Acessibilidade / Reportar erro

Auto-interesse e incompetência

Resumos

Todas as escolas de ciências sociais têm uma hipótese comum: o auto-interesse é a variável central para explicar o comportamento humano em sociedade. Nas sociedades contemporâneas uma segunda variável está tornando-se cada vez mais relevante para explicar os resultados sociais: a incompetência técnica e emocional dos policymakers. Políticos incompetentes, que fracassam em escolher a alternativa mais consistente com seus próprios objetivos, mesmo quando interesses são neutralizados, sempre existiram. Mas, agora, que um número cada vez maior de resultados sociais dependem de políticas públicas do governo, competência tornou-se estratégica.

interesse; incompetência; política econômica; desenvolvimento econômico


All social science' schools have a common assumption: self-interest is the central variable explaining human behavior in society. In contemporary societies a second variable is turning increasingly relevant when one is willing to explain social outcomes: policymakers' technical and emotional incompetence. Incompetence policymakers, who fail to choose the alternative more consistent with their own objectives, even when interests were neutralized, always existed. But now, that an increasing number of social outcomes are dependent on government policy, competence has turned strategic.


Auto-interesse e incompetência* * O autor agradece os comentários de Adam Przeworski, Paul Davidson, e Laurence Whitehead. Tradução de Ricardo Borges Costa.

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Ensina economia na Fundação Getulio Vargas, São Paulo (e-mail:bresserpereira@uol.com.br) http://www.bressserpereira.org.br

RESUMO

Sumário: 1. Introdução; 2. Algumas definições; 3. Resultados não controlados e resultados de políticas; 4. Erros de políticas; 5. Novos fatos históricos; 6. Algumas questões; 7. Conclusão.

Todas as escolas de ciências sociais têm uma hipótese comum: o auto-interesse é a variável central para explicar o comportamento humano em sociedade. Nas sociedades contemporâneas uma segunda variável está tornando-se cada vez mais relevante para explicar os resultados sociais: a incompetência técnica e emocional dos policymakers. Políticos incompetentes, que fracassam em escolher a alternativa mais consistente com seus próprios objetivos, mesmo quando interesses são neutralizados, sempre existiram. Mas, agora, que um número cada vez maior de resultados sociais dependem de políticas públicas do governo, competência tornou-se estratégica.

Palavras-chave: interesse; incompetência; política econômica; desenvolvimento econômico.

Código JEL: O20.

ABSTRACT

All social science' schools have a common assumption: self-interest is the central variable explaining human behavior in society. In contemporary societies a second variable is turning increasingly relevant when one is willing to explain social outcomes: policymakers' technical and emotional incompetence. Incompetence policymakers, who fail to choose the alternative more consistent with their own objectives, even when interests were neutralized, always existed. But now, that an increasing number of social outcomes are dependent on government policy, competence has turned strategic.

1 Introdução

As ciências sociais sempre foram o campo da controvérsia. Alguns avanços são, por fim, conseguidos, e algumas questões, superadas, e muda o objeto da controvérsia. Entre os anos 50 e 70, por exemplo, a principal divisão, dentro da sociologia, dava-se entre as visões funcionalistas e as que enfatizavam o conflito (principalmente marxista) na análise da sociedade; na economia, entre as escolas keynesiana e neoclássica. Hoje, a principal divisão ocorre entre o individualismo metodológico, que se tornou dominante na economia e avançou na ciência política, e teorias históricas ou de sistemas, ou seja, entre a doutrina segundo a qual a estrutura social e a mudança social são exclusivamente o resultado de decisões individuais, e que, portanto, os cientistas sociais produzirão o avanço do conhecimento desde que investiguem as microfundações ou bases racionais subjacentes, e a doutrina segundo a qual muitos fenômenos sociais e econômicos podem ser explicados melhor por meio de estruturas sociais e econômicas, por forças históricas macro ou holísticas, que pressupõem interesses subjacentes, mas explicam a mudança social e econômica a partir principalmente dos fatos históricos novos que modificam as relações internas e externas ao sistema social sob análise.

Entretanto, todas as escolas têm em comum uma pressuposição: os interesses são o elemento que move as pessoas e explica o comportamento. Os filósofos clássicos estavam mais preocupados com as paixões do que com os interesses. Mas, como demonstrado por Hirschman, desde o século XVI os interesses de indivíduos e de grupos foram cada vez mais ocupando o centro da ação. Eles abarcavam a totalidade das aspirações humanas, mas, diferentemente das paixões, denotavam um elemento de reflexão e de cálculo. No século seguinte, passaram a ser encarados como aspirações econômicas, tornando-se centrais ao raciocínio econômico.1 1 Hirschman (1977:32-37). Hoje, os economistas neoclássicos e os teóricos políticos da escolha racional adotam o individualismo metodológico e falam de interesses de indivíduos ou interesses de grupos, ao passo que os marxistas referem-se a interesses de classe e adotam o historicismo metodológico. Todos, no entanto, pressupõem que os interesses - ou seja, os objetivos pessoais, as paixões controladas pela razão - movem as pessoas. Os interesses podem ser egoístas ou levar em conta o interesse de outros, mas estarão sempre na base de qualquer explicação para os fenômenos sociais e para como eles se modificam.

No presente trabalho, não questiono esta pressuposição. Direi apenas que, quando avaliamos resultados econômicos do comportamento de indivíduos ou grupos, existe um outro elemento explanatório: a competência emocional e técnica envolvida nas decisões de formuladores de políticas. Quando os resultados econômicos ou sociais são substancialmente influenciados por decisões políticas, não basta apenas considerar os interesses por trás das decisões. É preciso também perguntar-se se as políticas adotadas foram competentes ou não. As políticas terão sido competentes se formuladas a partir de uma avaliação correta da situação e se concluíram pela adoção da melhor alternativa existente para atingir o objetivo desejado.

Como não estou escrevendo a partir do ponto de vista da filosofia moral, mas apenas tentando compreender, em termos positivos, de que maneira os resultados econômicos acontecem, políticas competentes não se definem aqui como aquelas consistentes com o interesse público, mas, sim, como as que são consistentes com os objetivos. Não obstante, o interesse público estará envolvido uma vez que os políticos sempre resolvem invocá-lo, e as pessoas julgam os políticos segundo esse critério.

Venho trabalhando com essa variável da competência desde o final dos anos 80. Naquele momento, quando o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado tornaram-se também centrais na ordem do dia dos cientistas políticos, notei que eles sempre trabalhavam com a pressuposição de que nós, economistas ou formuladores de políticas, éramos competentes, e, portanto, limitavam-se a investigar as razões políticas que explicariam por que as políticas ''certas'' não eram aprovadas nos parlamentos e postas em ação. Argumentei, então, que tal pressuposição era falsa. Muitas políticas não eram competentes - não conduziam aos objetivos alegados: a estabilização e o crescimento subseqüente. E mesmo se as reformas são as necessárias, se forem elaboradas de maneira incompetente, sua aprovação em parlamento será muito mais difícil. Em muitas ocasiões, reformas são rejeitadas por não terem projeto adequado e bem definido.2 2 Foi, por exemplo, o caso da reforma da previdência social enviada pelo executivo brasileiro ao Congresso, em abril de 1995. Era uma reforma mal-formulada, que não enfrentava o problema central das aposentadorias públicas, que deixava mal definida questões centrais na própria área da previdência, e 'aproveitava' para eliminar direitos fundamentais alheios à área, como o direito universal ao atendimento de saúde. Em conseqüência a emenda foi, no Congresso, imediatamente dividida em quatro. Aquela referente à saúde foi rejeitada rapidamente, e afinal o que se obteve em matéria de reforma foi muito menos do que se pretendia. Um desenho mais claro e competente da emenda constitucional teria produzido um resultado muito melhor. Assim, para que se possam avaliar resultados econômicos, não se pode furtar-se a avaliar, de maneira substantiva, os projetos das políticas e das reformas.

No início dos anos 90, escrevi um trabalho em que já criticava a pressuposição de que as políticas econômicas são competentes, e de que o problema consiste em contar com a sustentação política necessária a sua implementação.3 3 Bresser-Pereira (1993). Entretanto, apenas desenvolvi essas idéias ao escrever um trabalho sobre as razões por que a América Latina permanecia praticamente estagnada nos últimos 20 anos: nesse período, a renda per capita cresceu na região a uma taxa anual de 0,5%, contra 2,5% nos países da OCDE.4 4 Bresser-Pereira (2001). O presente trabalho procura organizar e tornar mais rigorosas as relações entre auto-interesse e competência na produção de resultados econômicos.

O artigo será dividido em seis seções e uma conclusão. Na primeira, definirei interesses e competência/incompetência. Enquanto os interesses estão no universo da motivação humana, a competência envolve considerações sobre eficácia e eficiência. Na segunda seção, faço a distinção entre resultados de políticas e resultados não controlados. Na terceira, distingo os resultados econômicos não controlados dos resultados de política econômica. Na quarta seção, defino os erros de políticas e relaciono-os a interesses e à competência/incompetência. Reconheço que é difícil distinguir quais aspectos de determinadas políticas e seus correspondentes resultados econômicos se devem a interesses ou à competência, uma vez que esses dois fatores estão interligados. Contudo, como em várias situações os interesses estão neutralizados, ou não bem definidos, existe um grande espaço para a formulação independente de políticas. Na quinta, analiso os novos fatos históricos que tornaram mais freqüentes os resultados de políticas. Quanto mais aumenta o estado, maior a disponibilidade de dados acerca dos resultados econômicos; e quanto mais explicativas as teorias econômicas por trás das políticas econômicas, tanto mais os resultados econômicos dependerão da formulação de políticas. Finalmente, na sexta seção, argumentarei que, embora a incompetência possa ser vista como um fator sistêmico na determinação de resultados econômicos, sua relevância pode ser reduzida se os formuladores de políticas forem capazes de aprender com os próprios erros. E eles o farão desde que se tenha conseguido algum consenso na sociedade civil, e a democracia tenha se tornado o regime político dominante. Mesmo nesse caso, entretanto, a competência continuará a ser crucial porque os problemas enfrentados por formuladores de políticas são cada vez mais complexos e se modificam a taxas cada vez maiores.

2 Algumas Definições

Quando pensamos em interesses motivando o comportamento humano, normalmente os contrapomos a dois conceitos diferentes: as paixões o e comportamento altruísta. A pressuposição é de que os interesses próprios são paixões moderadas, ou, mais precisamente, são a busca do próprio bem de cada um após a devida reflexão. O cálculo é essencial porque freqüentemente se supõe que o indivíduo controle seus desejos em atenção às normas e aos valores sociais pertinentes à questão envolvida, visando a maximizar tanto quanto possível os resultados.

Se aceitamos que os interesses são a única força real por trás do comportamento humano, não existe lugar para o altruísmo. Ou, mais precisamente, ações de aparente altruísmo só fazem sentido quando respondem a demandas sociais e suas instituições correspondentes, e se são recompensadas com o reconhecimento social. Seguindo a mesma linha de raciocínio, as ações egoístas, produzidas em resposta a nossos próprios interesses, não serão adotadas se forem ofensivas à lei e aos valores compartilhados pela sociedade. As instituições têm precisamente esse objetivo. Criar incentivos e punições para que os indivíduos ajam de acordo com os padrões que seriam considerados altruístas, cooperativos, caso as leis não estivessem presentes.

Se atribuímos menor peso ao interesse próprio ou auto-interesse, podemos considerar o verdadeiro argumento do altruísmo, da idéia de que o amor e o sentido do dever têm também um papel no comportamento humano. Podemos assumir que o comportamento de homens e mulheres é o resultado de interesses, respeito às instituições, e espírito de cooperação ou altruísmo. Neste caso, não estou excluindo o auto-interesse. Para que o altruísmo e mais amplamente a cooperação sejam possíveis é necessário, como sugere Mansbridge, que ''o comportamento não-egoísta produza retornos egoístas, criando assim um 'nicho ecológico' que ajude a manter o comportamento não-esgoísta''.5 5 Mansbridge, J. S. (1990a:137). A tese mais geral da autora, é a de que ''o altruísmo precisa coincidir com o auto-interesse suficientemente para evitar a extinção seja do motivo altruísta, seja do próprio altruísta'' (133). Estou convencido de que este terceiro fator desempenha também um papel, mas parece razoável adotar a postura científica de não considerá-lo nos modelos mais gerais. Ele é relativamente menos determinante do comportamento do que os outros dois fatores (auto-interesse direto e respeito às normas), e não existe uma maneira simples de fazer previsões combinando interesse próprio e altruísmo. Conforme observa Elster, ''o pressuposto de que todo comportamento é egoísta é o mais parcimonioso pressuposto que podemos fazer, e os cientistas sempre gostam de explicar muito com pouco''.6 6 Elster (1990:45).

Os interesses relacionam-se a motivações individuais e de grupo. Eles explicam o comportamento desde que os indivíduos e os grupos tenham os seus próprios objetivos bem definidos ou, pelo menos, bem pensados. E, ao explicar o comportamento, eles explicam, em última análise, os resultados.

Entretanto, para que possamos entender ou prever os resultados, uma outra variável torna-se cada vez mais importante: a competência. A competência não pertence ao universo do comportamento, dos incentivos e das punições, mas ao universo da eficácia e da eficiência. Para alcançar objetivos e produzir resultados não basta ter objetivos. É preciso também ser capaz de alcançá-los, preferencialmente da maneira mais econômica. A eficácia, aqui, consiste na habilidade de alcançar as metas desejadas e ao mesmo tempo evitar os resultados inesperados; a eficiência é a habilidade de escolher os meios mais adequados para alcançar objetivos - os meios que minimizam insumos ou custos.

Um formulador de políticas competente é um indivíduo eficaz e eficiente, que adota políticas competentes. É o indivíduo que, numa situação de incerteza, escolhe, dentre as alternativas, aquelas que são eficaz e eficientemente consistentes com seus objetivos desejados. A racionalidade instrumental - o uso dos meios mais adequados para alcançar os fins desejados - pressupõe decisões competentes. Em termos práticos, o conceito é sinônimo de eficiência.

A formulação competente de políticas está relacionada ao estado do conhecimento sobre a questão. Não posso chamar de incompetente uma política - ou, de maneira mais geral, uma decisão - por não utilizar um conhecimento ainda não disponível. Não obstante, espera-se que um formulador de políticas competente tenha a capacidade de avaliar em termos realistas o problema enfrentado, de definir claramente os vários caminhos alternativos que poderão levar ao objetivo, de atribuir a cada caminho um valor (uma vez que alternativas diferentes não levam exatamente aos mesmos resultados) e uma probabilidade de sucesso, e, finalmente, de decidir pela alternativa que oferece o melhor resultado em termos de valor/probabilidade.

O formulador de políticas competente deve conhecer as teorias científicas relevantes e o conhecimento comum sobre o assunto, mas ele se tornará incompetente se utilizar modelos de maneira automática. Cada caso é um caso e requer uma avaliação específica.

O formulador de políticas é um estrategista jogando um jogo. Assim, ele deve avaliar as possíveis reações dos ''adversários'' ou, de maneira mais geral, dos indivíduos e dos grupos afetados por suas decisões. Uma vez que não dispõe de toda a informação, ele estará freqüentemente diante do dilema do prisioneiro, i. e., racionalmente constrangido a escolher uma alternativa sub-ótima. Nesse caso, ele será competente se conseguir ser capaz de aumentar o nível de informação; ou, quando a informação permanece insuficiente, se ele, não obstante, for capaz de combinar prudência com coragem e decidir com base em seu conhecimento e sua experiência adquiridos em situações similares.

A última sentença sugere que a competência não é apenas uma questão de conhecimento e experiência. Além do que pode ser chamado de ''competência técnica'', existe a ''competência emocional''. O formulador de políticas competente deve combinar prudência com humildade e coragem. Medo, orgulho e arrogância são as piores paixões enfrentadas diariamente por formuladores de políticas. Os que tomam decisões na esfera pública são políticos e burocratas graduados. Ou, burocratas graduados usualmente possuem competência técnica, mas medo e orgulho são as emoções encontradas com maior freqüência entre eles. Os políticos, por sua vez, combinam essas três paixões de maneira mais equilibrada, mas têm problemas com a falta de conhecimento pertinente para decidir.

Usualmente, é mais conveniente e apropriado usar a expressão ''políticas incompetentes'' em vez de ''formuladores de políticas incompetentes''. Somente quando os erros implicam grandes prejuízos, quando os resultados são extremamente negativos, estaremos certos em personalizar nossa própria avaliação.

3 Resultados não Controlados e Resultados de Políticas

Os resultados podem ser de diferentes naturezas: econômica, política, social e cultural. Concentrar-me-ei nos resultados econômicos. Podemos pensar em dois tipos de resultados econômicos: resultados de políticas e resultados não controlados. No passado, todos os resultados econômicos eram, em sua maioria, resultados não controlados. Uma vez que as pessoas não podiam esperar bons resultados a partir de decisões competentes, a formulação de políticas era secundária e, portanto, sua influência sobre os resultados, pouco expressiva. Não havia nenhuma teoria econômica - especificamente a macroeconomia - para orientar os formuladores de políticas. Crescimento econômico, estabilidade de preços, estabilidade no balanço de pagamentos - usualmente os resultados econômicos mais valorizados - eram antes o resultado da aplicação, ou da falta de controle, de indivíduos, e não de decisões governamentais. A única coisa que se esperava dos governos era a austeridade fiscal e financeira. Os resultados controlados e a formulação competente de políticas tornam-se relevantes somente quando os governos são bem informados com dados estatísticos e se apóiam em teoria pertinente sobre como relacionar esses dados de maneira que façam sentido. Ou, nas palavras de Ernest Gellner, ''a racionalidade instrumental é viável somente dentro de esferas limitadas de nosso mundo, em que a sensibilidade racional às evidências - que aquela pressupõe - também seja possível, e em que os objetivos precisos também o sejam''.7 7 Gellner (1986:31). Ou, ainda segundo Gellner, nos últimos 50 anos, desde que Keynes estabeleceu a macroeconomia como um novo e grande ramo da economia, e que os dados correspondentes sobre as contas nacionais começaram a ser coletados e sistematizados, o campo das políticas macroeconômicas tornou-se uma das ''áreas relativamente restritas e razoavelmente bem isoladas'' em que a racionalidade instrumental pode operar, em que resultados controlados são possíveis e decisões competentes, cruciais.8 8 As palavras entre aspas são de Gellner (1986:27).

O número de áreas sujeitas a decisões competentes está historicamente se expandindo. Além dos resultados macroeconômicos, os resultados sociais, por exemplo, são cada vez mais dependentes de políticas governamentais. Para serem transformados em resultados relativamente controlados, devem envolver ou um forte poder regulador por parte do estado, como no caso dos resultados macroeconômicos, e/ou implicar a utilização de grandes quantias de dinheiro público, como no caso da educação, saúde e seguridade social. Até o final do século XIX, quando a carga tributária e os gastos do estado em relação ao PIB estavam em torno de 5 por cento, poucas áreas estavam sujeitas a decisões capazes de produzir os resultados esperados, a políticas públicas eficazes. Hoje, na maioria dos países, essa relação varia entre 30 e 50 por cento do PIB. Assim, o papel das decisões governamentais tornou-se crucial, e os resultados correlatos, positivos ou negativos, dependerão fortemente das decisões competente ou incompetentemente tomadas.

Em síntese, quanto maior a disponibilidade de dados e teorias pertinentes sobre um determinado assunto, e quanto maior o poder regulador do estado, tanto mais pesará nos resultados a variável competência/incompetência. Ou, em outras palavras, quanto maior o conhecimento e o poder estatais, tanto mais os resultados econômicos e sociais serão o produto de políticas em vez de resultados não controlados e, portanto, estarão sujeitos a decisões competentes ou incompetentes.

4 Erros de Políticas

No momento em que temos resultados de políticas, os erros dessas políticas se tornam relevantes. Defino erros de políticas como as decisões que não são consistentes com o interesse público, ou, pelo menos, com os objetivos declarados e socialmente aceitos das políticas. Maus resultados são primariamente produzidos por erros de políticas que, por sua vez, têm duas origens: auto-interesse e/ou incompetência.

Os interesses envolvem, por um lado, os grupos de pressão e, por outro, os interesses do formulador de políticas. Ambos os interesses normalmente aparecem juntos e são parte da maneira usual e aceitável de fazer política, uma vez que não estão necessariamente em contradição com o interesse público. Contudo, freqüentemente estão. Nesse caso, o formulador de políticas que não se mostra capaz de resistir à pressão está ou em busca de renda, ou sua motivação é o desejo de ser reeleito (caso seja um político) ou de ser renomeado (caso seja um burocrata). Embora os resultados, nessas circunstâncias, não sejam socialmente favoráveis, não posso dizer que as decisões sejam incompetentes: são apenas equivocadas e perversas.

Políticas incompetentes são sempre equivocadas, mas não perversas. Elas pressupõem, em termos subjetivos, que o formulador de políticas está orientado para o interesse público e, em termos objetivos, que os interesses dos grupos de pressão estão neutralizados ou não estão em conflito com os objetivos sociais. A incompetência pode ser técnica, suscitada pela ignorância; ou emocional, em decorrência de medo ou arrogância. O formulador de políticas pode ser ignorante por ser incapaz de avaliar corretamente o problema, ou por desconhecer as teorias pertinentes que o explicam. Aqui não é o momento - e tampouco estou qualificado - para discutir os fatores por trás da incompetência emocional.

Poderíamos considerar a s ideologias uma terceira origem para os erros, além do auto-interesse e da incompetência. Na verdade, nossas ideologias expressam nossos interesses. Em muitos casos, porém, vemos pateticamente ideologias velhas e cristalizadas, que perderam a relação com o interesse original que expressavam, mas continuam a orientar o comportamento das pessoas. Neste caso as ideologias são uma fonte autônoma de decisões incompetentes.

No caso de países em desenvolvimento, os erros freqüentemente têm origem na recusa dos formuladores de políticas em pensar por si mesmos. Ao contrário, é bastante comum vê-los envolvidos no ''jogo de construção de confiança'', i. e., tomando decisões de acordo com as políticas que eles acreditam que têm a aprovação dos técnicos em Washington e do meio financeiro em Nova York. Agindo assim, esperam poder melhorar a confiança em seus países e a credibilidade de seus governos. Não necessariamente. Isso só estaria correto se Washington e Nova York conhecessem os problemas específicos de cada país melhor do que os formuladores de políticas locais. Venho chamando esse comportamento de ''estratégia de construção de confiança''. Paul Krugman, ao analisar a Crise Asiática, falou mais recentemente sobre o ''jogo da confiança'' como sendo uma grande fonte de erros.9 9 Sobre a construção de confiança, veja Bresser-Pereira (1996, 2001).; sobre o jogo da confiança, veja Krugman (1998). Ambos resultam na mesma coisa: ''o jogo da construção de confiança''. O jogo da construção de confiança fica entre os interesses e a incompetência, como uma fonte de erros de políticas. Os interesses, aqui, estão relacionados à atitude subserviente que muitos políticos e técnicos nos países em desenvolvimento adotam em relação às visões e às diretrizes emitidas pelos países desenvolvidos; a incompetência aparece na aceitação da idéia de que os outros sabem mais, i. e., no reconhecimento de sua própria inépcia.

5 Novos Fatos Históricos

No passado, seja porque o peso do estado na economia era pequeno, seja porque não haviam teorias (como a keynesiana) para orientar as políticas públicas, poucos eram os resultados econômicos que delas dependiam. Erros de políticas tinham conseqüências limitadas. Assim, os economistas estavam corretos ao desconsiderar a competência na tomada de decisão sobre políticas públicas e considerarem, em suas análises dos resultados econômicos e sociais, apenas os interesses. No século XX, um novo fato histórico mudou essa simples verdade: o aumento do tamanho do estado, medido em termos de carga tributária gastos estatais em relação ao PIB. Esse aumento foi acompanhado por dados estatísticos novos e relativamente muito mais precisos sobre os resultados econômicos e sociais e, em certos casos - como é o caso da macroeconomia - pelo surgimento de teorias significativas orientando a formulação de políticas.

Ou, se o individualismo metodológico é capaz de explicar muitos aspectos do comportamento coletivo e os resultados sociais e econômicos correspondentes, ele é menos bem sucedido em explicar por que eles mudam. Para explicar as mudanças, temos que procurar os novos fatos históricos em geral decorrentes de novos conhecimentos e novas tecnologias. Para compreender novas realidades, é preciso que utilizemos aquilo que venho denominando ''o método dos fatos históricos novos'', i. e., precisamos investigar os eventos históricos que produziram novos resultados. Em seguida, tentaremos derivar uma teoria explanatória, cuja consistência iremos verificar investigando suas microfundações.

A nova relevância da formulação de políticas e de seu caráter competente ou incompetente é tipicamente uma conseqüência de um fato histórico novo, ou, para ser mais preciso, de um conjunto de fatos históricos novos: aumento do estado, aumento do nível de informação, teorias econômicas e sociais mais desenvolvidas, e políticas públicas com maior capacidade de impacto.

Esses novos fatos históricos ampliaram o espaço para a tomada de decisões. Mas, ainda assim, os interesses precisam ser considerados. Existe espaço para a tomada autônoma de decisões quando o formulador de políticas exerce o papel de árbitro entre interesses conflitantes, ou quando concessões estão envolvidas. Um segundo caso é quando os interesses são neutralizados. Interesses e competência estão extrinsecamente interligados, tornando-se difícil distinguir o que é resultado de um ou de outro fator. Os interesses estão em toda parte, exercendo pressão sobre os formuladores de políticas. Às vezes, expressam-se diretamente; na maioria dos casos, aparecem disfarçados sob a forma de valores, crenças, ideologias e teorias, ou seja, como falsa consciência. Algumas vezes são tão fortes que não há outra coisa a fazer senão conceder; outras, são de alguma forma neutralizados. Ainda assim, embora sejam ponderáveis, os interesses deixam algum espaço para a tomada de decisões. Em certos casos, os interesses envolvidos não estão claros; em outros, as reivindicações antagônicas de grupos de interesse os enfraquecem; em outros ainda, a legitimidade política das administrações é suficientemente forte ou os políticos são suficientemente corajosos para confrontar os interesses e decidir de acordo com suas próprias convicções. Em todas essas situações, os interesses são neutralizados, e os formuladores de políticas ficam livres para decidir.

6 Algumas Questões

Os erros de políticas são bastante usuais, particularmente nos países em desenvolvimento. Quanto menos desenvolvido o país, menos coesa será sua sociedade civil; quanto mais pobres e menos democráticas forem as instituições do estado, maior será a probabilidade de o governo ser incompetente ou dominado por interesses. Entretanto, quando formalmente apresentei essas idéias pela primeira vez a grupos de estudiosos da economia política, no último trimestre de 1999, duas grandes questões, que se relacionam entre si, foram colocadas: a competência é um fator sistêmico? Por que os formuladores de políticas não aprendem com os erros anteriores?10 10 Debati este trabalho em vários lugares, particularmente com amigos em Oxford (onde estive como membro visitante do Nuffield College e do Centro de Estudos Brasileiros), e na New York University.

A resposta à primeira questão é sim, com uma ressalva. Sim, porque o maior poder adquirido pelos formuladores de políticas no século XX representou, como já argumentei, um novo fato histórico que tornou os resultados econômicos mais dependentes de decisões políticas. Com uma ressalva, porque os formuladores de políticas deveriam aprender com seus próprios erros.

Contudo, a repetição dos erros é mais comum em países em desenvolvimento do que em países desenvolvidos. Por quê? Porque há uma forte correlação entre o nível de desenvolvimento econômico e a qualidade dos governos e da governança; porque a falta de coesão nas sociedades civis leva a grandes divergências sobre como enfrentar os problemas dos países; porque a falta de consenso e a ausência de um espaço público com regras do jogo bem definidas tornam difícil o debate público; porque cada grupo político acredita que suas propostas são as únicas capazes de ''salvar'' o país; porque a desqualificação dos adversários é uma constante na política. Em outras palavras, porque o verdadeiro debate público é limitado, quando não inexistente. Ou, o debate público, em que os contendores debatem as questões em vez de desqualificarem-se uns aos outros, é uma condição para se aprender com os erros.

Apresentou-se ainda uma terceira questão: quem irá definir quais políticas são competentes e quais não o são? Tal questão é relevante do ponto de vista de controlar os resultados; não se trata apenas de analisar a realidade. A mesma questão caberia em relação aos interesses: quem irá julgar quais interesses são contrários ao bem comum? Posso fazer minha própria avaliação sobre quais foram os principais erros de políticas no Brasil, mas ela seria apenas a minha opinião. Os regimes democráticos existem não apenas para assegurar a liberdade, mas também para criar espaço para que as questões sejam discutidas e para que algum consenso seja alcançado. A democracia e o debate público levarão a que se aprenda com os erros e a uma maior capacidade de resistir aos interesses. Mas competência e interesse permanecem como os dois maiores fatores que, em conjunto, determinam os resultados econômicos e sociais.

7 Conclusão

Para concluir, os resultados econômicos dependem não apenas dos interesses envolvidos, mas também da competência dos formuladores de políticas. Quanto mais efetivo for o estado em influenciar resultados, tanto mais os resultados dependerão de decisões competentes. Os interesses e a competência determinam, conjuntamente, a maioria dos resultados econômicos, e não é fácil fazer a distinção entre os dois fatores, mas isso não justifica desconsiderar o segundo. Os governos tem um trabalho a fazer e devem fazê-lo bem.

Em outras palavras, sabemos há muito tempo que um bom estado, i.e., boas instituições, contam. Estou apenas acrescentando que bons governos, boas administrações, também contam. A hipótese clássica do liberalismo sobre o bom estado não mais se aplica. Não podemos esperar que instituições estatais boas levarão automaticamente a um bom governo. Os problemas enfrentados pelos governos hoje são tão complexos e mudam tão rapidamente que, mesmo quando as instituições são bem pensadas e bem definidas, as nações ainda dependerão de bons governos, i. e., de políticos e técnicos competentes, dotados de virtudes republicanas, ou do virtù maquiavélico. E mais: bons governos, bons políticos e técnicos dependem não apenas de boas instituições, mas também de uma boa sociedade civil, em que esteja presente um espaço público, e em que o debate público seja real. Apenas através funcionamento ativo da sociedade civil e da discussão ampla e razoavelmente objetiva das questões será possível diminuir os erros nas políticas públicas, reduzir seu grau de incompetência.

Esse último raciocínio me leva a uma conclusão otimista. Os erros de políticas tenderão a ser menos danosos no futuro por duas razões: porque os formuladores de políticas são cada vez mais bem instruídos e porque vivem em países cada vez mais democráticos, nos quais formas de democracia deliberativa começam a aparecer.11 11 Há uma bibliografia sobre a democracia deliberativa, que deriva essencialmente da teoria da ação comunicativa de Habernas (1981). Cito aqui apenas dois livros reunindo alguns dos principais trabalhos sobre o tema: Bohman and William (1997) e Elster (1998). O século XX foi a primeira vez na história em que a democracia se tornou o regime político dominante e de preferência geral. Os países desenvolvidos são todos democracias, e um número cada vez maior de países em desenvolvimento já se tornou ou está se tornando democrático. Ora, com a democracia tornada realidade ao nível das instituições e da sociedade civil, o debate público torna-se real, e o aprender com os erros torna-se mais efetivo, de forma que, não obstante os problemas enfrentados pelos formuladores de políticas no dia-a-dia sejam cada vez mais complexos e mudem cada vez mais rapidamente, será crescentemente possível aos governos democráticos aumentar a competência na tomada de decisões.

Artigo recebido em nov. 2000 e aprovado em dez. 2001

  • Birnbaun, P. & Jean, L. (1986). Individualism: Theory and Methods Oxford University Press, Oxford. Originally published in French, 1986.
  • Bohman, J. & William, R. (1997). Essays on Reason and Politics: Deliberative Democracy The MIT Press, Cambridge, Ma.
  • Bresser-Pereira, L. C. (1993). Economic reforms and economic growth: Efficiency and politics in latin America. In Luiz Carlos Bresser Pereira, J. M. M. & Adam Przeworski, editors, Economic Reforms in New Democracies, chapter 1. Cambridge University Press, Cambridge.
  • Bresser-Pereira, L. C. (1996). Crise Econômica e Reforma Do Estado No Brasil Editora 34, São Paulo.
  • Bresser-Pereira, L. C. (2001). Incompetência e confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América latina. Revista de Economia Política, 21(1):141166.
  • Bresser-Pereira, L. C. & Yoshiaki, N. (1998). The missing social contract. In Graciela Ducatenzeiler and Philip Oxhorn, What Kind of Democracy? What Kind of Market? Latin America in the Age of Neoliberalism, Philadelphia. Penn State University Press.
  • Elster, J. (1990). Selfishness and altlruism. In Mansbridge, Org., pages 133146.
  • Elster, J. (1998). Deliberative Democracy Cambridge University Press, Cambridge.
  • Gellner, E. (1986). The gaffe-avoiding animal or a bundle of hypotheses. In Pierre Birnbaun and Jean Leca, Eds.
  • Habermas, J. (1981). The Theory of Communicative Action (Volume I and II) Beacon Press, 1984, Boston. Originally published in German, 1981.
  • Hirschman, A. O. (1977). The Passions and the Interests Princeton University Press, Princeton.
  • Krugman, P. (1998). The confidence game. The New Republic September.
  • Mansbridge, J. S. (1990a). Beyond Self-Interest The University of Chicago Press, Chicago.
  • Mansbridge, J. S. (1990b). On the relation of altruism and self-interest. In Mansbridge, org., pages 133146.
  • *
    O autor agradece os comentários de Adam Przeworski, Paul Davidson, e Laurence Whitehead. Tradução de Ricardo Borges Costa.
  • 1
    Hirschman (1977:32-37).
  • 2
    Foi, por exemplo, o caso da reforma da previdência social enviada pelo executivo brasileiro ao Congresso, em abril de 1995. Era uma reforma mal-formulada, que não enfrentava o problema central das aposentadorias públicas, que deixava mal definida questões centrais na própria área da previdência, e 'aproveitava' para eliminar direitos fundamentais alheios à área, como o direito universal ao atendimento de saúde. Em conseqüência a emenda foi, no Congresso, imediatamente dividida em quatro. Aquela referente à saúde foi rejeitada rapidamente, e afinal o que se obteve em matéria de reforma foi muito menos do que se pretendia. Um desenho mais claro e competente da emenda constitucional teria produzido um resultado muito melhor.
  • 3
    Bresser-Pereira (1993).
  • 4
    Bresser-Pereira (2001).
  • 5
    Mansbridge, J. S. (1990a:137). A tese mais geral da autora, é a de que ''o altruísmo precisa coincidir com o auto-interesse suficientemente para evitar a extinção seja do motivo altruísta, seja do próprio altruísta'' (133).
  • 6
    Elster (1990:45).
  • 7
    Gellner (1986:31).
  • 8
    As palavras entre aspas são de Gellner (1986:27).
  • 9
    Sobre a construção de confiança, veja Bresser-Pereira (1996, 2001).; sobre o jogo da confiança, veja Krugman (1998). Ambos resultam na mesma coisa: ''o jogo da construção de confiança''.
  • 10
    Debati este trabalho em vários lugares, particularmente com amigos em Oxford (onde estive como membro visitante do Nuffield College e do Centro de Estudos Brasileiros), e na New York University.
  • 11
    Há uma bibliografia sobre a democracia deliberativa, que deriva essencialmente da teoria da ação comunicativa de Habernas (1981). Cito aqui apenas dois livros reunindo alguns dos principais trabalhos sobre o tema: Bohman and William (1997) e Elster (1998).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
    Fundação Getúlio Vargas Praia de Botafogo, 190 11º andar, 22253-900 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 3799-5831 , Fax: +55 21 2553-8821 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rbe@fgv.br