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Desenvolvimento Psíquico e Elaboração Conceitual por Alunos com Deficiência Intelectual na Educação Escolar1

Psychic Development and Conceptual Elaboration by Students with Intellectual Disability in School Education

RESUMO:

considerando que o desenvolvimento humano é passagem do ser biológico ao ser cultural e que são as condições de existência, criadas pelos homens, ao longo da história de cada povo, que promovem o desenvolvimento das funções propriamente humanas, neste texto pretende-se dar destaque à elaboração conceitual, própria da educação escolar, pelos alunos com deficiência intelectual. O percurso da reflexão segue trazendo, primeiramente, as bases teóricas da Psicologia Histórico-Cultural para a compreensão das leis gerais que regem o desenvolvimento cultural das pessoas. Em seguida, desenvolvem-se argumentos acerca das funções psicológicas superiores ou culturais e a elaboração conceitual como condição e caminho desse desenvolvimento. Na terceira parte, apresenta-se a mediação entre os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural e a educação escolar realizada pela Pedagogia Histórico-Crítica. Conclui-se abordando as práticas pedagógicas e as possibilidades que se abrem para a educação das pessoas com deficiência, uma vez que, por meio delas, se dê a significação do mundo e de si, elevando e transformando, portanto, os conhecimentos cotidianos em direção à apropriação dos conceitos científicos.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Educação Escolar; Elaboração Conceitual; Deficiência Intelectual

ABSTRACT:

Considering that human development is the passage of the biological being to the cultural being and that the conditions of existence, created by men, throughout the history of each people, that promote the development of properly human functions, in this text, we intend to highlight the conceptual elaboration, proper of school education, by students with intellectual disability. The course of reflection brings, firstly, the theoretical basis of Historic-Cultural Psychology to the comprehension of general laws that rule the cultural development of people. Afterwards, we develop arguments about the superior psychological or cultural functions and the conceptual elaboration as a condition and path to this development. On the third part, we present the mediation between the underpinnings of Historic-Cultural Psychology and scholar education performed by Historic-Critic Pedagogy. We concluded by approaching the pedagogic practices and the possibilities that they open to education of people with disabilities once that, by them, it is given meaning to the world and oneself, elevating and transforming, therefore, the quotidian knowledge towards the appropriation of scientific knowledge.

KEYWORDS:
Especial Education; School Education; Conceptual Education; Intellectual Disability

1 Da passagem do ser biológico ao ser cultural

A transformação biológica do homem não representa um pré-requisito; [...] é resultado da libertação social do homem.

(Vigotski, 1930VIGOTSKY, L.S. (1930). A transformação socialista do homem. Tradução de Nilson Dória a partir da versão em inglês The socialist alteration of man para Marxists Internet Archive Disponível em: <http://marxists.anu.edu.au/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2015.
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).

Ao nascer, o novo indivíduo da espécie humana mergulha na cultura e passa a fazer parte de um grupo, de uma classe social e da história da humanidade. Sua dependência total dos membros mais experientes parece ser uma desvantagem em relação a outros animais mamíferos. Desvantagem aparente porque é justamente essa dependência que coloca o novo ser nas relações sociais interpessoais e em condições de se apropriar da obra humana - a cultura. Como ser historicamente situado, é significado pelos outros humanos fisicamente e simbolicamente presentes. As novas gerações ganham estatuto de humanas porque, diferente de outros seres da espécie, provocam profundas modificações na sua realidade biológica. O choro ganha significado de um pedido ou de um desconforto; as expressões faciais como atos reflexos ganham forma de sorriso e, na maioria das vezes, são correspondidos e vêm junto com exclamações de alegria; movimentos aleatórios convidam ao abraço; o reflexo da sucção pode ser nomeado de gulodice do bebê. O humano, diz Pino (2005, p.17)PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., não nega que faz parte da natureza, pelo contrário, permanece "radicalmente ligado a ela pelo cordão umbilical que alimenta sua realidade biológica". (grifo do autor).

Lev Vigotski3 3 Lev Semenovich Vigotski é o líder de um grupo de pesquisadores que formam a corrente da Psicologia Histórico-cultural, conhecida também como “Escola Soviética de Psicologia”, remetendo-nos ao lugar de origem, a União Soviética, e à sua perspectiva marxista. Há na literatura diversas grafias para o nome desse autor, tais como Vygotski, Vygotsky, Vigotskii; aqui, optamos pela adoção da grafia “Vigotski”, exceto em referências específicas. traz contribuições, no início do século XX, até então inéditas aos estudos da Psicologia, justamente por não cindir a ordem da natureza e a ordem da cultura. A natureza não é subtraída de sua condição quando o homem a transforma. Tomando o conceito de trabalho de Karl Marx, Vigotski afirma que, ao transformar a natureza, o homem transforma a si mesmo. Essa dupla transformação - da natureza e de si mesmo - é que Vigotski chama de história propriamente dita, e dela o ser humano passa a fazer parte desde o seu nascimento. Decorre dessa visão de homem a lei genética geral do desenvolvimento psíquico desenvolvida pelo pesquisador soviético:

Toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena duas vezes, em dois planos: primeiro no plano social e depois no psicológico, no princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo no interior da criança como categoria intrapsíquica. (VYGOTSKI, 1995VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995., p.150)4 4 Todas as traduções de trechos advindos das edições espanholas desse autor são de minha inteira responsabilidade.

Essa visão de desenvolvimento impõe compromisso teórico e metodológico para a educação, uma vez que a história do desenvolvimento cultural, ou seja, a formação da personalidade supõe a conversão das experiências vividas no plano interpessoal para o plano intrapessoal. Em que condições concretas de conversão nascem e crescem as novas gerações?

As relações sociais são convertidas em funções psíquicas superiores, ou seja, as funções culturais - aquelas que são propriamente humanas - e se desenvolvem nas relações entre os humanos. Vigotski assume a VI tese de Marx sobre Feuerbach5 5 Diz Marx (1996, p. 13): “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais”. (grifo no original). e afirma que "a natureza psíquica do homem vem a ser o conjunto de relações sociais transferidas para o interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura" (VYGOTSKI, 1995VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995., p. 151).

Para a Psicologia Histórico-cultural, pensar, falar, ter consciência, imitar, lembrar, estar atento intencionalmente, criar, raciocinar, dominar a própria conduta, imaginar, desenhar, ler e calcular não são nem funções nem dons naturais. São obras humanas. São históricas; fruto das ações dos homens sobre a natureza, inclusive sobre a sua própria. Se as funções elementares, biológicas, são obras da natureza, as funções superiores ou culturais são obras humanas. A transformação daquelas nestas - que acontece sem que o homem deixe de ser natureza - acontece porque é possível atribuir significação às ações e às coisas.

Reconhecendo as bases naturais das formas culturais de conduta, ao estudar a deficiência intelectual, Vigotski, na mesma obra, explica que sobre os processos elementares ou naturais é que se edificam as formas superiores de comportamento. A lei genética geral permanece: do plano social para o plano individual. Se as crianças com deficiência intelectual não conseguem alcançar o desenvolvimento das funções culturais pelas mesmas vias que as crianças sem deficiência, é por meio de caminhos alternativos, de vias colaterais que surgem novas possibilidades de desenvolvimento para elas. Trata-se do emprego de signos, da inserção no mundo simbólico, do domínio da vontade e da própria conduta.

Na evolução da humanidade, as mãos tornaram-se órgãos adaptados a todos os tipos de trabalho e as ferramentas foram se constituindo nos órgãos artificiais dos homens. O trabalho humano - a fabricação e o uso de instrumentos para atingir fins idealizados, imaginados - é processo complexo de aprendizado. O homem não se limita a repetir sempre os mesmos movimentos, as mesmas ações, porque desenvolve técnicas para resolver os problemas e satisfazer suas necessidades. À medida que avança nesse processo, outras necessidades surgem e novas técnicas são desenvolvidas.

No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. (MARX, 1985MARX K. O capital: crítica da economia política. v. I, t. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1985., p.149-150).

Todas as produções humanas, portanto, têm sentido para os homens, tanto material quanto simbólico. Pino (2005, p.93)PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. lembra-nos das produções artísticas; das instituições sociais com suas ideias e valores; das tradições e dos mitos e dos sistemas de ideias das ciências, da filosofia e das religiões. Na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, a cultura torna-se constitutiva do humano do homem por meio da mediação simbólica ou semiótica. Isso porque, explica Pino, "[...] a significação é o grande conversor da natureza em cultura e da cultura em natureza" (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.94, grifo do autor).

"O primeiro emprego do signo" - diz Vigotski (1995, p.95) - "significa a saída dos limites do sistema orgânico de atividade existente para cada função psíquica". Assim como as ferramentas modificam os órgãos - como explica Marx na teoria do trabalho - a mediação dos signos modifica as funções psíquicas. Dito de outro modo, Vigotski encontra na significação do outro sobre os atos da criança o caminho da significação da própria criança sobre a sua vida e seus atos: "Nós nos tornamos nós mesmos através dos outros" - afirma Vygotski (1995, p.147)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995..

E, a respeito da luta pela sobrevivência, Vigotski (1930)VIGOTSKY, L.S. (1930). A transformação socialista do homem. Tradução de Nilson Dória a partir da versão em inglês The socialist alteration of man para Marxists Internet Archive Disponível em: <http://marxists.anu.edu.au/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2015.
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lembra que as forças biológicas perdem seu poder decisivo e passa-se a considerar o desenvolvimento histórico do homem. "As novas leis que regulam o curso da história humana e que regem o processo de desenvolvimento material e mental da sociedade humana, agora tomam os seus lugares" (p.08).

Introduzindo a cultura como fundante e específica do desenvolvimento humano - o que era novo para a Psicologia da época - Vigotski segue construindo sua teoria acerca das funções psicológicas superiores, complexas, propriamente humanas, culturais.

2 Desenvolvimento das funções psíquicas superiores ou culturais e a elaboração conceitual

Leontiev (1978, p.272)LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizontes, 1978., a respeito do desenvolvimento das funções especificamente humanas, explica que as aquisições do desenvolvimento histórico, do que é propriamente humano, não estão dadas a priori. Estão apenas postas. Para se apropriar dessas aquisições, ou seja, para fazer delas as suas aptidões - "os órgãos da sua individualidade" - é necessário estar em relação com o mundo, com a cultura, por meio das relações com as outras pessoas. É assim que a criança aprende a atividade adequada à sua vida social. "Pela sua função, esse processo é, portanto, um processo de educação" (p.273). (grifos do autor). O autor continua dizendo que sem esse processo - da educação - seria impossível "a transmissão dos resultados do desenvolvimento sócio-histórico da humanidade para as gerações seguintes"(p.273). E, nesse ponto do texto, Leontiev traz um exemplo dos mais interessantes e verdadeiros:

Se o nosso planeta fosse vítima de uma catástrofe que só pouparia as crianças mais pequenas e na qual pereceria toda a população adulta, isso não significaria o fim do gênero humano, mas a história seria inevitavelmente interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria que recomeçar (LEONTIEV, 1978LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizontes, 1978., p.272).

É mais fácil aceitar abstratamente essa proposição do que torná-la realidade para a escola e para o processo de ensino, para garantir a "continuidade do progresso histórico" (p.272). Quem vai ensinar às crianças e aos jovens sobre as conquistas culturais, já que apenas estar diante delas não basta? Quem vai ajudá-las a discernir o que são conquistas emancipadoras daquelas que escravizaram/escravizam e oprimiram/oprimem as pessoas? Quem tem acesso a elas? De quem é o direito de aprender? De quem é o dever de ensinar? Quanto é necessário ensinar e aprender? São questões que devem ser respondidas por quem luta pelo direito de todos à educação por meio do "ensino fecundo" de que fala Vigotski; por quem se dá conta de que, sem ele, não se pode garantir a continuidade histórica.

Vygotski (1993)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 1993. discute a elaboração de conceitos, apontando para um dos principais critérios do que venha a ser "ensino fecundo": o ensino que promove aprendizagens que elevam os modos de pensar, saindo de uma estrutura de generalização para outro. O conceito - diz ele - é "um ato de generalização" (p.184, grifo do autor). "Qualquer significado da palavra em qualquer idade constitui uma generalização. Mas os significados das palavras evoluem". E acrescenta: "Quando a criança aprende uma nova palavra, relacionada com um significado, o desenvolvimento do significado da palavra não finaliza, mas só começa" (p.184). Para isso é necessário o desenvolvimento de outras funções: da memória lógica, da atenção voluntária, da abstração, da comparação, da diferenciação etc. Não se trata, portanto, de um ensino verbalista ou repetitivo ou mesmo de um hábito que pode/deve ser treinado. Ensino "fecundo" é um processo complexo que envolve a compreensão da nova palavra que vai desde uma ideia vaga, de uso espontâneo, até a apropriação dela em um nível de sistematicidade. É possível, portanto, que a escola - o ato educativo que nela acontece - influa diretamente no processo de elaboração conceitual.

Mas, alerta, Vygotski (1993, p.187)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 1993.: "[...] esse trabalho não constitui o final, se não o começo do desenvolvimento do conceito científico", dando uma nova orientação ao processo de ensino e de aprendizado. Os estudos de Vygotski (1995)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995. sobre o desenvolvimento das formas superiores/complexas de conduta ou das funções psicológicas superiores levam a algumas considerações que estão estritamente relacionadas com a elaboração conceitual.

É muito comum ouvirmos acerca da prática pedagógica: "É preciso respeitar os conhecimentos que as crianças trazem de sua vida cotidiana, de seu meio social". Conhecimentos que as crianças aprendem no dia a dia e que vão constituindo seus modos de ser, de pensar, de agir, de querer, de sentir. Suas interações com os adultos, com crianças mais velhas e com produtos culturais vão dirigindo a linguagem, a imitação, a percepção, a atenção, a memória, a imaginação, os valores, os hábitos. Os significados das palavras e das ações vão sendo apropriados nas relações sociais concretas da vida. Esses significados evoluem, transformam-se. Ao aprenderem a repetir palavras e ações no início da vida, as crianças vão, aos poucos, aprendendo novos significados para as mesmas palavras e ações. Vigotski, na mesma obra, lembra que, quando uma palavra nova é aprendida pela criança, seu desenvolvimento mal começou, porque uma palavra sem significado é um som vazio - "[...] o significado é a característica necessária, ou seja, é constitutivo da própria palavra" (VYGOTSKI, 1993VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 1993., p. 289).

O domínio dos conceitos científicos (ou escolares) não se dá do mesmo modo que o dos conceitos elementares, cotidianos ou espontâneos. Pelo contrário, trata-se da tomada de consciência diante das palavras e das coisas do mundo, uma vez que:

[...] o problema dos conceitos não espontâneos, e em particular dos científicos, é um problema de instrução e desenvolvimento, já que os conceitos espontâneos possibilitam a aparição dos conceitos não espontâneos através da instrução, que é a fonte de seu desenvolvimento. (VYGOTSKI, 1993VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 1993., p.218, grifos do autor).

Vigotski relaciona desenvolvimento das funções superiores ou culturais com elaboração conceitual e desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Tais conhecimentos são tão necessários para a educação escolar e das pessoas com deficiência quanto são complexos e, por isso, exigem estudo o que toca diretamente a formação de professores.

3 Funções biológicas ou elementares e funções culturais ou superiores

Os estudos sobre o desenvolvimento cultural das crianças nos aproximam dos problemas da educação, alerta Vygotski (1995, p.303)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995.. Trata-se das contradições entre natural e histórico, entre primitivo e cultural, entre biológico e social. Ao nascer nos ombros da cultura, o novo ser começa a fazer parte da história da humanidade e de suas formas de vida, seus modos de pensar e sentir. É o que Vigotski chama de "viver o drama" da existência humana - "processo vivo de elaboração da forma histórico-social do comportamento" (p.305). E como é que cada novo ser vai vivendo esse drama? Não só porque a criança assimila o que está fora dela, a linguagem, por exemplo, mas porque a cultura orienta o curso do desenvolvimento dela. Aí está a base da nova teoria da educação proposta por esse pensador: "[...] a diferença entre os dois planos de desenvolvimento do comportamento - o natural e o cultural - se converte em ponto de partida para a nova teoria pedagógica" (p. 305).

Não mais entendendo o desenvolvimento como adaptação ou como pré-requisito para o aprendizado - ensinamentos das psicologias de sua época - Vygotski (1995)VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995. eleva a um patamar superior tanto a educação quanto o desenvolvimento de cada função psíquica de cada ser humano. Destacando uma das funções superiores, a memória, ele diz, na mesma obra:

Para o novo ponto de vista, seria uma loucura se nas classes escolares não se tivesse em conta a índole concreta e imaginativa da memória infantil: ela é o que deve servir de suporte; mas também seria uma loucura cultivar esse tipo de memória pois significaria reter a criança a uma etapa de desenvolvimento inferior e não compreender que o tipo de memória concreta não é mais que uma etapa de transição, de um passo ao tipo superior, que a memória concreta há de superar-se no processo educativo. (p. 307).

Devemos utilizar esse mesmo raciocínio para as outras funções culturais: atenção, imaginação, vontade, percepção, comparação, linguagem, cálculo, formação de conceitos. Por esse motivo, "respeitar o conhecimento que o aluno traz" é diferente de ater-se a ele, impedindo a superação do processo realmente educativo.

A organização de um "ensino fecundo" depende da diferenciação entre as indissociáveis funções elementares e as superiores.

As primeiras áreas corticais, que estão minimamente desenvolvidas quando a criança nasce, são as sensitivas e as motoras, ainda elementares e primárias. Depois, as visuais e auditivas (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.157). Criam-se aos poucos os gestos com os quais a criança vai estabelecendo relações com o outro de seu meio cultural.

Como é que os novos membros da sociedade vão conhecendo a realidade? Esse conhecimento origina-se de sensações/percepções e "[...] à base desses processos produz-se o conhecimento sensorial, ou a matéria-prima do pensamento (ABRANTES; MARTINS, 2007ABRANTES, A.A.; MARTINS, L.M. A produção do conhecimento científico: relação sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.11, n.22, p.313-25, 2007., p. 316)". Graças ao desenvolvimento da linguagem, o que é conhecido por meio das sensações e percepções vai sendo representado em palavras e pensamento. De início, ainda como forma elementar, primária, resultado direto do sensorial e perceptual.

Os estudos de Pino (2005, p.195)PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. 6 6 Angel Pino Sirgado, em Marcas do Humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski, publicado em 2005 pela Editora Cortez, propôs-se a estudar a natureza do humano – que, como parte da natureza, torna-se capaz de abrir caminhos para fazer emergir a consciência. Em outras palavras, procura indícios do desenvolvimento cultural de que fala Vigotski. fornecem uma visão importante para nossas reflexões sobre a passagem do estado da natureza para o estado da cultura, uma vez que "a conversão das funções biológicas em culturais" determinada "pelas condições históricas concretas do meio cultural em que a criança está inserida" é o "núcleo duro" da teoria de Vigotski. (grifos do autor).

O que é próprio da natureza humana vai se transformando em ações culturais por meio da mediação das outras pessoas. O autor traz alguns dos indicadores dessa conversão: o choro; os movimentos das mãos, dos pés, do rosto, dos braços; o olhar; o sorriso e a configuração visual do rosto como uma espécie de "exaltação de alegria". (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.196). As funções elementares ou biológicas, que em princípio são reflexos, como os da sucção, vão se transformando em ações culturais sem deixarem de ser biológicas. Eis o desafio teórico da perspectiva de Vigotski e de sua escola. Pino exemplifica como o choro, marca da espécie humana, eminentemente uma função orgânica, vai ganhando contornos e variações específicos sob a ação da cultura, desde os primeiros tempos da vida da criança. O movimento - expressão da própria vida - torna-se expressão e diferencia a criança de qualquer outro filhote mamífero (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005., p.210). O sorriso, reação primitiva do bebê, ganha valor simbólico na cultura, carregado de sentidos. Conclui Pino (2005, p.215)PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005. que

[...] o processo de evolução (desenvolvimento) tem uma dupla dimensão: de amadurecimento biológico (anatômico, fisiológico e neurológico) e de transformação cultural. Um está ligado intrinsecamente ao outro.

Como já dito em outro texto (PADILHA, 2013PADILHA, A.M.L. Escola é lugar de sujeitos que aprendem. In: VICTOR, S.L.; DRAGO, R.; PANTALEÃO, E. (Org.). Educação especial no cenário educacional brasileiro. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013., p.51), nos trabalhos reunidos em Fundamentos da Defectologia escritos entre 1924 e 1934, "[...] encontramos um importante aporte para compreendermos o papel da instrução no desenvolvimento de qualquer indivíduo e nos considerados deficientes intelectuais". O educador soviético diz que a escola comum de seu tempo (e do nosso também) colocava barreiras ao selecionar crianças que poderiam participar dela. Tal seleção impedia/impede o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, além de revelar o desconhecimento teórico sobre a lei geral do desenvolvimento humano, para ele a premissa central: as mesmas leis que regem o desenvolvimento das crianças deficientes são as que regem o desenvolvimento das que não são deficientes. Vigotski denuncia que as características negativas e as complicações da deficiência não estão em sua forma primária, biológica, mas são fruto do "[...] desenvolvimento social incompleto, de uma negligência pedagógica" (VYGOTSKI, 1997VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo V. Madrid: Visor , 1997., p.144).

Quando do estudo longitudinal acerca do desenvolvimento das funções culturais de Bianca (PADILHA, 2007PADILHA, A.M.L. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2007.) - uma jovem de 17 anos com severa deficiência intelectual - perguntei como é que a participação na cultura, de modo organizado, sistemático e intencional, poderia orientar certas atividades da vida dessa jovem e como poderia introduzi-la em novos modos de participação cultural. Apropriando-me dos ensinamentos de Lev Vigotski e seus colaboradores, segui em busca das relações entre as funções elementares, já desenvolvidas por Bianca, e as superiores, que poderiam ser desenvolvidas com a interferência/atuação pedagógica. A escolha foi por atuar em cinco esferas do desenvolvimento complexo: o gesto, a narrativa, o desenho, a imaginação (o faz-de-conta) e o uso simbólico de objetos culturais.

Aproximando-me aqui de uma das esferas, o que era antes apenas movimento - que pouco servia para a comunicação com os outros e consigo mesma e pouco também estava sob o domínio de sua vontade -, ganhou significado simbólico como gesto e tornou-se caminho de desenvolvimento de funções superiores, junto com a atenção, a vontade, a memória, os sentimentos. No início, os gestos para se fazer entender pelos outros: apontar, indicar, pedir, negar. Mais adiante, com a consciência de seu corpo e das possibilidades comunicativas dele, torna-se tradução de sentimentos, de desejos e dessa forma o corpo vai necessitando do outro para atribuir sentido e lhe dar forma. "[...] O sujeito aparece nas práticas sociais e discursivas e aí aparecem seus gestos, sua atenção, sua memória, seus desejos, o controle da vontade". (PADILHA, 2007PADILHA, A.M.L. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção cultural do deficiente mental. Campinas: Autores Associados, 2007., p.116). Os gestos e as palavras não estão dados a priori. São de natureza social e histórica. Trata-se da conversão de um plano em outro; da apropriação do saber humano, encarnado em cada um de nós.

4 Elaboração conceitual: dos conceitos cotidianos aos conceitos científicos e o papel da escola

Mesmo estando ainda longe de uma realidade na qual todas as crianças e jovens com ou sem deficiência possam acessar e permanecer na escola, reflexões aqui apontadas podem contribuir para que esse movimento siga avançando e que se concretizem práticas pedagógicas que privilegiem o saber sistematizado, metódico e científico, desenvolvendo atividades que ultrapassem o que é próprio do cotidiano com vistas ao pensamento científico, filosófico e artístico. Os meios de produção precisam deixar de ser exclusividade da classe dominante e dos chamados normais, e precisam ser socializados. Estamos diante, então, da transformação do saber espontâneo ou cotidiano em saber escolar ou científico.

Tal transformação não se faz de modo natural nem ao acaso. Graças à tradução de Zoia Prestes (2010PRESTES, Z.R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, 2010. p.263-283. Anexo 11.)7 7 Com o objetivo de examinar as traduções de obras do pensador Lev Semionovitch Vigotski, Zoia Prestes debruçou-se sobre as traduções feitas no Brasil, procurando mostrar como certos equívocos constituem alterações e distorções de suas ideias. Para a elaboração de sua tese de doutorado, cotejou textos de edições brasileiras e estrangeiras, realizou pesquisas em fontes russas e entrevistou familiares do autor e estudiosos russos da teoria histórico-cultural, aprofundando conceitos apresentados por Vigotski. O trecho e a obra citada são tradução da autora. (VIGOTSKI, 1933 apud PRESTES, 2010). , direto do original em russo, conhecemos o conceito de instrução formulado por Vigotski (obutchenie) podemos entender melhor o papel da escola. Diz Vigotski que tais processos de instrução

Despertam na criança uma série de processos de desenvolvimento interno, despertam no sentido de que os incitam à vida, põem em movimento, dão partida a esses processos. No entanto, entre a marcha desses processos de desenvolvimento interno despertados pela obutchenie e a marcha dos processos da obutchenie escolar, entre a dinâmica de ambos, não existe paralelismo (VIGOTSKI, 2004, p.502).

Por que não existe paralelismo? O que isso significa? Voltamos ao que o autor russo afirma ser o "ensino fecundo". Aquele que, não se adaptando ao que o indivíduo já sabe; não se limitando às repetições sem sentido e mecânicas, antecede, se adianta ao desenvolvimento das funções superiores ou culturais. Na instrução - obutchenie -, com as atividades intencionais, organizadas, sistemáticas, o que é externo ao indivíduo torna-se parte de sua constituição cultural. O desenvolvimento das funções psíquicas complexas, aquelas que, nas pessoas com deficiência intelectual estão mais frágeis, menos desenvolvidas, depende inteiramente da instrução e dos caminhos alternativos organizados e acompanhados. O desenvolvimento das capacidades cognitivas que possibilitam o pensamento mais avançado e mais complexo ocorre, justamente, na aprendizagem dos conteúdos, por isso, é necessário planejar o ensino deles.

Os ensinamentos de Vigotski acerca do desenvolvimento das funções superiores têm, na Pedagogia Histórico-Crítica, a mediação possível para que a escola desempenhe seu papel de fornecer aos alunos os meios apropriados para a elaboração conceitual. Qual é a relação entre o desenvolvimento das funções complexas ou culturais, a elaboração conceitual e a educação escolar, nessa perspectiva?

Estar no mundo e dele fazer parte supõe conhecê-lo, apropriar-se dos conhecimentos nele desenvolvidos, ter consciência dessa pertença. Conhecer, na tese do materialismo histórico e dialético, é admitir que a realidade preexiste à nossa consciência e que o que captamos dessa realidade é o reflexo dela, ou seja, captamos pelos sentidos e representamos pela consciência: "[...] as sensações, as ideias, os conceitos etc. não emanam da consciência a partir dela mesma, mas da relação ativa que se institui entre sujeito e objeto, entre o homem e a natureza" - explicita Martins (2013, p.118)MARTINS, L.M.O papel da educação escolar na formação de conceitos. In: MARSIGLIA, A.C.G. (Org.). Infância e pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados, 2013.. Pelo trabalho e pela linguagem, os homens foram se produzindo como humanos e produzindo a vida social. O cérebro humano foi se aperfeiçoando, "[...] possibilitando e exigindo a atividade mediada pela consciência" (p.119).

Saviani, que inaugura a Pedagogia Histórico-Crítica, define o trabalho educativo do seguinte modo:

Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. (2003, p.13, grifo nosso).

A apropriação do que foi e está sendo desenvolvido pela humanidade está determinada pela formação de conceitos científicos - o modo como conhecemos o mundo para além das aparências e das evidências sensíveis.

Quando tratamos da deficiência intelectual, a elaboração de conceitos científicos parece-nos distante e quase impossível. Há uma tendência de reduzir os objetivos de ensino, simplificar as tarefas propostas e produzir estratégias didáticas para tanto. E isso Vigotski já havia denunciado em relação a qualquer programa pedagógico. Em Sobre a análise pedológica do processo pedagógico, palestra proferida no Instituto Epstein de Defectologia Experimental Vigotski disse:

Se a instrução utiliza apenas as funções já desenvolvidas, então, temos diante de nós um processo semelhante de instrução do escrever à máquina. Vamos esclarecer bem a diferença entre ensinar a escrever à máquina e ensinar a escrita à criança. A diferença é que, se começo a escrever à máquina, não ascendo a um estágio superior da fala escrita, apesar de poder receber uma qualificação profissional. A criança, por sua vez, adquire um saber e toda a estrutura de suas relações e da fala altera-se: de inconsciente torna-se consciente, de um mero saber transforma-se em saber para si. Somente é boa a instrução que ultrapassa o desenvolvimento da criança. [...] (VIGOTSKI, 1933 apud PRESTES, 2010PRESTES, Z.R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, 2010. p.263-283. Anexo 11., p. 283, grifo nosso).

Ultrapassar significa avançar em direção ao conhecimento mais elevado a partir dos menos elevados ou mais elementares adquiridos na vida social cotidiana. Ultrapassar, nesse sentido, é caminhar do inconsciente, espontâneo, em direção ao consciente e dirigido pela vontade. Quando as atividades escolares são organizadas com essa meta, os conceitos cotidianos, já desenvolvidos, que já fazem parte da vida dos alunos, são tomados como ponto de partida da programação pedagógica e escolar.

É o professor quem

[...] destaca, recorta informações e significados em circulação na sala de aula, direcionando a atenção das crianças para eles; induz à comparação entre informações e significados, possibilita a expressão das elaborações das palavras, organizando verbalmente seu pensamento; problematiza elaborações iniciais da criança, levando a retomá-las, a refletir sobre possibilidades não consideradas, a refletir sobre seus próprios modos de pensar (FONTANA; CRUZ, 1997FONTANA, R.A.C.; CRUZ, M. N. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997., p.112).

Os conceitos cotidianos, como ponto de partida, podem e devem ser a base da programação dos níveis mais elevados de saber até que se chegue aos conceitos científicos. E mais, há situações nas quais os próprios conceitos cotidianos ainda não estão apropriados e ainda não fazem parte da estrutura da personalidade. Bianca, quando iniciou o trabalho pedagógico, não apontava para si mesma, nem indicava, com as mãos e os dedos, algum objeto distante com a finalidade de pedi-lo ou sobre ele falar. O uso dos objetos culturais, tais como o pente, os utensílios domésticos e pessoais, não tinha o significado convencional. Aos poucos, como parte dos objetivos e, em consequência das estratégias didáticas, Bianca foi dominando seu corpo e o uso dos objetos de seu entorno e, mais tarde, lidando com eles de modo mais voluntário. Mais adiante, ainda, passou a cuidar-se e a ter noções mais claras das necessidades de vida no coletivo. Sua linguagem foi direcionando suas ações e ela aprendeu a justificar seus atos.

Já dominando os conceitos cotidianos, esses, como pontos de partida, foram se transformando em conhecimentos mais elevados e mais conscientes. Os significados das palavras, antes ligados estreitamente ao presente concreto e imediato, começaram a dirigir suas ações na ausência deles. Desenvolveu a abstração. Quanto mais dominava seu corpo e sua vontade, a atenção e a memória, mais próxima ela ficava do aprendizado das letras e dos números que passaram a fazer sentido em sua vida - cada vez mais ligada a outras pessoas de sua idade, nessa ocasião, com 18 anos.

É preciso explicitar que elaboração conceitual não é um processo natural, nem fruto da memorização de definições. Se assim acontecesse, tudo o que fosse ensinado, falado, aconselhado teria resultado imediato de aprendizagem e geraria mudanças radicais sobre a vida. A elaboração conceitual, de conceitos científicos ou morais (de valores), é produção cultural. É relativa à cultura, à história da humanidade e à história pessoal. Os conceitos são produzidos nas relações concretas de vida social, em um tempo e um espaço específicos. Ela também não se refere às coincidências entre as falas dos adultos e dos mais jovens; entre as falas de uma pessoa e outra É necessário que, além da coincidência (dos falantes de uma mesma língua que usam as mesmas palavras), sejam possíveis elaborações de significados mais estáveis no grupo social. A palavra do outro ajuda o sujeito a formar conceitos - significado das palavras, das ações, das emoções. Por último, a elaboração conceitual não é um processo individual. A participação das pessoas mais experientes, das pessoas que elaboraram/estão elaborando conceitos organiza propositadamente, explicitamente as interações para que as crianças, jovens ou adultos (os aprendizes) elaborem conceitos. O professor (ou adulto mais experiente) é o mediador da elaboração de conceitos das pessoas sob sua responsabilidade.

O desenvolvimento do conceito científico de caráter social se produz nas condições do processo de instrução, que constitui uma forma singular de cooperação sistemática do professor com a criança. [...] A singular cooperação entre a criança e o adulto é o aspecto crucial do processo de instrução, junto com os conhecimentos que lhe são transmitidos segundo um determinado sistema (VYGOTSKI, 1993VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 1993., p. 183).

O processo de desenvolvimento dos conceitos, explica Vigotski na mesma obra, supõe que uma série de funções estejam desenvolvidas e em desenvolvimento: "a atenção, a memória lógica, a abstração, a comparação, a diferenciação", sem as quais "processos psíquicos tão complexos não podem ser aprendidos e assimilados" simplisticamente (p. 185).

A teoria de Vigotski acerca da formação dos conceitos espontâneos ou cotidianos - desde a mais tenra idade, na comunicação constante com os adultos - e dos conceitos científicos - que dependem das relações sistemáticas de ensino - pode ser o pilar epistemológico e metodológico para a organização do ensino dirigido às pessoas com deficiência intelectual. O caminho dos conceitos espontâneos ou cotidianos em direção à formação dos conceitos científicos é complexo e exige que os professores estejam atentos aos seus objetivos pedagógicos, ao planejamento das atividades didáticas e aos modos de avaliar a evolução de cada um de seus alunos, bem como tenham clareza das necessidades das retomadas e dos (re)planejamentos. São os conteúdos e as estratégias - organizados de acordo com os objetivos, sempre mais avançados do que o estágio atual dos alunos - que constituem o "ensino fecundo".

5 Considerações finais: práticas pedagógicas como condição da elaboração conceitual pelas pessoas com deficiência intelectual

Do que aqui se expôs fica evidenciada uma visão prospectiva em relação à formação conceitual pelas pessoas com deficiência. As práticas pedagógicas organizadas e sistematizadas, com objetivos claramente definidos, com estratégias selecionadas e realizadas por meio do material adequado constituem as possibilidades de transformar a escola no lugar privilegiado para que os alunos, com a mediação dos professores, caminhem do conhecimento espontâneo, genérico, confuso, sincrético para o conhecimento consciente, não cotidiano.

Ao defender a escola - denominada por ele de comum - para as crianças e jovens com deficiência intelectual, Vigotski (1997) alerta que, mesmo que os alunos com deficiência precisem estudar por mais tempo; ainda que, muitas vezes, aprendam menos que outros alunos considerados normais, por suas limitações (que diferem de uns para outros), se

[...] lhes ensinam de outro modo, aplicando métodos e procedimentos especiais, adaptados às características específicas de seu estado, devem estudar o mesmo que todos os demais alunos, receber a mesma preparação para a vida futura, para que depois participem nela, em certa medida, como os demais (p.149).

Não é qualquer conteúdo, não é com qualquer estratégia que as possibilidades dos alunos são potencializadas. O desenvolvimento máximo de cada aluno exige conhecimento também máximo dos professores sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores ou culturais e sobre a formação de conceitos cotidianos e científicos.

Os ensinamentos de Vigotski e sua Escola sobre o desenvolvimento das funções especificamente humanas e o papel da educação escolar são mediados pela Pedagogia Histórico-Crítica - como teoria e a prática pedagógica - com a formação dos conceitos científicos. Para essa pedagogia, a prática social - as vivências cotidianas - é o início do processo de constituição do conhecimento. É, igualmente, seu resultado, ou seja, estar no mundo, viver as práticas sociais não pode acontecer da mesma forma, com as mesmas limitações, que antes da apropriação de conhecimentos cada vez mais amplos, mais generalizados e que superam a visão ingênua e limitada ao cotidiano aparente, sensível e imediato. Pensar sobre a realidade vivida e sentida e nela intervir voluntariamente depende do domínio teórico e prático, conseguido por meio da educação escolar. Estudos nessa direção se fazem necessários para que tenhamos a escola para/de todos.

  • 3
    Lev Semenovich Vigotski é o líder de um grupo de pesquisadores que formam a corrente da Psicologia Histórico-cultural, conhecida também como “Escola Soviética de Psicologia”, remetendo-nos ao lugar de origem, a União Soviética, e à sua perspectiva marxista. Há na literatura diversas grafias para o nome desse autor, tais como Vygotski, Vygotsky, Vigotskii; aqui, optamos pela adoção da grafia “Vigotski”, exceto em referências específicas.
  • 4
    Todas as traduções de trechos advindos das edições espanholas desse autor são de minha inteira responsabilidade.
  • 5
    Diz Marx (1996, p. 13)MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. (I - Feuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 10.ed. São Paulo: Hucitec, 1996.: “Feuerbach dissolve a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais”. (grifo no original).
  • 6
    Angel Pino Sirgado, em Marcas do Humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski, publicado em 2005 pela Editora Cortez, propôs-se a estudar a natureza do humano – que, como parte da natureza, torna-se capaz de abrir caminhos para fazer emergir a consciência. Em outras palavras, procura indícios do desenvolvimento cultural de que fala Vigotski.
  • 7
    Com o objetivo de examinar as traduções de obras do pensador Lev Semionovitch Vigotski, Zoia Prestes debruçou-se sobre as traduções feitas no Brasil, procurando mostrar como certos equívocos constituem alterações e distorções de suas ideias. Para a elaboração de sua tese de doutorado, cotejou textos de edições brasileiras e estrangeiras, realizou pesquisas em fontes russas e entrevistou familiares do autor e estudiosos russos da teoria histórico-cultural, aprofundando conceitos apresentados por Vigotski. O trecho e a obra citada são tradução da autora. (VIGOTSKI, 1933 apud PRESTES, 2010PRESTES, Z.R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, 2010. p.263-283. Anexo 11.).

Referências

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  • MARX K. O capital: crítica da economia política. v. I, t. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
  • MARX, K; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Tradução de José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. 10.ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
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  • PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.
  • PRESTES, Z.R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil, repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, 2010. p.263-283. Anexo 11.
  • VIGOTSKI, L.S. Osnovi defectologii. Onlain Biblioteka, 2006. In: PRESTES, Z.R. Quando não é quase a mesma coisa: análise de traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil - Repercussões no campo educacional. Tese (Doutorado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
  • VIGOTSKY, L.S. (1930). A transformação socialista do homem Tradução de Nilson Dória a partir da versão em inglês The socialist alteration of man para Marxists Internet Archive Disponível em: <http://marxists.anu.edu.au/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2015.
    » http://marxists.anu.edu.au/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao.htm
  • VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas Tomo II. Madrid: Visor, 1993.
  • VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas Tomo III. Madrid: Visor, 1995.
  • VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas Tomo V. Madrid: Visor , 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2016
  • Revisado
    13 Mar 2017
  • Aceito
    17 Mar 2017
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