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Projeto de uma mesa giratória para simulação de escoamentos geofísicos

(Design of a rotating table for simulating geophysical flows)

Resumos

Neste artigo descreve-se o projeto e a construção de uma mesa giratória para realização de experimentos em laboratório sobre a dinâmica de escoamentos geofísicos. Estes experimentos simulam, em condições controladas, a dinâmica de processos atmosféricos e oceânicos nos quais os efeitos da rotação da Terra, via o aparecimento das acelerações de Coriolis, são importantes. A mesa giratória faz parte do Grupo de Estudos de Processos Oceânicos, do laboratório de oceanografia física da COPPE/UFRJ. Os componentes para montagem estão disponíveis comercialmente no mercado brasileiro e com custo acessível para instituições de ensino e pesquisa. As principais características da mesa giratória são listadas e sua aplicação é ilustrada a partir de um experimento clássico desenvolvido com o equipamento.

Palavras-chave:
mesa giratória; dinâmica de escoamentos geofísicos; aceleração de Coriolis; coluna de Taylor


This article describes the project and the construction of a rotating table to perform laboratory experiments of geophysical fluid dynamics. These experiments simulate under controlled conditions the dynamics of atmospheric and oceanic processes in which the Earth rotation, via the Coriolis accelerations, plays an important role. The rotating table is part of the Ocean Processes Group, the physical oceanography lab at COPPE/UFRJ. It was built using basic low cost components available at the Brazilian market, easily affordable to universities and research institutes. The main characteristics of the rotating table and its supporting materials are listed, and a classical experiment is described illustrating its application.

Keywords:
rotating table; geophysical fluid dynamics; Coriolis accelerations; Taylor column


1. Introdução

A circulação oceânica é geralmente complexa, envolvendo processos mecânicos e termodinâmicos, geometrias, batimetrias e forçantes variadas e diferentes escalas espaciais e temporais. Seu entendimento é importante do ponto de vista científico, ambiental e prático e seu estudo tem se intensificado nos últimos anos no Brasil. A crescente demanda por conhecimento sobre os oceanos, estimulada pela necessidade do uso sustentável dos recursos marinhos, pela pressão antropogênica associada em grande parte à exploração offshore de óleo e gás e pela preocupação com as mudanças climáticas em escala global, tem estimulado a criação de diversos cursos em instituições de nível superior, tanto de graduação como de pós-graduação, em todo o país.

O estudo dos processos que ocorrem no oceano, e também na atmosfera, em grandes escalas espaciais e longas escalas de tempo, ou mais propriamente, processos nos quais o número de Rossby do escoamento é menor ou muito menor que a unidade, é conhecido como o estudo da dinâmica de escoamentos geofísicos. São processos nos quais a rotação da terra, ou o efeito de Coriolis referente a utilização das leis da mecânica em referencial não-inercial, é importante ou mesmo dominante. São muitas vezes ainda, no oceano e na atmosfera, processos significativamente afetados pela estratificação vertical do fluido. Fazem parte destes estudos fenômenos como o bombeamento de Ekman [1[1] V.W. Ekman, Ark. Mat. Astr. Fysik. 11 , 1 (1905).,2[2] T.K. Chereskin and J.F. Price, Ency. Oce. Scie. 1 , 809 (2001).], a formação de massas d’água [3[3] M.S. McCartney, J. Mar. Res. 40 , 427 (1982).5[5] A.M. Paiva and E. Chassignet, J. Phys. Ocean. 32 , 2666 (2002).], a circulação oceânica superficial [6[6] H.U. Sverdrup, Proc. Nat. Acad. Scie. 1 , 318 (1947).,7[7] H.M. Stommel, Trans. Amer. Geo. Uni. 29 , 202 (1948).] e profunda [8[8] H.M. Stommel and A.B. Arons, Deep-Sea Res. 6 , 217 (1960).], ondas de Rossby [9[9] C.G. Rossby and A.B. Arons, J. Mar. Res. 2 , 38 (1939).,10[10] P.S. Polito and W.T. Liu, J. Geo. Res. 108 , 18 (2003).] e de plataforma continental [11[11] P. Kundu, J.S. Allen and R.L. Smith, J. Phys. Ocean. 5 , 683 (1975).,12[12] B.M. Castro and T.N. Lee, J. Geo. Res. 100 , 16045 (1995).], a formação de correntes de contorno oeste [7[7] H.M. Stommel, Trans. Amer. Geo. Uni. 29 , 202 (1948).,13[13] J.G. Charney, Proc. Nat. Acad. Scie. 41 , 731 (1955).,14[14] I.C.A. Silveira, A.C.K. Schmidt, E.J.D. Campos, S.S. Godoi and Y. Ikeda, Rev. Bras. Ocean. 48 , 171 (2000).], como a Corrente do Brasil, seu meandramento e formação de vórtices por instabilidades barotrópica e baroclínica [15[15] I.C.A. Silveira, J.A.M. Lima, A.C.K. Schmidt, W. Ceccopieri, A. Sartori, C.P.F. Francisco and R.F.C. Fontes, Dyn. Atm. Ocean. 45 , 187 (2008).17[17] A.M. Fernandes, I.C.A. Silveira, L. Calado, E.J.D. Campos and A.M Paiva, Ocean Mod. 29 , 155 (2009).], entre outros.2 2 São fornecidas apenas algumas referências básicas de cada processo, entre tantas outras possíveis, procurando juntar quando possível uma referência original ou seminal com uma referência mais atual aplicada à realidade brasileira.

O estudo e o ensino, em nível de graduação e de pós-graduação, da dinâmica de escoamentos geofísicos associados às áreas de Oceanografia Física e/ou Meteorologia envolvem um conhecimento teórico físico-matemático, respaldado por modelos analíticos e numéricos e por observações de campo. No caso de seu ensino, a complexidade dos processos físicos envolvidos, principalmente dos fenômenos influenciados pela rotação da Terra, dificulta muitas vezes para os alunos a visualização e mesmo a compreensão dos fenômenos e de seus efeitos. Diversas instituições ao redor do mundo abordam este problema a partir da utilização de modelos físicos elaborados em laboratórios, com equipamentos diretamente projetados para suporte à pesquisa e ao ensino. O projeto destes equipamentos exige um grande rigor e detalhamento técnico de forma a permitir a simulação em laboratório de condições reais. A importação e compra de um equipamento para simular escoamentos sob efeitos da rotação da Terra em laboratório, já montado e com suporte técnico, seria um caminho possível, porém com valores elevados [18[18] A.S. Instruments, http://rses.anu.edu/au/gfd/Gfd\_other\_pages/rotating\_table/, (March, 2013).
http://rses.anu.edu/au/gfd/Gfd\_other\_p...
]. O projeto deste tipo de equipamento, por outro lado, requer tanto conhecimentos na área de dinâmica de escoamentos geofísicos, permitindo o delineamento das especificações técnicas, como o conhecimento técnico de engenharia para dimensionamento do projeto final envolvendo motores e estrutura necessários.

Neste artigo, como alternativa à importação, descreve-se a concepção, planejamento e construção de uma mesa giratória para simulação de fenômenos influenciados pela rotação da Terra, desenvolvido pelo Grupo de Estudos de Processos Oceânicos, o laboratório de oceanografia física do Programa de Engenharia Oceânica da COPPE/UFRJ. Este equipamento é utilizado como suporte às atividades de ensino na instituição em níveis de graduação e pós-graduação. A mesa giratória foi projetada e construída com peças e motores comercialmente disponíveis e custo acessível para instituições de ensino e pesquisa brasileiras. Esta é uma iniciativa pioneira no Brasil.

2. Dinâmica de escoamentos geofísicos - Um pouco da teoria

Em oceanografia e meteorologia, o termo “escoamentos geofísicos” se refere aos escoamentos em fluidos (água ou ar) nos quais a rotação da Terra deve ser considerada em sua dinâmica. No caso das equações governantes do escoamento, este efeito aparece através das acelerações de Coriolis, que surgem ao considerarmos um referencial em rotação, não-inercial.

A derivação da equação de conservação de quantidade de movimento, ou segunda lei de Newton aplicada a fluidos, é apresentada em diversos textos básicos e o leitor poderá encontrá-la por exemplo, nas Refs. [19[19] G.K. Batchelor, An Introduction to Fluid Dynamics (Cambridge University Press, Cambridge, 2000), 3rd. ed.22[22] R.G. Dean and R.A. Dalrymple, Water Wave Mechanics for Engineers & Scientists (World Scientific Publishing Company, Singapore, 1991), 6th ed.], dentre outras. Em sua forma vetorial, a equação para referencial inercial pode ser escrita como

(1)ut+(u)u=pρ+g+F.
Os termos do lado esquerdo da equação representam as acelerações do fluido: o primeiro termo é a aceleração local e o segundo termo a aceleração advectiva (associada às variações espaciais de velocidade). Os termos do lado direito da equação representam o somatório das forças por unidade de massa sobre um volume infinitesimal de fluido (um volume de controle): o primeiro termo representa as forças devidas aos gradientes de pressão, o segundo termo a força peso e o terceiro termo as tensões viscosas. Segundo a notação adotada, denota derivada parcial, é o operador nabla, u o vetor velocidade, t o tempo, p a pressão, ρ a densidade do fluido3 3 A denominação de ρ como sendo a densidade segue o seu uso corrente na literatura de oceanografia e meteorologia. Na literatura de mecânica dos fluidos em português, porém, ρ é referenciado como massa específica, com unidade de kgm-3. e g a aceleração da gravidade. No caso de fluido invíscido (F=0) a equação é conhecida como equação de Euler, e no caso em que as tensões são parametrizadas em função do tensor de pequenas deformações, a equação é conhecida como equação de Navier-Stokes, em homenagem aos dois pesquisadores que derivaram de forma independente a expressão para F em fluidos newtonianos.

Em referencial não-inercial, em rotação, a Eq. (1) passa a ser escrita como [19[19] G.K. Batchelor, An Introduction to Fluid Dynamics (Cambridge University Press, Cambridge, 2000), 3rd. ed.21[21] H. Lamb, Hydrodynamics (Dover Publications, New York, 1945), 6th ed.]

(2)ut+(u)u+2Ω×u=pρ+(gΩ×Ω×r)+F,

onde Ω é o vetor velocidade angular do sistema em rotação e r o vetor posição. O termo Ω×Ω×r representa a força centrífuga por unidade de massa devido a rotação. Em escoamentos geofísicos esta força é geralmente desprezada ou incorporada ao termo de gravidade. Neste caso g seria a gravidade efetiva, com direção perpendicular a superfície equipotencial local: o geóide, no caso da terra, ou a superfície livre no exemplo comum em livros básicos de física de um líquido contido em um balde em rotação em torno de seu eixo [23[23] A.K.T. Assis, Mecânica Relacional (Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência/Unicamp, Campinas, 1998), 2nd ed.].

O termo 2Ω×u, menos intuitivo do que o anterior porém de fundamental importância em escoamentos geofísicos, é a aceleração de Coriolis, nomeada em homenagem ao matemático francês que primeiro derivou sua expressão formal [24[24] G.G. Coriolis, J. l’Ec. Roy. Polytech. 24 , 144 (1835).]. Para o leitor interessado, um interessante histórico de sua derivação é apresentado pela Ref. [25[25] A. Persson, Hist. Meteor. 2 , 1 (2005).] e uma interpretação geral sobre seus efeitos pode ser encontrada na Ref. [26[26] A. Persson, Bull. Americ. Meteor. Soc. 79 , 1373 (1998).]. De uma forma bastante simplificada, seu efeito pode ser inicialmente compreendido considerando-se um escoamento horizontal em um sistema em rotação em torno do eixo vertical: como o produto vetorial indica (a conhecida “regra da mão direita”), Ω×u resulta em uma componente de aceleração perpendicular ao vetor velocidade, que deflete, portanto, o movimento para a esquerda ou direita dependendo do sinal de Ω. No caso da Terra, escoamentos no hemisfério norte são defletidos para a direita do movimento, enquanto escoamentos no hemisfério sul são defletidos para a esquerda do movimento.

A importância do termo de Coriolis em um determinado escoamento pode ser avaliada a partir de uma análise de escalas dos termos de aceleração, considerando-se Ω como o valor da velocidade angular de rotação do sistema, U como uma escala característica das velocidades do fluido, L uma escala espacial e T = L/U uma escala temporal características do escoamento. Neste caso,

ut(u)uU2L,
e
2Ω×u2ΩU,

e o parâmetro adimensional

Ro=U2ΩL,

pode ser obtido comparando-se as duas expressões, sendo conhecido como número de Rossby. Sua denominação é uma homenagem ao meteorologista sueco que fez grandes contribuições para o entendimento da dinâmica de escoamentos geofísicos, introduzindo o conceito de vorticidade potencial e estudando ondas planetárias que levam também o seu nome e são fundamentais, por exemplo, no entendimento e na previsão das condições de tempo na atmosfera [27[27] C.G. Rossby, Pap. Phys. Ocean. Meteor. 5 , 1 (1936).30[30] C.G. Rossby, Quar. J. Roy. Meteor. Soc. 66 , 69 (1940).].

Para escoamentos nos quais Ro~1 ou Ro1, o termo de Coriolis é importante ou dominante, respectivamente, em relação às acelerações do fluido. Em regiões de frentes oceânicas ou atmosféricas, em grandes sistemas de correntes superficiais ou profundas e de ventos, em diferentes latitudes, e em ciclones atmosféricos ou oceânicos, as escalas espaciais caraterísticas são de L~105m (mesoescala) ou L~106m (larga4 4 A expressão “larga escala” é uma tradução possivelmente inapropriada da expressão em inglês large scale, melhor traduzida por grande escala, e foi mantida no texto devido à sua utilização generalizada na literatura oceanográfica e meteorológica brasileira. escala), e Ro é em geral menor que a unidade.

O número de Rossby é, portanto, o principal parâmetro que permite a redução em escalas apropriadas do fenômeno real para o laboratório. Neste caso, U e L são escalas típicas dos fenômenos gerados em laboratório e Ω a velocidade angular de rotação da mesa, que pode ser convertida em rotações por minuto (rpm). O número de Rossby, assim como outros parâmetros adimensionais que podem ser derivados das equações para analisar a relação entre Coriolis e os demais termos das equações, é utilizado para recriar em laboratório fenômenos com condições dinamicamente análogas às encontradas em escoamentos geofísicos.

3. O projeto da mesa giratória - Aspectos práticos

Em linhas gerais, a mesa giratória é composta por um motor que permite colocar em rotação um tampo horizontal, sobre o qual são colocados tanques com diferentes volumes e formatos e preenchidos com água. A rotação deve ser tal que, em função das demais escalas associadas ao escoamento gerado nos tanques de água, o número de Rossby do experimento seja da mesma ordem do observado na natureza. Diversos acessórios, relacionados à eliminação de vibrações, a geração de determinados escoamentos ou a visualização dos experimentos, entre outros, podem ainda fazer parte do equipamento.

A mesa giratória foi concebida e construída a partir de peças e equipamentos disponíveis no mercado brasileiro. A primeira etapa após o início do projeto foi a escolha da especificação técnica do motor a ser comprado. O equipamento deveria ter potência e torque suficientes para, acoplado ao eixo motriz, girar um sistema com cerca de 150 kg (tanque com água). Após pesquisa no mercado especializado, foi escolhido um motor comercial elétrico com 0,15 kW de potência, fabricado para operar com rotação máxima de 1800 rpm. Para atingir a rotação desejada para os experimentos - entre 0 e 30 rpm (garantindo Ro adequado para os escoamentos simulados) - foi acoplado ao motor um redutor 1/60 e um conversor de frequências. O eixo motriz é constituído por uma barra de seção transversal circular de 70 mm de diâmetro, apoiado por mancal de escora e rolamento de esferas.

A transmissão motor-eixo foi projetada e desenvolvida para um sistema de polias e correias. Este tipo de transmissão diminui efeitos de vibração do motor no eixo principal, que seriam prejudiciais aos experimentos. O motor e os equipamentos que compõem o eixo motriz foram apoiados sobre uma placa de madeira de 60 mm de espessura e sustentados por cantoneiras metálicas em L. Para garantir mobilidade ao equipamento, foram colocadas rodas plásticas para transporte e pés de borracha ajustáveis para possibilitar um nivelamento com um nível de bolha. A parte superior da estrutura foi construída com uma placa de madeira para apoiar um flange de alumínio de 300 mm de diâmetro, mancal de escora e rolamento de esferas. Sobre o flange foram colocados 4 pinos metálicos para encaixe do tampo de madeira da mesa, que apoia os tanques acrílicos. O tampo circular, de compensado naval, tem diâmetro de 1 m e foi envernizado para impermeabilização. Um esquema geral de visão da mesa, suas principais dimensões e componentes, é apresentado na Fig. 1.

Figura 1
Esquema geral da mesa giratória com as principais dimensões do equipamento (em cm). Em A, visão superior da cuba acrílica de seção transversal circular. Em B, visão lateral das partes superior e inferior da mesa giratória: cuba acrílica de seção tranversal circular (a), pés ajustáveis (b), rodinhas para movimentação e transporte (c), eixo motriz (d), transmissão por polias e correias (e) e motor elétrico (f). Em C, detalhe da visão lateral da parte superior da mesa com o braço metálico acoplado: câmera sem fio (g) e braço metálico com ajuste de altura para sustentação da câmera.

O controle do motor é realizado a partir de conexão de rede entre o motorredutor e um computador portátil, a partir de um software fornecido pela fabricante e que permite o controle dos principais parâmetros como velocidade, aceleração e desaceleração. O controle digital da rotação do motor permite a programação e a realização de mudanças suaves na velocidade de rotação e evita alterações bruscas de velocidade que poderiam gerar turbulência na coluna d’água.

Outro aspecto importante do projeto da mesa é a possibilidade de visualização dos experimentos em diferentes referenciais. Desta forma, um braço metálico fixado ao tampo de madeira sustenta uma câmera digital com transmissão sem fio, que gira junto com a mesa. As imagens capturadas pelas câmeras são enviadas em tempo real para um computador, permitindo o acompanhamento do experimento segundo a visão de um observador em referencial não-inercial, análogo à forma na qual observamos os fenômenos na natureza (Fig. 1). Utiliza-se ainda uma outra câmera externa à mesa a fim de acompanhar os experimentos em um referencial inercial. As imagens capturadas pelas câmeras são enviadas em tempo real para um computador, o que permite tanto a transmissão ao vivo - por exemplo, durante uma aula prática - como a gravação para demonstrações, estudos e posterior divulgação. Uma imagem da mesa com seus diferentes componentes é apresentada na Fig. 2.

Figura 2
Visão geral da mesa giratória. Na parte inferior, estrutura de sustentação do motor. Na parte superior, tampo de madeira sustentando um tanque acrílico de seção transversal circular e um braço de madeira de fixação de câmera sem fio.

Entre os assessórios mais importantes destacam-se tanques com diferentes formatos (com seções transversais circulares, retangulares ou quadradas e com diferentes volumes) e com a possibilidades de acoplamento de um fundo móvel, que simula variações de profundidade do fluido. Mais do que representar o relevo marinho, porém, esta característica permite, com base na conservação de vorticidade potencial (conservação de momento angular), simular em laboratório o efeito da variação latitudinal do efeito de Coriolis (conhecido como efeito β). Para simular a ação do vento sobre a superfície do oceano e o bombeamento de Ekman, a mesa dispõe de pequenos ventiladores, adaptando coolers para computadores acoplados às laterais do tanque cilíndrico e alimentados por baterias de 12 V.

4. Experimento com a mesa giratória: Coluna de Taylor

A mesa giratória permite a simulação de diversos fenômenos importantes que ocorrem no oceano e na atmosfera. Um dos exemplos mais clássicos é o efeito conhecido como Colunas de Taylor, presente em escoamentos geostróficos. Este efeito, baseado no teorema Taylor-Proudman [31[31] J. Proudman, Proc. Roy. Soc. Lond. 93 , 408 (1916).,32[32] G.I. Taylor, Proc. Roy. Soc. Lond. 93 , 92 (1917).], estabelece que em um fluido homogêneo submetido à rotação, no qual a aceleração de Coriolis seja dominante (Ro1), o fluxo será o mesmo em todos os níveis da coluna d’água. Esta rigidez vertical é um dos efeitos marcantes que a rotação da Terra imprime a escoamentos naturais no oceano e na atmosfera. O fenômeno é apresentado primeiramente do ponto de vista teórico, sendo posteriormente discutida sua simulação em laboratório. Para a sua derivação a partir das equações governantes, é assumido um referencial cartesiano, usualmente empregado em estudos no oceano e na atmosfera nos casos em que a rotação é considerada constante. Neste caso, u=ui+vj+wk, onde u, v e w são as componentes de velocidade das direções x (zonal), y (meridional) e z (vertical), definidas pelos vetores unitários i, j, k. Os termos de Coriolis na equação em z ou que envolvem velocidades verticais (w) são usualmente desprezados por serem de menor magnitude que os demais [33[33] S. Pond and G.L. Pickard Introductory Dynamical Oceanography (Butterworth-Heinemann, Oxford, 1983), 2nd ed.], e a aceleração de Coriolis é aproximada por

2Ω×ufk×u,

onde f=2Ωsenθ é o parâmetro de Coriolis e θ é a latitude local. Para Ro1 as acelerações local e advectiva podem ser desprezadas em relação a aceleração de Coriolis. Se o fluido for invíscido, ou se os efeitos devidos às tensões forem limitados a uma camada limite de espessura restrita em relação as dimensões do escoamento, as componentes horizontais da Eq. (2) se resumem a

(3)fv=1ρPx,
(4)fu=1ρPy,

definindo um escoamento geostrófico. Esta formulação das equações de movimento, embora extremamente simplificada, captura uma parcela essencial da dinâmica associada aos principais movimentos no oceano e na atmosfera em meso ou larga escalas. Uma inspeção simples das equações mostra que o movimento horizontal do fluido se dá perpendicularmente à força de gradiente de pressão (uHP, sendo uH a componente horizontal do vetor velocidade), ou paralelo à isóbaras (linhas de mesma pressão). Neste caso, as escalas verticais típicas do escoamento são sempre muito menores que as escalas horizontais, resultando em acelerações verticais desprezíveis em relação à aceleração da gravidade e em um balanço hidrostático da Eq. (2) na dimensão vertical [33[33] S. Pond and G.L. Pickard Introductory Dynamical Oceanography (Butterworth-Heinemann, Oxford, 1983), 2nd ed.]

(5)Pz=ρg.

A Eq. 5 representa simplesmente que a força peso é contrabalançada pelo gradiente vertical de pressão, ou como muitas vezes referido em textos básicos, que a pressão em uma determinada profundidade é devida ao peso da coluna de fluido.

Considerando-se ainda que o fluido é incompressível, o que representa uma boa aproximação tanto para a água e como para o ar em condições naturais [33[33] S. Pond and G.L. Pickard Introductory Dynamical Oceanography (Butterworth-Heinemann, Oxford, 1983), 2nd ed.,34[34] J.R. Holton An Introduction to Dynamic Meteorology (Academic Press, Oxford, 2004), 4th ed.], a menos de fenômenos que envolvam movimentos verticais de amplitude muito grande, a lei de conservação de massa se resume a

(6)ux+vy+wz=0.

conhecida como equação de continuidade.

Considerando-se o sistema de Eqs. (3), (4), (5) e (6), o teorema de Taylor-Proudman pode ser facilmente demonstrado. Derivando-se as Eqs. (3) e (4) em z, aplicando-se a Eq. (5) e considerando-se que a densidade é constante, obtém-se que uz=0 e vz=0. Derivando-se as Eqs. (3) e (4) em y e x, respectivamente, e somando-se as duas, obtém-se que ux+vy=0. Aplicando-se a Eq. (6), chega-se a wz=0, demonstrando-se portanto que o vetor velocidade (e cada uma de suas componentes u, v, e w) não apresenta variações na vertical. A interpretação deste resultado é que o escoamento, tanto sua velocidade como sua direção, será igual em qualquer profundidade do fluido. Simples como este resultado possa parecer, suas consequências são bastante contraintuitivas e desafiam nossa percepção e entendimento do fenômeno quando partimos da teoria para a observação ou a prática do laboratório.

Na mesa giratória, pode-se demonstrar este comportamento em um tanque cilíndrico preenchido com água com um pequeno obstáculo junto ao fundo, cuja altura equivale a aproximadamente 1/4 da altura da coluna de água. O sistema é submetido a rotação de 10 rpm até atingir equilíbrio e se comportar como um corpo rígido. Pequenos objetos flutuantes (pedaços de papel são suficientes) colocados na superfície do fluido e observados pela imagem da câmera acoplada à mesa indicam, ao cessarem seu movimento, quando a rotação de corpo rígido é atingida. Diminui-se então a rotação lentamente (preferencialmente programando-se uma “rampa” suave no computador, para minimizar perturbações no fluido) para cerca de 9,5 rpm de maneira que o fluido adquira uma velocidade relativa ao fundo do tanque e ao objeto cilíndrico (neste caso uma velocidade relativa de cerca de 0,5 cm s-1). Convertendo-se rpm para rads-1 e considerando-se o raio do tanque como a escala espacial (L), obtém-se Ro~102, atendendo-se assim os requisitos para a aplicação da teoria exposta.

O fluido em movimento relativo ao tanque é, naturalmente, obrigado a contornar o obstáculo nos níveis mais profundos e, de acordo com a teoria, deverá reproduzir este comportamento mesmo em níveis superficiais. Ou seja, o fluido, em níveis acima do obstáculo, contorna uma coluna invisível - a coluna de Taylor, como se o obstáculo preenchesse toda a coluna d’água. Este comportamento é claramente observado com auxílio de um corante despejado na superfície do fluido, à montante do escoamento. Ao se aproximar da posição do objeto colocado no fundo do tanque, o corante desvia também em superfície e contorna um obstáculo imaginário (Fig. 3), geralmente para surpresa dos alunos, mesmo após terem sido apresentados à teoria. Pequenos grãos de permanganato de potássio, se adicionados em superfície geram um rastro de cor em toda a coluna d’água ao afundarem, permitindo que o comportamento descrito acima seja observado em toda a coluna d’água.

Figura 3
Experimento da coluna de Taylor. Em (a), esquema da circulação em torno e acima do objeto colocado no fundo do tanque, ilustrando o surgimento de um obstáculo imaginário em toda a coluna d’água (região sombreada na figura). Em (b),(c) e (d), sequência de imagens em diferentes instantes durante a realização do experimento, mostrando a evolução da mancha superficial de corante (azul) que contorna o obstáculo imaginário.

5. Considerações finais

A mesa giratória descrita neste artigo vem sendo utilizada há cerca de dois anos, em cursos da COPPE/UFRJ que abordam assuntos relacionados à dinâmica de escoamentos geofísicos, com bastante sucesso. Os efeitos visuais de alguns experimentos e a obtenção de resultados muitas vezes contra-intuitivos geralmente despertam um interesse maior em assuntos que, para muitos, podem parecer áridos quando restritos à sala de aula ou a demonstrações matemáticas. Mesmo aqueles alunos que apenas assistem às demonstrações realizadas em laboratório com a mesa parecem adquirir uma confiança maior no arcabouço físico-matemático discutido nas aulas. Para aqueles que, por outro lado, se envolvem diretamente na concepção e realização dos experimentos, a mesa giratória representa uma oportunidade única tanto para a consolidação de conceitos básicos como para a associação entre teoria e realidade de uma forma que, enquanto lúdica, permite e favorece o desenvolvimento do método científico de abordar um problema.

O experimento apresentado neste artigo apenas ilustra uma das muitas simulações de fenômenos naturais que podem ser realizadas com a mesa giratória. É possível recriar em laboratório, por exemplo, situações com densidade variável (representando a formação de frentes e condições baroclínicas tão comuns no oceano e na atmosfera); simular a formação de camadas limite sob efeito da rotação, ou camada de Ekman, tanto no fundo quanto na superfície representando (com o auxílio de pequenos ventiladores acoplados aos tanques) o efeito dos ventos na geração de correntes oceânicas; a circulação de águas profundas nos oceanos, tão importante para o clima terrestre; a geração e propagação de ondas de vorticidade (acoplando-se ao tanque um fundo móvel que simula em laboratório a variação do parâmetro de Coriolis com a latitude), entre outros.

A mesa giratória foi dimensionada e construída utilizando-se somente produtos e equipamentos disponíveis comercialmente no mercado brasileiro. O custo total para construção da mesa, incluindo despesas de mão-de-obra e assessórios, como câmeras, notebook e serviços de terceiros, foi de cerca de 20 mil reais. A mesa descrita neste trabalho, até quanto sabemos, foi a primeira do gênero projetada e construída na Brasil, tornando-se uma alternativa à importação de equipamento similar, com um custo acessível para instituições de ensino e pesquisa no país. Enquanto alguns experimentos são de fácil realização, outros requerem preparação e execução criteriosa e minuciosa. Atualmente estão sendo criados protocolos para a realização de diversos experimentos, para que possam ser facilmente reproduzidos, assim como um banco de imagens e vídeos para divulgação e distribuição para suporte ao ensino.

  • 2
    São fornecidas apenas algumas referências básicas de cada processo, entre tantas outras possíveis, procurando juntar quando possível uma referência original ou seminal com uma referência mais atual aplicada à realidade brasileira.
  • 3
    A denominação de ρ como sendo a densidade segue o seu uso corrente na literatura de oceanografia e meteorologia. Na literatura de mecânica dos fluidos em português, porém, ρ é referenciado como massa específica, com unidade de kgm-3.
  • 4
    A expressão “larga escala” é uma tradução possivelmente inapropriada da expressão em inglês large scale, melhor traduzida por grande escala, e foi mantida no texto devido à sua utilização generalizada na literatura oceanográfica e meteorológica brasileira.

Agradecimentos

A mesa giratória foi construída a partir de recursos concedidos pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), por meio do edital Auxílio-Pesquisa (APQ1). Os autores agradecem ao Dr. Fábio Nascimento do Laboratório de Instrumentação Oceanográfica (LIOc) e ao Prof. Luiz Vaz do Laboratório de Ensaios Dinâmicos e Análise de Vibração (LEDAV) da COPPE/UFRJ, e em especial ao técnico Jorge Vileti pela fundamental colaboração na construção da mesa.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2015
  • Aceito
    28 Abr 2015
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