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À procura do trabalho perdido

In search of lost work

Resumos

As contribuições de William Thomson ao estabelecimento das categorias da termodinâmica são analisadas.

efeito mecânico; dissipação de energia; irreversibilidade; entropia; função de Carnot


William Thomson's contributions to the making of the categories of thermodynamics are analyzed.

mechanical effect; dissipation of energy; irreversibility; entropy; Carnot's function


SEÇÃO ESPECIAL: CENTENÁRIO DA MORTE DE WILLIAM THOMSON (1824-1907)

À procura do trabalho perdido

In search of lost work

Penha Maria Cardoso Dias1 1 E-mail: penha@if.ufrj.br.

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

As contribuições de William Thomson ao estabelecimento das categorias da termodinâmica são analisadas.

Palavras-chave: efeito mecânico, dissipação de energia, irreversibilidade, entropia, função de Carnot.

ABSTRACT

William Thomson's contributions to the making of the categories of thermodynamics are analyzed.

Keywords: mechanical effect, dissipation of energy, irreversibility, entropy, Carnot's function.

Outra vez te revejo, cidade de minha infância pavorosamente perdida ...

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui ...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar?

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

[...]

Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim —

Um bocado de ti e de mim!...

Álvaro de Campos, Lisbon Revisited (1926)

1. Desponta o pensador

1. Por volta de 1847, a então existente teoria do calor carecia de medidas confiáveis de calor específico, calor latente, etc., medidas essas que estavam sendo refeitas no laboratório de V. Regnault. Uma das dificuldades era a inexistência de um bom termômetro e o jovem doutor William Thomson, que estagiava no laboratório, dedicava-se a esse problema.

Thomson leu um artigo de Emile Clapeyron - Puissance motrice de la chaleur - publicado em 1834, no Journal de l'Ecole Polytechnique e, em 1843, no Annalen der Physik. Nesse artigo, Clapeyron apresenta um resumo de uma teoria proposta, em 1824, por Nicolas Léonard Sadi Carnot, no livro Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres a développer cette puissance. Thomson entendeu que a solução de seu problema estava na teoria de Carnot e procurou o livro em Paris; não achou, naquela ocasião, mas os frutos já estavam ali.

2. Em seu livro, Carnot enuncia o princípio - Princípio de Carnot - segundo o qual o funcionamento de máquinas térmicas consiste no transporte de calor (calórico) de uma fonte quente para uma fonte fria. Usando o princípio, Carnot demonstra o teorema (Teorema de Carnot): A "potência motriz" independe da substância de trabalho.

Clapeyron deu à teoria um tratamento matemático, formal, ausente do livro de Carnot;2 2 O Réflexions foi lido por um amigo de Sadi, na sessão de 14 de Junho de 1824 da Académie des Sciences de Paris, à qual estava presente a crème de la crème da ciência francesa contemporânea - Arago, Fourier, Laplace, Ampère, Gay-Lussac, Poinsot, Fresnel, Legendre, Poisson, Cauchy, Dulong, Navier e Riche de Prony. Apesar da importância científica dos ouvintes, o livro caiu em ouvidos moucos e não teve impacto imediato. Uma opinião é que o livro de Carnot não era dirigido ao público científico, mas a um público geral, de construtores e usuários de máquinas térmicas; por exemplo, o tratamento não foi formal; desse modo, o livro não sensibilizou as sumidades presentes. A opinião que me apetece, apresentada por alguns historiadores, é: O livro de Carnot foi escrito no contexto da teoria do calórico; em 1824, a teoria, senão morta, agonizava em coma profundo e nem o próprio Carnot acreditava nela, como mostram notas em seu caderno de rascunho; sua teoria dependia de muitos resultados obtidos com o calórico e o desespero era compreensível. introduziu gráficos p × V;3 3 Clapeyron trabalhou com máquinas térmicas, na Rússia, e lá teria conhecido um engenheiro de James Watt. O grupo de Watt havia desenvolvido um dispositivo - chamado indicador de Watt - que, atrelado à máquina, tracava o gráfico p × V. De modo muito esquemático, a idéia do dispositivo é a seguinte: O papel onde o gráfico vai ser desenhado movimenta-se com o êmbolo da máquina (variando, pois, V); um lápis movimenta-se sobre o papel, movido por uma mola que se comprime de acordo com a pressão (variando, pois, p); uma descrição mais detalhada pode ser encontrada no livro de James Clerk Maxwell ([1]). O dispositivo era um segredo industrial de Watt, desenvolvido para provar que a máquina de Watt era melhor do que a de seu oponente, em meio a uma das inúmeras ações judiciais sofridas por Watt. matematizou o Princípio de Carnot: eficiência = , onde C - chamada função de Carnot - é uma função desconhecida da temperatura, somente, e independe da substância de trabalho.

3. Em seqüência, Thomson publicou dois artigos que traçaram o destino da teoria do calor:4 4 Thomson foi prolífico e deu muitas contribuições importantes à física e à ciência. Os artigos mencionados neste artigo referem-se a um contexto bem definido.

(I) 1849: On an absolute thermometric scale founded on Carnot's theory of the motive power of heat, and calculated from Regnault's observations (Philosophical Magazine). Esse artigo é mais bem entendido como um "teorema de existência": Thomson usa a teoria de Carnot para demonstrar (teoricamente) a existência de uma temperatura absoluta.

(II) 1849: An account of Carnot's theory of the motive power of heat; with numerical results deduced from Regnault's experiments on steam (Transactions of the Royal Society of Edinburgh 16, 571-574). Nesse artigo, Thomson apresenta um resumo da teoria de Carnot, com os acréscimos de Clapeyron.

Thomson descobre uma contradição entre a teoria de Carnot e os experimentos de conversão de energia, realizados por James Prescott Joule ([2]): Segundo Carnot, todo o calórico retirado da fonte quente é jogado na fonte fria, portanto não pode ser transformado em trabalho, como quer Joule; Rudolf Julius Emmanuel Clausius (1850) resolve o problema de Thomson e concilia o Princípio de Carnot com o Princípio de Joule ([2], [3]).

2. A resposta de Clausius a Thomson

Minha leitura das idéias de Carnot foi discutida nas Refs. [2] e [4] e a correção de Clausius, nas Refs. [2] e [3]; o que se segue é um resumo, sem as justificativas, dos resultados desses artigos.

A máquina térmica envolve duas substâncias: A substância de trabalho (gás perfeito) e o reservatório de calor. A substância de trabalho recebe da fonte quente um calor (Q), expande, empurrando um êmbolo, logo realizando trabalho. Para funcionar de novo, a máquina tem de ser capaz de retornar às condições iniciais - capacidade de recuperar as condições iniciais ou recuperabilidade.

O Princípio de Joule diz que a máquina transforma em trabalho (W) parte (QW) do calor recebido (Q); a expressão do princípio, segundo Clausius, é: W = fator de conversão de unidades × QW. Ora, o conteúdo de calor da substância (U), inicialmente existente, foi acrescido de Q, portanto, após realizar trabalho, para a substância poder voltar às condições iniciais, ela tem de se desfazer de Qt = Q - QW;5 5 A expressão conteúdo de calor da substância para designar U é de Clausius. - daí a necessidade da fonte fria; o Princípio de Carnot, corrigido por Clausius, diz que tem de existir um transporte de calor da fonte quente para a fria, igual a Qt. Para demonstrar o Teorema de Carnot, Clausius "tira do bolso" o seguinte princípio ([2,3]):

[...] [Calor] mostra uma tendência de equalizar diferenças de temperatura e, portanto, de passar de corpos mais quentes para [corpos] mais frios.

O Princípio de Joule estabelece a conservação do conteúdo de calor da substância: dU = 0, em um ciclo completo; partindo diretamente de W = fator de conversãode unidades × QW , Q = QW + Qt, Clausius mostra que dU = dW + dQ (o cálculo de Clausius é mostrado na Ref. [2]).

Clausius entendeu que o Princípio de Carnot também é uma lei de conservação [3]: Estabelece a conservação do conteúdo de calor da fonte quente; revertendo a máquina térmica, deve(ria) ser possível devolver a quantidade Qt à fonte quente. Carnot também o entendeu como conservação [4], mas, para ele, era do calórico (Q) retirado da fonte quente, pois, sendo uma substância, calórico não pode desaparecer; seu princípio seria (se o tivesse matematizado) dQ = 0.

Explorando a idéia de conservação [2, 3], Clausius foi capaz de obter, em 1854, a expressão å = 0 para um ciclo completo , reversível; definindo S por DS = , a lei de conservação, no caso contínuo, é dS = 0. Clausius ainda provou que, em processos irreversíveis , S > ò; não existe "conservação" de S e nem uma expressão para dS, tal como .6 6 A demonstração de Clausius é apresentada no belíssimo livro de Enrico Fermi [5].

Em 1865, Clausius cunhou a expressão entropia para designar S, vocábulo que lembra transformação ( - 'tropé' - em Grego) e energia e enunciou duas leis: (1) A energia do universo é constante; (2) a entropia do universo tende para um máximo.

3. O trabalho que deveria ter sido produzido

1. As dificuldades de Thomson, expressas em 1849, foram expostas em uma famosa nota de pé de página. Mas essa nota tem outra pergunta:

Quando "agente térmico" é, assim, gasto em conduzir calor através de um sólido, o que acontece com o efeito mecânico que deveria ter sido produzido? Nada pode ser perdido nas operações da natureza - nenhuma energia pode ser destruída. Que efeito, então, é produzido no lugar do efeito mecânico que é perdido?

Após o artigo de Clausius, Thomson publica mais dois artigos, que mostram o pensador profundo:

(III) 1851: On the dynamical theory of heat, with numerical results deduced from Mr. Joule's equivalent of a thermal unit, and M. Regnault's observations on steam (Transactions of the Royal Society of Edinburgh 20, 261-268, 289-298). Nesse artigo, Thomson resume a teoria do calor, com as modificações de Clausius. Nele, Thomson enuncia a segunda lei de um modo que, segundo ele, havia formulado antes do artigo de Clausius:7 7 A eqüivalência entre os enunciados de Clausius e de Thomson é demonstrada na Ref. [5].

É impossível, por meio de agente material inanimado, derivar trabalho mecânico de qualquer parte da matéria, esfriando-a abaixo da temperatura do objeto mais frio, nas redondezas.

(IV) 1852: On a universal tendency in nature to the dissipation of mechanical energy (Philosophical Magazine, [série 4], 4, 304-306).

Thomson propõe-se procurar o "trabalho-que-deveria-ter-sido-feito-mas-não-foi" (On the dynamical theory):8 8 O trabalho, de fato, não é "perdido no mundo material", mas se integra ao conteúdo de calor ou energia interna ( U).

A dificuldade que pesou, principalmente para mim, ao não aceitar a teoria defendida por Mr. Joule, de modo tão habilidoso, era que o efeito mecânico, estabelecido na teoria de Carnot como sendo absolutamente perdido por condução, não era levado em conta na teoria dinâmica, a não ser pela afirmativa de que de que não é perdido; e não é sabido se é disponível à humanidade. O fato é, eu acredito que pode ser demonstrado que trabalho é perdido para a humanidade irrecuperavelmente; mas não perdido no mundo material.

2. Em 1849, Thomson matematiza a segunda lei, a la Clapeyron. Seja: v, volume; t, temperatura em graus centígrados; p, pressão; , pressão média; aproximando o ciclo infinitesimal por um quadrilátero:9 9 Para o cálculo do valor médio, notar que = p inicial ; os sinais são, respectivamente, para expansão e contração.

Expansão isotérmica: v ® v + dv; p ® p(1 - ); = p(1 - )

Expansão adiabática: v + dv ® v + dv + dv; p(1 - ) ® p(1 - ) – dp; = p(1 - ) -

Compressão isotérmica: v + dv + dv ® v + dv; p(1 - ) - dp ® p - dp; = p(1 - ) - dp

Compressão adiabática: v + dv ® v; p - dp ® p; = p - .

O trabalho médio é dado por trabalho médio = pressão média × variação de volume:

Thomson demonstra que vdp - pdv = dt.10 10 Apesar disso ser trivial, por derivacão de pv = T, Thomson raciocina diferentemente. No processo isobárico a p 0 ( v 0 ® v 1; t 0 ® t + dt): . Na expansão isotérmica a t + dt ( v 1 ® v; p 0 ® p): pv = p 0 v 1. Logo: pv = p 0 v 0 (1 + ). Na compressão isotérmica a t (( p - d p)( v + dv) = p 0 v 0 . Subtraindo: vd p - pd v + d pd v » vd p - pd v = p 0 v 0 . Então, dt º dq dt º m dq dt. Thomson chama m º de função de Carnot (µ é o inverso da definição de Clapeyron, acima) e dq é o calor disponível.

3. Em 1851, Thomson deriva expressões para a primeira e segunda leis.

Primeira lei. Uma substância a um volume v, pressão p e temperatura t expande a pressão constante até v + dv e t + dt; para isso, recebe um calor dv + dt º M dv + N dt ou energia mecânica J(M dv + N dt);11 11 Thomson, como Clausius, não tinha a notacão ¶. o trabalho produzido é: pdv. Então, pdv - J(M dv + N dt) = (p - J M)dv - J N dt é "a medida mecânica do efeito externo total" (parece ser o "conteúdo de calor" da massa, nas condições finais, daí ser uma diferencial total). Conservação implica: ou = J.

Segunda Lei. O trabalho realizado pela máquina é: dp dv = dt dv. Então, lembrando que o calor recebido na expansão isotérmica é M dv: independe da substância. Thomson define: µ = .

Na máquina térmica, J dq = qµ dt, onde q é o calor absorvido da fonte e dq é a quantidade transformada em trabalho. Integrando entre as temperaturas das duas fontes: ln µ dt Þ Qt = .

4. Em 1852, Thomson propõe "chamar atenção para a conseqüência marcante que se segue da proposição de Carnot"; a "conseqüência marcante" é o conceito de dissipação de energia. Em uma feliz síntese da idéia de Thomson, Peter Michael Harmann [6] argumenta que, para Thomson:

[...] as duas leis da [T]ermodinâmica expressam [respectivamente] a indestrutibilidade e a dissipação da energia. As duas leis são compatíveis, porque energia dissipada não é destruída, meramente irrecuperável.

Argumentei nas Refs. [2], [3] que o sucesso de Clausius em derivar a expressão dS = se deveu ao fato de ele ter levado às últimas conseqüências a idéia de recuperabilidade das condições iniciais como uma "lei de conservação". É uma pena que Thomson tivesse escrito o artigo sobre dissipação dois anos antes do artigo de Clausius (de 1854). Thomson não notou que o Princípio de Carnot, sendo um princípio sobre recuperabilidade (ou não-dissipação), requer uma lei de conservação própria [7]. Para Thomson, o Princípio de Carnot tornou-se uma prescrição para o cálculo da quantidade de calor transferido para a fonte fria, dada uma quantidade de calor inicial [7]; é importante notar, no artigo de Thomson, traduzido neste número da RBEF12 12 Página 491 , que ele usa, no caso de processos irreversíveis, a mesma expressão do efeito mecânico em processos reversíveis. É provável que sua ênfase no conceito de dissipação tenha-se originado em sua preocupação com o "trabalho-que-deveria-ter-sido-produzido-mas-não-foi": Transformação mútua entre calor (Q), trabalho (W) e energia interna (U) garante indestrutibilidade da energia, mas não recuperabilidade ou não-dissipação do calor retirado da fonte quente. Thomson centrou sua teoria em indestrutibilidade e dissipação (como quer Harmann), como se fossem dois conceitos sobre energia.

4. Dissipação 23 anos depois

1. A teoria do calórico originou-se em um movimento de unificação das "forças" da natureza [6]: Combustão era devida a um fluido, o flogístico, corrente elétrica é um "fluido" por si, logo nada mais natural do que pensar em calor como fluido. Um de seus proponentes foi Joseph Black, no século XVIII; a teoria introduziu conceitos tais como quantidade de calor , calor específico , calor latente , calor sensível , equilíbrio térmico e explicava a dilatação pelo calor; teve sucesso ao estabelecer categorias com as quais o fenômeno do calor tinha de ser pensado. Existe uma opinião que a teoria acabou, não em um confronto direto com a idéia de que calor é movimento molecular; o calórico teria sido destruído por uma analogia de calor com luz, claramente expressa pelo próprio Carnot:

Presentemente, luz é, geralmente, entendida como o resultado de um movimento vibratório do fluido etéreo. Luz produz calor ou, ao menos, acompanha o calor radiante e se move com a mesma velocidade do calor. Calor radiante é, portanto, um movimento vibratório. Seria ridículo supor que é uma emissão de matéria, enquanto a luz que o acompanha só poderia ser um movimento.

Poderia um movimento (o do calor radiante) produzir matéria (calórico)? Sem dúvida, não; [movimento] só pode produzir um movimento. Calor é, então, o resultado de um movimento.

2. Mesmo sem a idéia de átomo, que ele não aceitava, René Descartes, no século XVII, em seu Principes de la Philosophie, concebeu o calor como um (estranho) movimento especial de partes pequenas da matéria. No século XVIII, Daniel Bernoulli, em Hydrodynamica sive de vivibus et motibus fluidorum commentarii concebe um modelo para um gás, no qual as partículas do gás se movem e colidem e demonstra que p µ . Deve-se mencionar John Herapath (1816), J.J. Waterston (1843) e Krönig, que, em 1856, publicou um artigo, propondo um modelo cinético para gases, que atraiu a atenção de Clausius.

Em 1857, Clausius publica um artigo ao qual deu o feliz nome de A natureza do movimento a que chamamos calor; nele, apresenta os princípios fundamentais de uma teoria cinética e demonstra a lei pV µ T, onde T µ número de moléculas × energia cinética (média) da molécula; esse artigo sofreu a seguinte crítica: O modelo cinético não pode estar correto, pois, se estiver, ao se abrir um frasco de perfume, em um canto de uma sala, as moléculas logo se propagariam para o canto oposto; no entanto, instantes decorrem, antes que o cheiro se propague. Em resposta, Clausius publicou um artigo em 1858; nele, Clausius inventa o conceito de livre percurso médio e introduz o formalismo da teoria cinética dos gases.

3. O movimento das moléculas em um gás é, nas palavras de Clausius, irregular; as moléculas movem-se uniformemente em linha reta, até que se choquem (colisão elástica) com outra(s) molécula(s), desviando-se; o movimento é de zig-zag e as moléculas não necessariamente dirigem-se diretamente ao outro canto da sala. Clausius demonstra que deve existir um percurso médio entre duas colisões (l), de tal modo que uma fração exponencialmente pequena do número de moléculas (N), , move-se uma distância x > l sem se chocar. A colisão molecular, no artigo de Clausius, é tratado como um evento puramente estatístico; pode-se argumentar: As moléculas chocam-se, porque suas trajetórias estão em rota de colisão, nada tem de estatístico, a trajetória depende das leis mecânicas da colisão. Mas o estrago já está feito!

James Clerk Maxwell levou Clausius a sério. Ele entendeu que, se o modelo de Clausius estiver certo, o livre percurso médio fornece informação sobre dimensões moleculares, mesmo antes que se tenha provado a existência de moléculas e átomos. Ele procede, então, ao que chamou de "exercício matemático" (1860); nesse "exercício", Maxwell desenvolve uma teoria estatística de colisões moleculares e calcula o coeficiente de viscosidade como dependente de l. Diferentemente de Clausius, que considerou, em seus cálculos, as moléculas com celeridade uniforme v (na média, diz ele), Maxwell [5] entendeu que, devido ao choque, as velocidades (módulo e direção) deveriam mudar, até que atingissem uma distribuição, no caso N exp(-)/Z [8].

Maxwell introduz, nesse artigo, uma proposição estatística. Duas esferas (iguais) colidem, se o centro de uma cai em um círculo centrado na outra, considerada em repouso, com raio igual ao diâmetro das esferas (esfera de colisão). Maxwell mostra que, se o parâmetro de impacto é uniformemente distribuído no semi círculo da esfera de colisão, a esfera que se move é espalhada, com igual probabilidade, para qualquer direção do espaço.

Em 1862, Clausius usa essa proposição para explicar irregularidade [8]. Alguém criticou seu artigo de 1858, dizendo que o livre percurso médio não poderia dar conta da difusão de energia, embora desse conta da difusão da matéria; continua a crítica, se as moléculas estivessem alinhadas, distanciadas de l, e, se a primeira sofresse um piparote e colidisse com a segunda, o resultado seria um deslocamento l da fila, propagando movimento (energia) somente nessa direção. Clausius responde que o movimento é irregular e o movimento alinhado é "não-irregular"; ele invoca a proposição de Maxwell - a distribuição uniforme do parâmetro de impacto define irregularidade [8].

4. Antes mesmo de 1870, não havia duvida da natureza estatística do "movimento a que chamamos calor". Vinte e três anos após ter enunciado o conceito de dissipação, Thomson publica:

(V) 1874: Kinetic theory of the dissipation of energy (Nature, 9, 441-444).

Thomson mostra como a condução de calor pode ser revertida. Suponha um recipiente de gás, onde as metades inferior e superior estejam a diferentes temperaturas; Thomson conjura um exército de Demônios de Maxwell,

[...] um ser inteligente, provido de livre arbítrio, com organização tátil e perceptiva suficientemente finas para lhe dar a faculdade de observar e influenciar moléculas individuais de matéria.

A cada Demônio é alocada uma região, na interface, onde ele age. Como primeira tarefa, os Demônios devem impedir que moléculas cruzem a linha divisória, em sua região; não haverá condução. De modo contrário, seja uma nova tarefa: Cada Demônio deixa passar 100 moléculas arbitrariamente escolhidas, da região A para a B; e um pouco mais de moléculas, de B para A, com menos energia entre elas do que as 100 anteriores, mas mesmo momentum; repetindo a operação, conclui Thomson, o resultado será uma grande condensação de moléculas e baixa temperatura em A, enquanto, em B, haverá rarefação e alta temperatura. Em 1874, a descrição da dissipação é estatística:

Se nenhuma influência seletiva, tal como a do "demônio" ideal, guia moléculas individuais, o resultado médio de seus movimentos livres e colisões deve ser equalizar a distribuição de energia entre elas, no todo; e, após um tempo suficientemente longo desde o suposto arranjo inicial, a diferença de energia entre dois quaisquer volumes, cada um contendo um número muito grande de moléculas, deve manter uma proporção muito baixa com a quantidade total [de energia] em cada um [volume]; ou, mais estritamente falando, a probabilidade da diferença de energia que excede qualquer proporção finita da energia total em cada [volume] é muito pequena. Suponha, agora, que a temperatura tenha, então, tornado muito aproximadamente igualada, em algum [intervalo de] tempo a partir do começo, e deixe o movimento de cada partícula ser revertido. Cada molécula retraçará seu caminho anterior e, ao final de um segundo intervalo de tempo, igual ao primeiro, cada molécula estará na mesma posição e movendo com a mesma velocidade [em módulo] como no começo; de modo que a dada distribuição desigual, inicial [de temperatura] será, de novo, encontrada, com a única diferença que cada partícula está movendo na direção reversa daquela do movimento inicial. Essa diferença não impedirá um começo de equalização subseqüente, instantâneo, o qual, com caminhos inteiramente diferentes para as moléculas individuais, continuará, na média, de acordo com a mesma lei que existia, imediatamente depois que o sistema foi, inicialmente, largado a si mesmo.

Meramente olhando multidões de moléculas e calculando suas energias, [considerando o] todo, não poderíamos saber se, no caso muito especial justamente considerado, o progresso foi em direção a uma sucessão de estados nos quais a distribuição de energia desvia mais e mais da uniformidade, até certo ponto. O número de moléculas sendo finito, é claro que desvios finitos, pequenos, da precisão absoluta, no [movimento] reverso suposto, não destruiria a desequalização resultante da distribuição de energia. Mas quanto maior o número de moléculas, tão menor será o tempo durante o qual a desequalização continua; e é somente quando se considera o número de moléculas como praticamente infinito que se pode considerar desequalização espontânea como praticamente impossível.

5. O texto acima é meramente descritivo, Thomson não explica como e porquê o comportamento estatístico pode ser sobreposto à dinâmica molecular. A conciliação da dinâmica microscópica determinística com o comportamento estatístico macroscópico é um problema da teoria. O próprio Maxwell separava as leis da física em "históricas" (determinísticas) e estatísticas, dois setores disjuntos. O jovem Ludwig Eduard Boltzmann pensou em descobrir um teorema da mecânica que correspondesse à segunda lei da termodinâmica e publicou, em 1872, uma equação que rege a evolução temporal da distribuição de velocidades, portanto, a ida de um sistema fora do equilíbrio para o equilíbrio termodinâmico; mas a equação depende de uma hipótese para a probabilidade de que duas moléculas se choquem e, portanto, ela é mais bem entendida como descrevendo o comportamento mais provável, aquele mesmo descrito por Thomson no texto acima citado. Essa hipótese é eqüivalente à proposição de Maxwell sobre o parâmetro de impacto, como observado por mim [9]. A proposição de Maxwell seria uma explicação de como estatística se insinua na colisão molecular; a acreditar na proposição, trata-se de um arranjo aleatório das moléculas; como observou Clausius, moléculas alinhadas não tendem ao equilíbrio termodinâmico. Maxwell criou uma figura - o Demônio citado por Thomson, acima - para ilustrar que ([1, p. 328]):

[a segunda lei da termodinâmica] é, sem dúvida, verdadeira, na medida que pudermos lidar com os corpos somente em massa [no todo] e não tivermos poder de perceber ou manusear as moléculas separadas, de que são feitos.

Mas esgotariam essas considerações a ontologia de 'probabilidade'? Seria 'probabilidade', como Maxwell parece sugerir, apenas o resultado da "ignorância" de detalhes do sistema (o chamado conceito epistêmico de 'probabilidade')? Finalmente, a chamada teoria ergódica justificaria a distribuição de probabilidade apropriada ao equilíbrio (ensemble microcanônico) ([10]), como resultado da dinâmica (mas não explica como 'probabilidade' aparece).

  • [1] J.C. Maxwell, Theory of Heat, 1888 (Dover, Nova Iorque, 2001).
  • [2] P.M. Cardoso Dias, Revista Brasileira de Ensino de Física 23, 226 (2001),
  • [3] P.M. Cardoso Dias, Archive for History of Exact Sciences 49, 135(1995).
  • [4] P.M. Cardoso Dias, Papers in Logic, Methodology and Philosophy of Science, editado por D. Prawitz and D. Westerst (Kluwer Academic Publishers, Dordrecht, 1994), p. 425-437.
  • [5] E. Fermi, Thermodynamics, 1936 (Dover, Nova Iorque, 1956).
  • [6] P.M. Harmann, Energy, Force and Matter: The Conceptual Development of Nineteenth-century Physics, (Cambridge University Press, London, 1982).
  • [7] P.M. Cardoso Dias, Annals of Science 53, 511 (1996).
  • [8] P.M. Cardoso Dias, Annals of Science 51 249, (1994).
  • [9] P.M. Cardoso Dias, Archive for History of Exact Sciences 46 341, (1994).
  • [10] J.L. Lebowitz and O. Penrose, Physics Today 26 23, (1973).
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    E-mail:
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    Réflexions foi lido por um amigo de Sadi, na sessão de 14 de Junho de 1824 da Académie des Sciences de Paris, à qual estava presente a
    crème de la crème da ciência francesa contemporânea - Arago, Fourier, Laplace, Ampère, Gay-Lussac, Poinsot, Fresnel, Legendre, Poisson, Cauchy, Dulong, Navier e Riche de Prony. Apesar da importância científica dos ouvintes, o livro caiu em ouvidos moucos e não teve impacto imediato. Uma opinião é que o livro de Carnot não era dirigido ao público científico, mas a um público geral, de construtores e usuários de máquinas térmicas; por exemplo, o tratamento não foi formal; desse modo, o livro não sensibilizou as sumidades presentes. A opinião que me apetece, apresentada por alguns historiadores, é: O livro de Carnot foi escrito no contexto da teoria do
    calórico; em 1824, a teoria, senão morta, agonizava em coma profundo e nem o próprio Carnot acreditava nela, como mostram notas em seu caderno de rascunho; sua teoria dependia de muitos resultados obtidos com o calórico e o desespero era compreensível.
  • 3
    Clapeyron trabalhou com máquinas térmicas, na Rússia, e lá teria conhecido um engenheiro de James Watt. O grupo de Watt havia desenvolvido um dispositivo - chamado
    indicador de Watt - que, atrelado à máquina, tracava o gráfico
    p × V. De modo muito esquemático, a idéia do dispositivo é a seguinte: O papel onde o gráfico vai ser desenhado movimenta-se com o êmbolo da máquina (variando, pois,
    V); um lápis movimenta-se sobre o papel, movido por uma mola que se comprime de acordo com a pressão (variando, pois,
    p); uma descrição mais detalhada pode ser encontrada no livro de James Clerk Maxwell ([1]). O dispositivo era um segredo industrial de Watt, desenvolvido para provar que a máquina de Watt era melhor do que a de seu oponente, em meio a uma das inúmeras ações judiciais sofridas por Watt.
  • 4
    Thomson foi prolífico e deu muitas contribuições importantes à física e à ciência. Os artigos mencionados neste artigo referem-se a um contexto bem definido.
  • 5
    A expressão
    conteúdo de calor da substância para designar
    U é de Clausius.
  • 6
    A demonstração de Clausius é apresentada no belíssimo livro de Enrico Fermi [5].
  • 7
    A eqüivalência entre os enunciados de Clausius e de Thomson é demonstrada na Ref. [5].
  • 8
    O trabalho, de fato, não é "perdido no mundo material", mas se integra ao
    conteúdo de calor ou
    energia interna (
    U).
  • 9
    Para o cálculo do valor médio, notar que
    =
    p
    inicial
    ; os sinais são, respectivamente, para expansão e contração.
  • 10
    Apesar disso ser trivial, por derivacão de
    pv =
    T, Thomson raciocina diferentemente. No processo isobárico a
    p
    0 (
    v
    0 ®
    v
    1;
    t
    0 ®
    t + dt):
    . Na expansão isotérmica a
    t + dt (
    v
    1 ®
    v; p
    0 ®
    p):
    pv = p
    0
    v
    1. Logo:
    pv = p
    0
    v
    0 (1 +
    ). Na compressão isotérmica a
    t ((
    p - d
    p)(
    v + dv) =
    p
    0
    v
    0
    . Subtraindo:
    vd
    p - pd
    v + d
    pd
    v »
    vd
    p - pd
    v = p
    0
    v
    0
    .
  • 11
    Thomson, como Clausius, não tinha a notacão ¶.
  • 12
    Página 491
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      2007
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