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A dimensão regional e novas possibilidades interpretativas aos estudos sobre trabalho

RESENHAS

A dimensão regional e novas possibilidades interpretativas aos estudos sobre trabalho

Sandro Ruduit Garcia

RODRIGUES, Iram Jácome e RAMALHO, José Ricardo (orgs.). Trabalho e sindicato em antigos e novos territórios produtivos: comparações entre o ABC paulista e o Sul fluminense. São Paulo, Annablume, 2007 (col. Trabalho e Contemporaneidade). 366 páginas.

A comunidade científica encontra no livro organizado por Iram Jácome Rodrigues e José Ricardo Ramalho uma obra de "artesanato intelectual" que alia, como se espera da boa prática sociológica, potência teórica e rigor histórico e empírico. A questão mais abrangente - que dá o tom da obra - refere-se à identificação de novos campos de interesse dos sindicatos em meio à dinâmica das relações entre capital e trabalho, situadas não somente no contexto da reestruturação produtiva e industrial, das novas tecnologias e das alterações nas relações de troca internacionais, mas também em circunstâncias específicas de arranjos sociopolíticos e de contingências históricas no âmbito regional. Trata-se, neste caso, de uma inventiva contribuição ao debate científico porque sublinha as possibilidades interpretativas da dimensão regional nos estudos sobre trabalho, saltando fronteiras disciplinares. A sociologia do trabalho é posta em diálogo com diferentes contribuições da sociologia econômica, da sociologia política, da sociologia do desenvolvimento, da história e da geografia.

Os capítulos registram a reestruturação da indústria automobilística e as implicações sociais e políticas desse processo para trabalhadores, sindicatos e regiões, a partir de um esforço de comparação do que ocorre no tradicional território produtivo do ABC paulista e no emergente território do Sul fluminense. As regiões escolhidas posicionam-se, de formas distintas, no contexto dos efeitos do novo momento da indústria automobilística mundial, encetado pelos processos de globalização e de disseminação de tecnologias da informação e comunicação. Como se sabe, o setor apresenta, hoje, caráter movediço: tensos processos de reestruturação ou de fechamento de antigas fábricas deflagram a crise de tradicionais regiões industriais, ao passo que plantas inovadoras levam novas referências competitivas a regiões emergentes. Isso alterou não apenas a geografia do setor, como também as relações entre os agentes sociais envolvidos. Essa discussão adquire novo interesse no momento em que o país mobiliza forças sociais e políticas em torno de uma agenda de desenvolvimento econômico e social em boa medida apoiada na atividade industrial.

A coletânea origina-se em descobertas e conclusões extraídas de pesquisas orientadas por projetos e atividades de cooperação científica.1 1 Projetos de pesquisa "Sindicalismo, relações de trabalho, políticas públicas e desenvolvimento regional no ABC paulista", coordenado por Iram Jácome Rodrigues (USP); e "Desenvolvimento regional, indústria automobilística e relações de trabalho em uma perspectiva comparada: os casos do Sul fluminense e do ABC paulista", coordenado por José Ricardo Ramalho (UFRJ). Os organizadores, que detêm extensa experiência no estudo das lutas trabalhistas e sindicais no setor industrial, lideram grupos de investigadores que se debruçam, em perspectiva comparada, sobre diferentes aspectos das mudanças sociais e políticas que ocorrem nas regiões analisadas, sob a influência do novo contexto do setor automobilístico mundial. A interação entre grupos de especialistas possibilita o aprofundamento de diferentes ângulos do tema, sem prejuízo à coerência no tratamento da problemática em discussão.

Os organizadores expõem no capítulo de abertura a tese central da coletânea, explorada e ilustrada em seus diferentes aspectos nos capítulos seguintes. Isso atribui unidade ao livro. O argumento central seria que, embora o processo de reestruturação da cadeia automotiva tenha efeitos negativos para os trabalhadores - como redução de postos de trabalho diretos em montadoras e crise de certo modelo de sindicalismo -, ele tenderia a criar novos espaços de participação e de intervenção dos trabalhadores nas esferas de políticas públicas e de desenvolvimento econômico. A despeito das diferenças históricas, conjunturais e dos tipos e níveis de recursos disponíveis entre o ABC paulista e o Sul fluminense, a comparação entre essas regiões revelaria, para os autores, convergência em termos das ações dos sindicatos de metalúrgicos, no sentido de prospectar pautas e espaços de ação social e política, com vistas a interferir na dinâmica de desenvolvimento regional em favor dos trabalhadores.

No Capítulo 2, Iram Jácome Rodrigues, Cecília Carmen Cunha Pontes, José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana desenvolvem esse argumento sobre a conduta sindical com a comparação do que ocorre nas regiões em relação ao trabalho. A partir de um survey aplicado em operários de montadoras no ABC paulista e no Sul fluminense, os autores analisam o perfil dos trabalhadores e suas percepções sobre as condições de trabalho e o cotidiano fabril, concluindo que os grupos de entrevistados revelaram comportamentos e opiniões semelhantes, apesar das diferenças de perfil entre as regiões: "Vale dizer, não há rupturas e sim, aspectos de continuidades no fazer-se dessa classe trabalhadora" (p. 48). Isso decorreria, segundo os autores, das dificuldades encontradas pelos trabalhadores e seus sindicatos, nas duas regiões, em contrapor-se às novas formas de gestão das empresas que buscam obter a cooperação dos trabalhadores na fábrica. As dificuldades na fábrica provocariam sindicatos a buscar novas pautas e espaços institucionais para além do local de trabalho, repercutindo sobre a ação coletiva dos trabalhadores nas duas regiões.

O Capítulo 3, de Regina Célia dos Reis, e o Capítulo 4, de Rodrigo Salles P. Santos, permitem cotejar os dois territórios produtivos no que se refere a processos de articulação política com vistas à promoção do desenvolvimento regional, explorando aspectos das complexas relações entre sociedade civil e ações governamentais e suas repercussões no mundo do trabalho. O testemunho dos autores permite identificar regiões em diferentes fases de maturação institucional, relacionadas, em boa medida, com fatores históricos, como o tempo, o grau e a forma de industrialização. O ABC paulista desenvolveu, por exemplo, a partir da identificação de interesses comuns e da consolidação de uma identidade regional, o "Consórcio Intermunicipal", estimulando diálogos entre poder público, setor produtivo e sociedade civil. O Sul fluminense, por sua vez, empenhou-se na construção da idéia de território, mediante esforços de delineamento e de promoção da identidade regional transformada em mercado regional. A despeito disso, pode-se identificar como traço comum a marcante interferência de ações políticas, destacando-se iniciativas do poder público, nas estratégias e na condução dos processos de desenvolvimento das regiões. Os capítulos abordam, desse modo, a capacidade ou não do poder público em estimular e garantir a participação social nos debates sobre desenvolvimento regional em contextos de escassez do chamado capital social.

Nos capítulos 5 e 6, Zeíra Mara Camargo e Marco Aurélio Santana sublinham a questão sindical no contexto da relação, explorada nos capítulos 3 e 4, entre sociedade civil e políticas de desenvolvimento. Os autores oferecem elementos de comparação sobre as respostas dos sindicatos de trabalhadores metalúrgicos às mudanças econômicas e sociais, experimentadas, respectivamente, no ABC paulista e no Sul fluminense. Chama a atenção o fato de que as distintas conjunturas econômicas e institucionais e os diferentes níveis de recursos disponíveis parecem se refletir na capacidade desses sindicatos em proteger interesses dos trabalhadores. Haveria, todavia, convergência nas ações dos sindicatos que tentam influir nas estratégias de desenvolvimento e em políticas públicas, tendo em vista contribuírem para a competitividade e a qualidade de vida dessas regiões, percebidas como interesses dos trabalhadores. Ademais, a constituição de "classes operárias" em face da presença de plantas montadoras levaria ao fortalecimento da ação sindical e ao surgimento de inovações nas relações de trabalho, como as comissões de fábrica, constituindo ganhos políticos e sociais importantes para os trabalhadores das regiões. Isso atestaria a vitalidade e a renovação sindical em torno da atividade industrial. A reconstituição proposta nesses capítulos leva a inquirir: em que sentido "heranças" sóciohistóricas do movimento sindical interferem nas suas relações com agentes externos no presente? Em que medida a presença de agentes externos provoca mudanças (e até inovações) nos padrões de relações de trabalho no âmbito regional, enraizando-se ao longo do tempo?

Os dois capítulos seguintes, de Elaine Marlova Venzon Francisco e de Maria da Consolação Vegi da Conceição, exploram a questão do trabalho nas fábricas, apresentando dados e argumentos que permitem compreender não apenas a ampliação do espectro de interesses sindicais para além do mundo fabril, mas também a renovação de expectativas e estratégias operárias sobre sua ação coletiva. Enfocam-se, por diferentes ângulos, a diversidade de relações e de situações de trabalho e emprego nas fábricas flexíveis e as implicações disso na representação de interesses dos trabalhadores. As análises mostram, com perspicácia, que as novas formas organizacionais possibilitadas pelas tecnologias da informação e comunicação, como o conceito de consórcio modular, reúnem diferentes interesses e conflitos na fábrica, bem além da oposição entre capital e trabalho: trabalhadores da montadora, trabalhadores das empresas terceiras, líderes sindicais e as diferentes gerências das empresas envolvidas. As instituições de representação de interesses (sindicatos e comissões de fábrica) precisam mediar e articular demandas, muitas vezes conflitantes, reafirmando, como sublinha Francisco, a fábrica como espaço de ação política. Isso ilustra a importância não apenas do conflito, mas também da cooperação no contexto das relações de trabalho em fábricas flexíveis que requerem constantes mediações de interesses e valores dos agentes.

O Capítulo 9, de Iram Jácome Rodrigues e Heloísa Helena T. de Souza Martins, e o Capítulo 10, de Kimi Tomizaki, prosseguem analisando a questão do trabalho, enfocando aspectos das configurações das classes trabalhadores. Esses capítulos permitem contrastar o perfil socioeconômico e as representações sobre o local de trabalho de "velhos" e de "jovens" metalúrgicos no ABC paulista. Eles se complementam metodologicamente, na medida em que o primeiro se vale de um survey, ao passo que o segundo se apóia em um estudo de caso. As análises revelam, em resumo, que a geração mais antiga é constituída em boa medida por imigrantes vindos da Região Nordeste do país, com baixa escolaridade, tendendo a conviver com formas autoritárias de controle no trabalho. Para esses trabalhadores, o emprego em montadora significa um projeto de vida profissional e de mobilidade social. Os jovens metalúrgicos, mais escolarizados e oriundos da própria região, tendem a ter expectativas de migrar para outras atividades profissionais, embora o emprego em montadoras lhes ofereça condições socioeconômicas relativamente boas. Ademais, os jovens são mais críticos em relação às condições de trabalho e aos sindicatos do que antigos metalúrgicos que experimentaram relações de trabalho bem mais hostis no passado. Os resultados da pesquisa autorizam supor-se que preocupações com a qualificação da força de trabalho que marcaram lutas laborais do passado cedem o passo para discussões sobre maior controle pelo trabalhador do tempo de trabalho; ao mesmo tempo, suscitam interrogações, tais como: em que medida sindicatos "antigos" e "recentes" estariam expressando expectativas e demandas das novas gerações?

Os três capítulos finais da coletânea abordam agentes econômicos e sociais relativamente pouco estudados no novo contexto do setor automobilístico, focalizando a região do ABC paulista. No Capítulo 11, Jefferson José da Conceição argumenta que a crise do setor de autopeças na região, nos anos de 1990, foi conseqüência antes das políticas econômicas e setoriais nacionais, que teriam estimulado fusões e aquisições entre empresas e investimentos em regiões emergentes, do que do chamado "custo ABC" (custos da mão-de-obra, combatividade sindical, tributos locais). No Capítulo 12, Celso Horta trata das relações entre mídia e instituições sociais, concluindo que o discurso de jornais locais tende a reproduzir um pensamento hegemônico, conservador e anti-sindical. O capítulo final, de Nilson Tadashi Oda, analisa uma experiência de cooperativismo e de economia solidária, estimulada pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC paulista, ressalvando que esse tipo de alternativa dependeria, para além de princípios ideológicos coletivistas, do acesso a recursos financeiros e da aquisição de competências técnicas. Desse modo, os capítulos realçam, sob diferentes enfoques, a diversidade de agentes e de interesses implicados na dinâmica do trabalho industrial e do desenvolvimento regional.

Em suma, trata-se de um livro com vigor intelectual em diferentes sentidos. O approach comparativo distingue-se de estudos disponíveis sobre o setor automobilístico no Brasil, que insistem em generalizar os impasses dessa indústria no ABC paulista, como se fossem representativos do que ocorre em todo o país. Ao ampliar o espectro de observação e os horizontes interpretativos, a proposta oferece um diagnóstico mais próximo da realidade porque expõe não somente as crises, mas também as emergências que marcam o setor nos anos 2000. Desse prisma, sublinha-se a capacidade dos agentes sociais de fazerem escolhas e de reformularem estratégias, reagindo ao novo contexto de acordo com os recursos de que dispõem e com os interesses e valores que orientam a ação social. As relações entre agentes sociais não seriam unilaterais no contexto dos processos de reestruturação e de globalização, como freqüentemente proposto. Trata-se, isso sim, de relações dialéticas, pois, em alguma medida, as localidades conseguiram influir nas estratégias nacionais e globais das empresas.

Ademais, o livro contribui para a reconstrução do trabalho industrial como objeto sociológico. Os argumentos e os dados apresentados nos diferentes capítulos informam sobre um novo e amplo conjunto de relações tecidas entre agentes sociais com interesses e identidades distintas: capital nacional e estrangeiro; grandes e pequenas empresas de setores diversos (indústrias, comércio, serviços); governos nacionais e subnacionais; trabalhadores, comissões de fábrica e sindicatos com orientações e experiências distintas; cooperativas de trabalho; associações empresariais; mídia; movimentos sociais. A propósito, o título da obra é bastante sugestivo: a análise de relações sociais que constituem "territórios produtivos" vai bem além do que se verifica, estritamente, no âmbito da fábrica e no setor industrial. Ao reconhecer mudanças importantes no mundo do trabalho decorrentes de fatores como reestruturação industrial, disseminação de novas tecnologias e processos de globalização e ao nutrir-se de um diálogo multidisciplinar, essa coletânea mostra que a experiência de trabalho na indústria continua a exercer influência na formação de identidades, no resguardo de direitos, na mobilização de interesses e na definição de comportamentos políticos dos grupos sociais. Ao mesmo tempo, explora a dimensão regional e territorial em termos de sua influência na constituição de interesses e valores das classes trabalhadoras.

Portanto, tem-se um valioso e oportuno testemunho sobre processos de prospecção pelos agentes de espaços de lutas sociais e políticas, em meio a novas e complexas teias de relações sociais tecidas nesses territórios produtivos. Nesse sentido, o livro organizado por Rodrigues e Ramalho demarca, com inventividade, novas fronteiras de análise sociológica sobre as transformações no trabalho e sobre as respostas dos sindicatos a essas novas realidades econômicas e sociais.

Nota

SANDRO RUDUIT GARCIA é doutor em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e professor no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e no Departamento de Sociologia (Prodoc-Capes). E-mail: sandroruduit@ig.com.br.

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    Projetos de pesquisa "Sindicalismo, relações de trabalho, políticas públicas e desenvolvimento regional no ABC paulista", coordenado por Iram Jácome Rodrigues (USP); e "Desenvolvimento regional, indústria automobilística e relações de trabalho em uma perspectiva comparada: os casos do Sul fluminense e do ABC paulista", coordenado por José Ricardo Ramalho (UFRJ).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009
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