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O Brasil que o romantismo (re)criou

RESENHAS

O Brasil que o romantismo (re)criou

André Botelho

Bernardo RICÚPERO, O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870). São Paulo, Martins Fontes, 2004. 287 páginas.

Independência literária, historiografia nacional, mestiçagem como fator de diferenciação dos brasileiros em relação a outros povos e o silêncio cauteloso sobre a escravidão. São esses alguns dos elementos assentados pelo romantismo brasileiro na construção social da idéia de nação no Brasil. E o grau do sucesso do empreendimento romântico, procedendo a análise de frente para trás, estaria no fato de que os seus elementos originais teriam pautado em grande medida a forma pela qual a nação tem sido desde então entendida no Brasil. Veleidades e recursos intelectuais, sociais e políticos disponíveis, devidamente pesados, os intelectuais românticos deram início ao processo de construção da nação e, mesmo em meio aos constrangimentos sociais impostos pela escravidão, levaram-no adiante com as ambigüidades daí advindas. E a idéia de nação por eles construída foi aos poucos tornando-se senso comum.

É esta a proposição central de O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) de Bernardo Ricúpero. Para chegar até ela, o autor traça e percorre um plano analítico sistemático e particularmente instigante, uma vez que combina um material empírico relativamente conhecido na história literária e nas ciências sociais com uma perspectiva inovadora lançada sobre ele. De um lado, recuperando e revendo, da perspectiva da história das idéias políticas, o tema clássico da relação entre literatura e historiografia românticas e construção da idéia de nação no Brasil, Ricúpero articula um conjunto bastante disperso de proposições da prolixa produção discursiva romântica sobre a "identidade nacional". De outro, indagando os efeitos políticos mútuos entre processos ideológicos e estruturas de poder no âmbito da reconstrução das sociedades pós-coloniais em Estados-nação modernos entre os anos de 1830 e 1870, restitui o sentido possível do papel das idéias e dos intelectuais nesse processo.

A questão, contudo, é saber precisamente o que é uma nação no Brasil, e daí, qual o lugar do romantismo como seu condutor ideológico, e qual a possibilidade da idéia de nação estabelecer vínculos entre indivíduos e grupos sociais numa sociedade capitalista cindida para além do plano da imaginação.1 1 Embora não possa desenvolver o argumento, registro aqui o fato de que, ao chegar à tarefa realizada em O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), o autor já parte de uma igualmente bem-sucedida pesquisa sobre um dos autores mais complexos a esse respeito do pensamento social brasileiro, Caio Prado Júnior (Ricúpero, 2000). Creio ser possível apontar, nesse sentido, dois movimentos analíticos fundamentais e articulados que estruturam O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), concorrendo inclusive para lhe conferir alcance e interesse teóricos para além do tema abordado e do recorte espacial/temporal adotado. Antes disso, porém, vejamos o plano do livro. Divide-se em três partes: "Tema: a nação", em que se apresenta uma das mais sistemáticas e valiosas discussões teóricas de que dispomos sobre a idéia de nação em suas mais variadas tradições intelectuais e políticas e também em seus mais variados matizes. E ainda a explicação de por que o romantismo francês se ter constituído a referência fundamental do congênere brasileiro; "Desenvolvimento: a nação segundo o romantismo brasileiro" revê temas como originalidade da produção discursiva romântica, autonomia cultural, indianismo e um ponto de chegada paradigmático de todo esse processo – José de Alencar; na última parte, "Contraponto: a nação segundo o romantismo argentino", percorre-se o pensamento de autores como Echeverria, Sarmiento e Alberdi, entre outros intelectuais "românticos" e "românticos" condutores da idéia de nação na Argentina.

O primeiro dos movimentos analíticos que estruturam o livro, e do qual o segundo será, num certo sentido, uma exigência lógica, insere-se de modo renovado no debate sobre o dualismo, se não diretamente, por meio das críticas que lhe são dirigidas. Sugere que para que se possam apreender os efeitos políticos mútuos entre processos ideológicos e estruturas de poder não devemos nos deter na constatação da importação de instituições e idéias que marcam as sociedades de matriz colonial. Mas, partindo desse mecanismo social fundamental (Schwarz, 2000), qualificar as relações dialéticas entre importação e apropriação social que as podem singularizar. Assim, a perspectiva comparativa entre sociedades de matriz colonial impõe-se como recurso metodológico fundamental na definição do sentido político assumido pelas idéias e instituições importadas em cada sociedade, já que não é a mera importação mas a apropriação a partir dela em interação com suas estruturas sociais específicas que lhe definem o sentido político. Sim, para Bernardo Ricúpero, também a imaginação romântica fixara-se no Brasil na ausência ou, mais precisamente, no deslocamento dos pressupostos históricos que haviam exigido e assentado seu congênere europeu – para Bernardo, em específico o romantismo francês, como desenvolve na primeira parte do livro –, de onde, no entanto, provinha como decorrência do transplante ideológico e institucional a que sociedades, como a brasileira e a argentina, se encontravam desafiadas a se recriar modernamente como Estados-nação. Trata-se de um problema muito mais complexo do que à primeira vista certa visão mais vulgarizada sobre a crítica ao dualismo permite perceber.

Complexo, em primeiro lugar, porque há sim, argumenta Ricúpero, uma afinidade comum entre romantismo e reação ao Antigo Regime, tanto na França como no Brasil, mas seus efeitos sociais e políticos não seguem um padrão sistêmico definido de modo independente da história. Complexo, em segundo lugar, porque é inútil operar com uma visão monolítica do romantismo seja no Brasil seja na França, como se os processos ideológicos pudessem ficar a salvo (em torres de marfim?) das disputas políticas objetivas e dos interesses materiais e civilizatórios do capitalismo que lhes conquistam significados e lhes imprimem sentido – contraditoriamente. A esse respeito, estão muito bem situadas as nuanças sobre o sentido político e/ou cultural assumidos pela idéia de nação nas diferentes conjunturas delimitadas pela Independência e inserção do Brasil no capitalismo do período. E complexo, enfim, porque, associados de diferentes formas ao(s) romantismo(s), os próprios projetos de nação assumem, na experiência histórica, um caráter contraditório, produzindo tanto formas políticas autoritárias como democráticas, ou liberais e conservadoras, como prefere Bernardo. O ponto em questão, portanto, é justamente a capacidade de os diferentes grupos sociais conquistarem espaços no âmbito da nação de modo a expressar seus interesses como programas nacionais, isto é, na perspectiva gramsciana adotada no livro, de conquistarem "hegemonia" na sociedade.

Aqui a perspectiva histórica comparada parece acionada em O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) justamente para garantir um certo controle das generalizações sobre o destino das ideologias e dos intelectuais em sociedades periféricas. No caso, trata-se, da comparação entre as possibilidades do romantismo e da idéia de nação, no Brasil e na Argentina. O argumento fundamental, nesse ponto, é como o romantismo em interação dialética com os eventos característicos do violento – e violento não apenas no plano simbólico – processo de reconstrução de sociedades coloniais em Estados-nação permitiu possibilidades diferentes, segundo a própria combinação histórica com tais eventos, como a consolidação de uma unidade territorial, o assentamento de uma autoridade pública centralizada, a dinamização das forças produtivas, a reprodução do capital e, sobretudo, a presença estrutural da escravidão no caso da sociedade brasileira. E nessa interação entre romantismo e processos sociais foi-se conformando destinos distintos para a idéia de nação em cada uma daquelas sociedades. Ainda que, sustenta o autor, o caráter processual e aberto da idéia de nação seja a garantia mesma de outras possibilidades e de novas perspectivas de futuro para essas sociedades.

O segundo movimento analítico que estrutura o livro diz respeito à própria idéia de nação. E o faz recusando a visão disjuntiva, também mais vulgarizada, de duas das tradições intelectuais ou perspectivas de abordagem da idéia de nação que, de fato, têm conhecido uma extraordinária recepção. Uma que, tendo em vista o pretenso caráter imanente da nação, como elemento durável no decorrer do tempo e subjacente à experiência histórica, se poderia designar de essencialista; outra que, baseada na idéia da vontade dos indivíduos em refazer permanentemente o pacto que os reúne como coletividade social, se poderia designar de voluntarista. A primeira tem sido identificada ao romantismo alemão e particularmente à idéia de cultura como base à legitimidade de constituição de um Estado-nação, e de sua soberania, difundida na obra do lingüista prusiano Johann Gottfried Herder. Perspectiva em geral associada ao pensamento conservador, mas que aparece também e de modo decisivo naquelas investigações/proposições sobre o relacionamento entre Estado e sociedade que se mostram mais preocupadas com as relações sociais em jogo, do que com as instituições políticas propriamente ditas.

Da segunda tradição intelectual é paradigmática a célebre conferência de Ernest Renan proferida em 11 de março de 1882 na Sorbonne, e a afirmação nela feita de que a nação é um "plebiscito de todos os dias". Entre o passado e o presente, embaraçada em lembranças e esquecimentos compartilhados, a nação, dizia Renan, é uma "vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu intacta". E se ela pode ser um elemento durável no decorrer do tempo, não está necessariamente baseada em pretensões imanentes ou atávicas, como sugeria o romantismo alemão. Seu fundamento está na vontade dos indivíduos em refazer permanentemente o pacto que os reúne como comunidade política, daí a ênfase nos princípios contratualistas e republicanos divisados na acepção de Renan. Ainda que, nessa perspectiva, vontade não precise ser entendida de modo voluntarista, uma vez que, também no caso da nação, ações e processos sociais se conformam mutuamente.

Mas é porque recusa, como se disse, uma visão disjuntiva dessas tradições intelectuais que O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) não negligencia a condição conflitante que, no plano histórico, aqueles dois conceitos de nação – o conceito cultural, de Herder, e o conceito político, de Renan – sempre apresentaram. Para Ricúpero é possível considerar que

[...] entre o Estado e a sociedade civil estabelece-se a nação como mediação ideológica que dá aos homens e mulheres a impressão de pertencerem a uma comunidade política maior. A nação parece ter uma função quase complementar; se, no capitalismo, entende-se o Estado como organismo estranho aos indivíduos e a sociedade civil como espaço no qual prevalecem interesses particulares, os membros de diferentes nações, ao se identificarem com os demais membros de sua nação, sentem-se como fazendo parte de uma espécie de "todo" coletivo. A nação aparece dessa maneira, como uma forma de identidade em face da fragmentação da vida social e da exterioridade da vida política (p. 9).

E justamente porque assume de modo dialético aquele conflito, logra explorar com interesse renovado a hipótese clássica de que a "nação" pode concorrer para proporcionar um sentido de solidariedade social mais amplo e necessário a qualquer comunidade política, já que o monopólio do uso legítimo da força física parece mesmo obter a aceitação de seus cidadãos na medida em que eles puderem se sentir ligados uns aos outros por um propósito comum. É a valorização da dimensão política como arena em que se combinam "violência" e "consentimento", portanto, que permanentemente desperta o interessa e coloca em questão o papel das representações ideais da nação e do Estado, assim como dos seus efeitos recíprocos na sociedade moderna. E, por isso, também o papel das idéias e dos intelectuais nesse processo. Quanto menos democrático o processo de construção nacional, a perspectiva histórica comparada o tem demonstrado, maior e mais problemático parece ser o papel a que os intelectuais, como minorias ativas, são desafiados a desempenhar nas suas sociedades, e das batalhas de idéias por eles travadas na construção de legitimidade, consensos e senso comum.

É esse também em grande medida o caso do Brasil imperial, segundo a interpretação proposta por Ricúpero, que retoma a problemática da legitimidade, da política e do poder ideológico da perspectiva do pensador italiano Antonio Gramsci, o mesmo que, indagando o processo pelo qual os grupos sociais fundamentais criam "uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência de sua própria função, não apenas no terreno econômico, mas também no social e no político" (Gramsci, 2000, p. 15), acaba por reintroduzir a questão dos intelectuais no coração da política. E porque sempre político, a necessidade de discutir o efeito das idéias e do exercício do poder ideológico, ou dos intelectuais simplesmente, como tendo concorrido em geral e fundamentalmente para o declínio do domínio e do poder exercidos exclusivamente por meios coercitivos tradicionais e, nesse passo, para dar forma ao mundo moderno em que ainda vivemos. E se idéias como a de nação em sociedades de matriz colonial como a brasileira, escravista no passado e profundamente desigual ainda no presente, podem parecer fora de lugar, isso não significa absolutamente que elas sejam carentes de função; mas sim que, como estão ligadas muito mais a soluções de "conveniência", do que de "princípio", podem sempre tornar elementos incompatíveis em tese, superpostos na realidade (Schwarz, 2000). É a constatação da própria dinâmica social conformada pela convivência de contrários que confere ainda mais importância à política.

O fato de que idéias como as de nação, de um lado, tenham se tornado extremamente familiares – o que aliás pouco favorece a compreensão dos impasses, dos constrangimentos e das potencialidades do próprio Estado-nação atualmente, poder-se-ia argumentar –, e, de outro, que elas conformem em larga medida, mesmo levando em conta o relativo sucesso de certos processos globalizados de "identidade" em curso, o sentido da existência dos indivíduos como membros de uma coletividade social, torna candente na agenda das ciências sociais brasileiras a tarefa retomada e assumida por Bernardo Ricúpero. Ao realizá-la, e pelo modo como a realiza, O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870) questiona a crença, em parte generalizada nas ciências sociais contemporâneas, de que idéias são pouco relevantes nos processos de mudança social, como os de modernização e construção nacional. Posição que, a despeito da dimensão potencialmente crítica que envolve, já que torna problemática a pretensão das idéias de governar o mundo, pode acabar por obscurecer, no entanto, o papel que valores, representações e normas largamente compartilhadas podem assumir na sociedade mediante o trabalho ideológico dos intelectuais, como bem mostra o autor em relação ao romantismo. Confirmando, num certo sentido, o caráter aberto da idéia de nação, e na medida em que a pudermos entender justamente como solidariedade social, e em face das relações de poder que isso sempre implica, não será demais lembrar que, como fez o romantismo, também o modernismo dos anos de 1920 retomará em diferentes combinações seus significados cultural e político. Mas fará isso noutro patamar, uma vez que vencidos os impasses formais para a cidadania com a abolição da escravidão e com a República, a tarefa premente era então tornar o Brasil efetivamente mais familiar aos brasileiros, o que exigiu novas rotinas intelectuais e políticas para a formação dos portadores sociais do Estado-nação.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

GRAMSCI, A. (2000), Cadernos do cárcere [vol. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo]. Edição de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

RICÚPERO, B. (2000), Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo, Departamento de Ciência Política da USP/Fapesp/Editora 34.

SCHWARZ, R. (2000), Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 5 ed. São Paulo, Livraria Duas Cidades/Editora 34.

ANDRÉ BOTELHO é professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ e autor de Aprendizado do Brasil: a nação em busca dos seus portadores sociais (Editora da Unicamp) e de O Brasil e os dias: Estado-nação, modernismo e rotina intelectual (Edusc, no prelo).

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    Embora não possa desenvolver o argumento, registro aqui o fato de que, ao chegar à tarefa realizada em
    O romantismo e a idéia de nação no Brasil (1830-1870), o autor já parte de uma igualmente bem-sucedida pesquisa sobre um dos autores mais complexos a esse respeito do pensamento social brasileiro, Caio Prado Júnior (Ricúpero, 2000).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2005
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