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Educação superior bilíngue para surdos: o sentido da política inclusiva como espaço da liberdade: primeiras aproximações

Bilingual university level education for the deaf: understanding inclusive policies as a space for freedom: first approaches

Resumos

Este trabalho tem como objetivo apresentar um ensaio acerca da experiência em curso do Instituto Nacional de Surdos (INES), na implantação do Instituto Superior Bilíngue de Educação (ISBE). O diálogo com Hannah Arendt e a concepção de política como espaço da liberdade consubstanciam esta reflexão. Inicialmente, o recente contexto educacional dos surdos, com a aprovação do Decreto n.º 5.626/2005, que regulamenta a Lei n.º 10.436/2002, que oficializa a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), é colocado em cena. Em seguida, traçam-se os elementos constitutivos básicos da recente construção da experiência de ensino superior bilíngue no INES/ISBE, com o curso de Pedagogia e os principais entraves a sua implantação. À guisa de reflexões finais, pretende-se indicar o sentido da política inclusiva no contexto de uma Política Cultural Bilíngue, enquanto abertura histórica de sentido possa representar um ensaio à liberdade.

ensino superior bilíngüe; políticas linguísticas; inclusão; Educação Especial


This study aims to present an essay about the current experience of implanting the Bilingual Higher Education Institute - ISBE at the National Institute for the Education of the Deaf - INES. Two factors substantiate this reflection: the dialogue with Hanna Arendt and the conception of politics as a space for freedom. Initially, the scene is set by the current context for deaf education, after the Decree number 5626/2005, that regulates federal law number 10436, which rules on Brazilian Sign Language - LIBRAS. Next, we trace the basic elements that have constituted the recent construction of bilingual teaching experience at INES/ISBE, with the Bachelor in Education and the main barriers that have been faced. In our closing reflections, we intend to discuss the meaning of inclusive policies within the context of Bilingual Cultural Policies, whereby the historical opening of this course may represent an attempt at greater freedom.

bilingual higher education; linguistic policies; inclusion; Special Education


ENSAIO

Educação superior bilíngue para surdos: o sentido da política inclusiva como espaço da liberdade: primeiras aproximações

Bilingual university level education for the deaf - understanding inclusive policies as a space for freedom: first approaches

Monique Franco1 1 Historiadora (PUC/RJ), Mestre em Educação (PPGED/UFRJ) e Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Membro da Comissão Executiva e Editorial do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/MEC). mfranco@uerj.br

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar um ensaio acerca da experiência em curso do Instituto Nacional de Surdos (INES), na implantação do Instituto Superior Bilíngue de Educação (ISBE). O diálogo com Hannah Arendt e a concepção de política como espaço da liberdade consubstanciam esta reflexão. Inicialmente, o recente contexto educacional dos surdos, com a aprovação do Decreto n.º 5.626/2005, que regulamenta a Lei n.º 10.436/2002, que oficializa a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), é colocado em cena. Em seguida, traçam-se os elementos constitutivos básicos da recente construção da experiência de ensino superior bilíngue no INES/ISBE, com o curso de Pedagogia e os principais entraves a sua implantação. À guisa de reflexões finais, pretende-se indicar o sentido da política inclusiva no contexto de uma Política Cultural Bilíngue, enquanto abertura histórica de sentido possa representar um ensaio à liberdade.

Palavras-chave: ensino superior bilíngüe; políticas linguísticas; inclusão; Educação Especial

ABSTRACT

This study aims to present an essay about the current experience of implanting the Bilingual Higher Education Institute - ISBE at the National Institute for the Education of the Deaf - INES. Two factors substantiate this reflection: the dialogue with Hanna Arendt and the conception of politics as a space for freedom. Initially, the scene is set by the current context for deaf education, after the Decree number 5626/2005, that regulates federal law number 10436, which rules on Brazilian Sign Language - LIBRAS. Next, we trace the basic elements that have constituted the recent construction of bilingual teaching experience at INES/ISBE, with the Bachelor in Education and the main barriers that have been faced. In our closing reflections, we intend to discuss the meaning of inclusive policies within the context of Bilingual Cultural Policies, whereby the historical opening of this course may represent an attempt at greater freedom.

Keywords: bilingual higher education; linguistic policies; inclusion; Special Education.

1 INTRODUÇÃO

O sentido da política é a liberdade.

(Hannah Arendt. O que é política?)

Quando se quer estudar os homens, é necessário olhar bem de perto. Mas, para estudar o homem é preciso aprender a levar longe este olhar. É necessário antes de mais nada, observar as diferenças para então descobrir as propriedades.

(J.J. Rousseau. Essai sur l'origine de langues, cap. VIII)

SURDEZ E EDUCAÇÃO SUPERIOR: QUE ESPAÇO É ESSE?

O processo da inclusão educacional e social de portadores de necessidades especiais, de minorias étnicas e/ou identitárias se intensificou nos últimos anos. Completados dez anos da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9.394/96), ações concretas passaram a ser implantadas, ainda que as condições de possibilidade de execução e de absorção de uma nova realidade fossem, de fato, estabelecidas.

O fato é que se pode identificar um processo de crescente visibilidade de indivíduos que anteriormente estavam localizados à margem do processo social. Potencializados, esses indivíduos são objeto de políticas públicas, ganham notoriedade na mídia e passam a ocupar, paulatinamente, o espaço do exercício da diferença, criando demandas e deixando transparecer a gama de enfrentamentos ainda necessários à perspectiva da inclusão como espaço da liberdade.

No caso da comunidade surda, não poderia ser diferente. Aqueles que ao longo de séculos tiveram seu processo de comunicação oprimido e sua língua, muitas vezes, proibida de ser expressa, ganham o direito de serem educados a partir dessa língua, agora reconhecida e oficializada como uma expressão linguística alternativa.

No Brasil, o Decreto nº. 5.626, de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei n.º10.436, de abril de 2002, que oficializa a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)2 2 Estudos indicam que, no Brasil, falam-se cerca de 200 línguas tradicionais de comunidades estabelecidas no próprio território. Existem ainda 180 línguas indígenas faladas em todo o País, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. Coexistem, além do português, línguas indígenas, línguas de imigrantes e duas línguas de sinais registradas: a LIBRAS, utilizada nos grandes centros urbanos pela comunidade surda, e a Língua de Sinais Urubu-Kaapor, desenvolvida na comunidade indígena de mesmo nome no Maranhão. Disponível em: < http://www.sil.org/americas/brasil/PUBLCNS/LING/UKSgnL.pdf>. Último acesso em fevereiro de 2007. , aparece como condição de possibilidade de uma política linguística para a comunidade surda, mas sua implantação expressa, ainda, marcadas ambiguidades.

Em síntese, a nova legislação prevê inúmeros dispositivos que, ao longo dos próximos dez anos, objetivam oportunizar a inclusão social do surdo, reconhecendo, para esse segmento, a LIBRAS como primeira língua e/ou língua de instrução.

Dentre as ações propostas, o Decreto nº. 5.626 prevê a inclusão de uma disciplina de LIBRAS em todos os cursos de licenciaturas no Brasil, com vistas a instrumentalizar professores e professoras acerca dessa modalidade de comunicação e, com isso, proporcionar uma melhora do reconhecimento e relacionamento professor ouvinte-aluno surdo. Está claro para os formuladores da legislação que tal disciplina não formará professores ouvintes proficientes em LIBRAS, mas trará a sua formação a possibilidade de desestigmatizar padrões preestabelecidos e trazer essa nova realidade ao diálogo com o cotidiano escolar.

Por outro lado, o Decreto possibilita, ainda, a criação de cursos superiores com vistas a atender a comunidade surda. A princípio, dois cursos ficam claramente expressos: a licenciatura Letras/LIBRAS ou Letras-LIBRAS/Português. O objetivo é formar professores para lecionar a LIBRAS desde a 5.ª série do ensino fundamental até a educação superior. Para a modalidade de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, o Decreto prevê a criação de cursos de pedagogia bilíngue LIBRAS/Português. Ainda no âmbito do ensino superior, o Decreto indica a criação de cursos de graduação e pós-graduação para formação de tradutores-intérpretes de LIBRAS/Português, Português/LIBRAS. Também na formação dos fonoaudiólogos, profissionais que atuam diretamente com questões relacionadas à linguagem, o Decreto aponta para a inclusão da LIBRAS como disciplina obrigatória, contemplando, por exemplo, problemas típicos dos surdos que, de forma recorrente, apresentam desvios de linguagem, como afasias e aquisição tardia de comunicação.

Por fim, o reconhecimento oficial da LIBRAS assegura aos surdos a presença de intérpretes em espaços formais e instituições em geral, e tornará obrigatórios os requisitos de acessibilidade à comunicação, previstos pelo Decreto nº 5.626, de dezembro de 2005, para as pessoas surdas, nas instituições federais de ensino e nas instituições privadas de ensino superior, encaminhando em seu capítulo III, item 2, a necessidade da formação do intérprete de Libras.

Todavia, todas essas ações trazem à cena uma série de enfrentamentos. Se, por um lado, podem representar um esforço na luta do processo de inclusão educacional e social desse segmento minoritário linguístico, podem revelar, também, elementos ainda vinculados a uma educação assimilacionista dos padrões dominantes, distante do efetivo exercício da alteridade necessária à prática da diferença, já que sua prática se distancia dos discursos propalados. Pior, podem indicar a expressão de uma política inclusiva homogeneizante e, portanto, distante dos pressupostos inerentes a uma prática política comprometida com a liberdade e autonomia dos sujeitos, nos moldes pensados pela filósofa Hannah Arendt.

Segundo a mesma autora, a política trata da convivência entre diferentes (ARENDT, 2006, p.21) e deve, assim, organizar e regular o convívio de diferentes, não de iguais.

Distinguindo-se da interpretação geral comum do homem enquanto um zoon politikon (Aristóteles), em consequência da qual o político seria inerente ao ser humano, Arendt acentua que a política surge não no homem, mas sim entre os homens, que a liberdade e a espontaneidade dos diferentes homens são pressupostos necessários para o surgimento de um espaço entre homens, onde só então se torna possível a política, a verdadeira política (SONTHEIMER, 2006, p. 8).

A autora argumenta que a experiência de nossa era, sobretudo com as diferentes formas de regimes totalitários, fez declinar o sentido da política. Sem deixar de sinalizar o atravessamento das relações de poder no espaço político, a compreensão da política de Hannah Arendt está para além das instâncias burocráticas e/ou meramente discursivas. Tendo como ponto de partida a clássica experiência grega na antiga polis, o pensamento da autora, mesmo com o declínio dos regimes totalitários, ainda pode contribuir com reflexões que tenham como premissa a investigação de processos nos quais a prática política seja capaz de instaurar percursos emancipatórios, de inverter lógicas colonizadoras e de fazer emergir o diálogo das diferenças.

É neste sentido que o pensamento da autora consubstancia as reflexões desta investigação, uma vez que as atuais políticas inclusivas revelam intenções nem sempre concretizadas, seja pelo fato de que já surgem colonizadas, seja pelo fato de que a ordem do discurso pode desenhar aparências estáveis, como se completas.

Hoje o campo da Educação Inclusiva, que engloba a educação para portadores de necessidades educativas especiais, compartilha, de forma cada vez mais clara, com a definição de uma educação bilíngue para surdos, como um reconhecimento político da surdez como diferença.

Relembrando Skliar:

Essa definição, ainda que imprecisa, sugere que a educação bilíngüe para surdos é algo mais do que o domínio, em algum nível, de duas línguas. Se a tendência contemporânea é fugir - intencional e/ou ingenuamente - de toda discussão que exceda o plano estrito das línguas na educação de surdos, corre-se o risco de transformar a proposta bilíngüe em mais um dispositivo pedagógico "especial", em mais uma grande narrativa educacional, em mais uma utopia a ser rapidamente abandonada. Em síntese: a educação bilíngüe pode-se transformar numa "neo-metodologia" colonialista, positivista, a-histórica e despolitizada. (SKLIAR, 1999, p. 07)

Desta forma, o sentido da política como prática da liberdade se expressa no âmbito da educação de surdos quando diz o autor:

Discutir a educação bilíngüe numa dimensão política assume um duplo valor: o "político" como construção histórica, cultural e social, e o "político" entendido como as relações de poder e conhecimento que atravessam e delimitam a proposta e o processo educacional (SKLIAR, 1999, p.07)

É no bojo desse processo que se deu início ao processo análise da implantação do Instituto Superior Bilíngue de Educação (ISBE), do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), agora apresentado à reflexão e debate.

É importante salientar que o ensino bilíngue para surdos, em que a LIBRAS é a língua de instrução (L1) e o português é tratado como segunda língua (L2), possui peculiaridades que dependem da localização das diferentes modalidades de ensino oferecidas aos estudantes surdos ao longo de sua trajetória escolar. O Ensino Superior, reunindo estudantes surdos e ouvintes, é uma experiência inovadora, pode-se dizer em todo o mundo, justificando-se, assim, a pertinência de pesquisas na área. 3 3 Tem-se registro de que o Japão desenvolve, no âmbito do ensino tecnológico, experiência similar. A Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro (ESSUA), Portugal, também registra uma experiência no âmbito do ensino superior para surdos. Já a Universidade de Gallaudet, em Washington, D.C., é uma instituição de educação superior voltada para cidadãos surdos ou com dificuldades de audição, dos Estados Unidos e do mundo.

A metodologia utilizada contou, inicialmente, com revisão bibliográfica sobre o tema e análise documental. O acompanhamento das reuniões com os docentes efetivados completou o primeiro recorte agora apresentado.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 O ENSINO SUPERIOR BILÍNGUE PARA SURDOS: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

Segundo consta em documentação oficial do INES,4 4 Projeto do Curso Bilíngüe de Pedagogia. DEZ 2006, mimeo. em 21 de outubro de 2004, o Instituto Nacional de Educação de Surdos apresentou ao Ministério de Educação pedido de autorização de curso superior de Pedagogia na modalidade de licenciatura. O curso faz parte do PDI do INES, apresentado para o quadriênio 2004-2008. Todavia, o Ministério assinala a necessidade de o Curso de Pedagogia ser redimensionado para Curso Normal Superior, conforme os ainda vigentes Parecer CNE n.º 133/2001 e Resolução CNE-CP n.º 1/2002.

Dessa forma, consta que, em 18 de agosto de 2005, foi autorizado o funcionamento do Curso Normal Superior, licenciatura, habilitações para o Magistério para os anos iniciais do ensino fundamental do INES.

O primeiro vestibular para ingresso no Curso foi realizado em 2006, quando começou a funcionar o Curso Normal Superior Bilíngue do INES.

Ocorre que, com a homologação, em 15 de maio de 2006, das novas Diretrizes Nacionais para os Cursos de Pedagogia, a Direção do INES estabeleceu em setembro uma comissão para analisar e propor a viabilidade da opção de se transformar o Curso Normal Superior do INES em Curso de Pedagogia.

O curso Normal Superior aprovado inicialmente possuía oito eixos norteadores, a saber: Reconstruindo a trajetória educativa; Construindo olhares sobre o cotidiano escolar; Assumindo estudos próprios da profissão docente; Aprofundando relações ensino-aprendizagem no trabalho pedagógico; Redesenhando entendimentos no trabalho pedagógico; Redesenhando entendimentos educativos; delineando propostas metodológicas; Reconstruindo a trajetória da formação; Rediscutindo propostas educativas e metodológicas, conforme apresentado em anexo anexo .5 5 Anexo 1. Tinha como objetivo geral formar professores para as séries iniciais e educação infantil em âmbito bilíngue.

Para a mudança, impunham-se à Comissão duas grandes tarefas. A primeira foi verificar, inicialmente, as demandas de alteração derivadas das diferenças de atribuições entre os concluintes do Curso Normal Superior e os dos Cursos de Pedagogia organizados pela Res. nº. 01/2006. Em síntese, a carga horária de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado (800 horas) e de Atividades Complementares (200 horas) foi reduzida, respectivamente para 300 e 100 horas. Essas 600 horas foram destinadas à oferta de disciplinas e atividades formativas para as novas atribuições do Graduado em Pedagogia, Licenciatura.

A segunda tarefa consistiu em adaptar a proposta de Eixos Curriculares aos Núcleos de Atividades Formativas dispostos na Resolução (núcleo de estudos básicos; núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos, núcleo de estudos integradores).6 6 Vale observar que o diálogo inicial para a montagem do mapeamento curricular proposto incluiu o Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pelotas/RS, do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, bem como, das experiências do primeiro ano de funcionamento do Curso Normal Superior do INES. Dessa forma os eixos foram reaglutinados em núcleos, conforme apresenta o anexo anexo :7 7 Anexo 2.

1 - Núcleo de Estudo Básicos (em cinza médio): Reconstruindo a trajetória educativa; Construindo olhares sobre o cotidiano escolar; Problemáticas da profissão docente; Disciplinas de língua portuguesa (I A VII);

2 - Núcleo de Aprofundamento e Diversificação de Estudos (em cinza escuro no mapeamento): Aprofundando relações ensino-aprendizagem no trabalho pedagógico; Redesenhando entendimentos educativos; Delineando propostas metodológicas; reconstruindo a trajetória da formação; Rediscutindo propostas educativas e metodológicas;

3 - Núcleo de Estudos Integradores (em cinza mais claro no mapeamento): Estágios Supervisionados e Práticas; Tópicos avançados de ensino bilíngue.

Dentre as disposições cruciais do curso, pode-se destacar que a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) constitui a língua de instrução do Curso, enquanto a Língua Portuguesa constará como disciplina obrigatória em sua particularizada modalidade escrita. Esta é uma experiência inédita até então no Brasil.

Por outro lado, por meio de processo seletivo próprio para ingresso na Educação Superior, em idêntica proporção podem ser admitidos candidatos surdos e não surdos que obrigatoriamente apresentem suficiente fluência em LIBRAS.

O documento indica, também, que, desde esse processo inicial e até o completo término das atividades didático-pedagógicas que lhe competem, o Curso conta com capacitados intérpretes de LIBRAS/Língua Portuguesa.

Outra especificidade importante do Curso é o fato de que aulas e demais atividades devem estar a cargo de docentes com suficiente informação sobre características linguísticas próprias do campo da surdez. Além disso, o projeto prevê flexibilidade na correção de provas e/ou trabalhos redigidos pelo discente surdo, quando serão considerados o aspecto semântico e a singularidade linguística manifesta no nível formal de sua escrita. Para os surdos que possuam resíduos auditivos e os queiram utilizar, estão previstos equipamentos de amplificação sonora de uso coletivo.

Conforme conta no Projeto do Curso:

Mantidas tais perspectivas, este Curso objetiva assegurar uma qualificada formação bilíngüe (LIBRAS/Língua Portuguesa) para pedagogos surdos e não surdos, de forma a torná-los agentes brasileiros multiplicadores também em docências da modalidade de "Curso Normal" própria do Ensino Médio; Contribuir para com (re)definições e implementações de uma qualificada política de formação de professores da Educação Infantil, dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental contemplada também a EJA, e do Ensino Médio para disciplinas de cunho pedagógico; Formar pedagogos competentes e comprometidos com posicionamentos éticos, que englobem pensamento crítico, reflexivo e criativo, por meio da construção de conhecimentos teóricos, técnicos e práticos, cujas correspondentes ações sirvam como marca de excelência e referência no país (2006, p.14)

Também condizente com a política nacional de Educação vigente em nosso país, o Curso indica que egressos surdos poderão optar, pois, por trabalhar de forma integrada com intérpretes de LIBRAS/Língua Portuguesa em quaisquer futuras atuações de cunho pedagógico que porventura assumam.

Por outro lado:

De igual modo previamente mencionada, constitui uma das disposições cruciais deste Curso a de que, durante todo o seu transcorrer, serão respeitadas características semânticas e de singularidade linguística comumente encontradas no nível formal de suas escritas, de maneira que se forem posteriormente lotados em escolas regulares públicas, seja na Educação Infantil, seja nas Séries Iniciais, incluindo-se a EJA, ou no Ensino Médio em docências de âmbito pedagógico, lotados nas instituições de Educação formal ou não formal os egressos surdos deverão estar igualmente livres para assumirem todas as atribuições que dispensem competências particularmente relacionadas com ensinos formalizados da modalidade escrita do nosso Português (idem, p.18).

Esta especificidade é extremamente importante, pois torna-se cada vez mais visível, no bojo do processo de inclusão social no Brasil, que a população surda utiliza naturalmente a LIBRAS e enfrenta dificuldades linguísticas na aprendizagem e uso de línguas orais como a Língua Portuguesa.

O projeto aprovado em dezembro de 2006 pelo MEC aponta para uma interessante ousadia curricular. Possui a grande tarefa de representar, de fato, a possibilidade de exercício da diferença da comunidade surda brasileira e o compromisso de que futuras gerações de estudantes surdos poderão contar com escolas e professores, surdos e ouvintes, mais bem preparados.

Dessa forma, acompanhar a implantação do Projeto, do dia a dia do espaço escolar, suas realizações, tensões e ambiguidades, torna-se uma tarefa política, nos moldes pensados pela filósofa: "A política neste verdadeiro sentido aparece raramente na História" (ARENDT, 2006, p.56). Cabe a nós não deixar escapar.

2.2 POLÍTICAS INCLUSIVAS: EXERCÍCIO DA LIBERDADE?

Tendo como pano de fundo este cenário, abre-se um leque de desdobramentos, de tensões advindas do processo de implantação cuja investigação em curso se desenvolve.

Inicialmente, vale um mapeamento acerca da realidade discente.

O curso de Pedagogia realiza em 2006 o seu primeiro vestibular e aprova sessenta estudantes. Com reserva de 50% para estudantes surdos, esse número não se confirma, seja pela pouca procura do curso, ainda novo, por parte da comunidade surda (e também da ouvinte), seja pela baixa aprovação dos estudantes surdos no exame de vestibular.

Realizada internamente, a prova de vestibular aplicada procurou seguir os moldes tradicionais de provas objetivas e uma redação.8 8 Consta que a desclassificação foi aplicada apenas aos candidatos que zeraram alguma parte da prova. Os demais seguiram em ordem de classificação. Não foi possível realizar, ainda, uma análise da prova aplicada. Não houve a alternativa, agora recorrente de provas gravadas em LIBRAS, para os estudantes surdos. Por outro lado, como o curso tem a LIBRAS como língua de instrução, foi realizada uma prova, entre os ouvintes classificados, de proficiência na língua. Aos candidatos surdos foi oferecido o apoio do intérprete.

Surpreendentemente, o número de ouvintes aprovados no exame de proficiência revelou uma primeira contradição: ou o exame foi extremamente rudimentar no que diz respeito à proficiência de ouvintes em LIBRAS ou temos muito mais falantes de LIBRAS do que se poderia imaginar.9 9 Tem-se a expectativa de que parte dessa procura é oriunda do Curso Básico de Aquisição da Língua Brasileira de Sinais oferecido pelo próprio INES. Composto de quatro semestres letivos correspondentes a quatro níveis, o curso oferece a formação inicial em LIBRAS e conta atualmente com o expressivo número de quase 700 inscritos. Todavia, num primeiro levantamento, constatou-se que a procura pelo curso está localizada entre familiares de surdos, com baixo nível de escolaridade, e mesmo estudantes sem o ensino médio completo, o que revela a impossibilidade de atrelar-se a demanda de ouvintes no ISEB a esse universo. Em contrapartida, os surdos ficaram em desvantagem. Das sessenta vagas oferecidas, apenas quatorze foram preenchidas por estudantes surdos, sendo que desse universo quatro trancaram ou abandonaram o curso numa proporção correspondente de sete estudantes ouvintes.

Essa mesma realidade se repetiu no segundo vestibular, em 2007. Selecionando candidatos já para o recém-aprovado curso de Pedagogia e com o acúmulo da experiência anterior, o curso, mais divulgado dentre a comunidade surda, passa a contar com um quantitativo de quatro alunos surdos no turno da tarde contra vinte e seis ouvintes. No período noturno, essa realidade se apresenta com oito estudantes surdos contra vinte e dois alunos ouvintes.

A conjuntura exposta apresenta, de início, alguns questionamentos. Os dados revelam que o curso possui um número muito maior de ouvintes do que de surdos. Para além de estatísticas formais, os números podem vir a indicar práticas e representações muito mais atreladas ao universo ouvinte do que do surdo. Com essas proporções fica difícil, por enquanto, considerar o curso bilíngue. Os motivos podem ser vários, reunidos ou isolados. O ensino formal - sobretudo no que diz respeito ao ensino médio, e mesmo às classes de pré-vestibular oferecidas pelo INES aos estudantes surdos - não estaria preparando os estudantes, ainda que selecionados, por um processo, tudo indica, atípico de vestibular? Por outro lado, poder-se-ia relacionar essa baixa procura ao fato de que aos surdos não interessaria o curso de Pedagogia, usualmente também discriminado por estudantes ouvintes?

Outra questão relevante a ser observada reside no fato de que, segundo os resultados do vestibular de 2007, a maior média geral foi de um aluno surdo (91,50). O mesmo fato também ocorreu nas duas maiores notas da prova de redação (4,0). 10 10 Vale observar que a equipe que corrigiu as redações teve como critério, no caso de candidatos surdos, o reconhecimento da língua portuguesa como L2 (segunda língua). Nas provas objetivas, a maior média isolada também foi de um candidato surdo (37,50). Em contrapartida, a pior média geral, bem como a pior nota na prova objetiva e de redação ficaram com os candidatos ouvintes, respectivamente (48,50), (14,25) e (10,00). No caso da prova de LIBRAS, 10 candidatos surdos obtiveram a nota máxima (4,0) tendo o mesmo fato ocorrido com 07 estudantes ouvintes. A pior nota de LIBRAS foi de um estudante ouvinte (15,00) e entre os surdos, a de 23,00. Dois fatos podem ser considerados aqui. De um lado, o de a média total ser computada juntamente com a nota de proficiência em LIBRAS, o que daria um caráter totalmente diverso se a mesma fosse apenas classificatória. Por outro, as maiores notas isoladas são dos surdos (redação e objetiva) e as piores, muito piores, são de ouvintes. Isso leva ao questionamento: quem são esses estudantes que agora ingressam no Curso de Pedagogia? São surdos oriundos de famílias ouvintes, de famílias surdas, são oralizados, estudaram ou não no INES? E quem são esses estudantes ouvintes, despertados pelo interesse do ensino bilíngue? Por que obtiveram notas isoladas tão baixas?

Mas há um outro dado comparativo importante. Desde setembro de 2006 a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com outras sete instituições de ensino - Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/RJ), Universidade de Brasília (UNB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Centro Federal de Ensino Tecnológico de Goiás (CEFET/GO) - estimuladas pela recente aprovação da Lei de LIBRAS, mantém um curso de graduação a distância, em regime semipresencial, em Letras/Licenciatura com habilitação em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). A nova lei criou uma grande demanda por profissionais com essa graduação.11 11 Existem cerca de 170 mil surdos no Brasil, de acordo com o último Censo realizado, no ano de 2000. Ao todo, quinhentas vagas, sendo sessenta na UFSC e cinquenta e cinco em cada um dos pólos que integram a parceria. Desse montante, 70% foram reservados aos instrutores de LIBRAS anteriormente capacitados pelo MEC12 12 Em agosto de 2006, o Ministério da Educação lançou o PROLIBRAS, Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Língua Brasileira de Sinais e ao Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua Portuguesa. e 30% para surdos ou usuários de LIBRAS que já tenham concluído o ensino médio.13 13 O candidato ao curso precisou demonstrar fluência em Libras, pois as provas foram aplicadas na língua de sinais, enquanto a compreensão de textos, em língua portuguesa. Foram 15 questões sobre conhecimentos gerais formuladas em Libras e cinco sobre conteúdos da língua portuguesa, formuladas em português. Para todos os conteúdos em língua portuguesa o exame contou com intérprete em Libras.

O fato é que, mesmo tendo como finalidade ser um curso bilíngue, atendendo a surdos e ouvintes proficientes em LIBRAS, as cinquenta e cinco vagas oferecidas no pólo do Rio de Janeiro, no INES, foram ocupadas por surdos (instrutores ou concluintes de ensino médio). A maior parte dos selecionados constitui-se de surdos que possuem uma inserção significativa na comunidade e já atuam na área educacional. Usuários proficientes em LIBRAS, muitos já atuando de forma reconhecida como intérpretes, não alcançaram classificação. Terá sido o conteúdo da prova, a forma como foi aplicada? Não seria o caso de estabelecer cotas para ouvintes, como ocorre nas Universidades ou mesmo no próprio curso de Pedagogia do INES?

Tal constatação desautoriza, pelo menos parcialmente, de um lado, a noção de que não haveria surdos devidamente preparados para um exame de vestibular; e de outro, a idéia de que a baixa procura do curso de Pedagogia do INES por parte dos surdos ocorreu por falta de divulgação. Outra questão pode ser colocada em pauta: o fato de o curso Letras/LIBRAS ser a distância, viabilizando a continuidade praticamente integral dos estudantes nas suas atividades profissionais, teria contribuído com o interesse da comunidade surda? A modalidade a distância, com a maioria das aulas ministrada em língua de sinais gravada, facilitou a inserção da comunidade surda?

No que diz respeito à realidade docente, as contradições também são inúmeras. Da equipe de dez professores substitutos contratados que iniciou o curso nenhum tivera contato com a Língua de Sinais tampouco acumulava alguma reflexão acerca da educação de surdos ou de ensino bilíngue. No final de 2006, o INES realizou seu primeiro concurso público para provimento de dez vagas. Dos candidatos aprovados, apenas uma professora, da área de linguística, é proficiente em LIBRAS. Os demais professores encontram-se fazendo um curso, oferecido pelo próprio INES, de aquisição da Língua Brasileira de Sinais, cuja duração é de apenas dois anos, não garantindo, portanto, a proficiência adequada para lecionar, sobretudo temas e reflexões de nível superior.

Esse fato remete a um outro problema: a questão dos intérpretes.14 14 A presença do intérprete, na mediação entre surdos e ouvintes, deve ser tão antiga quanto a existência das pessoas surdas no mundo. Aqui, no Brasil, temos notícia da convocação oficial de intérprete, por órgão judicial, no então Instituto Nacional de Surdos Mudos, ainda no final do século XIX, conforme documentos existentes na biblioteca do INES. É com a FENEIS que a atuação profissional de intérpretes de língua de sinais tem seu início e se estabelece no Brasil. São os próprios surdos, que, não mais suportando o bloqueio da comunicação, a falta total de acesso às informações por total omissão dos órgãos governamentais, deflagram não só um movimento reivindicando o reconhecimento dessa atividade profissional, como também promovem o início desse trabalho em todo o Brasil. Atualmente, a FENEIS possui, em seu quadro funcional, profissionais intérpretes capacitados em cursos livres de curta duração, organizados e promovidos por ela mesma, em todos os Estados em que já implantou sua representação, contando, no momento, com uma dezena de regionais. E, através da Federação dos surdos, pessoas vêm atuando como intérpretes da Língua Brasileira de Sinais e conseguindo o reconhecimento e valor profissional por parte da comunidade ouvinte, que passou a valorizar e a solicitar esse trabalho à FENEIS. Tal fato muda, totalmente, o antigo cenário de atuação do intérprete, de caráter filantrópico, até então muito forte no imaginário da sociedade em geral, dos usuários surdos, bem como da própria pessoa que se propunha desempenhar essa função (Leite, 2004). Segundo a CORDE, o intérprete deve ser um profissional bilíngue; reconhecido pelas associações e/ou órgãos responsáveis; intérprete e não explicador; habilitado na interpretação da língua oral, da língua de sinais, da língua escrita para a língua de sinais, e da língua de sinais para a língua oral (1996, p.08).

No ano de implantação do curso, o INES contava com um convênio com a Federação Nacional de Educação e Integração do Surdo (FENEIS) no encaminhamento de profissionais intérpretes para a Instituição como um todo. Mas esse número era insuficiente. O Colégio de Aplicação, hoje com cerca de 570 alunos surdos matriculados, da educação precoce ao pré-vestibular, além de outros atendimentos, conta com oito intérpretes15 15 Sabe-se que a partir de 2008 o ISEB passou a contar com um número maior de intérpretes, mais precisamente, dois para cada turma ( três turmas do período da tarde e três da noite, correspondendo, respectivamente ao 5º período do curso em vigor). Todavia optou-se por manter a informação do quadro inicial para registrar, sobretudo, o primeiro ano de implantação do curso. . O ISBE tem, em seus quadros, quatro intérpretes, que atuam, ou deveriam atuar, em pares de revezamento. Esse número, que já é insuficiente para a realidade das turmas hoje ativas no curso (duas no turno da tarde e duas no da noite), tende a se tornar impraticável num futuro próximo.16 16 Durante a realização deste estudo, verificou-se um movimento organizado entre os surdos do terceiro período do curso. Eles se negaram a assistir às aulas com intérpretes atuando de forma precária, seja pela dificuldade de interpretação em si, seja pelo fato de que é freqüente a presença de apenas um intérprete em sala, quando o correto seria o revezamento entre pares. Por outro lado, tudo indica que, partindo do pressuposto de que o curso tem a LIBRAS como língua de instrução, o uso do intérprete, pelo menos a médio ou longo prazo, não seria mais necessário.

Mas a questão dos intérpretes vai mais além. Apesar do PROLIBRAS, os conteúdos expressos nas diretrizes curriculares do curso possuem uma complexidade que indicaria uma melhor formação desses intérpretes, e mesmo um espaço reservado para um trabalho prévio entre esses profissionais e os professores, tirando dúvidas, esclarecendo conceitos etc. Esse momento não está previsto na carga horária dos intérpretes tampouco na dos professores.

Segundo Quadros:

Atualmente, esse intérprete ainda está em um processo de formação de identidade, já que sua organização enquanto profissional e formação acadêmica ainda não se consolidaram. O intérprete deverá, ainda, ter conhecimento prévio de todos os assuntos de todas as disciplinas que fará a tradução simultânea, podendo atuar desde a educação infantil até o nível universitário e de pós-graduação, mas não poderá se confundir com o professor, que é o responsável pelo processo de avaliação dos alunos. (2002, p. 23)

Ou seja, está claro que a maioria dos profissionais intérpretes atuantes não possui formação acadêmica para desempenhar essa função. Os primeiros cursos e certificados de proficiência ainda estão começando a surgir no Brasil. Entretanto, a contratação desses profissionais já vem acontecendo e, em consequência, existe a escassez desse recurso humano. Assim sendo, pessoas com alguma proficiência em LIBRAS vêm sendo contratadas para esse trabalho e se capacitando em serviço, na maioria das vezes, sem nenhum tipo de orientação. As instituições têm ficado em situação desconfortável, ao se conscientizarem da necessidade de contratação dos profissionais intérpretes, mas esbarram na falta do recurso humano e despreparo dos intérpretes, o que pode causar prejuízo ao aluno e sua escolarização (LEITE, 2004).

Já no âmbito curricular, elementos favoráveis e desfavoráveis podem ser, de forma introdutória, pontuados. De positivo pode-se apontar para o empenho da elaboração de um mapa curricular que rompe com uma série de paradigmas tradicionais. A estrutura transdisciplinar dialoga com o que há de melhor nas atuais Diretrizes Nacionais para o Curso de Pedagogia e procura de forma produtiva tecer as especificidades do universo da surdez ao longo das disciplinas propostas.

A idéia de utilizar a carga das atividades complementares como Tópicos de Educação Bilíngue como um espaço de oficina de Libras ou projetos de Pesquisa e Extensão dessa natureza, foi a solução encontrada para a existência de um " lugar" onde a LIBRAS pudesse ser aprendida, já que no Projeto do Normal Superior esse espaço não existia, na medida em que se partia do pressuposto de que o curso era bilíngue e que, portanto, a aquisição e proficiência da língua de sinais já estaria dada.Enfim, esta é uma questão que também precisa ser equacionada.

Ainda no corpo do mapeamento curricular que já está sendo praticado, vale observar algumas outras contradições. As disciplinas de Língua Portuguesa , por exemplo, têm como objetivo ensinar português escrito como L2, uma vez que a L1 ou língua de instrução é a LIBRAS. No entanto, não há como considerar que processos de ensino-aprendizagem comuns de surdos, que têm a língua portuguesa como L2 e ouvintes que têm a língua portuguesa como L1.

3 CONCLUSÃO

Como se organiza um curso superior bilíngue? Sabe-se que em escolas bilíngues tradicionais a instrução é toda ministrada na primeira língua, cabendo à segunda língua o espaço de língua estrangeira. Esta é uma realidade factível de ser implantada no INES, levando-se em consideração que nos seus 150 anos possui precariamente esses serviços no âmbito de seu Colégio de Aplicação? Em que se distingue um ensino bilíngue para ouvintes do ensino bilíngue que reúne surdo e ouvinte numa mesma sala de aula, com professores ouvintes trabalhando mediados por intérpretes? Em médio ou longo prazo é possível pensar num fechamento de ciclo em que o próprio curso fosse capaz de formar surdos, aptos a concorrer em futuros concursos para compor o corpo docente?

Por outro lado, no mínimo dois aspectos importantes devem ser considerados à guisa de reflexões finais.

Um curso não pode se considerar bilíngue tendo a L1 utilizada de forma precária por ouvintes. E essa precariedade não se resolve apenas por meio de intérpretes, mesmo que estes tenham formação adequada. Além da efetiva utilização da L1 como língua de instrução, um curso bilíngue dessa natureza não pode prescindir de pensar estratégias teórico-práticas, que identifiquem processos específicos da educação de surdos, ainda que no âmbito superior. Esse aspecto remete ao segundo aspecto importante a ser considerado. O projeto político-pedagógico desenvolvido por uma pequena equipe para consolidar a autorização de funcionamento do curso precisa ser praticado, criticado, elogiado. Os envolvidos nesse processo - surdos, ouvintes professores, coordenadores - precisam estabelecer um diálogo acadêmico que promova diretrizes propositivas com vistas à atualização constante do currículo. Ou seja, o curso que agora se inicia tem a tarefa de submeter seus pressupostos à realidade escolar e a seus agentes principais - dirigentes, professores, alunos e familiares - de modo que um projeto político-pedagógico possa ser urdido a muitas mãos, como deve ser o espírito da política.

Além disso, administração do ISBE precisa desenvolver estudos de demandas dos profissionais necessários ao funcionamento do curso, bem como proporcionar que os docentes vinculados por força de lei ao ensino superior federal venham criar regras internas de funcionamento, tanto de progressão funcional, quanto de alocação das cargas de trabalho. Este é o caminho para viabilizar que se realizem, além da sala de aula, estudos e pesquisas, projetos de extensão, elementos fundamentais para que o Instituto não se constitua, apenas, num grande "escolão", contraditoriamente, muito pouco bilíngue, desperdiçando o frutífero campo que agora se abre à investigação.

Ou seja, há muito a fazer. Traçar novos planos e buscar corrigir falhas que possam comprometer o compromisso firmado entre o Ministério da Educação, o INES, a comunidade surda e todos aqueles que direcionaram seus anseios profissionais e afetivos na luta por uma melhoria nas condições de oferta do ensino de surdos no Brasil, em todos os níveis.

Tudo leva a crer que uma política cultural bilíngue está sendo urdida no Brasil, de forma inédita, configurando-se numa abertura a uma nova lógica, a um novo e comprometido sentido da prática histórica como prática política e, sobretudo, "um ensaio à liberdade".

Recebido em 28/10/2008

Aprovado em 20/03/2009

Anexo 1

Anexo A - Clique para ampliar Anexo 1

Anexo 2

Anexo B - Clique para ampliar Anexo 2

  • ARENDT, H. O que é Política? fragmentos das Obras Póstumas compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2006.
  • BRASIL. CORDE. Câmara Técnica. O surdo e a Língua de Sinais Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria dos Direitos da Cidadania/CORDE, 2006.
  • LEITE, E. M. Os papéis do intérprete na sala de aula inclusiva 2004. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
  • QUADROS, R. M. Políticas lingüísticas: o impacto do Decreto 5.626 para os surdos brasileiros. Espaço - Informativo Técnico Científico do INES, n. 25/26, p 15-25, 2006.
  • ROCHA, S. Histórico do INES. In: Espaço - Informativo Técnico-Científico do INES. Edição Especial, 2006.
  • SKLIAR, C. A localização política da educação bilíngüe para surdos. In: Atualidade da Educação Bilíngüe Porto Alegre: Editora Mediação, 1999. p. 07-14.
  • SOBREIRA, H; CICONNE, M. FRANCO, M. Projeto do Curso Bilíngüe de Pedagogia, dez. 2006. Mimeo.
  • SOUZA, R. M. Situação Bilíngüe Nacional: os cidadãos surdos. SEMINÁRIO SURDEZ, CIDADANIA E EDUCAÇÃO: refletindo sobre os processos de exclusão e inclusão. Anais... Rio de Janeiro: INES, DIESP, 1998, p. 36-45.

Anexo 1

Anexo 2

anexo

  • 1
    Historiadora (PUC/RJ), Mestre em Educação (PPGED/UFRJ) e Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ). Professora Adjunta do Departamento de Educação da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Membro da Comissão Executiva e Editorial do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES/MEC).
  • 2
    Estudos indicam que, no Brasil, falam-se cerca de 200 línguas tradicionais de comunidades estabelecidas no próprio território. Existem ainda 180 línguas indígenas faladas em todo o País, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. Coexistem, além do português, línguas indígenas, línguas de imigrantes e duas línguas de sinais registradas: a LIBRAS, utilizada nos grandes centros urbanos pela comunidade surda, e a Língua de Sinais Urubu-Kaapor, desenvolvida na comunidade indígena de mesmo nome no Maranhão. Disponível em: <
    http://www.sil.org/americas/brasil/PUBLCNS/LING/UKSgnL.pdf>. Último acesso em fevereiro de 2007.
  • 3
    Tem-se registro de que o Japão desenvolve, no âmbito do ensino tecnológico, experiência similar. A Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro (ESSUA), Portugal, também registra uma experiência no âmbito do ensino superior para surdos. Já a Universidade de
    Gallaudet, em Washington, D.C., é uma instituição de educação superior voltada para cidadãos surdos ou com dificuldades de audição, dos Estados Unidos e do mundo.
  • 4
    Projeto do Curso Bilíngüe de Pedagogia. DEZ 2006, mimeo.
  • 5
    Anexo 1 Anexo 1 .
  • 6
    Vale observar que o diálogo inicial para a montagem do mapeamento curricular proposto incluiu o Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pelotas/RS, do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, bem como, das experiências do primeiro ano de funcionamento do Curso Normal Superior do INES.
  • 7
    Anexo 2 Anexo 2 .
  • 8
    Consta que a desclassificação foi aplicada apenas aos candidatos que zeraram alguma parte da prova. Os demais seguiram em ordem de classificação. Não foi possível realizar, ainda, uma análise da prova aplicada.
  • 9
    Tem-se a expectativa de que parte dessa procura é oriunda do Curso Básico de Aquisição da Língua Brasileira de Sinais oferecido pelo próprio INES. Composto de quatro semestres letivos correspondentes a quatro níveis, o curso oferece a formação inicial em LIBRAS e conta atualmente com o expressivo número de quase 700 inscritos. Todavia, num primeiro levantamento, constatou-se que a procura pelo curso está localizada entre familiares de surdos, com baixo nível de escolaridade, e mesmo estudantes sem o ensino médio completo, o que revela a impossibilidade de atrelar-se a demanda de ouvintes no ISEB a esse universo.
  • 10
    Vale observar que a equipe que corrigiu as redações teve como critério, no caso de candidatos surdos, o reconhecimento da língua portuguesa como L2 (segunda língua).
  • 11
    Existem cerca de 170 mil surdos no Brasil, de acordo com o último Censo realizado, no ano de 2000.
  • 12
    Em agosto de 2006, o Ministério da Educação lançou o PROLIBRAS, Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Língua Brasileira de Sinais e ao Exame Nacional de Certificação de Proficiência em Tradução e Interpretação da Libras/Língua Portuguesa.
  • 13
    O candidato ao curso precisou demonstrar fluência em Libras, pois as provas foram aplicadas na língua de sinais, enquanto a compreensão de textos, em língua portuguesa. Foram 15 questões sobre conhecimentos gerais formuladas em Libras e cinco sobre conteúdos da língua portuguesa, formuladas em português. Para todos os conteúdos em língua portuguesa o exame contou com intérprete em Libras.
  • 14
    A presença do intérprete, na mediação entre surdos e ouvintes, deve ser tão antiga quanto a existência das pessoas surdas no mundo. Aqui, no Brasil, temos notícia da convocação oficial de intérprete, por órgão judicial, no então Instituto Nacional de Surdos Mudos, ainda no final do século XIX, conforme documentos existentes na biblioteca do INES. É com a FENEIS que a atuação profissional de intérpretes de língua de sinais tem seu início e se estabelece no Brasil. São os próprios surdos, que, não mais suportando o bloqueio da comunicação, a falta total de acesso às informações por total omissão dos órgãos governamentais, deflagram não só um movimento reivindicando o reconhecimento dessa atividade profissional, como também promovem o início desse trabalho em todo o Brasil. Atualmente, a FENEIS possui, em seu quadro funcional, profissionais intérpretes capacitados em cursos livres de curta duração, organizados e promovidos por ela mesma, em todos os Estados em que já implantou sua representação, contando, no momento, com uma dezena de regionais. E, através da Federação dos surdos, pessoas vêm atuando como intérpretes da Língua Brasileira de Sinais e conseguindo o reconhecimento e valor profissional por parte da comunidade ouvinte, que passou a valorizar e a solicitar esse trabalho à FENEIS. Tal fato muda, totalmente, o antigo cenário de atuação do intérprete, de caráter filantrópico, até então muito forte no imaginário da sociedade em geral, dos usuários surdos, bem como da própria pessoa que se propunha desempenhar essa função (Leite, 2004).
  • 15
    Sabe-se que a partir de 2008 o ISEB passou a contar com um número maior de intérpretes, mais precisamente, dois para cada turma ( três turmas do período da tarde e três da noite, correspondendo, respectivamente ao 5º período do curso em vigor). Todavia optou-se por manter a informação do quadro inicial para registrar, sobretudo, o primeiro ano de implantação do curso.
  • 16
    Durante a realização deste estudo, verificou-se um movimento organizado entre os surdos do terceiro período do curso. Eles se negaram a assistir às aulas com intérpretes atuando de forma precária, seja pela dificuldade de interpretação em si, seja pelo fato de que é freqüente a presença de apenas um intérprete em sala, quando o correto seria o revezamento entre pares.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Recebido
      28 Out 2008
    • Aceito
      20 Mar 2009
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