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Gilberto Velho (1945-2012): um virtuoso no burburinho das cidades

HOMENAGEM

Gilberto Velho (1945-2012): um virtuoso no burburinho das cidades

Luiz Fernando Dias Duarte

Ce que nous n'avons pas eu à déchiffrer, à éclaircir par notre effort personnel, ce qui était clair avant nous, n'est pas à nous. Ne vient de nous-même que ce que nous tirons de l'obscurité qui est en nous et que ne connaissent pas les autres.

proust, 1980, p. 239.

Fazer o elogio fúnebre de um personagem como Gilberto Velho é, por um lado, fácil. O currículo é impressionante, os dados objetivos abundam; as referências, loas e homenagens acumulam-se à volta de um nome vastamente consagrado das ciências sociais nacionais. É também, por outro lado, muito difícil – pois a figura notória do intelectual público se distingue mal do personagem de carne e osso, intenso, carismático, imperioso –, sobretudo para quem, como discípulo e colega de muitas décadas, tanto se nutriu de sua companhia como padece de sua falta.

A enumeração dos fatos mais básicos de sua biografia começa com as referências do currículo à graduação em ciências sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1968). Contudo, isso elide a menção necessária à influência de um pai general e intelectual, tradutor de Erich Fromm, amigo do editor Jorge Zahar, dono de sólida biblioteca; ou do peso da experiência infantil em West Point, acompanhando o pai, ou a vivência no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde começou a arrebanhar o círculo brilhante de amigos que o acompanhou até a morte e ensaiou a disposição de intelectual ativo, condutor, que caracterizou sua carreira pública. Evoca-se em seguida a obtenção em tempo recorde do mestrado em antropologia social no nascente Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ (1970), seguido de uma especialização em antropologia urbana e das sociedades complexas na Universidade do Texas, em Austin (1971). Sua formação acadêmica se completaria com o doutorado em ciências humanas pela Universidade de São Paulo (1975), sob a orientação de Ruth Cardoso.

Inicialmente professor do Instituto onde se graduara, deslocou-se para o Museu Nacional, onde obtivera o mestrado, devido à situação sufocante por que passava o IFCS, pesadamente atingido pela ditadura (cf. Garcia Jr., 2009). No Museu logo iniciou seus cursos sobre "antropologia urbana", disciplina básica do mestrado, ao lado de "sociedades camponesas" e "organização social e parentesco". Ali se iniciava uma fecunda carreira de professor e orientador, muito coerentemente articulada às temáticas constantes de sua pesquisa, reflexão e produção científica.

O eixo de seu trabalho girou em torno do que chamou, em algum momento, de "uma teoria das sociedades complexas moderno-contemporâneas, particularmente da vida metropolitana". Para construí-la impôs-se um cruzamento de temas: da complexidade em si mesma, maior do que sua forma fenomenal contemporânea e particularmente característica das grandes cidades; da interação e da mediação; das redes e províncias de significado; e da tensão indivíduo/sociedade, refratada nas múltiplas articulações entre projetos, carreiras e trajetórias. Tais temas foram analisados, sobretudo, no registro do comportamento desviante, da juventude, da política, da violência, da família e da religião. A variedade de ângulos empíricos, contudo, nunca desviou seu foco em perspectivas analíticas mais amplas, carreando informação para o projeto de uma visão de conjunto, ambiciosa, do funcionamento das sociedades modernas

(cf. Eckert, 2010).

A complexidade sempre foi um investimento recorrente na vida intelectual de Gilberto Velho. A expressão "sociedades complexas" aparecia no título de muitos de seus cursos, que podiam abranger a discussão acerca das sociedades clássicas, da dispersão indo-europeia, do helenismo, do Renascimento, da literatura da belle-époque ou dos mundos efusivos da cultura erudita.

Como para G. Simmel, um de seus mentores constantes, a conformação e a dinâmica das redes era, para Gilberto, o vetor essencial da complexidade social, mormente no espaço privilegiado da grande cidade. Toda a tradição da Escola de Chicago e do interacionismo (além de uma presença menor da Escola de Manchester) contribuiu para a elaboração do tema da consociação e da relacionalidade em sua obra.

A forma era indissociável daquilo que ele chamou em sua conferência para professor titular de "o clima e o tom" (Velho, 1992, p. 16). Categorias como "estilo de vida", "províncias de significado", "negociação da realidade", "campo de possibilidades" ou "redes de significado" compunham uma perspectiva fenomenológica consistente em que o nome de Alfred Schutz sempre avultou. O interesse pelo desvio, que ele compartilhou particularmente com seu grande amigo Howard Becker, unia a morfologia da rede social com a variegada tonalidade do ethos.

O interesse na discussão sobre o estatuto teórico de "cultura" e os desenvolvimentos da vida cultural entranhada nas redes sociais era outra maneira de expressar a ênfase no ethos e no "clima". A "cultura subjetiva" de Simmel pulsava explicitamente nos investimentos sobre a arte e seus muitos meandros, assim como em seu interesse pelo patrimônio, pela cultura popular e a religião. As taste cultures de Herbert Gans juntavam-se ao arsenal de análise dos processos de identificação coletiva na metrópole.

Toda essa dinâmica dependia das transformações do estatuto da pessoa, envolvendo a difusão e a hegemonia da ideologia do individualismo, nos termos de Louis Dumont. Gilberto leu essa teoria à luz de Simmel, e de sua distinção entre as versões quantitativa e qualitativa do individualismo. A construção social da pessoa significava para ele universalmente um desafio de individualização ou de individuação (dilema que seus discípulos muito discutiram), e era em função dessa dúvida que seu olhar se voltava sempre para outras complexidades e urbanidades da história. Em muitos contextos, essa ênfase poderia ter sido reificante, etnocêntrica, mas não no seu caso, já que o estímulo era o de compreender como se articulavam as disposições para os projetos de vida. Evidentemente, entre as camadas médias das sociedades modernas essa questão era mais explícita, "nativa" por assim dizer, envolvendo valores que se expressam em projetos, carreiras e trajetórias, em autoconsciência, em biografias e autobiografias, em "emoção e orientação". Ali, a própria elaboração dos agentes avalia a coerência, indaga-se sobre o destino, busca colonizar o tempo. O pesquisador descreve, interpreta e cria modelos a partir das experiências vividas e refletidas.

Área privilegiada dessa linha de investigação foi a que Gilberto desenvolveu a respeito do mundo psi, e sua afinidade eletiva com as camadas médias, sobretudo diante do boom da psicanálise, de que ele foi um dos intérpretes (cf. Duarte, 2000). Fronteiras entre a psiquiatria e a psicanálise, a psicologia e as ciências sociais, entre "doenças mentais", projetos e desvios – tudo isso foi matéria de intensa reflexão de Gilberto, e não apenas de publicações. Seu encontro com E. Goffman em um importante congresso psi realizado no Rio de Janeiro em 1978 é significativo do papel que teve para o desencadeamento no Brasil de uma reflexão sociológica sobre a visão de mundo psi e suas relações com a individualização e a modernidade (cf. Russo, 1999). Não se pode esquecer do papel que sua antropologia teve na sustentação ideológica da reforma psiquiátrica brasileira.

Esses e tantos outros projetos intelectuais expressavam uma clara posição em relação ao método de conhecimento nas ciências sociais. Como lembra em um texto de avaliação do campo publicado nesta RBCS, a antropologia devia compreender "a diferença, o específico, a singularidade" (Reis, Reis e Velho, 1997, p. 24). A alteridade cultural foi um tema explícito de seu interesse pelas fronteiras simbólicas, mas era também um mandamento epistemológico – como, aliás, para toda a antropologia. Na linha de tensão entre essas duas dimensões, Gilberto discutiu reiteradamente as condições de produção de um conhecimento da diferença justamente na "familiaridade", no "cotidiano", at home.

A consciência do enraizamento das relações significativas no eixo temporal sempre justificou uma defesa apaixonada do retorno permanente aos "clássicos", da continuada visitação às soluções que outras "redes de significado" ensejaram, antes da emergência de nossas próprias interpretações. Consciência que fundamentou também sua ênfase na mudança, na transformação, na metamorfose, fosse para apreender identidades trabalhadas em trajetórias e carreiras, fosse para compreender processos históricos mais amplos, eles próprios carreiras de ideias, de modelos para a ação, de estilos de vida. Vem daí provavelmente sua constante preocupação com as biografias e com o enraizamento de redes, de ethos, de significant others, de orientações e destinos, que elas permitem conceber de modo sintético. Nesse sentido, Gilberto publicou diversos balanços de obras de autores que o marcaram, como E. Goffman, H. Becker, Evaristo de Moraes Filho, Anselm Strauss, C. Geertz, W. Foote Whyte, G. Freyre, entre outros. E também publicou muitos elogios fúnebres, como este que a ele ora dedico – lembro de Ruth Cardoso, Anthony Leeds, Lélia Coelho Frota, Maurício Vinhas de Queirós, Anna Heye, Marlyse Meyer, Carolina Bori, certamente entre outros. Biografias, histórias de vida, projetos, carreiras, trajetórias, campos de possibilidades: o afeto que circula nas redes; as redes em que se conformam os afetos.

Essa atenção à motivação e à emoção nas interações sociais nunca implicou, em sua obra, um retrato edulcorado ou irênico do cenário; pelo contrário, envolvia tensão, conflito, jogos de poder, dramas e – eventualmente – violência. Esse tema está claramente associado à questão ampla da autonomia individual, à capacidade de afirmação de um projeto. O poder e a política constituíam, para Gilberto, questões não só intelectuais mas também pessoais. Suas frequentes intervenções em jornais combinavam o interesse pelos processos de mediação da esfera pública com a denúncia tópica de toda sorte de arbítrio e limitação das liberdades civis. A cidade sempre representou para ele, indissociavelmente, urbe e civitas!

* * *

Paro e penso em como finalizar esta evocação num tom mais pessoal que julgo inevitável depois de um exercício vastamente insuficiente de objetivação – e me ocorre apenas repetir a imagem que usei nos agradecimentos de minha tese de doutorado, orientada por ele, em 1985, e que alguma graça lhe causara à época: – conviver com você, Gilberto, foi "uma das melhores trips de minha vida"!

Bibliografia

  • DUARTE, Luiz F. D. (2000), "Dois regimes históricos das relações da antropologia com a psicanálise no Brasil: um estudo de regulação moral da pessoa", in Paulo Amarante (org.), Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade, Rio de Janeiro, Fiocruz.
  • ECKERT, Cornelia. (2010), "Cidade e política: nas trilhas de uma antropologia da e na cidade no Brasil", in Carlos B. C. Martins e Luiz F. D. Duarte (coords.), Horizontes das ciências sociais no Brasil: antropologia, São Paulo, Anpocs.
  • GARCIA JR., Afrânio. (2009), "Fundamentos empíricos da razão antropológica: a criação do PPGAS e a seleção das espécies científicas". Mana. Estudos de Antropologia Social, 15 (2): 411-447
  • PROUST, Marcel (1980), Le temps retrouvé Paris, Gallimard.
  • REIS, Elisa; Reis, Fábio W. & Velho, Gilberto. (1997), "As ciências sociais nos últimos 20 anos: três perspectivas". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 12 (25).
  • RUSSO, Jane A. (1999), "Uma leitura antropológica do mundo psi", in Ana Maria Jacó Vilela, Fabio Jabur e Heliana C. Rodrigues (orgs.), Clio-psyché: histórias da psicologia no Brasil, Rio de Janeiro, Editora da Uerj.
  • VELHO, Gilberto. (1992), "Unidade e fragmentação em sociedades complexas", in G. Velho e O. Velho (orgs.), Duas conferências, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ.
  • _____. (2011), "Urban anthropology: interdisciplinarity and boundaries of knowledge". Vibrant, 8 (2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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