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Processos de construção da escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX

RESENHAS

Alessandra Frota Martinez de Schueler

Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e pesquisadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

SILVA, Adriana Maria Paulo da. Processos de construção da escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. 398 p.

A Universidade Federal de Pernambuco, por meio do Programa de Publicação de Teses e Dissertações, sob a coordenação da Pró-Reitoria para Assuntos de Pesquisa e Graduação, presenteou os historiadores da educação brasileira com a publicação da tese de doutorado em história da professora Adriana Maria Paulo da Silva.

Na tese, publicada em livro, Silva analisa o processo de institucionalização das escolas de primeiras letras na capitania, e depois na província de Pernambuco, entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Para tanto, manejou riquíssimo e volumoso conjunto de séries documentais, impressas e manuscritas, preservadas em diversos acervos públicos no Rio de Janeiro (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Fundação Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e Recife (Arquivo Público Estadual João Emerenciano, Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco e Laboratório de Pesquisa e Ensino de História do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE). Além do fôlego e do impecável tratamento analítico das fontes primárias, a autora dialoga com farto material bibliográfico e produção acadêmica atualizada, nacional e internacional, sobre a temática investigada. Por meio de profundo trabalho de leitura, erudita e crítica, Silva constrói o seu objeto de investigação, ao mesmo tempo, alargando e aproximando as fronteiras, enganosas, fluidas e móveis, entre trabalhos que se situam tanto nos campos da história social, econômica, política e cultural, quanto no campo específico da história da educação e da escolarização.

O livro encontra-se dividido em quatro partes, uma Introdução e três alentados capítulos, nos quais são analisados com riqueza de detalhes, respectivamente: as práticas locais e interdições às primeiras letras na América portuguesa, no âmbito das leis e dos alvarás régios da chamada "Reforma Pombalina" e das políticas de censura e controle da circulação de produção escrita (impressa e manuscrita), bem como os efeitos concretos das experiências de escolarização, de acesso e interdição, vividas na capitania de Pernambuco entre 1759 e 1800, com destaque para os mecanismos de arrecadação e limites de despesa do subsídio literário; as práticas docentes e o funcionamento da instrução pública em fins do século XVIII e primeira metade do XIX, especialmente as representações sobre as condições de trabalho docente e as redes de relações locais nas quais participaram, manejaram e se sujeitaram professores públicos e particulares; os alunos das escolas públicas primárias de primeiras letras, a presença manifesta da heterogeneidade étnica, cultural e social da população da província de Pernambuco nas listas e nos mapas de matrículas das escolas, composta por uma maioria de indivíduos livres de cor (então chamados de negros, mestiços, pardos e pretos, conforme os diferentes lugares e pertencimentos sociais).

Na Introdução (p. 17-27), o objeto de investigação, assim como o processo de pesquisa, é apresentado aos leitores. O recorte cronológico escolhido para o estudo refere-se a dois momentos significativos da política de instrução pública: no primeiro, descortinam-se os desdobramentos do Alvará Régio de 1759, responsável pela criação das aulas públicas no Reino e no Ultramar; no segundo, a atenção recai sobre a promulgação da primeira lei provincial, de 12 de maio de 1851, por meio da qual foi conferida nova reordenação das escolas em Pernambuco, já nos tempos do Império.

Logo nas primeiras páginas, a autora expõe suas inquietações diante da hegemonia de explicações, generalizadas no senso comum, e também em estudos sociológicos, antropológicos e históricos, a respeito das razões do suposto atraso educacional na América portuguesa, e posteriormente, no Brasil colonização, dependência, analfabetismo, subdesenvolvimento. Inspirada na proposição formulada por Antonio Nóvoa (2005) para que os pesquisadores se afastassem de tal abordagem, visando apreender as peculiaridades culturais e históricas, as singularidades do espaço transnacional formado pelo imenso Império português, Silva tomou para si o desafio de discutir aspectos dos processos de construção e manutenção do sistema público de ensino primário em Pernambuco, compreendendo esses processos a partir de suas próprias experiências, não obstante os significados do "viver em colônias" e da existência da escravidão (p. 19). Atenta aos múltiplos movimentos dos sujeitos em relação permanente, de forma tensa, complementar e assimétrica (colonizadores, colonos e colonizados), e às peculiaridades históricas da região, a autora pôde observar como a constituição das escolas primárias esteve sempre na dependência de opções políticas das elites locais, e que essas opções não abrigaram nenhum tipo de interdição legal específica no sentido de impedir o acesso da população livre e pobre nas escolas, seja na condição de aluno seja na condição de professor. Esses argumentos constituem a hipótese central da tese, detalhadamente desenvolvida, testada e demonstrada, ao longo dos capítulos.

No segundo capítulo, tal hipótese se revela no título e no subtítulo que o nomeia "'Longe da Corte e do soberano': práticas locais e interdições às letras na América Portuguesa". Expressão usada por Manoel da Silva Coelho, professor régio enviado a Pernambuco pelo próprio Conde de Oeiras (futuro Marquês de Pombal), em 1760, em carta dirigida ao Marquês para denunciar as dificuldades e as "perseguições" do Ouvidor da Capitania (p. 71), de mestres nativos e famílias locais contra o "novo método de ensino", "Longe da Corte e longe do soberano" indicava os termos de acordos e arranjos locais, de margens de manobra e autonomia das elites locais na tomada de decisões, na execução, burla, apropriação e interpretação das normas impostas pela Corte portuguesa. Indicava também as resistências encontradas pelas reformas pombalinas que, pretendendo expulsar os jesuítas e destituir seus monopólios (entre eles, a educação), esbarraram em práticas e tradições educativas locais e no enraizamento secular dos padres da Companhia de Jesus em solo colonial. Para construir sua argumentação, a autora dialoga e partilha da perspectiva de uma historiografia revisionista a respeito das relações metrópole/colônias que, há muito, vem questionando a primazia do pacto colonial, demonstrando que, no século XVIII, a América portuguesa já contava com lideranças políticas próprias, com redes formais e informais de comércio interno e atlântico (América do Norte, Caribe, África, Europa e Ásia), e, portanto, já se observava o enraizamento de interesses, valores e idéias locais, a partir dos quais se deram "negociações" autorizadas com as políticas de controle, fiscalização e interdição metropolitanas. Com essa chave de leitura, ao longo do capítulo, em relação às interdições culturais (censura, proibição de impressão e circulação de textos e livros, ausência de universidade) e os limites da escolarização na América portuguesa, Silva defende a tese segundo a qual houve o entrelaçamento entre opções políticas e as convicções religiosas da maioria dos dirigentes metropolitanos com a maioria dos dirigentes coloniais, que não se convenceram dos discursos que tentaram vincular prosperidade social à reprodução do conhecimento, e em particular à escolarização da sociedade (p. 33). Entre as políticas analisadas, seus impactos e arranjos locais, a autora privilegia as Reformas Pombalinas e o Diretório dos Índios (1750-1777), medidas com as quais o Império português visava garantir o controle sobre territórios, bens e populações ultramarinas, proibindo, entre outras coisas, o uso de línguas e costumes autóctones. Estava em jogo a tentativa de fortalecer e expandir o poder imperial, criando e recriando identidades e laços entre súditos, colonos e colonizados com o Estado metropolitano, difundindo a língua portuguesa e a doutrina cristã, por meio da criação de escolas públicas, separadas por sexo, nas povoações. Como alerta Silva, o modelo de escolarização da política colonial, fundamentado no ensino e na precipuidade da leitura e da escrita em detrimento da oralidade, pressupunha afastar as crianças de suas comunidades e culturas, a fim de tentar impedir a continuidade da transmissão de saberes, conhecimentos, valores e práticas culturais indígenas. Tal política, direcionada aos nativos americanos, se articulava com a centralidade do tráfico transatlântico de escravos africanos, que desde o século XVII representou "grandiosa obra de submissão de espaços e gentes" no circuito comercial que ligava a África Central, a Europa e as Américas e envolvia poderosos interesses de comerciantes reinóis e também coloniais. Foi no âmbito do diretório que o Império português pretendeu impedir o uso da palavra negro para designar o gentio da terra (o negro da terra), de modo que diferenciasse, hierarquizando e estabelecendo distinções próprias da sociedade de Antigo Regime, entre índios e escravos africanos, os pretos da costa da África, valiosa mercadoria e principal objeto da atividade comercial transatlântica (p. 40).

Outra política cultural analisada pela autora foram as medidas restritivas e as tentativas de controle das letras e de impressão em terras coloniais, políticas que, ao contrário do que normalmente se divulga, também foram tomadas pela decisão das elites e comerciantes locais, que buscavam manter seus monopólios sobre a circulação de coisas e sobre as gentes, visando restringir o acesso da população em geral, e dos mestiços, pretos e negros livres e libertos, em particular, ao mundo letrado. Isso, a despeito da circulação, do contrabando e do comércio ilegal de manuscritos, livros, revistas e obras interditas, que puderam ser encontrados pelos historiadores da leitura e da escrita em bibliotecas particulares e públicas em várias localidades, inclusive, entre os envolvidos nas chamadas conjurações e revoltas coloniais do século XVIII. O Império português esteve preocupado não apenas com os interesses comerciais do Reino, mas, sobretudo, com os perigos representados pelo "mau uso" das letras e pelo potencial de subversão que a circulação de "idéias sediciosas" poderia fomentar. "Mau uso" que, aliás, Silva apresenta em inúmeros exemplos de práticas múltiplas de apropriação e de interpretação diferenciada das medidas legais metropolitanas pelos habitantes de Pernambuco, como foi o caso dos rumores e da "interpretação extensiva" realizada por indivíduos "mulatos" ou "pretos" livres a respeito das possibilidades de aplicação, em solo colonial, das leis de libertação do ventre dos escravos de Portugal e Algarve, em outubro de 1773. As cópias dos alvarás régios feitas por tais indivíduos circularam nas capitanias da Paraíba e Pernambuco, provocando reação das autoridades locais e metropolitanas, que mobilizaram a troca de cartas, ofícios e tropas de combate aos "cabeças" responsáveis pela divulgação de tal notícia. Evidentemente, a reação, de certo modo exagerada, tinha em vista evitar os impactos e os efeitos possíveis da circulação de tal interpretação sediciosa das normas de ventre livre, então restritas a Portugal e Algarve, entre os africanos escravizados nas colônias, especialmente a americana. Nas palavras de Silva, aos olhos das autoridades, era preciso impedir o aprofundamento naquela "gente inculta" da "paixão dominante" pela liberdade.

Os homens e mulheres livres e libertos de cor, designados imprecisamente pelas autoridades como pretos, mestiços, pardos, caboclos, cabras e mulatos, conforme se diferenciavam os lugares sociais e o distanciamento ou aproximação com o mundo dos senhores, viviam submetidos a condições extremamente heterogêneas e experimentaram estatutos sociais diversificados. Entre a paixão pela liberdade e a ânsia por ser senhor de si e de gentes, viviam os homens livres de cor nas Américas. Circulavam e moviam-se nas tramas sociais, de acordo com as vicissitudes inerentes ao seu campo de possibilidades históricas, sujeitos a interdições metropolitanas, mas também a interdições negociadas e criadas pelas relações de poder locais. Negociações das quais participaram e souberam tirar proveito, ainda que, não raras vezes, de forma desigual e assimétrica. Assim, a "invenção do mulato" constitui-se em peça fundamental no tabuleiro cultural e nos jogos de poder na sociedade colonial, na medida em que estabelecia distinções, desigualdades e hierarquias entre os africanos e seus descendentes, os quais vivenciaram experiências e relações sociais e políticas profundamente diversas. Homens livres de cor letrados (padres, professores, procuradores, funcionários da Coroa, senhores de escravos), bem como índios e seus descendentes, muitos dos quais educados pelos jesuítas, representaram o horizonte possível de mobilidade sociocultural, numa sociedade em que o acesso e às interdições à cultura letrada, aos empregos e cargos públicos e aos privilégios sociais dependiam não somente de decisões oriundas da Corte portuguesa, mas estavam sujeitas aos regimes de apropriação, às posições e às estratégias políticas das elites locais. Não por acaso, ao tratar do impacto da legislação pombalina no campo da instrução pública na capitania de Pernambuco, Silva demonstrou a complexidade e as tensões provocadas pelo processo de estabelecimento das aulas régias, em razão das práticas educacionais e culturais preexistentes nas terras coloniais e do enraizamento dos professores nativos, entre eles padres e jesuítas, supostamente preferidos pelos grupos e famílias locais, que resistiram e reagiram de diversos modos aos novos métodos de ensino e aos nobres professores régios. Esses professores Del Rey também se submeteriam, e deveriam aprender a sobreviver, às lógicas culturais e políticas das relações de poder locais, posto que se encontravam muito, muito "longe da Corte e do Soberano".

Naqueles tempos, a vinculação de estudantes e famílias era direta com os professores, posto que as aulas e as práticas de ensino das letras poderiam ocorrer em espaços múltiplos e variados, como casas domésticas, porões, sótãos, igrejas, conventos, fazendas, oficinas, tabernas, entre outros espaços construídos ou arranjados pelos professores para ensinar. Assim, ao mesmo tempo em que gozavam de uma grande margem de autonomia, para garantir a permanência e o sucesso no ofício, os docentes dependiam fortemente de laços pessoais e políticos com indivíduos, grupos e comunidades locais nas quais pretendiam lecionar e se estabelecer. De acordo com Silva (p. 116), o ofício do magistério era ambiguamente localizado em algum lugar entre o sacerdócio, a burocracia, a militância política e o comércio, o que fazia com que os professores, públicos e particulares, estivessem sempre no centro de disputas para uma gama de interesses políticos locais extremamente variados (interesses da política local, do estado, da Igreja, dos pais e das famílias). Em contrapartida, os professores buscaram usar o lugar que ocupavam na sociedade como porta de acesso às redes de clientela e meio de obtenção de benesses do Estado. O que, em certa medida, para os historiadores da profissão docente, explicaria a vitória, ainda que contestada e turbulenta, do processo de estatização e a conseqüente incorporação dos mestres ao corpo de funcionários públicos portanto, sua adesão, em maior ou menor nível, ao controle estatal (Nóvoa, 1991; Vilella, 2002). Como argumentou Silva, muito embora o magistério público de primeiras letras fosse exercido por homens, e também por mulheres no decorrer do século XIX, oriundos das camadas médias e pobres, "permitia àqueles que a ele se dedicassem o desfrute de um cargo vitalício; portador de um significativo prestígio social em meio às camadas mais modestas da sociedade, e significativamente valorizado para o ingresso nas redes locais de clientela e proteção" (p. 160).

A política pombalina e os alvarás régios de 1772, responsáveis pela reorganização das chamadas aulas públicas no Império português, foram analisados pela autora e perquiridos a respeito das possibilidades de acesso e das interdições sociais impostas pelo processo de escolarização levado a cabo pela reforma ilustrada do Estado absolutista. As hierarquias e destinações das aulas maiores e menores conforme o público a ser atendido foram aspectos explorados por Silva. No texto da lei, os indivíduos do reino e seus domínios dividiam-se entre aqueles "necessariamente empregados nos Serviços Rústicos e nas Artes Fabris" e as "outras pessoas hábeis para os estudos". Para os primeiros "braços e mãos do Corpo Político", sustentáculo dos povos o alvará dispunha que bastaria a instrução oferecida pelos párocos. As escolas menores destinavam-se, portanto, para a segunda qualidade de pessoas, aptas aos estudos. Dentre essas, havia ainda diferenciações e hierarquizações significativas: aqueles que deveriam aprender o elementar (ler, escrever e contar); aqueles que, continuando os estudos, poderiam aprender o latim; e, finalmente, em menor número, aqueles habilitados aos estudos superiores, às faculdades e academias. Em princípio, o alvará régio não apresentava nenhuma inovação radical ante tradições de uma sociedade estamental e hierárquica de Antigo Regime. O que aparece de novo, e integra a abordagem da autora, é a sugestiva interpretação de que, a despeito das hierarquias e das disposições seletivas da legislação, esta não apresentava, de maneira nenhuma, proibições expressas e peremptórias ao acesso às aulas reais. Não havia nenhum tipo de especificação clara com relação a quem podia ou não freqüentar como aluno ou, ainda, a quem podia ou não ser professor, a não ser a exigência de obtenção da licença profissional junto à Real Mesa Censória, que substituiu a Diretoria Geral de Estudos criada em 1759. Além de não haver restrições definitivas de acesso às aulas baseadas em critérios de classe, muito menos em critérios étnicos, raciais ou religiosos, quatro dias após a publicação do alvará de 1772, a Coroa estabeleceu uma política de arrecadação tributária para financiar as aulas régias no reino e no ultramar, o chamado Subsídio Literário. No caso da América portuguesa e da África, o imposto incidia sobre cada 460 gramas de carne verde cortada nos açougues ( no valor de 1 real) e a cada 2 litros de aguardente da terra (no valor de 10 réis). O Império português, na tentativa de estatizar a instrução pública, afastando os monopólios da ordem jesuítica e das forças políticas locais, visava fortalecer os laços entre seus súditos e a Coroa, com uma política de domínio colonial via escolarização, por meio da qual a língua portuguesa, a doutrina cristã e os valores do Império deveriam ser disseminados. No entanto, como bem demonstra a tese da autora, apesar das suas ordens e prescrições, longe da Corte e do soberano, a arrecadação e aplicação do subsídio literário, mesmo em tempos de fartura orçamentária, dependiam das opções e decisões das elites políticas locais. No caso da capitania de Pernambuco, as elites locais, não poucas vezes, estabeleceram suas próprias restrições à quantidade de aulas e professores, tendo havido ainda outras destinações, incluindo fraudes e desvios, ao montante arrecadado pelo subsídio literário. As diferenças significativas entre os valores arrecadados, minuciosamente registrados pelas autoridades, e as despesas aplicadas em instrução pública, inscritas com menor empenho, nos vários distritos e localidades da capitania, foram fartamente demonstradas por Silva, a partir de vasta e dispersa documentação das Câmaras Municipais de Pernambuco. Para a autora, em que pese a determinação da política pombalina no sentido de criar mecanismos de financiamento da instrução pública nos territórios do Império, a concretização dessas medidas e a destinação final dos recursos estiveram sujeitos às práticas, às relações de força e poder e às opções políticas das elites locais.

No capítulo 3, o foco da análise recai sobre as práticas docentes e o funcionamento cotidiano da instrução pública em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. O estabelecimento dos professores régios e o perfil social heterogêneo dos indivíduos que exerceram o ofício de ensinar são temáticas exploradas pela autora. Em 1798, entre os 59 professores listados nos registros documentais da capitania, dez eram padres, o que demonstra a permanência de religiosos no ensino na América portuguesa, e posteriormente no Império do Brasil (p. 160). Religiosos ou laicos, o fato é que a grande maioria dos professores públicos enfrentava as dificuldades de quem ganhava baixos ordenados, pagos trimestral ou anualmente e sujeitos a atrasos constantes. Tanto em Portugal, quanto nas colônias, o ofício de ensinar era apenas uma das atividades econômicas realizadas por esses professores, que poderiam ter outros ofícios e empregos ou mesmo oferecer aulas particulares e exercer a preceptoria. Fato comum entre os professores públicos da província de Pernambuco não apenas os de primeiras letras foi a prática concomitante do magistério particular. Inclusive, para alguns, era justamente o prestígio advindo com o magistério público que lhes possibilitava dar aulas nas casas de particulares (para ambos os sexos), além de lhes permitir receber em suas casas nas quais, majoritariamente, funcionavam as aulas públicas , alguns alunos particulares como residentes. Não raras vezes, no caso dos mestres particulares, o pagamento recebido pela instrução oferecida aos meninos era feito pelos pais por meio da troca de serviços, como no caso de um professor da cidade de Lisboa, que enviava seus sapatos para serem consertados pelo pai de um dos seus alunos. Nesse capítulo, Silva analisa as condições materiais de exercício do trabalho docente, bem como a situação miserável dos alunos que freqüentaram as escolas públicas de primeiras letras em Pernambuco, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX. Nesse período houve significativo crescimento populacional, tendo a cidade de Recife abrigado o maior contingente de pessoas livres de cor da América portuguesa e, posteriormente, do Reino Unido (p. 168-169). Pari passu ao crescimento demográfico, Silva observou um significativo esforço governamental no sentido da ampliação da rede de escolas criadas durante a administração pombalina. Após o processo de independência, as autoridades que se sucederam no governo da província de Pernambuco tentaram centralizar as formas de controle sobre as práticas públicas de educação escolarizada, público e particular, seguindo as diretrizes gerais da Constituição de 1824, que estabeleceu a gratuidade da instrução primária aos cidadãos, e da primeira lei nacional de instrução, promulgada em 15 de outubro de 1827. Esse período, notadamente a partir de 1828, assinalou o auge dos esforços do governo provincial no sentido de expandir o ensino público de primeiras letras, criando aulas e aumentando os ordenados dos professores (p. 247). O tamanho da população foi o principal critério para a criação das aulas de primeiras letras, associado aos mecanismos de indicação das localidades a serem providas pelas autoridades locais (Câmaras Municipais e Assembléias Provinciais, após o ato adicional de 1834).

De acordo com a lei de 1827, podiam candidatar-se ao magistério público todos os cidadãos brasileiros, "sem nota na regularidade da sua conduta", que estivessem exercendo plenamente os seus direitos políticos e civis (p. 171). Nessa situação, em tese, encontravam-se todos os homens livres ou libertos, brasileiros (natos ou naturalizados) e maiores de 25 anos, os quais pudessem comprovar a idoneidade de conduta pessoal por meio de provas passíveis de serem obtidas por intermédio das autoridades civis e eclesiásticas dos locais nos quais residissem e/ou pretendessem exercer o magistério (p. 171). Aos critérios exigidos para a habilitação somava-se a prática dos concursos e exames, que eram realizados em Portugal desde a segunda metade do século XVIII. Na ausência de concursos e da abertura de novas aulas públicas, era comum o pedido de licença, por parte de professores particulares, para abrir escolas e ensinar gratuitamente aos meninos pobres das localidades. Depois, em razão dos "serviços prestados" bem à moda do Antigo Regime , esses mestres requeriam suas provisões como professores públicos. O controle sobre a profissão não se limitava, porém, ao ingresso, mas permanecia durante o exercício, no qual o professor deveria apresentar "bom desempenho", mantendo sua aula funcionando regularmente durante três horas pela manhã e duas horas à tarde. Além de ser assíduo e pontual, o professor público deveria ter, anualmente, alguns de seus alunos aprovados nas provas públicas de proficiência em primeiras letras, que eram feitas em presença das autoridades públicas. De acordo com os critérios vigentes, um professor cujos alunos demorassem muito a aprender, ou que nunca tivessem sido considerados "prontos" para os exames públicos, não era considerado "bom". Em relação à remuneração, a lei de 1827 estabeleceu para todo o Império valores máximos e mínimos para o pagamento dos professores de primeiras letras, os quais deveriam variar entre 200 e 500 mil réis, a depender das condições locais (art. 3º). A lei também estabeleceu a igualdade salarial entre mestres e mestras (art. 13). Em Pernambuco, um decreto do governo provincial datado de 7 de agosto de 1834 aumentou os ordenados de todos os professores públicos de primeiras letras para 400 mil réis. Nas décadas de 1840 e 1850, os ordenados dos professores não sofreram nenhuma variação, mas incidiram sobre eles algumas gratificações que tenderam a favorecer os estabelecidos na capital, notadamente nos bairros mais populosos. Em 1852, os professores públicos de primeiras letras das cidades de Recife e Olinda recebiam 500 mil réis de ordenado, enquanto todos os professores do interior continuavam recebendo 400 mil réis. Além da hierarquização do ofício docente, a autora demonstrou que os salários e gratificações percebidas pelos professores também se sujeitavam ao "turbilhão da política" (p. 273).

As decisões cotidianas do ensino, porém, na prática, ficavam a cargo do professor, que cuidava dos horários, das festas, dos castigos aplicados, da higiene, da disciplina e do funcionamento da sua escola, com uma margem relativa de autonomia. Autonomia que era limitada tanto pelo controle do estado quanto pela vigilância permanente exercida pela comunidade, alunos, pais e familiares, sobre o ofício docente. Assim, para sobreviverem na arte de ensinar, os professores públicos submetiam-se não apenas às regras impostas pelo Estado, mas também ao "turbilhão da política". Nesse jogo de relações de poder e de tensões entre forças diversas, os professores não foram apenas dependentes, mas, partícipes, integrantes das redes clientelares da política, em âmbito local e provincial. A hipótese defendida pela autora é a de que tanto a criação quanto o funcionamento e a manutenção das escolas e professores, independentemente da legislação e das reformas educacionais, eram determinadas por decisões oriundas da política local, que poderia abrir à população possibilidades de acesso ou interdições à instrução elementar. As interdições de classe ou de raça não estiveram inscritas na legislação, mas poderiam viger de acordo com práticas diferenciadas nas relações de poder locais.

A investigação sobre o processo de escolarização em Pernambuco não se eximiu de questionar a respeito de um problema histórico que tem estado ausente nas pesquisas sobre história da educação, especialmente para o período de constituição da cultura escolar oitocentista, qual seja: quem, e quantos, eram os meninos, e posteriormente também meninas, transformados em alunos? Quem freqüentou as escolas elementares? A que grupos sociais se destinava aquele modelo de escolarização? Como essa cultura escolar foi apropriada e reelaborada a partir das expectativas, representações, tensões e intervenções dos sujeitos heterogêneos que a constituíram? A tentativa de responder a essas, e outras, questões relativas ao público escolar foi tarefa enfrentada por Silva no quarto capítulo do livro intitulado Os alunos públicos de primeiras letras em Pernambuco. Tarefa realizada em meio às dificuldades impostas pela carência, dispersão e fragmentação dos registros documentais, mas também pelos jogos de poder e pelas lutas de representação envolvidas no controle sobre a produção e a interpretação dos dados, sempre dependentes de professores, delegados de distrito e inspetores e autoridades administrativas das províncias. Desse modo, a autora adverte-nos para os lugares de produção e para as diversas estratégias e intencionalidades em disputa na configuração dos registros educacionais, o que afasta, em definitivo, a ilusão de racionalidade e objetividade dos dados estatísticos. Assim, a autora interroga esse material com necessário olhar crítico, atenta aos procedimentos da "operação historiográfica".

Partindo do pressuposto da dúvida, que estranha, desnaturaliza e desestabiliza as supostas evidências e certezas, Silva apreende o jogo de produção de dados pelas autoridades locais (professores, delegados, membros das câmaras municipais e da presidência de província), que tendiam a elevar os números de matrícula de alunos nas paróquias e nos distritos, borrando as diferenças entre o índice de matrículas e o índice de freqüência efetiva. A tendência observada de superestimar as matrículas nas escolas elementares parece ter sido um dado permanente no período analisado, sobretudo, a partir da legislação provincial de 1837, na qual se determinou o pagamento de uma gratificação, acrescida aos ordenados, para os professores que contassem com mais de 50 alunos em suas aulas (p. 278). O fato de contar com uma grande quantidade de alunos, para além da vantagem de aumentar a parca remuneração, também representava para os docentes o alcance de respeitabilidade e prestígio profissional nas comunidades em que exerciam o ofício (p. 278). Ao analisar cuidadosamente os dados relativos ao período de 1830 a 1850, Silva observou o crescimento quantitativo das aulas públicas e dos alunos, incluindo as alunas, na província de Pernambuco, crescimento também ocorrido na Corte imperial. Em Olinda, dobraram a quantidade de escolas e a média da província indicava ter havido aumento de 45% no número de aulas, com destaque para as aulas femininas (p. 281).

Mas, quem eram esses meninos e meninas, esses rostos e corpos que, em algum momento, passaram pelos bancos das escolas de primeiras letras? Na primeira metade do século XIX, em Pernambuco, a autora encontrou registros que indicavam a pluralidade e a heterogeneidade étnica, cultural e social dos alunos: meninos e meninas de "todo o tipo, ricos e pobres, e de todas as cores" freqüentaram as aulas públicas de primeiras letras, a despeito de uma representação cristalizada na historiografia, que insiste no caráter elitista e branco das escolas primárias oitocentistas (p. 283-284). Em relação a este aspecto, Silva argumenta que não houve, do ponto de vista da legislação educacional, nenhuma interdição de caráter racial ou impedimentos sociais para o ingresso de alunos e professores nas aulas públicas, a não ser aquelas estabelecidas em sede constitucional, como a condição de ser livre (liberdade) e as exigências legais de saúde. As leis provinciais de 1837 e, posteriormente, de 1855, mantiveram apenas as interdições de freqüência escolar aos escravos (não-cidadãos).

Cabe aqui lembrar que o direito de cidadania no Império do Brasil, desde a Constituição de 1824, foi estabelecido em bases censitárias, e dividiu os cidadãos (pessoas nascidas no Brasil e estrangeiros naturalizados) de acordo com suas rendas em três categorias: aqueles que eram reconhecidos como cidadãos, mas que não podiam votar nem serem candidatos a nada, porque não tinham a renda mínima para isso; aqueles que apenas podiam votar (porque ganhavam o mínino exigido) e aqueles que podiam votar e se candidatar também (p. 294). Os ex-escravos sofriam restrições políticas, contudo, é importante que se diga, essas restrições não eram hereditárias e, desde que não tivessem filhos com escravas (a escravidão seguia a linha de transmissão matrilinear), seus descendentes nasciam "ingênuos" e, portanto, potencialmente, cidadãos plenos (p. 294). Quanto aos filhos de africanos nascidos no Brasil, eles perdiam a pecha de estrangeiros dos seus pais, eram chamados de escravos "crioulos" e poderiam ser aspirantes a "forros", ingressavam na base da pirâmide da cidadania do império do Brasil (p. 295). Em meio a essa diversidade e a complexidade da condição social e jurídica dos indivíduos, Silva verificou a presença de meninos e meninas de origens diversas nas escolas elementares da província de Pernambuco: nacionais, estrangeiros, brancos e não-brancos, livres e libertos. Isso foi possível a partir da análise das listas de matrículas nas escolas de algumas localidades, nas quais se registravam as seguintes informações: nome do professor (autor da lista), nome da localidade, nomes dos alunos, filiações ou situação de criação, locais de nascimento, idades e os seus "progressos" ou "adiantamentos" (p. 307). Além desses dados, algumas listas apresentavam registro da condição (se livre, ingênuo ou liberto) e dos locais de moradia dos alunos.

Como bem salientou a autora, os resultados da sistematização das listas de alunos e, conseqüentemente, as possibilidades de análise dos números de matrícula, obtidos durante a pesquisa, esbarraram inequivocamente nos limites advindos do fato de não haver ainda, para a província de Pernambuco, estudos demográficos. No entanto, os dados analisados foram suficientes para que a pesquisadora pudesse aferir a diversidade do público discente matriculado nas aulas públicas de primeiras dessa parte do Império do Brasil (p. 311). Assim, foi possível apreender que nas décadas de 1820 e 1830 os critérios de seletividade social para o ingresso e permanência nas aulas públicas de primeiras letras favoreceram aos meninos que contavam, no mínimo, com o reconhecimento público da figura paterna (p. 315). Do ponto de vista das estruturas familiares, os dados indicavam que, muito embora crianças com várias situações familiares e de criação tenham convivido nas aulas públicas de primeiras letras, estas foram experimentando uma seletividade familiar, tendente a privilegiar os meninos com uma estrutura familiar tradicional (p. 316). Os meninos registrados como pardos tiveram mais oportunidades de estar nas aulas públicas de primeiras letras da província, mesmo sem terem uma estrutura familiar tradicional particularmente aqueles que figuraram nas listas como filhos de mães (p. 319). Nesse aspecto, Silva argumenta que as disputas sociais pelo acesso às aulas públicas, em Pernambuco, para pretos e índios, talvez, não fossem diferentes do conjunto das lutas cotidianas travadas por aqueles segmentos da população no que diz respeito a todos os itens da pauta da vida, a começar por suas simples possibilidades de sobrevivência em liberdade (p. 318). Fato que levanta a hipótese de que, talvez, o destino dos meninos pretos sem pai ou só filhos de mãe não tenha sido, de fato, a escola, mas, sim, o mundo do trabalho, com todas as facetas relacionadas à já bastante conhecida (e secular) exploração do trabalho infantil, potencializada pelo racismo (p. 319).

A possibilidade de ingressar na escola não significava, porém, a viabilidade de manter-se nela. A autora observou que manter uma criança na escola não era nada fácil para quem vivia em Pernambuco, durante a primeira metade do século XIX. Pouquíssimas famílias conseguiam ter mais de um menino nas aulas (p. 320). Nos anos de 1820, indistintamente, as famílias de brancos, pretos e pardos puseram apenas uma de suas crianças na escola. Porém, em fins dos anos de 1830, apenas as famílias dos meninos brancos puderam ampliar a quantidade de crianças, por família, nas aulas públicas de primeiras letras (p. 325-326). A freqüência às aulas, para as crianças, durante a primeira metade do século XIX, dependia de muitos fatores, alguns relacionados às suas próprias condições físicas e às condições materiais de suas famílias (p. 333).

Muito embora os dados analisados pela autora não tenham sido suficientes para traçar o perfil social dos alunos que freqüentavam as aulas públicas de toda a província, a recorrência das informações encontradas nos mapas das escolas localizadas na Zona da Mata de Pernambuco e na cidade de Olinda demonstrou que era bastante variado o público que freqüentava as aulas públicas de primeiras letras da região, havendo entre ele livres, escravos, meninos de todas as cores e índios, assim como meninos de outras províncias da região, estrangeiros, órfãos, meninos ilegítimos e de "boas famílias", criados por avós ou filhos de mães solteiras ou sozinhos (p. 340).

Com tal argumentação, o trabalho de Silva, longe de defender a hipótese de que os espaços escolares fossem "democráticos" numa sociedade hierárquica, desigual e escravista, apresenta enorme contribuição para a história da educação na sociedade brasileira, na medida em que lança luz sobre as disputas, tensões e negociações envolvidas na constituição da cultura escolar oitocentista. Mais do que isso, a tese, felizmente ora publicada em livro, contribui para a compreensão dos limites impostos ao processo de escolarização, na primeira metade do século XIX. Limites que se relacionavam não apenas à existência da escravidão e ao estigma da cor, mas também ao "turbilhão da política" e ao microcosmo social dos jogos e das redes locais e provinciais de exercício do poder.

  • NÓVOA, Antonio. Tempos da escola no espaço Portugal-Brasil-Moçambique: dez digressões sobre um programa de investigação. Currículo sem fronteiras, v. 1, n. 2, p. 131-150, jul./dez. 2001. Disponível em: <http://www.curriculosemfronteiras.org>. Acesso em: jul. 2005.
  • ______. Para o estudo sócio-histórico da gênese e do desenvolvimento da profissão docente. Teoria e Educação, Porto Alegre, n. 4, 1991.
  • VILLELA, Heloísa. Da palmatória à lanterna mágica: a Escola Normal da Província do Rio de Janeiro entre o artesanato e a formação profissional (1868-1876). Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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