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Educação e republicanismo: experimentos arendtianos para uma educação melhor

NOTAS DE LEITURA

Lílian do Valle

Professora titular de filosofia da educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro E-mail: lvalle@uerj.br

BRAYNER, Flávio. Educação e republicanismo - experimentos arendtianos para uma educação melhor. Brasília: Liber Livro, 2008. 144 p.

A obra de Hannah Arendt constitui-se numa das grandes contribuições que a filosofia forneceu para a reflexão sobre a política e a sociedade no século XX: eis aí um julgamento que encontraria fácil endosso no mundo intelectual contemporâneo - pelo menos entre aqueles cuja exigência de crítica da atualidade não se esgota nas inúmeras "análises de conjuntura" de que essa realidade pode e deve ser objeto, mas buscam, além disso, uma percuciência e uma inventividade que somente o contínuo questionamento de suas próprias bases analíticas pode assegurar. Para estes, que o acomodamento intelectual não indispôs contra a pesquisa teórica, a reflexão da autora é como um incentivo e um aguilhão; e seu apego ao patrimônio da Antigüidade, longe de ser entendido como sinal de inatualidade, é saudado como precioso recurso para a renovação de nosso próprio olhar sobre a contemporaneidade.

No campo da educação, Hannah Arendt fez-se sobretudo conhecida por um pequeno escrito, "A crise da educação", publicado em coletânea intitulada Entre o passado e o futuro. Nele, a temática da decadência tanto da esfera pública quanto da esfera privada, longamente desenvolvida na Condição humana, é analisada pela perspectiva da crise da autoridade e da tradição no mundo moderno. No entanto, são as teses mais polêmicas que geralmente atraem as atenções - como, por exemplo, aquela que coroa sua crítica aos usos que as utopias políticas historicamente fizeram da prática educativa e que proclama que, contrariamente à política, a educação deve ser conservadora. Na verdade, Arendt pretende demonstrar que são tirânicas as intervenções que visam instaurar novos regimes políticos pela doutrinação das crianças. Estabelece, assim, uma rígida separação entre os domínios da política e da educação - a primeira, reino da palavra e da persuasão, estritamente reservada aos adultos, e a segunda, destinada a introduzir os "recém-chegados" em um mundo já existente, devendo protegê-los, mas igualmente ao próprio mundo.

Há, porém, mais do que isso na obra da autora: uma magistral reflexão sobre a escalada do individualismo nas sociedades contemporâneas, uma crítica certeira ao cognitivismo e ao pragmatismo que já caracterizavam amplamente a educação na época em que escreve - além, é claro, da famosa análise da ação, a fornecer conceito e inspiração para a reflexão sobre a práxis humana, e da contagiante confiança na democracia, esse regime extraordinariamente "tagarela", como a própria autora definiu, que prima pela valorização da palavra compartilhada e da persuasão.

São todos esses temas que Flávio Brayner percorre em Educação e republicanismo. Ao contrário do que o subtítulo parece indicar - "experimentos arendtianos para uma educação melhor" - o livro não se dedica à exposição de experiências educacionais, mas constitui-se em um ensaio em que o autor examina alguns lugares comuns caros aos meios educacionais, relativos à formação para a cidadania, à escola pública e seu papel na atualidade. Decerto, o caráter francamente opinativo do texto deixa amplo espaço para concordância, assim como para objeções. Mas, em especial, a crítica à pletora de expectativas lançadas sobre a escola e à idéia de uma "criança-cidadã" (p. 42), às insuficiências do escolanovismo (p. 70) e aos excessos do construtivismo (p. 89), assim como o clamor por uma resposta às desigualdades e exclusões sociais que não implique abandono da exigência da pluralidade e da visibilidade são questões que, mais do que suscitar adesões ou antagonismos, carecem ainda de cuidadoso exame da área.

Por isso, não obstante os reparos que se fazem necessários (para citar os mais evidentes, é sem dúvida impreciso afirmar que o "primeiro esboço de projeto nacional" teve que esperar por Vargas (p. 68); parece igualmente pouco prudente incluir a noção de autenticidade nesse sentido subjetivo e todo interior que a modernidade cunhou entre os temas platônicos (p. 93); também a aproximação da noção arendtiana de senso comum às tarefas da escola mereceria maior desenvolvimento (p. 101-102); há um evidente equívoco na caracterização da diferença entre as noções de "educar" e "instruir" na tradição francesa (p. 61) etc.), deve-se reconhecer que o autor localiza com clareza não só os maiores desafios colocados atualmente para a formação humana, como identifica com habilidade os instrumentos teóricos capazes de amparar-nos em seu enfrentamento. Assim, se o trabalho não esgota, longe de lá, o prodigioso potencial de contribuições que ainda resta a ser explorado pela educação - nem é esse, diga-se de passagem, seu intuito -, não restam dúvidas de que ele tem o mérito de lembrar-nos de que essa tarefa está ainda por ser realizada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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