramente o livro de Daniel, capítulo 6; e, em lugar algum, ao que eu saiba, um rei é nomeado de modo incondicional, sem quaisquer termos explícitos. Na verdade, isso não é contrário nem à razão nem à obediência absoluta devida ao rei, pois as leis fundamentais do Estado devem ser encaradas como decretos permanentes do rei, de modo que seus ministros prestam-lhe obediência total quando se recusam a executar uma ordem sua que transgride às leis. Pode-se esclarecer esse ponto com o exemplo de Ulisses, cujos companheiros de fato cumpriram sua ordem ao se recusarem, apesar de todos os seus pedidos e ameaças, a desamarrá-lo do mastro do navio enquanto ele estivesse enfeitiçado pela canção da sereia; e deve-se creditar ao seu bom senso que ele lhes tenha agradecido depois por terem cumprido sua intenção original de maneira tão obediente. Até mesmo os reis seguiram o exemplo de Ulisses; geralmente, instruíam seus juízes a não terem nenhuma deferência com as pessoas na aplicação da justiça, nem mesmo com o próprio rei, se porventura ele ordenasse algo que significasse uma transgressão às leis estabelecidas. Porquanto os reis não são deuses, mas homens, muitas vezes adulados pelo canto da sereia. Assim, se tudo ficasse na dependência da vontade inconstante de um único homem, nada seria estável. (Tractatus politicus, VII.1)

Raciocínio semelhante aplica-se às democracias.28 28 Para uma análise da mudança de função do Império da Lei — de proteger contra a monarquia absoluta para uma proteção contra a democracia absoluta — ver Sejersted (1988). Se todas as questões estivessem sujeitas ao voto por maioria simples, a sociedade não teria estabilidade e previsibilidade. Uma pequena maioria pode ser facilmente derrubada por eventualidades da participação ou pela mudança de opinião de alguns poucos indivíduos. E o que é mais importante, se a maioria fosse movida por paixões passageiras ou expedientes imediatos, poderia atuar de maneira imprudente e passar por cima de direitos individuais concedidos por decisões anteriores. Todas as democracias, diretas ou indiretas, sempre contaram com instrumentos estabilizadores para evitar que todas as questões fossem resolvidas por maioria simples o tempo todo. Nas democracias representativas modernas, a auto-imposição de limites [self-binding] pode assumir várias formas (ver Elster e Slagstad, 1988). A abdicação ao poder na democracia se dá quando a assembléia delega, de modo irrevogável, determinada parcela de poder a organismos independentes, como o Federal Reserve Board ou o Fundo Monetário Internacional. As constituições políticas também contêm limitações ao poder democrático, por meio de uma combinação de regras substantivas de proteção à privacidade, à propriedade e às liberdades civis, e regras de procedimento que exigem mais do que uma maioria simples para a realização de uma mudança constitucional.

Entretanto, a analogia entre a auto-imposição individual e a auto-imposição política de limites é extremamente restrita. Um indivíduo pode comprometer-se com determinadas ações, ou, pelo menos, tornar mais difícil e menos provável desviar-se delas, recorrendo a uma estrutura legal externa e independente de si próprio. Mas não existe nada externo à sociedade. Com exceção de alguns casos especiais, como a abdicação de poderes ao FMI, as sociedades não podem confiar sua vontade a estruturas fora do seu próprio controle: os vínculos sempre podem ser desfeitos se as sociedades assim o desejarem. O problema não é explicar por que tantas constituições fracassam em impor obediência a seus criadores e nunca passam de meros pedaços de papel escrito. A questão está em compreender de que maneira muitas constituições conseguem adquirir essa misteriosa capacidade de serem obedecidas.29 29 Agradeço a Adam Przeworski por sugerir-me essa maneira de colocar a questão.

Para ilustrar o problema, retorno ao processo de reformas em curso na China. Além dos problemas criados pela atitude experimental em relação às reformas, um importante obstáculo ao êxito e ao progresso chinês é a ausência do princípio da legalidade, que se define da seguinte maneira: (a) uma ação individual é permitida a não ser que exista uma lei que a proíba expressa e inequivocamente; (b) a intervenção do Estado é proibida a não ser que exista uma lei que a autorize expressa e inequivocamente. Em vez disso, a tradição chinesa contém uma concepção positiva da lei, segundo a qual (a) uma ação individual é permitida se houver uma lei que a autorize expressamente; (b) o Estado tem o direito de intervir em todas as atividades não permitidas, mesmo que não sejam expressamente proibidas.30 30 O Código Penal Chinês de 1979 não reconhece o princípio da "não punição sem a existência prévia de uma lei que defina o ato como criminoso" ( nullum crimem, nula poena sine lege). O artigo 79 do Código prevê que "uma pessoa que comete um crime não explicitamente definido nas seções específicas do Código Criminal pode ser presa e condenada após a aprovação da Corte Suprema do Povo, de acordo com o artigo mais próximo do Código" (Chiu, 1987). No Ocidente, ao contrário, o raciocínio por analogia só é permitido no Código Civil. Se uma atividade não é permitida pela lei, os indivíduos podem ou não ser autorizados a realizá-la — eles nunca podem saber. Por exemplo, houve uma época em que havia uma lei permitindo a confecção de cartazes murais. Mais tarde, quando essa lei foi revogada, interpretou-se que havia uma proibição de confeccionar cartazes, embora não tivesse sido aprovada nenhuma lei que os proibisse expressamente. Igualmente, "até 1980, o tamanho da empresa privada era limitado a sete trabalhadores. A restrição foi revogada, mas não se decretou nenhuma lei que permitisse o emprego de mais do que sete trabalhadores até 1987, de modo que a simples suspensão do limite de sete trabalhadores não foi suficiente para favorecer a formação de empresas privadas. [...] A não ser que uma autoridade estatal tenha explicitamente introduzido nas regras um determinada prática, ela poderia ser arbitrariamente considerada ilegal." (Roemer, 1988).

Nesse tipo de sistema, os sinais políticos são mais importantes do que as leis para indicar aos indivíduos o que eles podem ou não podem fazer. Janos Kornai diz que existem limites para a reforma econômica em qualquer economia socialista enquanto a "burocracia não esteja disposta a respeitar um refreamento voluntário de intervir" (apud Dernberger, 1987). Mas essa não me parece ser a maneira correta de formular a questão. O problema é se a burocracia é capaz e está disposta a se fazer incapaz de intervir, já que a tentação de fazê-lo sempre estará presente. Há necessidade de novas medidas constitucionais, inclusive medidas que retirem a interpretação da Constituição das mãos daqueles que ela supostamente deve conter. Atualmente, "o Congresso Nacional do Povo pode decretar qualquer lei que deseje, ignorando o espírito e a letra da Constituição. Isso porque a Constituição concedeu o poder de interpretar a Constituição ao Comitê Permanente do Congresso Nacional do Povo. [...] Não se pode sequer imaginar que esse órgão subordinado interprete uma lei decretada por seu organismo de origem, isto é, o Congresso Nacional do Povo, como sendo inconstitucional." (Chiu, 1987).31 31 Conforme me foi sugerido por Tang Tsou, essa descrição legalista é equivocada. Na realidade, o Comitê Permanente é a instância superior e o "organismo de origem" é que é subordinado.

Afirmei, até aqui, duas coisas a respeito das reformas na China. Primeiro, que a ausência de regras permanentes e estáveis impõe dificuldades aos agentes econômicos para a realização dos investimentos de longo prazo necessários ao sucesso das reformas. Nas atuais circunstâncias, isso talvez seja inevitável. Se os planejadores tivessem de se comprometer de modo irreversível e definitivo com um sistema específico de propriedade, tributação e transferências para os particulares, o resultado poderia ser desastroso, acarretando desemprego e fome em larga escala. O comprometimento prévio pode gerar mais problemas do que soluções quando o contexto é suficientemente incerto e imprevisível.32 32 Vejamos novamente a história do Livro de Daniel na cova dos leões. Conta-se ali como o rei Dario foi ludibriado pelos inimigos de Daniel e levado a promulgar um decreto segundo o qual "quem quer que rogue a Deus ou ao homem durante 30 dias, exceto a ti, Oh rei, será mandado para a cova dos leões". Quando Daniel fez suas orações a Deus, seus inimigos denunciaram-no a Dario e exigiram que ele fosse mandado para a cova dos leões. Dario tentou escapar da difícil situação mas colocaram-no diante dos termos da lei: "nenhum decreto ou estatuto que o rei estabeleceu poderá ser modificado", diante do que o rei teve de ceder. Como se sabe, os leões não tocaram em Daniel; mesmo assim, a história ilustra os riscos do comprometimento prévio. Quando uma pessoa se compromete de maneira rígida com determinadas regras de procedimento, pode ficar impedida de fazer a escolha certa em circunstâncias não previstas. Em termos ideais, nós gostaríamos de poder distinguir os bons dos maus motivos para quebrar regras; os bons motivos seriam a razão para criar regras em primeiro lugar, e os segundos seriam exceções legítimas devidas a circunstâncias não previstas. (Afinal de contas, às vezes temos boas razões para cancelar uma consulta ao dentista.) Os indivíduos usam uma variedade de expedientes para fazer essa distinção, mas estes são sempre frágeis e vulneráveis ao auto-engano (Ainslie, 1986). Pareceria ainda mais difícil para um sistema político construir não só salvaguardas de primeira ordem contra a impulsividade, mas também salvaguardas de segunda ordem contra a obediência irracionalmente rígida ao primeiro tipo de garantias e proteções. Não é uma questão de vigiar os guardas, mas de fazê-los abaixar a guarda em casos de força maior.33 33 Cass Sunstein indicou-me dois exemplos americanos interessantes que destacam a ambigüidade das exceções às regras constitucionais. Em Korematsu v. United States, 323 U.S 214 (1944), consideraram-se constitucionais medidas de confinamento de cidadãos americanos descendentes de japoneses. Em New York Times Co. v. United States; United States v. Washington Post Co., 404 U. S. 713 (1971), considerou-se inconstitucional a tentativa de interromper a publicação dos "Documentos do Pentágono". Nos dois casos, os defensores das medidas restritivas alegaram que a Constituição não deve ser uma camisa-de-força para a ação governamental quando a segurança militar da nação está em jogo. "A Constituição não é um pacto suicida". Não me parece claro, porém, se essas opiniões representavam (a) o tipo de tentação que a Constituição visa prevenir, (b) uma preocupação legítima de que a Constituição possa impor restrições excessivamente estritas ao governo, ou (c) uma alegação de que a Primeira Emenda às vezes pode ser sobrepujada por outros itens da Constituição.

Meu segundo comentário sobre a prática dos reformadores chineses, que trata da falta do princípio da legalidade, é mais crítico. Aceitar a necessidade da experimentação e os perigos de um comprometimento muito rígido é uma coisa; admitir a legislação retroativa e a invocação de uma concepção positiva da lei é outra. Essas práticas estimulam a passividade e a relutância em assumir qualquer tipo de risco. Nesse sentido, o atual regime vem perpetuando os anos turbulentos vividos entre 1957 e 1976, que criaram nas pessoas uma tendência profundamente arraigada de viver no tempo futuro, constantemente se perguntando sobre como suas ações seriam interpretadas e punidas se "o outro lado" retomasse o poder. O primeiro passo na direção de uma reforma constitucional deve ser, portanto, introduzir o princípio da legalidade.

Finalmente, há uma questão de maior profundidade: será que os reformadores poderão realizar reformas constitucionais sem um compromisso normativo com o princípio da legalidade e com os direitos individuais? Se eles introduzirem um sistema constitucional e renunciarem a alguns dos seus poderes apenas para fazer a economia funcionar, os agentes econômicos sempre irão temer que os direitos venham a ser abolidos quando a economia enfrentar dificuldades. Mesmo que os planejadores abdicassem do poder de interpretar a Constituição, por muito tempo teriam ainda condições de agir fora da lei. A curto e médio prazos, o Partido Comunista Chinês não poderá fazer-se efetivamenteincapaz de reverter o processo de reformas. Ele tem muitas espécies de poder, mas não o poder de se fazer sem poder. Ulisses teve sorte porque tinha à mão a tecnologia necessária para impor a si mesmo uma limitação. Os planejadores centrais não dispõem de meios para atar suas próprias mãos e para impedir seus subordinados de as desatar. Em conseqüência disso, os agentes econômicos tenderão a adotar um horizonte curto de tempo, de modo que o sistema terminará realmente entrando em crise. Somente se e quando os direitos são adotados em bases não instrumentais adquirem a desejada eficácia instrumental, porque somente então o governo terá credibilidade para declarar que as violações dos direitos não serão toleradas.

Ao sugerir que os efeitos salutares da liberdade são essencialmente subprodutos, sigo mais uma vez a opinião de Tocqueville (1952, p. 217):

Tampouco penso que um genuíno amor pela liberdade é despertado pela perspectiva de recompensas materiais; na realidade, essa perspectiva é muitas vezes duvidosa, pelo menos no que diz respeito ao futuro imediato. É verdade que, a longo prazo, a liberdade sempre traz conforto e bem-estar para aqueles que sabem como conservá-la e, muitas vezes, grande prosperidade. Entretanto, às vezes, ela não traz comodidades dessa natureza e, inclusive, há ocasiões em que o despotismo é mais capaz de assegurar um breve desfrute dessas amenidades. Na realidade, os que prezam a liberdade apenas por causa dos benefícios materiais que ela oferece nunca a conservam por muito tempo.

Tampouco aqueles que prezam a liberdade apenas por causa dos benefícios materiais que ela oferece conservaram esses próprios benefícios. A tentativa deliberada de criar liberdade política como meio de obter prosperidade material é uma forma de excesso de vontade. Para que a liberdade seja valiosa do ponto de vista instrumental é preciso que se saiba que ela tem uma base não instrumental, caso contrário ela não garantirá a segurança e a paz de espírito que ocasionam seus efeitos salutares. Saber que as liberdades só foram concedidas por motivos instrumentais retira parte de sua eficácia instrumental, porque os cidadãos nunca podem confiar em que o governo não virá a mutilá-las, se assim lhe parecer vantajoso a curto prazo.

Um problema correlato está latente em muitos programas governamentais de frentes de trabalho.34 34 A argumentação que se segue baseia-se em Elster (1988a). Entre os benefícios freqüentemente citados desses programas está seu efeito sobre o auto-respeito das pessoas que têm emprego. De fato, é verdade que estar desempregado e viver à custa do seguro-desemprego pode ser nocivo para o auto-respeito de uma pessoa, mas não é evidente que um trabalho cujo único e principal objetivo é criar o auto-respeito produza o efeito pretendido.35 35 Igualmente, movimentos políticos que se justificam pelo auto-respeito que proporcionam aos seus participantes provavelmente não conseguem êxito nem a esse respeito (Elster 1983a, pp. 98-100). Para gerar auto-respeito, um trabalho precisa ter como objetivo imediato a produção de bens e serviços socialmente considerados valiosos. O valor não instrumental do auto-respeito somente pode ser alcançado como subproduto do valor instrumental de produzir bens e serviços. A experiência dos programas de frentes de trabalho na década de 30 apóia essa opinião:

A economia política das frentes de trabalho criou uma série de obstáculos aos fatores de produção, à tecnologia, à organização e ao tipo de produtos. Esses obstáculos afetaram o valor social do produto. Não só a eficiência das medidas tornou-se muito inferior à dos programas comparáveis de contratos, como também as forças políticas de uma economia de livre iniciativa tornaram esses programas não competitivos. A restrição dos tipos de projetos foi provavelmente o fator mais grave na diminuição do valor do produto. Os benefícios não pecuniários que deveriam ser derivados dos programas de frentes de trabalho — sustentação da moral, das qualificações e dos hábitos de trabalho — dependiam eles mesmos, e de maneira decisiva, do valor do produto. (Kesselman, 1978, p. 215; grifos meus)

Entre as políticas que, por razões semelhantes, acabam gerando o resultado contrário ao qual se destinavam estão: as tentativas de manter os jovens nas escolas (ou universidades), mais para evitar que eles se tornem problemas do que para ensinar-lhes conhecimentos; a generalização da ênfase na participação, no process values e no dignitary values, como objetivos em si mesmos mais do que como instrumentos de aperfeiçoamento dos resultados; e, nas economias de planejamento central, a prática de fixar deliberadamente metas irrealizáveis para forçar os agentes a um esforço máximo. Esses programas tendem a dar melhores resultados (e, portanto, são mais atraentes) na política do que no caso do indivíduo, porque, na primeira hipótese, o sujeito e o objeto da vontade excessiva são agentes distintos. Quando o governo promove a liberdade para incentivar a iniciativa dos cidadãos, ou cria empregos para manter o auto-respeito dos trabalhadores, os grupos alvo não precisam estar informados dessas intenções. Um indivíduo, ao contrário, dificilmente está alheio à sua intenção de vencer a insônia ou de ser mais espontâneo.

Todavia, as sociedades democráticas são construídas sobre a premissa de que o governo não deve enganar os cidadãos, mesmo que seja para o próprio bem deles. A condição da publicidade, propagada por Kant e Rawls,36 36 Referências e uma discussão mais profunda encontram-se em Elster (1983a, pp. 92-93). elimina o tipo de embuste capaz de permitir que o governo ponha em prática políticas insustentáveis à luz do dia, tais como trabalho, educação e participação fictícios. Mesmo nas sociedades não democráticas e em sociedades apenas formalmente democráticas, nas quais essa condição é violada, em geral os governos não são capazes de sustentar o embuste por muito tempo. A hipocrisia é contagiosa. Treinamentos e empregos de faz-de-conta criam estudantes e trabalhadores de faz-de-conta. O entusiasmo simulado com que o gerente da fábrica anuncia as metas planejadas para o ano seguinte acaba por traí-lo.

Alternativas ao racionalismo na política

Se a concepção de racionalidade baseada no ator unitário não consegue orientar ou explicar a ação política, quais seriam as possíveis alternativas? A questão da explicação reduz-se a uma análise do comportamento individual uma vez reconhecida a necessidade de desagregar o processo político. Nesta seção focalizo o problema normativo: que tipos de argumentos para a ação são coerentes com os limites cognitivos à racionalidade que estou procurando mostrar? A resposta de Michael Oakeshott e Friedrich Hayek seria a de que a fragilidade da razão humana exclui por completo a reforma consciente e deliberada. Na opinião desses autores, tentativas de mudar a sociedade numa direção específica consistem no que denominam de "racionalismo" e no que Otto Neurath chamou de "pseudo-racionalismo", a incapacidade da razão de definir e respeitar seus próprios limites. Sustentarei, porém, que não se pode extrair essa conclusão excessivamente cética, porque nem todas as razões para a reforma são de natureza conseqüencialista.

Dentro do paradigma da teoria das decisões foram formuladas várias alternativas à abordagem conseqüencialista. Isaac Levi (1974) sugere, por exemplo, que a segurança e o diferimento podem suplementar a racionalidade instrumental como critério de escolha em condições de incerteza. É evidente que ambos são relevantes para a ação política. Na escolha da forma de energia — fóssil ou nuclear —, é muitas vezes difícil estimar os custos e os riscos (Elster, 1983b, apêndice 1). Uma linha de argumentação consiste em pressupor que o pior vai acontecer, e optar, por exemplo, pelos riscos locais de um acidente nuclear, ao invés do risco universal do efeito estufa. Outra maneira de pensar é dar ênfase à necessidade de ganhar tempo e manter abertas nossas opções até que se tenha um maior conhecimento dos riscos envolvidos na escolha.

Neste artigo, quero ir além da abordagem da teoria das decisões e sugerir que a justiça proporciona uma motivação alternativa para a realização de reformas políticas. Não acredito que as principais reformas políticas realizadas no último século tenham-se apoiado sobretudo em razões instrumentais; ao contrário, elas foram defendidas por movimentos sociais ancorados numa concepção de justiça. Ilustro essa proposição com dois principais exemplos: a extensão do direito de voto e o surgimento do welfare state. Posteriormente, aplico a mesma idéia a algumas propostas em curso para a reforma econômica. Baseio-me na concepção da justiça como direito não instrumental à igualdade de consideração e de respeito que, sob vários formas, é subjacente aos estudos de John Rawls e Ronald Dworkin. Isso inclui principalmente o direito à igual participação na formulação de decisões políticas e no bem-estar material. Segundo essa concepção, as desigualdades apenas se justificam em um conjunto muito restrito de condições. A exclusão do direito de voto somente se justifica por razões de grave incapacidade mental. Desvios do padrão de completa igualdade nas condições de bem-estar material só podem ser justificados por dois critérios de não-perversidade: primeiro, não deveria haver compensação e redistribuição quando os benefícios concedidos aos indenizados forem pequenos em comparação com os custos que acarretam para outros;37 37 Isso inclui, como caso especial, as transferências que pioram a situação dos beneficiários. A fórmula intencionalmente vaga "A água pode vazar, mas não deve entornar demais" é compatível tanto com a teoria de Rawls quanto com o utilitarismo, bem como com a teoria "de senso comum" da justiça exposta por Frohlich, Oppenheimer e Eavey (1987). Sou também intencionalmente vago a respeito da natureza daquilo que é distribuído, pois os argumentos desenvolvidos a seguir aplicam-se igualmente às condições de bem-estar material, aos bens primários, às capacidades básicas ou às oportunidades de acesso ao welfare. segundo, não deveria haver compensação se esta implicar tratar os beneficiários como não responsáveis por seus próprios estados mentais.

O ponto central da minha argumentação é que, na medida em que o princípio subjacente às reformas for considerado fundamentalmente justo, no sentido acima indicado, as pessoas estarão dispostas e motivadas a suportar os custos da transição e a experimentar diversas modalidades de implementação. Quem achar essa proposição excessivamente idealista talvez se sinta mais interessado numa outra maneira de formulá-la: se uma reforma é geralmente considerada justa, é difícil alguém fazer-lhe oposição de modo um pouco mais entusiasmado. Geralmente é fácil distinguir a verdadeira oposição às reformas de campanhas que sabidamente não vão dar em nada, destinadas apenas a adiar o inevitável.

Examinemos primeiro o caso da extensão do direito de voto. Nas democracias, o direito de voto é necessariamente limitado pela idade e pela condição de cidadão (ou residente). Além desses limites, não há restrições inerentemente indispensáveis e, na maioria das democracias, hoje em dia existem poucas restrições além dessas. Antigamente, porém, houve numerosas e fortes limitações. Pode-se distingui-las por seu conteúdo substantivo ou, o que é melhor, por sua motivação subjacente.

Restrições econômicas, como a posse de propriedades ou o pagamento de impostos, foram justificadas pelo menos de quatro maneiras diferentes.38 38 A argumentação que se segue baseia-se em Seymour e Frary (1918), McGovney (1949), Williamson (1960) e Kay (1986). Primeiro, antes da introdução do voto secreto, a prosperidade econômica foi muitas vezes entendida como garantia da integridade que se considerava necessária para evitar que os eleitores fossem comprados.39 39 Na realidade, o argumento apenas mostra que comprar eleitores ricos é mais caro, o que pode ser compensado pelo fato de que quando o direito de voto é limitado aos ricos, há menos eleitores para subornar. Segundo, considerava-se freqüentemente que a posse de propriedades conferia aos seus donos uma competência especial para participar da política, ou porque a propriedade era vista como uma proxy para a educação (daí o fato de que possuir propriedades eximia a pessoa do teste de alfabetização), ou porque se acreditava que a propriedade era uma garantia de que o indivíduo dispunha do tempo livre necessário, ou ainda porque se pensava que ter propriedades levaria o indivíduo a interessar-se pelo bem-estar da sociedade a longo prazo e não ser movido apenas pelo desejo de obter ganhos imediatos. Os proprietários de terras, por exemplo, foram especialmente favorecidos por essas razões. Terceiro, a taxa de imposto fixo por pessoa [poll tax] foi defendida porque se acreditava que a disposição para pagar impostos demonstrava um alto nível de motivação e interesse nas questões políticas.40 40 Stephen Holmes chamou minha atenção para o fato de que os romanos impunham condições econômicas ao direito de voto com a finalidade de arrancar informações dos cidadãos a respeito de suas propriedades tributáveis. Em tese, essa regra também servia ao propósito de selecionar os cidadãos suficientemente interessados na res publica para levar sua riqueza ao conhecimento das autoridades. A principal alegação a favor da poll tax, no entanto, era que ela indicava que um cidadão era competente para deliberar. Por último, as limitações econômicas foram justificadas com base na justiça comutativa: não deve haver tributação sem representação, e vice-versa. Entre esses argumentos, os três primeiros são claramente instrumentais, no sentido de que seu objetivo é produzir decisões substantivamente boas. Passariam no teste "de racionalidade" e até mesmo no teste de "inspeção especial" do que constitui uma classificação admissível (Ely, 1980, pp. 31, 120-124 e 146-148). O último argumento baseia-se em considerações sobre a justiça, mas de um tipo muito especial e restrito, como argumento abaixo.

A maioria das outras restrições pode ser classificada em uma dessas categorias. A exclusão dos filhos que residem com a família mas não têm um quarto próprio era uma prática usual na Grã-Bretanha antes de 1914, e justificava-se por uma razão de integridade: não era possível formar uma opinião política de modo adequado e independente se a pessoa não dispusesse da privacidade mínima de ter um quarto só para si na residência da sua família. A relação estabelecida entre o sufrágio universal e o serviço militar obrigatório baseia-se em razões de justiça comutativa.41 41 Os cidadãos atenienses perdiam o direito ao voto por conduta covarde na guerra e por não pagarem suas dívidas com o Estado (MacDowell, 1978, pp. 160-165). A privação do direito de voto dos soldados que estão no serviço ativo, ao contrário, justifica-se pelo fato de serem membros temporários da corporação e de, por isso, não terem interesse algum na sua prosperidade a longo prazo (Ely, 1980, p. 120). Alega-se essa mesma razão para vetar a representação estudantil nos organismos dirigentes das universidades e para impor requisitos estritos de residência para que uma pessoa tenha o direito de votar em eleições locais. A comprovação de ser alfabetizado tem a finalidade de separar os eleitores mais competentes dos menos qualificados. A privação do direito de voto dos doentes mentais justifica-se pelos mesmos motivos. Os criminosos não podem votar enquanto estiverem confinados, ou mesmo depois de soltos, por razões de justiça comutativa, mas os legisladores possivelmente também foram influenciados pela idéia de que as opiniões políticas dos criminosos condenados tendem a ser distorcidas ou falsas, e, portanto, eles não devem ser representados.42 42 Como afirmou Aiskhines no discurso Against Timarkhos: "O legislador considerou impossível que o mesmo homem fosse mau na vida privada e bom na vida pública" ( apud MacDowell, 1978, p. 174). Por fim, a exclusão das mulheres foi justificada por razões de competência ou de justiça comutativa (porque as mulheres não são obrigadas ao serviço militar).

Os argumentos baseados na justiça comutativa partem de uma visão da sociedade como uma sociedade anônima, em que os cidadãos cooperam visando obter vantagens mútuas. Embora os contribuintes do imposto de renda possam estar dispostos a gastar uma parte do que pagam com os não contribuintes, geralmente insistem em participar da decisão de empregar o dinheiro dessa maneira e, crucialmente, em excluir os não contribuintes dessa decisão.43 43 Evidentemente, é assim que os países ricos hoje decidem conceder ajuda financeira aos países pobres. "Não há representação sem tributação." Mais adiante, sustento que existe uma ambigüidade na expressão "não contribuinte", que pode incluir tanto os que estão permanentemente incapacitados para o trabalho e, portanto, não têm condições de pagar imposto de renda, quanto os que estão temporariamente sem emprego. Por ora basta notar que, nas duas acepções, destituir os não contribuintes (ou, em decorrência, os que não prestam ou não podem prestar serviço militar) do direito de voto baseia-se numa concepção muito estreita de justiça. Trata-se da visão de que uma sociedade bem organizada nasce de uma negociação entre indivíduos motivados pelo interesse próprio, na qual os que não têm nada a contribuir e, por conseguinte, nenhum poder de barganha também não podem esperar receber coisa alguma, exceto das instituições de caridade.44 44 Gauthier (1986) formula a mais recente e sistemática exposição desse ponto de vista.

O sufrágio adulto universal fundamenta-se numa concepção mais simples e mais atraente, que transcende ao mesmo tempo as considerações instrumentais e de justiça comutativa. De fato, a sociedade é uma joint venture, mas o que une seus membros não é apenas o interesse mútuo, mas também o respeito mútuo e a tolerância recíproca. Se o primeiro passo no desenvolvimento da democracia foi a idéia de que nenhum grupo de pessoas podia imaginar-se intrinsecamente superior aos outros (Barry, 1979), o segundo foi que nenhum grupo podia imaginar-se intrinsecamente inferior aos outros. Esse argumento, reformulado, desenvolve-se da maneira que se segue. (a) Não existe nenhum grupo, seja qual for sua definição (os ricos, os nobres, os proprietários de terras, os homens, os velhos, os educados ou os inteligentes), cuja totalidade dos seus membros seja intrinsecamente mais apta do que os não membros para tomar decisões políticas. (b) Como as afirmações de superioridade ou inferioridade podem ter no máximo validade estatística, há razões para que as pessoas se sintam ofendidas e rebaixadas pela exclusão decorrente de uma generalização que inevitavelmente comporta exceções. (c) A escolha de especialistas para averiguar o fundamento das afirmações de superioridade e inferioridade é uma questão passível de disputa, da qual nenhum grupo potencialmente inferior deveria ser excluído. (d) Caso fique demonstrado que os membros de algum grupo carecem da necessária competência e motivação, dever-se-ia presumir que a razão disso foi a falta de oportunidades de participação, e não um déficit inato de inteligência. Além disso, os indivíduos excluídos teriam boas razões para duvidar de que as decisões tomadas pelos habilitados a votar sejam guiadas pela preocupação de um dia incorporá-los (Ely, 1980, pp. 220-221). (e) Especificamente, não há razão alguma para acreditar que a integridade — o mais importante critério de habilitação para a participação política — seja mais freqüentemente encontrada em qualquer dos grupos mencionados, ou em qualquer outro grupo. O governo dos inteligentes, ricos e cultos tende a tornar-se, e a continuar sendo, o governo para os inteligentes, ricos e cultos. (f) Os que são impedidos de votar raramente são impedidos de reclamar que deveriam votar. Em conseqüência disso, os grupos privilegiados se vêem frente a frente com um dilema: caso se recusem a oferecer explicações, enfraquecem sua própria posição como donos de uma sabedoria superior; se fornecerem explicações, implicitamente estarão reconhecendo os grupos excluídos como seus iguais em inteligência.45 45 Essa percepção crucial deriva da obra de Habermas, conforme interpretada em Elster (1983a, cap. 1, seção 5). Uma vez instalada alguma forma de democracia, a defesa de um privilégio parcial torna-se insustentável; não haverá compromisso possível entre contrários: a democracia tem de expandir-se ou desaparecer. A condição de publicidade assegura que a igualdade é promovida pela própria tentativa de combatê-la.

Freqüentemente se diz que a extensão do direito de voto deve ser interpretada em termos de exigências de legitimidade (ver, por exemplo, Freeman e Snidal, 1982). Os governos e as classes dominantes aboliram sucessivamente as restrições ao direito de voto porque foram obrigados a fazê-lo para manter sua legitimidade. Se o sufrágio adulto universal não tivesse sido concedido, haveria um grande descontentamento e inquietação social; por isso, governos escolhidos por um eleitorado restrito optaram pelo menos pior, ou seja, foram motivados pela racionalidade instrumental ao ampliarem o direito de voto. Essa opinião pode ter algum grau de verdade, mas fica muito aquém de uma explicação cabal. Argumentos baseados na legitimidade pressupõem outras razões. A não ser que a maioria da população desejasse a extensão do sufrágio por outros motivos, os governos não perderiam legitimidade por não concedê-la. Minha opinião é que, entre esses outros motivos, argumentos baseados em justiça tiveram importância. A concessão do direito de voto às mulheres é o exemplo mais claro. Não foi uma concessão propugnada por um partido ou movimento político, com o propósito de usar o voto para promover os interesses sociais e econômicos das mulheres; ao contrário, a exclusão das mulheres do direito de votar foi considerada intrinsecamente intolerável e degradante.46 46 Na Grã-Bretanha, houve também um fator de justiça comutativa. Devido às tarefas vitais desempenhadas pelas mulheres durante a Primeira Guerra Mundial, tornou-se impossível alegar que elas não tinham nada a oferecer em troca do sufrágio. O fato de as mulheres proporcionarem um bem coletivo de importância crucial — as crianças que asseguram a continuidade da sociedade — também podia ser usado como argumento (como provavelmente o foi). Quanto à classe operária, as motivações estiveram muitas vezes intimamente relacionadas com a defesa de interesses econômicos. No entanto, como fica claro a qualquer leitor de A formação da classe operária inglesa, de E.P. Thompson, a luta pelo voto masculino foi em grande parte motivada por simples argumentos de justiça.47 47 Caberia também levar em conta um argumento de natureza puramente instrumental-utilitarista para a ampliação do direito de voto, segundo o qual a eliminação dessa degradante discriminação representou ipso facto um ganho em bem-estar social. Contudo, mais uma vez, essa consideração instrumental é parasitária em relação a uma razão não instrumental, qual seja, a injustiça inerente a um tratamento desigual.

O surgimento do welfare state é análogo à extensão do direito de voto, e ambos os fatos estão interligados. Em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre dois aspectos do welfare state. Por um lado, algumas de suas iniciativas têm a forma de poupança compulsória ou de contribuição compulsória para um fundo comum de risco, sem nenhum componente redistributivo. Por outro lado, algumas atividades são essencialmente redistributivas. Embora a maioria dos serviços de welfarecombine os dois elementos, é interessante distingui-los.

Quanto às primeiras atividades, é o seu caráter compulsório que as torna um componente do welfare state. As pessoas podem fazer e fazem poupanças para a velhice e seguros contra doenças e acidentes pessoais. No entanto, os pagamentos de seguros por livre escolha dos indivíduos foram crescentemente substituídos por descontos compulsórios em folha de pagamento.48 48 Esses descontos são formalmente apresentados como contribuições do empregador. Porém, os economistas concordam que são, de fato, deduções da folha de pagamento, no sentido de que sem a contribuição compulsória do empregador os salários dos empregados seriam mais altos na proporção do desconto. Às vezes, os sistemas de indenização compulsória conservam a base atuarial dos sistemas privados. Nesse caso, os argumentos para mantê-los só podem ser paternalistas. Os indivíduos se comprometem, por intermédio dos políticos, com medidas que gostariam de tomar enquanto cidadãos privados, não fosse sua fraqueza de vontade. Mas os sistemas compulsórios diferem do seguro privado de duas maneiras: não são atuarialmente corretos, no plano do indivíduo, nem autofinanciáveis, no plano coletivo.

O seguro compulsório é muitas vezes acompanhado de medidas redistributivas. As pessoas geralmente não recebem de volta, quando chegam à velhice, o equivalente atuarial do que pagaram durante a vida inteira. É verdade que existem aspectos redistributivos na maioria dos sistemas de seguro privado: "Como nenhuma classe de risco é inteiramente homogênea, sempre parece haver um certo subsídio dos riscos ligeiramente mais elevados dentro de uma classe pelos riscos ligeiramente mais baixos" (Abraham, 1986, p. 84). Os aspectos redistributivos do seguro social vão deliberadamente além desses efeitos, em geral no sentido de um nivelamento. É o que acontece com freqüência cada vez maior nas companhias privadas de seguros, quando estão proibidas por lei de adotarem certas classificações para diferenciar entre classes de risco. Por exemplo, se as classificações por sexo fossem proibidas, "os homens subsidiariam as aposentadorias das mulheres e estas subsidiariam o seguro de vida dos homens" (idem, p. 92). Esse tipo de política pode levar a situações absurdas. Por exemplo, "não parece correto pedir aos segurados por invalidez que arquem com o custo total dos subsídios aos hemofílicos"(idem, p. 99). Desde que a sociedade decida usar o seguro compulsório para fins redistributivos, não é adequado exigir que cada programa em separado seja autofinanciável. De fato, não há razão alguma até mesmo para exigir que todos os programas sejam autofinanciáveis, pois não há por que manter essa forma de redistribuição inteiramente separada da redistribuição pela tributação. O resultado final é o welfare state, um sistema no qual a correlação original entre prêmios e benefícios em grande medida desapareceu.

Embora a contribuição compulsória para um fundo comum de risco e a redistribuição muitas vezes andem juntas no moderno welfare state, a distinção entre ambas não deixa de ter utilidade. Por um lado, o sistema público oferece proteção contra muitos casos de invalidez que jamais seriam cobertos pelos seguros privados. Os portadores de cegueira congênita ou de defeitos genéticos não podem contratar seguros contra essas fatalidades, pois não se pode fazer seguro contra um evento que já ocorreu. É difícil fazer seguro privado contra o desemprego, pois os riscos para os diferentes indivíduos não são estatisticamente não correlacionados, como seria necessário a um sistema sólido de seguros. Na outra ponta do espectro, alguns componentes do sistema de seguro social ainda obedecem aproximadamente aos princípios atuariais (Page, 1983, pp. 67 e 75). A meio caminho entre esses pólos, alguns serviços comportam um elemento redistributivo mais amplo, outros, um componente de fundo de risco. Este último corresponde à concepção da sociedade como uma joint venture para a obtenção de vantagens mútuas, ao passo que o componente redistributivo reflete um princípio mais fundamental de simples justiça.

Pode-se explorar mais a fundo essa distinção introduzindo a idéia de um "véu de ignorância". Muitas teorias sobre a justiça distributiva coincidem na opinião formal de que uma justa distribuição de recursos é aquela em que os agentes racionais escolhem por trás do véu de ignorância, embora discordem quanto à "espessura" desse véu. Usando terminologias distintas, mas em essência equivalentes, as teorias podem concordar que a distribuição de produtos ou de bem-estar não deveria ser afetada pelos aspectos "moralmente arbitrários" das pessoas, embora divirjam quanto ao que é arbitrário e o que é relevante. O fundo de risco ocorre por trás de um véu muito fino, que permite às pessoas conhecerem suas aptidões, preferências e riqueza, mas não sua futura capacidade e oportunidade de auferir renda. Nessas circunstâncias, os indivíduos racionais admitirão fazer seguro contra riscos, isto é, pagar um prêmio para um fundo comum do qual podem extrair indenizações. A redistribuição ocorre por trás de um véu mais grosso, que nega às pessoas o conhecimento de muitas, talvez a totalidade, das suas qualidades e dotes pessoais. Quando estão por trás de um grosso véu de ignorância, as pessoas se perguntam como gostariam que uma sociedade fosse organizada se desconhecessem os bens ou preferências que passariam a possuir. Os indivíduos racionais talvez queiram proteger-se contra o risco de nascerem pobres, ou pouco dotados de aptidões produtivas, ou excessivamente dotados de gostos dispendiosos.

A noção de fino véu de ignorância deve ser entendida de modo bem literal: como não sabemos o que o futuro nos reserva, há sentido em tomar precauções. O véu grosso, ao contrário, não pode ser entendido literalmente, pois temos noção de nossas aptidões, preferências e riqueza. Os véus grossos são apenas expedientes literários para expressar a idéia de que o bem-estar dos indivíduos não deveria ser afetado por determinados atributos arbitrários — justamente aqueles que são abstraídos por trás do véu em questão. O mais fino desses véus grossos corresponde a uma concepção meritocrática da justiça, segundo a qual as pessoas têm direito aos frutos de suas aptidões e esforços, mas não aos frutos da propriedade herdada. Um véu um tanto mais grosso é aquele proposto por Ronald Dworkin, que afirma que a distribuição do bem-estar deveria ser "sensível à ambição", mas não "sensível aos dotes" (Dworkin, 1981, p. 2). O véu mais impenetrável é o que John Rawls formulou ao dizer que as ambições e preferências, inclusive as preferências de tempo, preferências de lazer e a aversão ao risco, não são menos arbitrárias moralmente do que as aptidões. O utilitarismo baseia-se em uma idéia semelhante, mas chega a conclusões diferentes por incluir uma noção distinta do que constitui a escolha racional por trás do véu de ignorância.

O componente redistributivo do welfare state baseia-se na premissa de que alguns atributos dos indivíduos são moralmente arbitrários, incluindo-se entre eles, no mínimo, as aptidões e inaptidões inatas. O Estado de bem-estar corresponde a uma crença generalizada de que é injusto deixar que as pessoas sofram por causa de acidentes genéticos que não podem controlar. Segundo essa perspectiva, a visão meritocrática parece ser inconsistente. Se o acaso social deve ser eliminado como fator determinante do bem-estar, por que o acaso genético deveria ser respeitado? Entretanto, a opinião de Dworkin também pode ser acusada de inconsistência (ver especialmente Roemer, 1985). Como se pode defender a idéia de que um nível baixo de ambição e uma elevada taxa de desconto temporal não são também produtos do acaso social e genético? Se o forem, por que não servem de base para a compensação? Esta parece ser a questão filosófica central do debate atual sobre o welfare state.49 49 Para evitar ambigüidades, deve-se entender que há dois aspectos na ambição. Por um lado, pode-se desejar incentivar a ambição para o bem de todos. Qualquer teoria da justiça deve levar em conta a necessidade de pagar mais às pessoas, quando isso é necessário, a fim de criar empregos socialmente úteis. Por outro lado, pode-se pensar (como Dworkin) ou não pensar (como Rawls) que a ambição é uma base moralmente importante para recompensas mais altas. Imagine-se três operários de qualificação equivalente, A, B e C, que escolhem trabalhar durante uma jornada diária de 4, 8 ou 12 horas, respectivamente, em troca de um dado salário por hora. Poder-se-ia pensar, como Rawls e o utilitarismo, que é moralmente justificado taxar C (e talvez B) e empregar o produto para subsidiar A, e, mesmo assim, ficar abaixo da alíquota de tributação que poria os três em boa situação, isto é, se essa alíquota pusesse A em má situação (Rawls) ou reduzisse o bem-estar total (utilitarismo) em comparação com um percentual inferior. Dworkin, porém, não aceitaria qualquer taxação sobre diferenciais de renda por causa da ambição em lugar das aptidões.

Para responder a essas perguntas deve-se começar observando o fato de que o welfare state moderno está inserido em uma democracia política que se baseia, entre outras coisas, na condição de publicidade. Dizer a um cidadão que ele tem direito à previdência social porque não é responsável por suas preferências é pragmaticamente incoerente.50 50 Dworkin (1981, parte 1) menciona o evidente absurdo de uma política pública que indenizasse os indivíduos pela infelicidade causada por suas crenças religiosas. Não se pode tratar as preferências de uma pessoa como uma desvantagem que justifica uma compensação e, ao mesmo tempo, considerar essas mesmas preferências como contribuições legítimas para o processo político; não se pode a um só tempo tratar o indivíduo como movido por forças psíquicas fora do seu controle e como racional e acessível à argumentação. Essas práticas talvez possam ser justificadas para um terceiro interlocutor alegando-se que é melhor permitir que pessoas irresponsáveis tenham acesso ao processo político do que provocar um tumulto político excluindo-as. Mas, numa sociedade democrática, uma política que não pode ser explicada de maneira coerente às pessoas envolvidas deve ser rejeitada. Restringindo a concessão de benefícios materiais, protegem-se os valores cruciais da consideração e respeito. Aqueles que têm condições de trabalhar mas se recusam a fazê-lo não deveriam receber auxílio, da mesma maneira como aqueles que têm condições de poupar e se recusam a fazê-lo não deveriam ser compensados por sua incontinência. A democracia política inclui um componente de justiça comutativa ou de quid pro quo: não é que se deva exigir que os cidadãos façam incondicionalmente determinadas coisas (como pagar impostos ou ir à guerra), mas sim que se deveria pedir-lhes que façam determinadas coisas se podem fazê-las.

Entretanto, como já adverti, esse princípio austero é apenas um começo de resposta. Se fosse aplicado à maioria das sociedades contemporâneas, muitos o considerariam injusto, e com razão, porque os recursos econômicos necessários para formar preferências de modo autônomo são desigualmente distribuídos. Em qualquer sociedade há indivíduos que, por razões idiossincráticas, são surdos aos incentivos e, em casos mais graves, precisam ser sustentados pelo Estado. Mas, numa sociedade de bases justas, o sustento não seria dado como compensação, e os indivíduos beneficiados se distribuiriam de modo mais ou menos aleatório, como os doentes mentais, entre todos os grupos sociais. A maioria das sociedades contemporâneas não se aproxima dessa condição. Elas incluem grupos numerosos cujos membros são sistematicamente impedidos, pela pobreza ou pela falta de oportunidades de emprego, de desenvolver uma atitude de responsabilidade por seus atos.51 51 Certos grupos têm uma posição mais ambígua. Considere-se a atitude do welfare state com os ciganos em uma sociedade afluente como a Noruega. A única coisa que os impede de levar uma vida de trabalho regular e de aprendizado escolar é sua própria atitude em relação a essas coisas. Eles gostam de ser livres, de viajar e de não precisar de fazer planos para o futuro. Deveria a sociedade salvá-los de dificuldades e dar um apoio mais geral ao seu estilo de vida, às expensas dos outros cidadãos? Voltarei a um problema semelhante quando analisar a proposta de um dividendo social. Tratá-los como se as condições do contexto fossem justas, dizendo-lhes que devem culpar apenas a si mesmos por seu fracasso, é prova de má-fé. Enquanto não for eliminada a influência de fatores genuinamente arbitrários, como a riqueza, a justiça impõe considerar moralmente arbitrárias algumas características que seriam vistas como não arbitrárias, não fosse pela existência das primeiras.

A extensão do direito de voto e do welfare state realizou-se a despeito de várias objeções de fundamento instrumental. Dizia-se que as classes não proprietárias iriam abusar de seu poder eleitoral, confiscar a riqueza dos ricos e, por fim, empobrecer todo mundo, inclusive elas mesmas. A troca do risk pooling pela redistribuição criaria uma nova classe de parasitas, que iriam explorar o núcleo de pessoas trabalhadoras da população até que, no final, também elas acabariam sendo prejudicadas pelas reformas. Por outro lado, defensores das reformas formularam argumentos baseados na expectativa de vantagens instrumentais. O processo político sairia ganhando com a maior diversidade de opiniões e perspectivas que acompanharia a extensão do direito de voto. A provisão de benefícios previdenciários reduziria as taxas de morbidade e mortalidade, não só entre os não proprietários como também entre as classes possuidoras, por reduzir a incidência de doenças contagiosas. E assim por diante, toda uma longa lista de supostos riscos e vantagens.

Se aceitarmos a argumentação desenvolvida nas seções anteriores, essas razões são errôneas, e os argumentos positivos às vezes são duplamente equivocados. É praticamente impossível antecipar os efeitos líquidos a longo prazo do estado de equilíbrio instalado por grandes reformas desse tipo. Além disso, alguns argumentos positivos não resistem a uma exposição à luz do dia. A condição de publicidade impede que se defendam medidas cuja única e principal justificativa é o impacto esperado sobre o caráter dos cidadãos, os quais deveriam tornar mais entusiásticos, dotados de espírito público ou mais passivos. A norma da igualdade, pelo contrário, é transparente e irresistível; é uma característica inevitável de uma sociedade democrática, baseada na discussão racional e pública. Como afirmei antes, opor-se a essa norma já implica reconhecê-la. Ignorá-la é rejeitar os marcos democráticos da discussão e da justificação.

Concluo fazendo alguns comentários sobre três propostas recentes para a reforma econômica. São elas: (a) a proposta de James Meade (1964) em prol de uma "property-owning democracy", desenvolvida por Richard Krouse e Michael McPherson (1986);52 52 Ver também os comentários em Elster (1986b). (b) propostas para a criação de um "dividendo social" ou garantia de renda em um nível suficiente para proporcionar uma subsistência decente, sem obrigatoriedade de trabalhar como retribuição (Van Parijs e Van der Veen, 1986);53 53 Ver também os comentários em Elster (1986c). e (c) a democracia econômica no plano da empresa, tendo como fim imediato ou último a plena propriedade dos trabalhadores (ver Elster e Moene, 1989). Todas essas propostas envolvem grandes mudanças na atual organização capitalista da produção. Minha opinião é que as duas primeiras não têm chances de dar certo, porque não se baseiam numa simples concepção de justiça, firmada na igualdade e capaz de estimular um movimento de massas. Trata-se de projetos detalhados sobre uma mecânica das utopias — sonhos ou pesadelos tecnocráticos destituídos de potencial para insuflar vida a um movimento social. Qualquer tentativa de colocá-los em prática encontraria forte resistência, porque as pessoas se sentiriam convidadas, e com razão, a participar de uma experiência em ampla escala, destituída de qualquer valor intrínseco e de valor extrínseco extremamente incerto.

Examinemos, em primeiro lugar, a proposta de Meade, que se fundamenta numa combinação de imposto progressivo sobre a propriedade e reforma radical do imposto sobre a transmissão de heranças. Este último visa induzir os detentores de grandes propriedades a legar sua riqueza a um grande número de indivíduos relativamente pobres. Haveria duas maneiras de alcançar esse objetivo: pela tributação "de cada doação ou herança de acordo não só com o tamanho da doação ou herança individual, mas também de acordo com a riqueza do beneficiário", ou pela tributação do beneficiário "quando ele recebe uma doação ou herança, não em função do tamanho dessa doação ou herança, nem da totalidade do seu patrimônio na época do recebimento da doação ou herança, mas de acordo com o tamanho do montante total do que ele recebeu durante toda sua vida na forma de doações ou de heranças" (Meade, 1964, pp. 56-57). Na opinião de Krouse e McPherson, esse sistema asseguraria que "todas as pessoas começassem a vida com uma substancial renda da propriedade". Serviria também para criar atitudes psicológicas diferentes da experiência corrente, uma vez que os "operários de uma empresa seriam proprietários de ações de outras empresas: estando subordinados à autoridade dos gerentes em uma empresa, ajudariam a fiscalizar os gerentes de outras firmas". Por último, a renda gerada por esse sistema criaria os recursos materiais necessários para a formação de cooperativas de trabalhadores, sem que fosse preciso impô-las como uma modalidade compulsória de propriedade.

As pretensas conseqüências dessa proposta são extremamente duvidosas. O projeto de taxação da herança acarretaria incentivos despropositados e problemas alarmantes de implementação.54 54 Elster (1986b) arrola algumas das dificuldades. Além disso, não há razão alguma para imaginar que todos seriam escolhidos por alguém para serem contemplados com uma doação ou herança. Não é difícil imaginar o impacto negativo sobre a auto-estima daqueles que não fossem escolhidos por ninguém para herdar ou receber propriedades em doação. Por outro lado, a sugestão de que ter parte na propriedade de outras empresas proporcionaria alguma compensação ao fato de ser subordinado à autoridade gerencial na firma que a pessoa trabalha é um absurdo.55 55 Nesse ponto, Meade (1964) é mais realista quando afirma que "os investimentos [teriam de ser escolhidos] por especialistas em nome do homem das ruas". Portanto, a proposta é falha em dois aspectos: os supostos benefícios são altamente conjecturais e, além do mais, o projeto não contém nenhuma virtude intrínseca de levar as pessoas a se disporem a suportar os custos do ensaio e erro durante um período de experimentação.

Examinemos em seguida as demais propostas de imposto de renda negativo, dividendos sociais, subvenções universais e similares. Há evidentes objeções à viabilidade econômica de conceder uma renda garantida, substancial e incondicional a todas as pessoas. Nesse caso, direi apenas que qualquer proposta dessa natureza tende ao fracasso porque será vista como injusta e até exploradora.56 56 Frank (1985, pp. 256-257) formula um argumento semelhante. As pessoas que escolherem trabalhar em troca de um salário em vez de viverem numa comunidade por conta de um auxílio universal terão de pagar mais impostos para sustentar os que fizeram a segunda opção. Eles bem poderiam pensar — a meu ver, corretamente — que são explorados pelo outro grupo. Contra essa objeção foi feita a seguinte contra-argumentação (Van Parijs e Van der Veen, 1986): toda pessoa, por suposto, teria liberdade para escolher a subvenção incondicional; se algumas preferiram não fazê-lo, não poderiam reclamar porque outras o fizeram. Sua preferência pelo consumo em vez do lazer não é razão para impedir que outras tenham preferências diferentes. A essa argumentação respondo de duas maneiras. Em primeiro lugar, algumas pessoas poderiam permanecer na força de trabalho simplesmente porque acham que alguém tem de estar trabalhando. Contemplando os felizes membros da comunidade, elas poderiam resmungar, com raiva: "E se todo mundo fizesse o mesmo?". Em segundo lugar, mesmo que algumas pessoas realmente prefiram trabalhar, porque valorizam o consumo, isso não é razão para impor-lhes tributos mais pesados. Elas podem preferir a semana de 40 horas à semana de 50 horas que trabalham por causa dos elevados tributos que lhes são impostos pelos que escolheram viver à custa da subvenção. Assim, o argumento sobre a liberdade perde sentido, já que os trabalhadores seriam forçados pelos não trabalhadores a trabalhar mais do que desejam.

Examinemos, por fim, as propostas relativas à propriedade dos trabalhadores, ao socialismo de mercado e semelhantes. Conforme expliquei na segunda seção deste artigo, é difícil prever as conseqüências de um regime de cooperativa. Muita coisa ficaria na dependência dos arranjos escolhidos. Teria de haver uma escolha entre uma democracia representativa e uma democracia direta. Os gerentes poderiam estar sujeitos à demissão imediata ou ser nomeados para períodos mais longos. Poderiam deter amplos poderes discricionários ou ser obrigados a consultar a assembléia geral em todos os assuntos importantes. Os direitos e deveres econômicos associados à admissão, filiação e saída de uma cooperativa poderiam tomar diferentes formas. Seria necessário escolher entre o financiamento da dívida ou a inversão no capital social da empresa, inclusive com a possibilidade de vender ações fora da cooperativa, incorporando acionistas sem direito a voto. Dadas todas essas variações, é provável que um arranjo exeqüível pudesse ser encontrado, com paciência e disposição para suportar experiências. Ao contrário das outras propostas discutidas acima, a idéia de propriedade cooperativa parte de uma concepção de justiça capaz de oferecer a necessária motivação. A extensão da igualdade política e social para o campo da economia provavelmente encontrará oposição por parte de muitos interesses estabelecidos, o que provocará uma desaceleração do ritmo do progresso. Os proprietários formularão pseudo-soluções e rituais de participação para ganhar tempo. Os sindicatos resistirão a essa usurpação de sua autoridade. Se meu raciocínio estiver correto, tudo isso tenderá a ser visto como não mais que resistências destinadas a fracassar. Faz sentido defender a propriedade cooperativa — ela visa eliminar os mais importantes resquícios da autoridade e da hierarquia na sociedade, a matéria de que se constituem os movimentos sociais (ver, por exemplo, Jones, 1968).

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA RACIONAL

Palavras-chave Racionalidade; Política; Justiça; Reformas políticas; Engenharia social.

O autor critica as noções de engenharia social e planejamento econômico como formas modernas de aplicação da antiga idéia de que a ação política é uma ação individual em escala aumentada. Afirma que as sociedade tomam decisões e as executam de forma diversa à escolha individual e que, portanto, a concepção de racionalidade baseada no ator individual não consegue explicar a ação política. O autor argumenta que, dada a fragilidade da lógica instrumental em política, a justiça proporciona uma motivação alternativa para a reforma política. A partir da análise do surgimento do welfare state e da extensão do sufrágio, mostra que as principais reformas políticas deste século não se apoiaram em razões instrumentais. Ao contrário, foram defendidas por movimentos sociais ancorados em uma concepção de justiça que tinha por base o direito não instrumental à igualdade de consideração e respeito, incluindo a igualdade de participação nas decisões políticas e no bem-estar material. Sendo assim, a motivação para suportar os custos de transição e experimentar diversas modalidades de implementação de uma reforma política decorre não de seus resultados, mas da percepção de que o princípio a ela subjacente é justo.

THE POSSIBILITY OF RATIONAL POLITICS

Key words Rationality; Politics; Justice; Political reforms; Social engineering.

The author criticizes the notions of social engineering and economic planning as modern guises of the old idea that political action is individual action writ large. He states that societies make decisions and execute them in ways that are different from individual choice and that therefore the conception of rationality based on the individual actor does not explain political action. The author argues that, given the fragility of instrumental rationality in politics, a conception of justice offers an alternative motivation for political action. Based on the analysis of the rise of the welfare state and the extension of franchise, he shows that the main political reforms implemented during this century were not founded on instrumental considerations. Rather, they were fought for by social movements anchored in a conception of justice based on the right to equal concern and respect, including the right to share equally in the making of political decisions and the right to equal material welfare. The motivation to bear the costs of transition and to experiment with various forms of implementation of political reform arises not from the benefits in results obtained therefrom but from the perception that the reform's underlying principle is a just one.

LA POSSIBILITÉ D'UNE POLITIQUE RATIONNELLE

Mots-clé Rationalité; Politique; Justice; Réformes politiques; Ingénierie sociale.

Cette étude est une analyse des notions d'ingénierie sociale et de planification économique. L'auteur critique ces notions en tant que formes modernes d'application d'une certaine idée: celle selon laquelle l'action politique serait une action individuelle à une échelle élargie. Il cherche à démontrer que les sociétés prennent des décisions et les exécutent à l'insu des choix individuels. Cela serait la raison pour laquelle la conception de la rationalité — conception fondée sur l'acteur individuel — ne peut expliquer l'action politique. L'auteur soutient qu'en conséquence de la fragilité de la logique instrumentale en politique, la justice accorde une motivation alternative à la réforme politique. À partir de l'analyse de l'apparition du welfare state et de l'extension du droit de vote, il démontre que les principales réformes politiques de ce siècle ne se sont pas fondées sur des raisons instrumentales. Bien au contraire: elles sont défendues par des mouvements sociaux attachés à une conception de justice dont le fondement est le droit non instrumental à l'égalité, à la considération et au respect (qui inclue également l'égalité de participation aux décisions politiques et au bien être matériel). Ainsi, la motivation qui permet de supporter les coûts de transition et d'expérimenter les diverses modalités d'implantation d'une réforme politique découlerait non pas de ses résultats, mais de la perception selon laquelle le principe qui lui est sous-jacent est un principe juste.

Tradução de Vera Pereira.

Revisão técnica de Argelina Cheibub Figueiredo.

  • ABRAHAM, K. (1986), Distributing risk New Haven, Yale University Press.
  • AINSLIE, G. (1982), "A behavioral economic approach to the defense mechanisms: Freud's energy theory revisited". Social Science Information, 21: 735-779.
  • žžžžžžžžžž. (1984), "Behavioral economics II: motivated involuntary behavior". Social Science Information, 23: 247-274.
  • žžžžžžžžžž. (1986), "Beyond microeconomics", in J. Elster (ed.), The multiple self, Cambridge University Press, pp. 133-176.
  • ANDVIG, J. e MOENE, K.O. (1988), How corruption corrupts. Manuscrito.
  • ARON, R. (1967), Les étapes de la pensée sociologique Paris, Gallimard.
  • BARRY, B. (1979), "Is democracy special?", in P. Laslett e J. Fishkin (eds.), Philosophy, politics and society, Oxford, Blackwell Publisher, pp. 155-196.
  • BEN-NER, A. e NEUBERGER, F. (1982), "The kibbutz", in F. Stephen (ed.), The performance of labour-managed forms, Nova York, St. Martin's Press, pp. 186-213.
  • BOWLES, S. e GINTIS, H. (1976), Schooling in capitalist America Londres, Routledge & Kegan Paul.
  • BRADLEY, K. e GELB, A. (1982), "The Mondragon cooperatives", in D.C. Jones e J. Svejnar (eds.), Participatory and self-managed firms, Lexington, Mass., Lexington Books, pp. 153-172.
  • CHIU, H. (1987), Institutionalizing a new legal system in Deng's China. Trabalho apresentado na International Conference on a Decade of Reform under Deng Xiaoping, Brown University, Providence, 4-7 de novembro.
  • DERNBERGER, R.F. (1987), The drive for economic modernization and growth: performance and trends. Trabalho apresentado na International Conference on a Decade of Reform under Deng Xiaoping, Brown University, Providence, 4-7 de novembro.
  • DUNN, J. (1985), The politics of socialism Cambridge, Cambridge University Press.
  • DWORKIN, R. (1978), Taking rights seriously Londres, Duckworth.
  • žžžžžžžžžž. (1981), "What is quality? Part 1: Equality of welfare" e "What is quality?. Part 2: Equality of resources". Philosophy and Public Affairs, 10: 185-246 e 283-345.
  • ELSTER, J. (1983a), Sour grapes Cambridge, Cambridge University Press
  • žžžžžžžžžž. (1983b), Explaining technical change Cambridge, Cambridge University Press
  • žžžžžžžžžž. (1984), Ulysses and the sirens Cambridge, Cambridge University Press
  • žžžžžžžžžž. (1985), "Weakness of will and the free-rider problem". Economics and Philosophy, 1: 231-265.
  • žžžžžžžžžž. (1986a), "Introduction", in J. Elster (ed.), Rational choice, Oxford, Blackwell Publisher, pp. 1-33.
  • žžžžžžžžžž. (1986b), "Comments on Krouse and McPherson". Ethics, 97: 146-153.
  • žžžžžžžžžž. (1986c), "Comments on van Parijs and van der Veen". Theory and Society, 15: 709-722.
  • žžžžžžžžžž. (1988a), "Is there (or should there be) a right to work?", in A. Guttman (ed.), Democracy and the welfare state, Princeton, Princeton University Press, pp. 53-78.
  • žžžžžžžžžžž. (1988b), "Consequences of constitutional choice: reflections on Tocqueville", in J. Elster e R. Slagstad (eds.), Constitutionalism and democracy, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 81-102.
  • žžžžžžžžžžž. (1989), The cement of society Cambridge, Cambridge University Press.
  • ELSTER, J. e MOENE, K.O. (1989), "Introduction", in J. Elster e K.O. Moene (eds.), Alternatives to capitalism, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 1-35.
  • ELSTER, J. e SLAGSTAD, R. (eds.). (1988), Constitutionalism and democracy Cambridge, Cambridge University Press.
  • ELY, J.H. (1980), Democracy and distrust Cambridge, Mass., Harvard University Press.
  • FRANK, R. (1985), Choosing the right pond Nova York, Oxford University Press.
  • FREEMAN, J.R. e SNIDAL, D. (1982), "Diffusion, development and democratization: enfranchisement in Western Europe". Canadian Journal of Political Science, 15: 299-329.
  • FROHLICH, N., OPPENHEIMER, J. e EAVEY, C. (1987), "Laboratory results on Rawls's distributive justice". British Journal of Political Economy, 17: 1-21.
  • GAUTHIER, D. (1986), Morality by agreement Nova York, Oxford University Press.
  • GUNN, C. (1984), Workers' self-management in the United States Ithaca, NY, Cornell University Press
  • HAYEK, F.A. (1937), "Economics and knowledge". Economica, 13: 33-54.
  • žžžžžžžžžžž. (1982), Law, legislation and liberty, vols. 1-3. Londres, Routledge & Kegan Paul.
  • JAY, P. (1980), "The workers' cooperative economy", in A. Clayre (ed.), The political economy of co-operation and participation, Nova York, Oxford University Press, pp. 9-45.
  • JOHANSEN, L. (1977), Lectures on macroeconomic planning, vol. 1. Amsterdă, North-Holland.
  • JONES, B. (1968 [1894]), Co-operative production Nova York, Augustus Kelley.
  • KAY, J.A. (1986), "The franchise factor in the rise of the English Labour Party". English Historical Review, 91: 723-752.
  • KESSELMAN, J.R. (1978), "Work relief programs in the great depression", in J.L. Palmer (ed.), Creating jobs: public employment programs and wage subsidies, Washington, Brookings Institution, pp. 153-229.
  • KROUSE, R. e McPHERSON, M. (1986), "A `mixed' property regime: equality and liberty in a market economy". Ethics, 97: 119-138.
  • LEACH, E. (1954), Political systems of Highland Burma Londres, Bell.
  • LEIBNIZ, G.W.F. (1875-90), Die philosophische Schriften. Berlim, editado por C.J. Gerhard.
  • LEVI, I. (1974), "On indeterminate probabilities". Journal of Philosophy, 71: 391-418.
  • LÉVI-STRAUSS, C. (1960), La pensée sauvage Paris, Plon.
  • LIPSEY, R.G. e LANCASTER, K. (1956), "The general theory of the second best". Review of Economic Studies, 24: 11-32.
  • MacDOWELL, D.M. (1978), The law in classical Athens. Ithaca, NY, Cornell University Press.
  • McGOVNEY, D.O. (1949), The American suffrage meddley Chicago, University of Chicago Press.
  • MEADE, J.E. (1964), Efficiency, equality, and the ownership of property Londres, Allen & Unwin.
  • žžžžžžžžžž. (1972), "The theory of labour-managed firms and of profit-sharing". Economic Journal, 82: 402-428.
  • žžžžžžžžžž. (1980), "Labour co-operatives, participation and value-added sharing", in A. Clayre (ed.), The political economy of co-operation and participation, Nova York, Oxford University Press, pp. 89-108.
  • MILLER, D. (1981), "Market neutrality and the failure of co-operatives". British Journal of Political Science, 11: 309-329.
  • MUELLER, D. (1979), Public choice. Cambridge, Cambridge University Press.
  • NELSON, R. e WINTER, S. (1982), An evolutionary theory of economic change Cambridge, Mass., Harvard University Press.
  • NOZICK, R. (1974), Anarchy, state and utopia. Nova York, Basic Books.
  • ORDERSHOOK, P. (1986), Game theory and political theory Cambridge, Cambridge University Press
  • PAGE, B. (1983), Who gets what from government? Berkeley/Los Angeles, University of California Press.
  • PATEMAN, C. (1970), Participation and democratic theory Cambridge, Cambridge University Press.
  • POLANYI, K. (1962), Personal knowledge Nova York, Harper.
  • PUTTERMAN, L. (1982), "Some behavioral perspectives on the dominance of hierarchical over democratic forms enterprise". Journal of Economic Behavior and Organization, 3: 139-160.
  • RAWLS, J. (1971), A theory of justice. Cambridge, Mass., Harvard University Press.
  • žžžžžžžžžž. (1985), "Justice as fairness: political not metaphysical". Philosophy and Public Affairs, 14: 223-251.
  • ROEMER, J. (1985), "Equality of talent". Economics and Philosophy, 2: 151-188.
  • žžžžžžžžžž. (1988), Glimpses of China's economic reform. Manuscrito.
  • SCHELLING, T.C. (1984), Choice and consequence Cambridge, Mass., Harvard University Press.
  • SCHUMPETER, J. (1961), Capitalism, socialism and democracy Londres, Allen & Unwin.
  • SEJERSTED, F. (1988), "Democracy and the rule of law", in J. Elster e R. Slagstad (eds.), Constitutionalism and democracy, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 131-152.
  • SEYMOUR, C. e FRARY, D.O. (1918), How the world votes, vols. 1 e 2. Springfield, Mass., Nichols.
  • SNIDAL, D. (1986), "The game theory of international politics", in K.A. Oye (ed.), Cooperation under anarchy, Princeton, Princeton University Press, pp. 25-57.
  • STINCHCOMBE, A. (1983), Economic sociology Nova York, Academic Press.
  • TOCQUEVILLE, A. de. (1952), L'ancien regime et la révolution, vol. 1. Paris, Gallimard (Edition des Oeuvres Complčtes).
  • žžžžžžžžžž. (1953), L'ancien regime et la révolution, vol. 2. Paris, Gallimard (Edition des Oeuvres Complčtes).
  • žžžžžžžžžž. (1969), Democracy in America Nova York, Anchor Books.
  • VAN PARIJS, P. e VAN DER VEEN, R. (1986), "A capitalist road to communism". Theory and Society, 15: 635-656.
  • WILLIAMSON, C. (1960), American suffrage from property to democracy, 1760-1860 Princeton, Princeton University Press.
  • 1
    Essa é a maneira como compreendo os textos recentes de Rawls, principalmente Rawls (1985).
  • 2
    De modo análogo, para determinados fins, as células podem ser entendidas como se fossem unidades fundamentais da análise médica ou biológica, independente do conhecimento de sua estrutura molecular.
  • 3
    Uma discussão desse ponto encontra-se em Snidal (1986, especialmente pp. 29-36).
  • 4
    Uma discussão desse ponto encontra-se em Johansen (1977, cap. 2).
  • 5
    Para uma análise da enorme literatura sobre burocracias interessadas em maximizar seus orçamentos ou outras práticas corruptas, ver Mueller (1979, cap. 8).
  • 6
    Andvig e Moene (1988) elaboraram um modelo que inclui essa possibilidade.
  • 7
    Elster (1989) desenvolve uma defesa dessa possibilidade.
  • 8
    Ver especialmente os estudos de Friedrich Hayek, desde Hayek (1937) até Hayek (1982).
  • 9
    Os ensaios reunidos em Elster (1986) examinam várias analogias desse tipo.
  • 10
    Outros comentários sobre essa questão podem ser encontrados em Elster (1985 e 1986a).
  • 11
    Não são essas as únicas fontes de indeterminação política. O problema da agregação de preferências, discutido na seção anterior, implica que a sociedade pode não ser capaz de avaliar as conseqüências da ação, mesmo que se suponha que são previsíveis.
  • 12
    A teoria geral do
    second-best (Lipsey e Lancaster, 1956), principalmente, proporciona uma explicação mais abstrata e unificada de muitas das afirmações que faço a seguir.
  • 13
    Elster (1988b) contém uma discussão mais extensa.
  • 14
    Baseando-me em Elster e Moene (1989).
  • 15
    A análise do equilíbrio em Stinchcombe (1983) é um bom exemplo disso.
  • 16
    Para uma breve discussão dessas "preferências contra-adaptativas", ver também Elster (1983a, pp. 111-112).
  • 17
    Ou melhor, minha reconstrução do seu argumento. Apesar de sua metodologia muito complicada, Tocqueville, como historiador, orgulhou-se de esconder a estrutura do seu raciocínio.
  • 18
    Essa afirmação é um tanto simplificada. Tocqueville sabia que diversas correntes políticas ameaçavam a estabilidade da democracia na América. Em várias ocasiões, afirmou que o sistema poderia evoluir para uma tirania da maioria sobre a minoria, uma espécie de despotismo tutelar moderado, ou para uma plutocracia. Essa afirmação é coerente com seu pressuposto de que a sociedade americana que observou, por volta de 1830, havia adquirido uma estabilidade relativa e temporária, ao contrário do fluxo constante que encontrou na vida política francesa.
  • 19
    Para contestar a opinião de Nozick, pode-se citar a carta de John Stuart Mill em apoio a uma cooperativa que vinha sendo alvo da concorrência desleal de suas equivalentes capitalistas. "Tomo a liberdade de anexar uma contribuição de £ 10 para ajudar, na medida em que essa quantia seja útil, na luta que a cooperativa dos fabricantes de fechaduras de Wolverhampton vem sustentando contra a concorrência desleal dos mestres do ramo. Não é de meu desejo protegê-los da concorrência leal [...] mas vender com prejuízo com a finalidade de destruir os competidores não é fazer concorrência leal. Nessa concorrência, se prolongada, os competidores que dispõem dos menores recursos, apesar de que possam ter todos os outros fatores de sucesso, serão necessariamente esmagados sem que tenham cometido erro algum. [...] Estou agora convencido de que eles devem ser apoiados contra a tentativa de arruiná-los" (
    apud Jones, 1968, p. 438). Como objeção ao argumento de Miller, cabe observar que a cooperativa seria até certo ponto mantida sob controle porque saberia que, no futuro, poderia precisar atrair novos capitais. Se os acionistas externos (sem direito a voto) não receberem dividendos satisfatórios, não serão encontrados futuros acionistas. Sabendo disso, é possível que os atuais acionistas não se desencorajem diante do fato de a cooperativa ter a liberdade formal de reduzir os dividendos a zero. (Jay, 1980, pp. 14-15).
  • 20
    Jones (1968) inclui vários exemplos desses "fracassos provenientes do sucesso".
  • 21
    A respeito dessa idéia, ver Elster (1983a, cap. 2, seção 9).
  • 22
    Uma exposição simples e inteligente das razões dessas diferenças de comportamento entre cooperativas de trabalhadores e empresas capitalistas, dessa perspectiva, encontra-se em Meade (1972).
  • 23
    Meade (1980). Essa prática é seguida nas cooperativas madeireiras dos Estados Unidos (ver Gunn, 1984), mas não, por exemplo, nas cooperativas de Mondragon.
  • 24
    Como se poderia prever, Leibniz formulou o mesmo argumento antes: "
    On pourrait dire que toute la suite des choses à l'infini peut être la meilleure qui soit possible, quoique ce qui existe par tout l'univers dans chaque partie du
    temps ne soit pas le meilleur" (Leibniz, 1875-90, vol. 6, p. 237; ver também vol. 3, pp. 582-583).
  • 25
    Note-se que as diferenças entre efeitos de transição e efeitos do estado de equilíbrio não coincidem com aquelas observadas entre os efeitos a curto e a longo prazo, pois é possível distinguir diferentes perspectivas temporais dentro do estado de equilíbrio.
  • 26
    Por exemplo, estão aparecendo bancos privados cujos acionistas obtêm lucros de mais de 30% sobre o investimento. Em situações normais, seria de esperar que isso gerasse competição, com alguns bancos cobrando taxas de juros mais baixas para os empréstimos e taxas mais elevadas para os depósitos, a fim de atrair capitais para financiar os empréstimos. Mas não é isso que acontece, porque o Estado fixa um limite máximo para a taxa de juros sobre os depósitos. Esse limite é necessário por causa da taxa artificialmente baixa, determinada por razões políticas, para os empréstimos concedidos pelos bancos estatais às empresas públicas. Como os bancos estatais têm de financiar os juros sobre os depósitos com os juros que recebem pelos empréstimos, o nível baixo destes últimos força para baixo o limite dos primeiros.
  • 27
    Em um artigo publicado em
    The Economist, 21/3/1981, F. Bates faz uma observação semelhante: "Será que um governo democrático pode comprometer-se de maneira confiável em aderir a uma política independentemente de suas conseqüências — assegurar que a base monetária não crescerá mais do que
    x%, ainda que os otimistas estejam errados e que a política gere desemprego em massa, rápido crescimento da capacidade ociosa e somente reduza a inflação gradualmente? O dilema é o seguinte: talvez a teoria esteja certa, mas a única maneira de testá-la é convencer o povo de que o governo persistiria nela mesmo que estivesse errada".
  • 28
    Para uma análise da mudança de função do Império da Lei — de proteger contra a monarquia absoluta para uma proteção contra a democracia absoluta — ver Sejersted (1988).
  • 29
    Agradeço a Adam Przeworski por sugerir-me essa maneira de colocar a questão.
  • 30
    O Código Penal Chinês de 1979 não reconhece o princípio da "não punição sem a existência prévia de uma lei que defina o ato como criminoso" (
    nullum crimem, nula poena sine lege). O artigo 79 do Código prevê que "uma pessoa que comete um crime não explicitamente definido nas seções específicas do Código Criminal pode ser presa e condenada após a aprovação da Corte Suprema do Povo, de acordo com o artigo mais próximo do Código" (Chiu, 1987). No Ocidente, ao contrário, o raciocínio por analogia só é permitido no Código Civil.
  • 31
    Conforme me foi sugerido por Tang Tsou, essa descrição legalista é equivocada. Na realidade, o Comitê Permanente é a instância superior e o "organismo de origem" é que é subordinado.
  • 32
    Vejamos novamente a história do Livro de Daniel na cova dos leões. Conta-se ali como o rei Dario foi ludibriado pelos inimigos de Daniel e levado a promulgar um decreto segundo o qual "quem quer que rogue a Deus ou ao homem durante 30 dias, exceto a ti, Oh rei, será mandado para a cova dos leões". Quando Daniel fez suas orações a Deus, seus inimigos denunciaram-no a Dario e exigiram que ele fosse mandado para a cova dos leões. Dario tentou escapar da difícil situação mas colocaram-no diante dos termos da lei: "nenhum decreto ou estatuto que o rei estabeleceu poderá ser modificado", diante do que o rei teve de ceder. Como se sabe, os leões não tocaram em Daniel; mesmo assim, a história ilustra os riscos do comprometimento prévio. Quando uma pessoa se compromete de maneira rígida com determinadas regras de procedimento, pode ficar impedida de fazer a escolha certa em circunstâncias não previstas.
  • 33
    Cass Sunstein indicou-me dois exemplos americanos interessantes que destacam a ambigüidade das exceções às regras constitucionais. Em Korematsu v. United States, 323 U.S 214 (1944), consideraram-se constitucionais medidas de confinamento de cidadãos americanos descendentes de japoneses. Em New York Times Co. v. United States; United States v. Washington Post Co., 404 U. S. 713 (1971), considerou-se inconstitucional a tentativa de interromper a publicação dos "Documentos do Pentágono". Nos dois casos, os defensores das medidas restritivas alegaram que a Constituição não deve ser uma camisa-de-força para a ação governamental quando a segurança militar da nação está em jogo. "A Constituição não é um pacto suicida". Não me parece claro, porém, se essas opiniões representavam (a) o tipo de tentação que a Constituição visa prevenir, (b) uma preocupação legítima de que a Constituição possa impor restrições excessivamente estritas ao governo, ou (c) uma alegação de que a Primeira Emenda às vezes pode ser sobrepujada por outros itens da Constituição.
  • 34
    A argumentação que se segue baseia-se em Elster (1988a).
  • 35
    Igualmente, movimentos políticos que se justificam pelo auto-respeito que proporcionam aos seus participantes provavelmente não conseguem êxito nem a esse respeito (Elster 1983a, pp. 98-100).
  • 36
    Referências e uma discussão mais profunda encontram-se em Elster (1983a, pp. 92-93).
  • 37
    Isso inclui, como caso especial, as transferências que pioram a situação dos beneficiários. A fórmula intencionalmente vaga "A água pode vazar, mas não deve entornar demais" é compatível tanto com a teoria de Rawls quanto com o utilitarismo, bem como com a teoria "de senso comum" da justiça exposta por Frohlich, Oppenheimer e Eavey (1987). Sou também intencionalmente vago a respeito da natureza daquilo que é distribuído, pois os argumentos desenvolvidos a seguir aplicam-se igualmente às condições de bem-estar material, aos bens primários, às capacidades básicas ou às oportunidades de acesso ao
    welfare.
  • 38
    A argumentação que se segue baseia-se em Seymour e Frary (1918), McGovney (1949), Williamson (1960) e Kay (1986).
  • 39
    Na realidade, o argumento apenas mostra que comprar eleitores ricos é mais caro, o que pode ser compensado pelo fato de que quando o direito de voto é limitado aos ricos, há menos eleitores para subornar.
  • 40
    Stephen Holmes chamou minha atenção para o fato de que os romanos impunham condições econômicas ao direito de voto com a finalidade de arrancar informações dos cidadãos a respeito de suas propriedades tributáveis. Em tese, essa regra também servia ao propósito de selecionar os cidadãos suficientemente interessados na
    res publica para levar sua riqueza ao conhecimento das autoridades.
  • 41
    Os cidadãos atenienses perdiam o direito ao voto por conduta covarde na guerra e por não pagarem suas dívidas com o Estado (MacDowell, 1978, pp. 160-165).
  • 42
    Como afirmou Aiskhines no discurso
    Against Timarkhos: "O legislador considerou impossível que o mesmo homem fosse mau na vida privada e bom na vida pública" (
    apud MacDowell, 1978, p. 174).
  • 43
    Evidentemente, é assim que os países ricos hoje decidem conceder ajuda financeira aos países pobres.
  • 44
    Gauthier (1986) formula a mais recente e sistemática exposição desse ponto de vista.
  • 45
    Essa percepção crucial deriva da obra de Habermas, conforme interpretada em Elster (1983a, cap. 1, seção 5).
  • 46
    Na Grã-Bretanha, houve também um fator de justiça comutativa. Devido às tarefas vitais desempenhadas pelas mulheres durante a Primeira Guerra Mundial, tornou-se impossível alegar que elas não tinham nada a oferecer em troca do sufrágio. O fato de as mulheres proporcionarem um bem coletivo de importância crucial — as crianças que asseguram a continuidade da sociedade — também podia ser usado como argumento (como provavelmente o foi).
  • 47
    Caberia também levar em conta um argumento de natureza puramente instrumental-utilitarista para a ampliação do direito de voto, segundo o qual a eliminação dessa degradante discriminação representou
    ipso facto um ganho em bem-estar social. Contudo, mais uma vez, essa consideração instrumental é parasitária em relação a uma razão não instrumental, qual seja, a injustiça inerente a um tratamento desigual.
  • 48
    Esses descontos são formalmente apresentados como contribuições do empregador. Porém, os economistas concordam que são, de fato, deduções da folha de pagamento, no sentido de que sem a contribuição compulsória do empregador os salários dos empregados seriam mais altos na proporção do desconto.
  • 49
    Para evitar ambigüidades, deve-se entender que há dois aspectos na ambição. Por um lado, pode-se desejar incentivar a ambição para o bem de todos. Qualquer teoria da justiça deve levar em conta a necessidade de pagar mais às pessoas, quando isso é necessário, a fim de criar empregos socialmente úteis. Por outro lado, pode-se pensar (como Dworkin) ou não pensar (como Rawls) que a ambição é uma base moralmente importante para recompensas mais altas. Imagine-se três operários de qualificação equivalente, A, B e C, que escolhem trabalhar durante uma jornada diária de 4, 8 ou 12 horas, respectivamente, em troca de um dado salário por hora. Poder-se-ia pensar, como Rawls e o utilitarismo, que é moralmente justificado taxar C (e talvez B) e empregar o produto para subsidiar A, e, mesmo assim, ficar abaixo da alíquota de tributação que poria os três em boa situação, isto é, se essa alíquota pusesse A em má situação (Rawls) ou reduzisse o bem-estar total (utilitarismo) em comparação com um percentual inferior. Dworkin, porém, não aceitaria qualquer taxação sobre diferenciais de renda por causa da ambição em lugar das aptidões.
  • 50
    Dworkin (1981, parte 1) menciona o evidente absurdo de uma política pública que indenizasse os indivíduos pela infelicidade causada por suas crenças religiosas.
  • 51
    Certos grupos têm uma posição mais ambígua. Considere-se a atitude do
    welfare state com os ciganos em uma sociedade afluente como a Noruega. A única coisa que os impede de levar uma vida de trabalho regular e de aprendizado escolar é sua própria atitude em relação a essas coisas. Eles gostam de ser livres, de viajar e de não precisar de fazer planos para o futuro. Deveria a sociedade salvá-los de dificuldades e dar um apoio mais geral ao seu estilo de vida, às expensas dos outros cidadãos? Voltarei a um problema semelhante quando analisar a proposta de um dividendo social.
  • 52
    Ver também os comentários em Elster (1986b).
  • 53
    Ver também os comentários em Elster (1986c).
  • 54
    Elster (1986b) arrola algumas das dificuldades.
  • 55
    Nesse ponto, Meade (1964) é mais realista quando afirma que "os investimentos [teriam de ser escolhidos] por especialistas em nome do homem das ruas".
  • 56
    Frank (1985, pp. 256-257) formula um argumento semelhante.
  • *
    Texto publicado originalmente como o capítulo IV do livro
    Solomonic judgements (Cambridge, Cambridge University Press, 1989).
  • **
    No capítulo 1 do mesmo livro, intitulado "When rationality fails", Elster estabelece os elementos básicos da teoria da escolha racional e aponta suas falhas, decorrentes seja de sua indeterminação, seja de sua inadequação. O autor organiza a análise desenvolvida no capítulo 4, objeto desta tradução, de forma a torná-la comparável à discussão realizada naquele capítulo.
  • ***
    Modelo dezenvolvido no capítulo 1 do mesmo livro.
  • ****

    O termo
    bunching, neste contexto, significa tomar várias decisões ao mesmo tempo e não uma de cada vez.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Fev 1999
    Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: anpocs@anpocs.org.br