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Princípio antrópico cosmológico

The anthropic cosmological principle

Resumos

Apresento um breve sumário das origens, aplicações e críticas do princípio antrópico. Começo com os primeiros argumentos de Robert Dicke em favor do pensamento antrópico, continuo pelas formulações de Brandon Carter e as extrapolações de John Barrow e Frank Tipler. No final analiso algumas das consequências mais importantes do princípio antrópico em cosmologia e mecânica quântica. Há ainda uma seção dedicada às possíveis refutações do princípio antrópico.

cosmologia; príncipio antrópico


I present a brief summary of the origins, applications and criticisms of the anthropic principle. I start with Robert Dicke's first arguments in favor of anthropic reasoning, continue through the formulations of Brandon Carter and the extrapolations of John Barrow and Frank Tipler. In the end I analyse some of the most important consequences of the anthropic principle in cosmology and quantum mechanics. There is also a section dedicated to possible refutations of the anthropic principle.

cosmology; anthropic principle


DESENVOLVIMENTO EM ENSINO DE FÍSICA

Princípio antrópico cosmológico

The anthropic cosmological principle

V.S. Comitti1 1 E-mail: victorsch2@gmail.com.

Departamento de Física, Instituto de Ciências Exatas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

RESUMO

Apresento um breve sumário das origens, aplicações e críticas do princípio antrópico. Começo com os primeiros argumentos de Robert Dicke em favor do pensamento antrópico, continuo pelas formulações de Brandon Carter e as extrapolações de John Barrow e Frank Tipler. No final analiso algumas das consequências mais importantes do princípio antrópico em cosmologia e mecânica quântica. Há ainda uma seção dedicada às possíveis refutações do princípio antrópico.

Palavras-chave: cosmologia, príncipio antrópico.

ABSTRACT

I present a brief summary of the origins, applications and criticisms of the anthropic principle. I start with Robert Dicke's first arguments in favor of anthropic reasoning, continue through the formulations of Brandon Carter and the extrapolations of John Barrow and Frank Tipler. In the end I analyse some of the most important consequences of the anthropic principle in cosmology and quantum mechanics. There is also a section dedicated to possible refutations of the anthropic principle.

Keywords: cosmology, anthropic principle.

1. Introdução

Por muito tempo o pensamento humano foi dominado pelo que ficou conhecido como princípio autocêntrico: a crença de que o homem ocupa uma posição central no universo. Foi Copérnico, no século XVI, quem tirou os humanos dessa posição privilegiada ao postular que a Terra não ocupa uma posição espacialmente favorável no cosmo. Uma extensão mais recente do princípio de Copérnico é o princípio cosmológico perfeito que diz que o universo deve ser homogêneo e isotrópico em grandes escalas, no espaço e no tempo. Uma consequência imediata dessa proposição é que a Terra não pode ser especial de nenhuma maneira.

O princípio antrópico (PA) apareceu como uma maneira de condensar essas duas posições extremas - o princípio autocêntrico e o princípio cosmológico - em um princípio conciliador que trata o fato da nossa existência como uma explicação válida em física.

O primeiro autor a usar um argumento baseado no PA, ainda que este ainda não houvesse sido definido como tal, foi o físico norte-americano Robert Dicke, num artigo de 1961 [1]. Dicke notou que o tempo de Hubble T - uma estimativa da idade do universo baseada no modelo padrão da cosmologia -, não poderia assumir um valor aleatório. Um limite mínimo para o valor de T seria estabelecido pelo tempo necessário para que elementos mais pesados que o hidrogênio fossem sintetizados nas estrelas. O limite máximo seria determinado pela necessidade da existência de um ambiente hospitaleiro que reunisse as condições necessárias para que o ser humano pudesse existir. Esse limite superior é definido pela idade máxima que uma estrela capaz de gerar energia por reações nucleares pode ter.

O princípio antrópico só foi definido formalmente pelo astrofísico norte-americano Brandon Carter em 1974 [2]. Carter enunciou o princípio em duas versões: a fraca e a forte. De acordo com a versão fraca, nas palavras dele, "devemos estar preparados para levar em conta o fato de que a nossa posição no universo é necessariamente privilegiada de alguma forma, de maneira a ser compatível com nossa existência como observadores". Já a versão forte, também nas palavras de Carter, diz que "O universo (e por consequência os parâmetros fundamentais do qual ele depende) deve ser tal que admita a criação de observadores dentro dele em algum estágio".

É importante notar que as duas versões do PA expressam idéias completamente diferentes. O princípio antrópico fraco apenas impõe restrições de lugares (no espaço e no tempo) onde observadores inteligentes podem existir. O princípio antrópico forte, por outro lado, coloca limites bem estabelecidos para todas as constantes fundamentais da física.

O PA pode parecer trivial ou até mesmo tautológico à primeira vista, porém ele já foi invocado várias vezes, sobretudo para explicar o ajuste fino de certas constantes. As constantes de acoplamento gravitacional e nuclear, por exemplo, se tivessem valores sensivelmente diferentes inviabilizariam a existência de vida inteligente na Terra. É importante notar que, em nenhum momento, o princípio antrópico se apresenta como uma ferramenta realmente capaz de explicar certos fenômenos. Ele é, no máximo, uma maneira interessante de se pensar sobre certas questões, enquanto ainda buscamos uma física mais fundamental da qual possamos derivar todos os fenômenos cujas causas nos são desconhecidas até o momento.

Na seção seguinte meu foco será nas extrapolações de Barrow e Tipler. Depois nas aplicações do princípio antrópico em cosmologia e mecânica quântica. No final do artigo são discutidas possíveis refutações ao PA.

2. Formulações de Barrow e Tipler

Em meados da década de 80, os cosmológos John D. Barrow e Frank J. Tipler escreveram o livro The Antropic Cosmological Principle [3] - a maior referência sobre princípio antrópico existente na literatura. No livro, os autores reformulam as definições de Carter. Na versão deles, o princípio antrópico fraco é enunciado da seguinte maneira: "os valores observados de todas as quantidades físicas e cosmológicas não são igualmente prováveis, mas possuem valores restritos pela necessidade de que existam lugares onde a vida baseada em carbono possa evoluir e pela necessidade de que o universo seja antigo o suficiente para que isso já tenha acontecido".

Ao contrário de Carter, que mencionava os observadores de maneira genérica, Barrow e Tipler impõem a restrição de que o princípio é válido apenas para seres carbonáceos, como nós. Essa definição, entretanto, não restringe de nenhuma maneira a possibilidade de existência de vida não carbonácea no universo, ela apenas "restringe as nossas observações devido à nossa natureza especial", nas palavras dos autores.

Como corolário dessa versão do princípio antrópico fraco segue que podemos tentar discernir o conjunto de propriedades do universo que são necessárias para que a nossa evolução e existência sejam possíveis. Barrow e Tipler levam essa discussão adiante seguindo o exemplo proposto por Dicke e já comentado na introdução. Em linhas gerais as conclusões a que eles chegam são basicamente as mesmas nas quais Dicke já havia chegado: a de que há um limite inferior para a idade do universo.

Uma das diferenças fundamentais entre as formulações de Barrow e Tipler e as de Carter é que os primeiros aplicam sua definição do princípio antrópico fraco para tentar explicar os valores de certas constantes fundamentais da física, como a constante de estrutura fina e a constante de gravitação de Newton. Nas formulações de Carter os valores das constantes só podem ser explicados pela versão forte.

A definição de Barrow e Tipler para o princípio antrópico forte é bastante radical. Nas palavras dos autores: "O universo deve possuir aquelas propriedades que permitem o desenvolvimento de vida dentro dele em algum estágio de sua história". Não é difícil perceber que essa definição pode conduzir a uma série de argumentos teleológicos, que afirmam que o universo foi projetado deliberadamente com o objetivo de abrigar vida em algum momento de sua existência.

Esse ponto de vista foi defendido por alguns cientistas, entre eles o conhecido astrofísico e cosmólogo britânico Fred Hoyle. Ele chegou a afirmar que qualquer cientista que examinasse as evidências chegaria à conclusão de que as leis da física nuclear foram concebidas de maneira intencional [5].

Esse tipo de afirmação pode não encontrar respaldo na ciência já que muitos podem considerá-la religiosa em essência. Entretanto, com o auxílio da mecânica quântica, o princípio antrópico forte de Barrow e Tipler pode ter implicações não teleológicas. John Archibald Wheeler, importante físico teórico norte-americano cunhou aquele que ficou conhecido como princípio antrópico participatório: "um conjunto de outros universos diferentes é necessário para a existência do nosso universo".

Essa proposição de Wheeler pode ser tomada como uma consequência da Interpretação de Vários Mundos (IVM) em mecânica quântica. De acordo com a IVM o mundo com o qual temos contato diretamente é apenas um entre muitos outros possíveis. Um mundo é definido como "a totalidade de objetos (macroscópicos) num estado definido e descrito classicamente" [4]. De acordo com essa interpretação da mecânica quântica o nosso mundo teria sido selecionado dentre todos os outros por algum tipo de processo de otimização. Como veremos adiante, essa interpretação é compatível com a hipótese cosmológica de múltiplos universos.

Barrow e Tipler propõem ainda, como um exercício mental, que consideremos, por um instante, que a sua versão do princípio antrópico forte é verdadeira e que, portanto, vida inteligente deve necessariamente emergir no universo em algum momento de sua existência. No entanto, se essas formas de vida que surgiram, desaparecerem antes que possam deixar qualquer marca visível no universo em grande escala, fica difícil entender porquê afinal o surgimento de vida no universo era um imperativo. Barrow e Tipler sugerem, então, que o princípio antrópico forte seja generalizado na forma do que eles chamam de princípio antrópico final: "O processamento de informação inteligente deve emergir no universo, e, uma vez que ele tenha emergido, nunca desaparecerá".

É importante atentar sempre para o fato de que essas versões do princípio antrópico, sobretudo as versões forte e final, são altamente especulativas e não representam princípios físicos bem estabelecidos.

3. Princípio antrópico e cosmologia

O paradigma atual da cosmologia é o modelo do Big Bang Quente, ou Estrondão. O modelo do Estrondão possui três pilares fundamentais: a lei do desvio para o vermelho de Hubble, a radiação de fundo de microondas, e a nucleossíntese primordial.

O desvio para o vermelho da luz proveniente de galáxias distantes é considerado a primeira evidência observacional do Modelo Padrão. Ele foi descoberto por Edwin Hubble na década de 20 e, desde então, tem sido interpretado por grande parte da comunidade científica como efeito Doppler decorrente de um universo em expansão. Ao contrário do que costuma se pensar, o universo em expansão não é um fato científico consolidado. Existem outras interpretações possíveis para o desvio para o vermelho, como as hipóteses de luz cansada. Porém, se aceitamos a expansão do universo, temos como corolário dessa interpretação que, se revertermos o sentido da expansão, eventualmente chegaremos a um estado de densidade infinita - uma singularidade-, onde nossa física não funciona mais. De acordo com o Modelo Padrão essa singularidade teria acontecido há aproximadamente 14 bilhões de anos e, o que se seguiu a ela, foi a explosão primordial.

A radiação de fundo de microondas seria, de acordo com a teoria do Estrondão, um resquício da radiação emitida na explosão primordial. Ela foi proposta pela primeira vez em 1948 por Ralph Alpher e Robert Herman [6], e foi descoberta, por acaso, por Arno Penzias e Robert Wilson em 1965. Mais recentemente, novas medidas foram feitas pelos satélites COBE e WMAP confirmando que a Radiação de Fundo tem um espectro de corpo negro que pode se ajustar perfeitamente aos modelos teóricos.

O terceiro pilar da cosmologia padrão é a nucleossíntese primordial - teoria que pretende explicar a abundância de elementos observada no universo. A Nucleossíntese foi desenvolvida por mais de um grupo, sendo os principais o de Fred Hoyle e o de George Gamow. A teoria prevê que o universo deve conter 75% de sua massa na forma e Hidrogênio e pouco menos de 25% na forma de Hélio-4. Os dados observacionais mais confiáveis parecem confirmar esses números.

Uma das aplicações do princípio antrópico na cosmologia padrão já foi mencionada no início desse artigo: a idade do universo. Existem várias outras aplicações. A seguir examinaremos apenas algumas das principais: as condições iniciais do universo e a formação dos elementos leves.

3.1. A Nucleossíntese primordial

De acordo com a teoria da Nucleossíntese, prótons e nêutrons começaram a se fundir para formar os primeiros núcleos aproximadamente três minutos depois do Estrondão, quando a temperatura da radiação havia caído o suficientemente para que eles não fossem destruídos imediatamente pelos fótons altamente energéticos do meio.

No Universo primordial, reações nucleares só eram possíveis numa faixa estreita de temperaturas entre 108 K e 1010 K. A idade correspondente para o universo, de acordo com o Modelo Padrão, se localizava entre 0,04 s e 500 s. O que torna essa estreita faixa de tempo especial é meia vida do Nêutron, que é de aproximadamente 615 s. Se a formação dos núcleos demorasse um pouco mais a ocorrer, a fração de Nêutrons no universo cairia rapidamente e o universo ficaria preenchido por incontáveis prótons, elétrons e neutrinos.

Outra coincidência mais fundamental diz respeito às massas de prótons e nêutrons. A diferença entre as duas massas é de apenas 0,883 MeV. Se essa diferença fosse ligeiramente modificada o decaimento beta, no qual nêutrons são convertidos em prótons com emissão de um elétron e um anti-neutrino, não aconteceria. Isso levaria a um mundo hostil para vida uma vez que grandes estruturas, como planetas e estrelas, não poderiam surgir.

3.2. Condições iniciais

O problema da planaridade foi formulado pela primeira vez por Robert Dicke ainda na década de 60 e, até hoje, permanece como uma questão em aberto para os proponentes do Modelo Padrão.

Na cosmologia do Estrondão existe um conjunto de equações que governam a expansão do espaço no contexto da teoria da relatividade geral de Einstein: as equações de Friedmann. Essas equações admitem soluções abertas, nas quais o universo se expande indefinidamente, soluções fechadas, nas quais a expansão eventualmente cessa e o universo colapsa, e uma solução crítica, que se situa no limiar entre as soluções abertas e fechadas. O parâmetro de densidade Ω, definido como a razão entre densidade de matéria observada e a densidade de matéria que levaria ao modelo crítico, determina em qual das três soluções o nosso universo está. Se Ω for maior do que um o universo será fechado, se for menor o universo será aberto e no caso de Ω = 1 teremos um universo crtico ou plano.

As observações atuais sugerem que está muito próximo de um. Nosso universo seria, então, plano em grandes escalas. A questão fundamental que emerge aqui é: por que no início do universo a densidade de matéria assumiu um valor tão especial?

Existem duas soluções antrópicas possíveis para esse problema. A primeira invoca o princípio antrópico forte e foi proposta por Stephen Hawking. De acordo com Hawking poderia haver infinitos universos, cada um com um determinado conjunto de condições iniciais. Nesse caso haveria uma espécie de seleção natural de universos - apenas aqueles cujos parâmetros de densidade se localizassem dentro de uma pequena faixa favorável ao surgimento de galáxias e estrelas poderiam abrigar vida. De acordo com essa hipótese, o fato de observarmos Ω = 1 seria um reflexo de nossa própria existência [7].

A abordagem antrópica alternativa para o problema da planaridade invoca o princípio antrópico fraco. Neste caso devemos supor que o universo é infinitamente grande, mas não isotrópico. Isso significa que podem existir grandes áreas no universo nas quais o parâmetro Ω se aproxima de um. Cada uma dessas subáreas se comportaria como um universo independente, e todas elas poderiam abrigar vida inteligente.

Existe ainda uma terceira explicação proposta pelo teórico norte-americano Alan Guth. Guth propôs que o universo teria sofrido uma expansão exponencial em seus primeiros instantes de existência. A consequência desse mecanismo é que durante um pequeno intervalo de tempo o universo teria dobrado de tamanho a cada 10-37 segundos.

Uma maneira de visualizar de que maneira a inflação soluciona o problema da planaridade é pensando em um balão. Quando inflamos um balão, sua superfície vai se tornando cada vez mais plana de modo que, em dado momento, sua curvatura fica praticamente imperceptível localmente. Se aplicarmos a inflação ao modelo de Friedmann vemos que não importa qual o valor de Omega se considere inicialmente, ele sempre se aproximará, localmente, de um com grande precisão ao final da inflação

4. Princípio antrópico e mecânica quântica

A mecânica quântica sempre foi motivo de controvérsias, não por seus resultados, que são amparados por experimentos e nunca foram seriamente questionados, mas pela realidade que descreve. Afinal o que significa a função de onda? Essa discussão começou ainda no início do século XX e permanece uma questão em aberto. Tal dificuldade abriu uma brecha para o surgimento de todo tipo de interpretação, nenhuma delas plenamente satisfatória até o momento.

A interpretação mais conhecida da mecânica quântica foi formulada por Niels Bohr e Heisenberg e ficou conhecida como interpretação de Copenhagen. Essa interpretação era compatível com uma descrição completamente probabilística e, portanto, não determinística da natureza. A interpretação de Copenhagen nega a existência real de uma função de onda, considerando-a apenas uma abstração matemática que serve para analisar certos sistemas físicos de maneira satisfatória. Ainda de acordo com essa interpretação, o ato de medir faz com que a função de onda colapse em um valor definido pelo próprio experimento. O papel do observador (que, como exposto, pode ser apenas um aparato experimental) na mecânica quântica (MQ) é um dos pilares fundamentais da interpretação de Copenhagen.

O não determinismo do mundo quântico incomodou muitos cientistas. Entre eles Einstein que chegou a dizer que "Deus não joga dados". Para contornar isso Bohm propôs uma interpretação baseada na teoria de variáveis ocultas. Ele esperava que essas variáveis ocultas fornecessem expressões bem definidas para a evolução temporal de um sistema e, dessa forma, trouxesse o determinismo de volta à física. Afinal de contas o princípio da incerteza deveria ser apenas uma limitação técnica, não poderia representar a realidade subjacente. Essa interpretação contornaria certos paradoxos - o mais conhecido deles sendo o paradoxo do gato de Schroedinger.

Schroedinger propôs o paradoxo do gato como um experimento mental no qual pretendia ilustrar a incompletude da MQ. O experimento consistia em colocar numa caixa selada um gato, um frasco de gás venenoso e um elemento radioativo, este último o responsável por disparar o mecanismo que liberaria o veneno. O objetivo de Schroedinger era transformar a superposição de estados quânticos num átomo em uma superposição macroscópica utilizando um gato acoplado a um átomo por algum "mecanismo diabólico", como ele mesmo chama. No cenário proposto pelo cientista, a vida (ou morte) do gato depende do estado no qual o elemento radioativo se encontra. Como o estado do elemento radioativo é, na verdade, uma superposição de estados, a conclusão inescapável é a de que, até que a caixa selada seja aberta, o gato estaria vivo e morto simultaneamente. O ato de abrir a caixa faria o gato colapsar para um dos dois estados possíveis - vivo ou morto -, como prevê a Interpretação de Copenhagen. O objetivo de Schroedinger com esse exercício mental era ilustrar como a matemática envolvida na MQ era bizarra.

Entretanto a teoria de variáveis ocultas sofreu um forte golpe quando o físico John S. Bell demonstrou um teorema que leva seu nome provando que a MQ é incompatível com qualquer teoria de variáveis ocultas locais.

Embora a interpretação de Copenhagen tenha sido mais aceita, com o tempo ficou claro que nenhuma das duas (interpretação de Bohm e de Copenhagen) era plenamente satisfatória. Existem várias novas abordagens que incorporam certos elementos de ambas as interpretações além de propor outros. Uma dessas interpretações é a de Vários Mundos.

A interpretação e Vários Mundos (IVM) foi proposta por Hugh Everett em 1957 [8]. Ao contrário da Interpretação de Copenhagen, a IVM nega o colapso da função de onda, o que significa que, de acordo com a interpretação de Everett, as propriedades de um sistema são independentes do observador. Isso classifica a IVM como uma interpretação realista da mecânica quântica.

A IVM é desenvolvida a partir de dois pressupostos fundamentais [9]:

1) Existe uma função de onda universal real e que não depende do observador.

2) A função de onda obedece à equação de Schroedinger todo o tempo e não colapsa.

O restante da teoria é dedutível desde que se aceite a validade das duas premissas acima. A principal consequência da IVM é que, cada medida causaria uma decomposição da função de onda universal em inúmeros ramos não interagentes. Cada ramo é denominado mundo ou história.

A IVM pode ser combinada com o princípio antrópico e o modelo padrão da cosmologia para explicar porque certos parâmetros da natureza parecem estar ajustados para que vida inteligente apareça em algum momento.

Nos primeiros momentos do Estrondão, a função de onda universal ainda não havia se dividido em ramos não interagentes. Os mundos separados só teriam surgido depois. Alguns, ou muitos, desses muitos poderiam ter constantes e leis físicas semelhantes às do nosso mundo. O nosso mundo teria, obviamente, todas as constantes e leis físicas que conhecemos.

De acordo com a IVM o nosso mundo seria apenas um de vários possíveis. Nesse contexto, a existência de um universo que parece especialmente desenhado para a vida deixa de ser algo surpreendente para se tornar algo esperado.

5. Críticas ao princípio antrópico

5.1. Carl Sagan

Carl Sagan foi um eminente astrônomo norte americano, que deixou como grande legado um vasto acervo de obras de divulgação científica. Em seu ensaio A Idade da Exploração [10], Sagan discorre brevemente sobre o princípio antrópico, que segundo ele, deveria chamar-se princípio antropogênico.

Neste artigo o astrônomo afirma que a versão fraca do princípio antrópico é verdadeira, embora não seja nada extraordinária. Sagan concentra a discussão em torno do princípio antrópico forte, que considera perigosamente próximo dos antigos argumentos antropocêntricos que davam aos seres humanos o status de objetivo final da existência do universo.

Sagan aponta que o PA não é compatível com a investigação experimental. Ele argumenta que muitas das leis da natureza e das constantes físicas necessárias para a existência dos seres humanos são as mesmas necessárias para a existência de rochas. O astrônomo propõe então a criação do princípio lítico, de acordo com o qual o universo existe da maneira que o vemos para que as rochas pudessem existir. Sagan finaliza ainda afirmando que, se as rochas pudessem filosofar, nunca ouviríamos falar em princípio antrópico, "o expoente da filosofia das rochas seria o princípio lítico".

Já no ensaio Afastando-nos de Copérnico: Um Emburrecimento Moderno [11] Sagan ataca o problema do princípio antrópico de uma maneira diferente. O autor afirma que em grande parte dos chamados argumentos antrópicos há uma falta de imaginação latente. Para ilustrar seu raciocínio ele usa o exemplo das anãs vermelhas.

Os defensores do princípio antrópico afirmam que se a constante gravitacional fosse um fator de 10 menor teríamos apenas anãs vermelhas no universo. As anãs vermelhas queimam seu combustível muito devagar e, por isso, não são capazes de fornecer a energia necessária para que um planeta possa abrigar vida; a não ser que esse planeta esteja muito próximo da estrela, tal qual Mercúrio e o Sol. Mas, neste caso, o planeta ficaria sempre com a mesma face virada para a estrela. Nessa situação uma face do planeta seria quente demais para abrigar vida e a outra seria fria demais.

Sagan refuta esse argumento dizendo que planetas com atmosfera podem redistribuir o calor por toda a sua superfície. Ele ainda lembra que, mesmo em planetas distantes de qualquer fonte de calor, pode haver efeito estufa, como na Terra. Como exemplo cita Netuno, que, em certas regiões, tem temperaturas semelhantes às da Terra.

Na opinião de Sagan o princípio antrópico forte implica na existência de um criador - Deus. Ele propõe então uma questão interessante: se Deus criou o universo para que o homem surgisse, o que aconteceria então se os seres humanos se autodestruírem? Se a versão forte do princípio antrópico for verdadeira, então só há duas respostas possíveis para esse dilema:

1) O Deus que criou o universo não é onisciente e onipotente.

2) Os seres humanos não vão se autodestruir.

5.2. O princípio Aleph

Outra alternativa ao princípio antrópico foi proposta por Domingos Soares - o princípio Aleph [12]. Soares parte da premissa de que o universo é uma coleção de mundos, mas não trata esses mundos na perspectiva tradicional de multiverso. Cada elemento da coleção pertence ao mesmo universo e tem sua própria cosmologia. Assume-se, a priori, que cada vetor mundo é potencialmente adequado para o surgimento de vida, inteligente ou não.

Para cada mundo X haveria um princípio do mundo de vida-X. Esse princípio diz que o mundo X é como é por causa das restrições impostas pelas características das formas de vida desse mundo X. É uma definição semelhante à do princípio antrópico de Carter.

Essa nova formulação resgataria várias das previsões do princípio antrópico de Carter com exceção das implicações cosmológicas. A razão pela qual as implicações cosmológicas não são válidas é que uma teoria cosmológica deveria ser aplicada a toda coleção de mundos e não a um elemento do universo apenas.

Poderíamos aplicar o princípio de mundo com vida-X, hipoteticamente, ao caso dos planetas gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno no sistema solar). Carl Sagan e Edwin Salpeter propuseram que, nesses planetas, organismos vivos poderiam surgir na forma de mergulhadores e flutuadores. Supondo que esses seres estranhos de fato existam e sejam abundantes em, por exemplo, Júpiter torna-se possível a formulação do princípio do mundo de vida-J. Usando esse princípio seria possível deduzir várias propriedades do planeta da mesma forma que se usa o princípio antrópico para deduzir o valor de certas constantes necessárias para a existência de seres humanos.

O princípio Cosmológico Aleph é uma generalização do princípio de mundo com vida-X. Predições sobre a formação, evolução e estrutura do universo seriam feitas com base nele. É importante notar que o princípio de mundo com vida-X permanece válido mesmo na ausência de vida inteligente. Isso significa que a existência de seres humanos não é de forma alguma um imperativo. Não é difícil perceber que essa conclusão nos conduz, inexoravelmente, ao princípio de Copérnico.

6. Conclusões

Vimos que o princípio antrópico, nas versões forte e fraco, nos moldes propostos por Brandon Carter, foi utilizado extensivamente nas últimas décadas para prever, na maior parte das vezes, os valores de determinadas constantes físicas.

As definições de Carter foram ampliadas, por diversos autores, sobretudo Barrow e Tipler. A maioria dessas novas definições são ainda mais controversas que o princípio antrópico original e envolvem elucubrações filosóficas sobre as quais a ciência tradicional nada pode nos dizer. Essas extrapolações do princípio antrópico e o princípio em si atraíram muitos críticos. Esses críticos apontam que há uma boa dose de arrogância implícita na visão de mundo que o PA propõe. Sagan chega a afirmar, ironicamente, que é curioso perceber que seres feitos de água líquida considerem a água líquida uma condição essencial para a existência de vida.

A maioria dos autores, entretanto, concorda que o princípio antrópico, a despeito de suas implicações filosóficas e científicas interessantes, não pode ser tratado como uma explicação completa para nenhum fenômeno. Ele foi criado, e é usado, como um artifício para cobrir as lacunas do nosso conhecimento. Isso é o mais próximo que se pode chegar de um consenso.

Agradecimentos

Esse artigo é o resultado de um estudo orientado de graduação. Agradeço ao meu orientador, Domingos S.L. Soares, pelas valiosas discussões e pelas incontáveis correções em técnica e estilo.

Recebido em 15/10/2009; Aceito em 25/0/2010; Publicado em 28/3/2011

  • [1] R.H. Dicke, Nature 192, 440 (1961).
  • [2] B. Carter, in: Confrontation of Cosmological Theories with Observational Data, IAU Symposium No. 63, Krakow, edited by M.S. Longair (D. Reidel Publishing, Dordrecht, 1973).
  • [3] J.D. Barrow, and F.J. Tipler, The Anthropic Cosmological Principle (Oxford Univ. Press, Oxford, 1986).
  • [4] http://plato.stanford.edu/entries/qm-manyworlds/
    » link
  • [5] F. Hoyle, Religion and the Scientists (SCM, Londres, 1959).
  • [6] R. Alpher and R. Herman, Nature 162, 774 (1948).
  • [7] C.B. Collins and S. Hawking, Astrophysical Journal 180, 317 (1973).
  • [8] H. Everett, Reviews of Modern Physics 29, 454 (1957).
  • [9] http://www.anthropic-principle.com/preprints/manyworlds.html
    » link
  • [10] C. Sagan, O Universo de Carl Sagan (Gradiva, Aveiro, 1997).
  • [11] C. Sagan, Variedades da Experiência Científica (Companhia das Letras, São Paulo, 2006).
  • [12] D.S.L. Soares, arxiv.org/abs/physics/0409003 (2004).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      15 Out 2009
    • Aceito
      2010
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br