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Andar ou correr na chuva: um problema não-trivial

Walking or running in the rain: a nontrivial problem

Resumos

Na chuva, uma pessoa se molha menos andando ou correndo? Na tentativa de responder essa pergunta, alguns modelos teóricos foram publicados em um período de quase 30 anos, e todos preveem que quanto mais rápido o indivíduo se move, menos molhado ele conclui um percurso fixo no caso de uma chuva vertical constante. Em todos esses trabalhos, porém, está implícito que cada gota de chuva que atinge o indivíduo é completamente absorvida pelo mesmo. Neste artigo, consideramos pela primeira vez o fato de que nem sempre cada gota que atinge o indivíduo é completamente absorvida por ele, e mostramos que, mesmo mantendo outras simplificações presentes nos modelos anteriores, hipóteses ainda que relativamente simples quanto à fração absorvida de cada gota tornam a questão de andar ou correr na chuva um problema não-trivial.

modelagem; otimização; absorção de massa; chuva


In the rain, does a person get less wet walking or running? To answer this question, some theoretical models have been published over a period of almost 30 years and, according to them, the faster the person moves, the less wet he or she becomes during a certain fixed path in the particular case of a uniform vertical rain. In all these works, however, it is implied that each raindrop that strikes the person is completely absorbed. In this paper, we consider for the first time the fact that each raindrop that strikes the person might not be completely absorbed, and show that still keeping other simplifications, even a relatively simple hypothesis about the absorbed fraction of each raindrop makes the question of walking or running in the rain a nontrivial problem.

modelling; optimizing; mass absorption; rain


ARTIGOS GERAIS

Andar ou correr na chuva: um problema não-trivial

Walking or running in the rain: a nontrivial problem

Henrique PatriotaI; Alberto Carlos BertuolaII; Paulo PeixotoI, 1 1 E-mail: phrpeixoto@yahoo.com.br.

INúcleo de Formação Docente, Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, PE, Brasil

IIInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Na chuva, uma pessoa se molha menos andando ou correndo? Na tentativa de responder essa pergunta, alguns modelos teóricos foram publicados em um período de quase 30 anos, e todos preveem que quanto mais rápido o indivíduo se move, menos molhado ele conclui um percurso fixo no caso de uma chuva vertical constante. Em todos esses trabalhos, porém, está implícito que cada gota de chuva que atinge o indivíduo é completamente absorvida pelo mesmo. Neste artigo, consideramos pela primeira vez o fato de que nem sempre cada gota que atinge o indivíduo é completamente absorvida por ele, e mostramos que, mesmo mantendo outras simplificações presentes nos modelos anteriores, hipóteses ainda que relativamente simples quanto à fração absorvida de cada gota tornam a questão de andar ou correr na chuva um problema não-trivial.

Palavras-chave: modelagem, otimização, absorção de massa, chuva.

ABSTRACT

In the rain, does a person get less wet walking or running? To answer this question, some theoretical models have been published over a period of almost 30 years and, according to them, the faster the person moves, the less wet he or she becomes during a certain fixed path in the particular case of a uniform vertical rain. In all these works, however, it is implied that each raindrop that strikes the person is completely absorbed. In this paper, we consider for the first time the fact that each raindrop that strikes the person might not be completely absorbed, and show that still keeping other simplifications, even a relatively simple hypothesis about the absorbed fraction of each raindrop makes the question of walking or running in the rain a nontrivial problem.

Keywords: modelling, optimizing, mass absorption, rain.

1. Introdução

Na chuva, considerando-se um percurso fixo, uma pessoa se molha menos andando ou correndo? Os que acreditam que molha-se menos no segundo caso geralmente usam como argumento o fato de que, correndo, o tempo de exposição à chuva é menor. Aqueles que pensam de maneira oposta geralmente usam como argumento o fato menos óbvio de que, andando, o fluxo de água sobre o indivíduo (ou seja, o volume total de água que atinge a superfície desse indivíduo por unidade de tempo) diminui, devido à diminuição do ângulo de inclinação da chuva em relação à direção vertical, no referencial do mesmo. Assim, se a pessoa está andando, menos água a atinge a cada segundo, contudo ela conclui seu percurso em mais tempo. Se ela está correndo, mais água a atinge a cada segundo, mas em compensação o percurso é concluído em menos tempo. Qual desses fatores (tempo de percurso e fluxo de água sobre o sujeito) tem então maior peso, se o indivíduo deseja concluir seu trajeto menos molhado? É melhor andar ou correr?

Alguns modelos teóricos já foram propostos [1-5], e todos preveem que, representando-se o indivíduo por um sólido geométrico que translada uma distância fixa sob uma chuva vertical constante sem girar ou se deformar, esse se molha menos quanto maior é sua velocidade. Ou seja, no caso de uma chuva vertical constante é melhor correr (mas, como aponta De Angelis [2], o benefício resultante de se mover mais rapidamente que em uma caminhada vigorosa pode não compensar o esforço adicional).

Com a equivalência entre os cinco modelos apresentados, o problema de andar ou correr na chuva parecia estar definitivamente resolvido (ao menos para o caso de uma chuva vertical constante). É preciso entender, porém, que na física um modelo é uma representação (geralmente em linguagem matemática) de um fenômeno, não o fenômeno em si. Em nenhum dos cinco trabalhos publicados [1-5] foi considerada explicitamente a questão da absorção de água pelo indivíduo (como também não considera essa questão a pergunta tendenciosa apresentada no final do primeiro parágrafo), ficando implícita a suposição de que cada gota de chuva que o atinge é completamente absorvida pelo mesmo. Alguns experimentos preliminares que realizamos mostram que tal hipótese não corresponde à realidade e, assim, um modelo mais refinado deve ser elaborado. Uma tentativa nesse sentido é aqui apresentada.

Adiantamos que este artigo está muito longe de ter um caráter prático relativo à questão de andar ou correr na chuva. Nossos principais objetivos foram (1) mostrar que esse problema é bem mais complexo que os modelos encontrados na literatura [1-5] sugerem e (2) apresentar um exemplo simples de como os físicos trabalham.

2. Modelo de partida

Nosso modelo de partida é, essencialmente, o que foi apresentado por De Angelis [2]. Nele, o problema da absorção de água ainda não é considerado.

Idealizamos um indivíduo representando sua forma real por um paralelepípedo de dimensões a, b e c se deslocando com uma velocidade horizontal constante v, com respeito a um sistema de referência S fixo em relação ao solo, conforme mostrado na Fig. 1. A velocidade vertical de queda da chuva, vq, foi considerada constante - ou seja, estamos assumindo que todas as gotas de chuva têm a mesma velocidade terminal vq e que atingem essa velocidade antes de chegarem ao paralelepípedo, o que não necessariamente ocorre no caso de uma chuva simulada em laboratório, vale salientar. Uma distância fixa L é percorrida pelo paralelepípedo, enfrentando uma densidade volumétrica média de água

em que λ é a fração de volume ocupada pelas gotas de chuva em um volume macroscópico da ordem de 1 m3, e ρágua( ≈ 1 g/cm3) é a densidade da água.


Entenda que ao trabalharmos com ρ, em vez de ρágua, estamos modelando a chuva como um continuum de densidade ρ. Embora isto não altere valores calculados para a massa de água que atinge o paralelepípedo no percurso de comprimento L, o mesmo não pode ser dito em relação ao volume de água que atinge o paralelepípedo em tal percurso. Por isso, usaremos M e V para denotar, respectivamente, a massa e o volume reais de água que atingem o paralelepípedo, e Vcont para denotar o volume de água que atinge o indivíduo modelando-se a chuva como um continuum.

Analisemos a incidência de água sobre o paralelepípedo do ponto de vista do mesmo, ou seja, em um novo sistema de referência S' que se move com velocidade v em relação ao referencial S (Fig. 2). De acordo com a Fig. 2, a distância entre os pontos A e B é dada por

em que θ é o ângulo que a velocidade de uma gota de chuva no referencial S' faz com a vertical. Observe que

com


Substituindo a Eq. (3) na Eq. (2), obtemos

O volume V de água que atinge o paralelepípedo é aquele que atravessa a região retangular AA'BB' (veja a janela no canto superior direito da Fig. 2) no tempo de percurso Δt = L/v, e a massa de água correspondente é, portanto,

Substituindo na Eq. (6) o valor do fluxo (calculado no referencial S') Φ ≡ Vcont / Δt = , aquela igualdade é modificada para

Considerando a igualdade (5), a igualdade (7) é modificada para

Esta é a massa de água que atinge o paralelepípedo de dimensões a, b e c quando este percorre horizontalmente uma distância L com velocidade v sob uma chuva vertical, com densidade volumétrica média de água ρ, que cai com velocidade vq (veja Fig. 1). Está claro que M cai com o aumento de v.

Revendo o desenvolvimento que culminou na igualdade (8), você irá facilmente concordar que podemos reescrever (basta observar que, na Fig. 2, ):

em que

e

são, respectivamente, a massa de água que atinge a região frontal do paralelepípedo e a massa de água que atinge a região superior do mesmo, no percurso de comprimento L.

Observe que o termo MF = ρbcL é a massa de água à frente do paralelepípedo da Fig. 1, ou seja, em um paralelepípedo imaginário de dimensões b, c e L. Essa é a massa de água "varrida" pela região frontal do paralelepípedo que representa o indivíduo quando o percurso de comprimento L é cumprido e, assim, seu valor independe da velocidade de queda da chuva e da velocidade de percurso (desde que esta não seja nula - já que estamos supondo que a distância L é percorrida).

O termo MS = ρbaLvq/v pode ser melhor analisado reescrevendo-se MS = ρΦS Δt, em que ΦS = bavq é o fluxo de água, modelada como um continuum de densidade ρ, sobre a região superior do paralelepípedo, e Δt = L/v é o tempo de percurso.

Convém analisarmos alguns limites. Como esperado, no limite em que v → 0, MS → ∞ (e, portanto, M → ∞). [Lembre-se que MS é a massa de água que atinge a região superior do paralelepípedo, e não a massa de água que é absorvida por aquela região.]

Por outro lado, à medida que a velocidade do paralelepípedo aumenta (diminuindo-se, assim, o tempo de percurso), a direção da velocidade de queda da chuva vai se horizontalizando cada vez mais, no referencial S', e o retângulo AA'BB' na Fig. 2 vai tendendo à região frontal do paralelepípedo. Temos, assim, um segundo limite previsível: limv→ ∞MS = 0 (e, portanto, limv→ ∞M = MF).

A igualdade (8) pode ser reescrita de uma forma mais adequada a uma tentativa de verificação experimental, observando-se que o produto ρvq é a massa de água que atinge o solo por unidade de tempo por unidade de área (fica como exercício para você verificar essa afirmativa). Resultado:

Também mais adequada que a igualdade (8) a uma tentativa de verificação experimental é a igualdade

em que V é o volume de água que atinge o paralelepípedo no percurso de comprimento L e é o volume de água que atinge o solo por unidade de tempo por unidade de área. Obviamente, V é proporcional a M e é proporcional (V = Mágua e = água).

Vale observar que é a chamada taxa de precipitação de chuva, que pode ser expressa em mm/h. O que significa, por exemplo, uma taxa de precipitação de 4 mm/h (que corresponde a uma chuva moderada [4])? Significa que, mantida essa taxa, a cada hora 4 mm3 de água atingem uma região do solo com 1 mm2 de área, resultando em uma elevação de 4 mm no nível de água.

A Fig. 3 apresenta o gráfico de M/MF vs. v/vq, com c/a = 15 (o valor usado por De Angelis [2], que é bastante razoável para um indivíduo de estatura mediana, nos padrões brasileiros). Fazendo as contas obtemos


A partir desta igualdade, você poderá verificar que, com vq = 9 m/s [2], um indivíduo (modelado por um paralelepípedo com c/a = 15) movendo-se a 3 m/s é atingido por apenas aproximadamente 13% mais água que outro movendo-se a 10,44 m/s (100 m / 9,58 s - velocidade média para o atual recorde mundial nos 100 metros). Ou seja, concordaríamos incondicionalmente com a afirmativa de De Angelis que "by running faster you get less wet, but the benefit that you get beyond the speed of a brisk walk does not justify the supplementary effort", não fosse o fato de que nem sempre cada gota que atinge o indivíduo é completamente absorvida por ele.

3. Modelo refinado

Nosso refinamento do modelo de partida apresentado fundamenta-se na ideia de que não necessariamente todo o volume de uma gota de chuva que atinge o paralelepípedo que representa o indivíduo é absorvido pelo mesmo. Ou seja, ATINGIR ≠ MOLHAR! Tentar prever, a partir de leis básicas da física, que fração da gota é absorvida em cada situação é tarefa extremamente complexa, de modo que apresentaremos aqui apenas uma conjectura simples (uma espécie de tentativa inicial) para essa fração, baseada em algumas experiências de pensamento descritas a seguir.

Todos sabemos que uma bola de tênis, ao ser fortemente golpeada por uma raquete, sofre uma grande deformação durante um intervalo de tempo muito pequeno. Quanto maior a componente da velocidade da bola perpendicular ao plano do encordoamento da raquete, no referencial desta, maior a deformação, e também maior é a velocidade adquirida pela bola quando a energia potencial associada à deformação é convertida em energia cinética.

Agora vamos substituir, em nossa experiência de pensamento, a bola de tênis por uma bola de gelatina, de igual tamanho. Adicionalmente, tenhamos como cenário um ambiente com "gravidade zero", como o interior de uma estação espacial em órbita. Então a bola de gelatina flutua imóvel, esperando ser golpeada por nossa raquete. De início imaginemos um golpe muito fraco. O que você visualiza? Nós, autores deste artigo, visualizamos algo semelhante ao que ocorre com a bola de tênis ao ser fortemente golpeada: quanto maior a componente da velocidade da bola (agora de gelatina) perpendicular ao plano do encordoamento da raquete, no referencial desta, maior a deformação da bola, e também maior a velocidade adquirida pela bola quando a energia potencial associada à deformação é convertida em energia cinética. É claro que estamos restritos a um intervalo de velocidades que corresponda a um golpe muito fraco.

Retomando nossa experiência de pensamento com a bola de gelatina em um ambiente com gravidade zero, imaginemos agora um golpe muito forte, como desferido por um tenista sobre uma bola de tênis. O que você visualiza? Nós visualizamos a bola de gelatina sendo espatifada pela raquete. O mais importante, contudo, é tentarmos imaginar "em câmera lenta" o que ocorre com a bola. Visualizamos que se o plano do encordoamento se aproxima da bola de gelatina imóvel perpendicularmente ao seu vetor velocidade, um golpe forte faz com que o encordoamento "atravesse" a bola - espatifando-a, é claro, mas deixando a maior parte dela para trás. Perceba claramente o contraste entre o que ocorre com a bola de gelatina se ela é golpeada fraca ou fortemente pela raquete de tênis. Tal contraste não se observa com a bola de tênis.

Passemos a mais uma experiência de pensamento. Ainda no interior da estação espacial em órbita, vamos substituir a bola de gelatina por uma gota d'água, com diâmetro da ordem de 5 mm, e a raquete de tênis por uma raquete de tênis de mesa. Esta última substituição é necessária porque a gota d'água é pequena demais para ser golpeada pelo encordoamento da raquete de tênis. Como no caso da bola de gelatina, iniciemos com um golpe muito fraco. O que você visualiza? Nós visualizamos que ocorre com a gota d'água algo semelhante ao que ocorre com a bola de gelatina ao ser fracamente golpeada pela raquete de tênis: a gota molha um pouco a raquete, mas sofre uma deformação e é impulsionada pela mesma. Se o golpe é forte, assim como a bola de gelatina se espatifa e sua maior parte é atravessada pela raquete de tênis, a maior parte da gota se espalha pela raquete de tênis de mesa. Se a raquete está revestida com um tecido (como algodão, poliéster etc.), a água que se espalha é absorvida.

Se você concordou com nossas experiências de pensamento, acreditamos que irá concordar com a seguinte conclusão: quando uma gota colide em alta velocidade (típica de uma gota de chuva em queda) com uma superfície plana absorvente, quanto maior a componente da velocidade da gota perpendicular a essa superfície, no referencial da mesma, maior a fração absorvida da gota.

Nossa conjectura para essa fração, que denotamos por γ, não pretende ser fiel à realidade (seria muita sorte nossa se isso ocorresse, pois, quando se trata de fluidos, as coisas usualmente são muito mais complicadas que essas experiências de pensamento sugerem). Buscamos apenas algo simples e que atendesse à conclusão apresentada no parágrafo anterior, para em seguida examinarmos de que forma é modificado o modelo de partida, na esperança de avançarmos um pouco na análise do problema de andar ou correr na chuva.

Para a face frontal do paralelepípedo da Fig. 1, nossa conjectura é

γF(θ) = γF(π/2) sen θ,

em que θ é o ângulo apresentado na Fig. 2. γF(π/2) é uma constante, assim denotada porque, para θ = π/2, γF(θ) é igual à mesma. Como sen θ = (veja Eq. (3) e Fig. 2), com o aumento de v γF(θ) aumenta, como imaginado (veja a conclusão apresentada dois parágrafos acima).

Adicionalmente, vamos conjecturar que γF(π/2) = 1, porque imaginamos que, para grandes valores de v, da violência da colisão da gota contra a face frontal do paralelepípedo resulta uma absorção praticamente completa da mesma. Logo, nossa conjectura final para γF(θ) é

A física da interação de uma gota de chuva com a face superior do paralelepípedo não deve ser muito diferente da física da interação de uma gota com a face frontal, porque no curto intervalo de tempo em que uma gota interage com o paralelepípedo (na face superior ou na face frontal) a interação eletromagnética predomina; ou seja, durante a interação, o efeito direto da gravidade é desprezível. Por isso, para a face superior do paralelepípedo, nossa conjectura inicial equivale àquela para a face frontal

γS(ϕ) = sen ϕ,

em que ϕ = π/2 - θ. Assim como θ é o ângulo entre o vetor e a face frontal (veja Fig. 2), ϕ é o ângulo entre e a face superior. Podemos reescrever

γS(θ) = sen (π/2 - θ) = cosθ.

Com velocidades diretamente alcançáveis por um ser humano (v, em nosso modelo), não há incidência quase-tangencial (nem próximo disso) de uma gota de chuva na face superior do paralelepípedo, no referencial do mesmo. Por exemplo, com vq = 9 m/s [2] e v = 10,44 m/s (recorde mundial nos 100 metros) - e ninguém irá correr sob chuva com essa velocidade - temos ϕ = arcsen = 40,8 o e γS(ϕ) = sen ϕ = 0,653. Com v = 5 m/s - possivelmente o maior valor alcançado na prática por um ser humano comum sob chuva - temos γS(ϕ) = 0,874. Daí, em casos realistas temos γS(ϕ) > 0,87. Como esse limite inferior é muito próximo de 1, vamos simplificar ainda mais e concluir nossa conjectura para γS como

Há muitos detalhes de nossas experiências de pensamento que não foram apresentados neste artigo, para não cansarmos o leitor. De qualquer forma, é preciso entender que experiências de pensamento são falíveis, pois são extrapolações mentais realizadas com base em nossa experiência pessoal com certos fenômenos físicos. A propósito, um ser que viesse de um outro universo, regido por leis físicas diferentes, provavelmente não seria bem sucedido em nosso universo com suas experiências de pensamento, concorda? Quanto à conjectura apresentada na Eq. (15), ela poderia ser substituída por outras também simples. Por exemplo, poderíamos elevar sen θ a um expoente positivo menor que 1, que teria a vantagem, sobre a conjectura da Eq. (15), de modelar uma maior absorção para pequenos valores de θ. Como você pode perceber, mesmo dentro de um modelo simples como o que estamos apresentando aqui há muito o que ser explorado. Imagine então nas complexas atividades de pesquisa em andamento no Brasil e no mundo! A visão romântica de um cientista excepcional obtendo resultados incríveis como que num passe de mágica, que a mídia às vezes nos mostra em obras de ficção, realmente não corresponde à realidade. Mesmo Einstein precisou trabalhar duro para avançar em suas pesquisas. E sempre dependemos do trabalho de outros.

Bem, voltando ao nosso problema... Com as igualdades (15) e (16), de que forma é modificado o modelo de partida? Simples: denotando por MF, MS e M respectivamente as massas absorvidas pela face frontal, pela face superior, e total, temos (veja Eqs. (9) a (11))

Como sen θ = , segue que

Vimos, na Eq. (8), que a massa M que incide sobre o paralelepípedo da Fig. 1 cai com o aumento de v. Já a massa M que é absorvida pelo paralelepípedo depende de v de forma mais complexa, pois enquanto MS(v) diminui, MF(v) cresce com o aumento de v.

Lembrando que MF = ρbcL, podemos reescrever a igualdade (17) como

Na Fig. 4 é apresentado o gráfico de M/MF vs. v/vq, com c/a = 15 (a mesma razão usada na Fig. 3). A forma desse gráfico revela a existência de uma velocidade ótima v*≈ 0,27 vq, com a qual o indivíduo se molha o mínimo possível! Trata-se de uma previsão que nenhum dos modelos anteriormente publicados realizou para o caso de uma chuva vertical constante, por não terem considerado o fato de que nem sempre cada gota de chuva que atinge o indivíduo é completamente absorvida por ele. É curioso observar que com c/a = 15 e vq = 9 m/s, o valor de v* ( ≈ 2,4 m/s) corresponde a algo intermediário entre andar e correr: talvez uma caminhada vigorosa, ou uma corrida lenta. Mas, sem dúvida, não é só isso que nos deixa sem resposta para a pergunta "é melhor andar ou correr sob uma chuva vertical constante?", mas a própria complexidade do problema. Estamos apresentando aqui apenas um modelo muito simples (e possivelmente ingênuo), que serve mais para mostrar para o estudante iniciante um pouco de como os físicos trabalham que para tentar responder definitivamente essa pergunta. Compreendemos, com a realização desse trabalho, que seria necessário um conjunto muito grande de experimentos, com várias combinações de valores para os parâmetros relevantes, para se tentar chegar a uma resposta mais clara para aquela pergunta. E talvez a realização desses experimentos revelasse que em algumas situações é melhor andar, em outras é melhor correr, e ainda, que em outras não faz diferença. Como dito, mesmo o nosso modelo teórico simples indica que a questão de andar ou correr na chuva é não-trivial.


Para a construção de gráficos de M vs. v (em vez de gráficos de M/MF vs. v/vq), precisamos determinar mais que a razão c/a; necessitamos determinar os valores de a, b, c, L, vq e ρ. Como sugestão, consideramos valores interessantes a = 0,11 m, b = 0,4 m, c = 1,7 m (estatura razoável para os padrões brasileiros, considerando-se uma média entre homens e mulheres), L = 100 m e vq = 9 m/s. O valor de ρ pode ser determinado a partir da igualdade ρ = ρágua/vq (pois = água e = ρvq, como apresentado no final da seção 2). Com = 4 mm/h temos uma chuva moderada, e com = 16 mm/h uma chuva forte (mas não há um consenso na literatura quanto à classificação da intensidade da chuva).

É importante atentar para o fato de que todo tecido tem uma capacidade de absorção de água limitada. Definindo σmax como a massa máxima de água que pode ser absorvida por unidade de área, temos, segundo medições que realizamos, σmax≈ 0,5 kg/m2 para tecidos de algodão tipicamente usados para camisas esportivas, σmax ≈ 0,2 kg/m2 para morim e σmax ≈ 1 kg/m2 para uma toalha de algodão com boa capacidade de absorção. Assim, o valor de σmax para uma ampla variedade de tecidos, mais absorventes que o morim e menos que uma toalha, encontra-se no intervalo 0,2 |-| 1 (em kg/m2).

É claro que a função M(v) = MF(v) + MS(v) expressa na Eq. (17) não se aplica se MS(v) > σmaxba ou MF(v) > σmaxbc. Por exemplo, com as sugestões apresentadas para os valores dos parâmetros a, b, c, L e vq, e com σmax = 0,5 kg/m2 e ρ = 4,9 ×10-4 kg/m3 (obtido com = 16 mm/h e vq = 9 m/s), fica como exercício para você mostrar que MS(v) > σmaxba para v menor que aproximadamente 0,9 m/s, ou seja, movendo-se abaixo dessa velocidade a face superior fica completamente encharcada antes que o indivíduo (paralelepípedo) conclua seu percurso. Nesse caso, a massa absorvida total ao final do percurso é, segundo o modelo, M(v) = ρbcL/ + σmaxba.

4. Conclusão

Problemas "do mundo real " são usualmente muito complexos. Se deseja-se encontrar uma resposta satisfatória para a pergunta "é melhor andar ou correr na chuva?", deve-se proceder com uma investigação experimental muito cuidadosa, considerando-se questões como:

  • A chuva é vertical, ou há vento?

  • A chuva é homogênea?

  • Trata-se de uma garoa, de um temporal ou de algo intermediário?

  • Quais são as características físicas do indivíduo?

  • Ele está vestido com que tipo de tecido?

  • A roupa é justa ou folgada? Há dobras?

  • Como ele se move? (Há várias formas de andar ou correr, não é? E há diferentes velocidades para "andar" e para "correr".)

  • A distância a ser percorrida é curta, média ou longa? E o que significa ser "curta", "média" ou "longa"?

  • O percurso é feito em linha reta? Horizontalmente?

Você acha que isso é tudo? Há vários outros detalhes importantes. Por exemplo, se a chuva for artificialmente produzida, não basta fixar uma certa taxa de precipitação com gotas de igual tamanho; há de ser considerada a distribuição de tamanho das gotas. A propósito, segundo Caracciolo e colaboradores [6], em latitudes médias da Itália gotas com diâmetro superior a 5 a 6 mm não contribuem significativamente para a taxa de precipitação de chuva. Isso certamente compromete bastante, para um caso como esse, a aplicabilidade do modelo que apresentamos neste artigo, pois imaginamos que o respingo de uma gota de chuva ao colidir com a face frontal do paralelepípedo da Fig. 1 não é muito acentuado para gotas de pequeno tamanho.

Devido a tamanha complexidade, tudo precisaria ser muito bem controlado, e possivelmente algumas simplificações poderiam se fazer necessárias para tornar a realização do experimento factível. No final, poderíamos ter apenas a resposta sugerida por um modelo experimental - que, de qualquer forma, possivelmente seria mais confiável que o que sugerem os modelos teóricos apresentados neste trabalho e em publicações anteriores.

O modelo aqui apresentado tem a vantagem, sobre os anteriores, de considerar pela primeira vez (ao melhor de nosso conhecimento) a diferença entre incidência de água da chuva no indivíduo em movimento e absorção dessa água pelo mesmo. Disso resulta a previsão da existência de uma velocidade de percurso ótima, com a qual o indivíduo se molha o mínimo possível.

Como dito na introdução, nossos principais objetivos nesse artigo foram mostrar que o problema de andar ou correr na chuva é bem mais complexo que os modelos encontrados na literatura [1-5] sugerem e apresentar um exemplo simples de como os físicos trabalham, desenvolvendo (entre outras coisas) modelos na tentativa de extrair de um problema complexo seus aspectos mais relevantes.

Para nós, as muitas horas dedicadas ao desenvolvimento deste trabalho e elaboração deste artigo foram tanto um desafio como um prazer. Esperamos que sua leitura tenha sido agradável a você. E quanto à questão de andar ou correr na chuva, infelizmente a melhor recomendação que temos no momento é: tenha à mão um guarda-chuva.

Agradecimentos

Agradecemos ao professor Fernando Parisio, do DF-UFPE, pela leitura crítica do artigo, e à FACEPE pela bolsa de Iniciação Científica concedida a Henrique Patriota.

Recebido em 16/12/2012

Aceito em 16/3/2013

Publicado em 26/9/2013

Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

Apêndice: comparações com modelos anteriores

Nosso objetivo neste apêndice é mostrar a equivalência entre o resultado obtido na seção 2 (representado pela igualdade (8) ou, alternativamente, pela igualdade (12) ou pela igualdade (13)) e os resultados publicados nas Refs. [1] a [5], no caso particular de uma chuva vertical.

Modelo de Stern

No trabalho de Stern [1], encontramos a igualdade

em que

  • S é o número total de gotas que atingem um certo elemento de superfície, que corresponde ao paralelepípedo na Fig. 1;

  • N é o número total de gotas que atingem o solo por unidade de tempo por unidade de área;

  • AH é a área da seção de choque horizontal, que corresponde à face superior do paralelepípedo na Fig. 1;

  • Az é a área da seção de choque vertical, que corresponde à face frontal do paralelepípedo na Fig. 1;

  • vH é a velocidade de percurso;

  • vz é a velocidade terminal das gotas de chuva;

  • DH é a distância percorrida.

Multiplicando S e N pela massa de uma gota de chuva obtemos, respectivamente, a massa M de água que atinge o indivíduo e a massa de água que atinge o solo por unidade de tempo por unidade de área. Resultado:

A equivalência entre a igualdade (19) e a igualdade (12) fica clara observando-se as seguintes correspondências:

  • AH corresponde, em nosso modelo, à área ab;

  • Az corresponde à área bc;

  • vH corresponde à velocidade v;

  • vz corresponde à velocidade vq;

  • DH corresponde à distância L.

Modelo de De Angelis

No trabalho de De Angelis [2], encontramos a igualdade

com

Na igualdade (20),

  • N é o número total de gotas que atingem um paralelepípedo equivalente ao apresentado na Fig. 1;

  • Dx, Dy e Dz são as dimensões do paralelepípedo;

  • v é a velocidade de percurso;

  • v0p é a velocidade de queda da chuva.

Na igualdade (21), que define a constante µ,

  • s é a distância percorrida;

  • d0x, d0y e d0z são as distâncias médias entre as gotas de chuva ao longo dos eixos coordenados x, y e z, respectivamente.

Observe que N, na igualdade (18), tem significado distinto de N na igualdade (20). Multiplicando N (da igualdade (20)) pela massa m de uma gota de chuva obtemos a massa M de água que atinge o indivíduo. Multiplicando também por m o segundo membro da igualdade (20) e usando a igualdade (21), obtemos

A equivalência entre a igualdade (22) e a igualdade (8) fica clara observando-se que

  • A razão m/(d0xd0yd0z) é a densidade média ρ de água da chuva;

  • Dx, Dy e Dzcorrespondem, em nosso modelo, respectivamente a a, c e b;

  • s corresponde à distância L;

  • v tem o mesmo significado nas Eqs. (22) e (8);

  • v0p corresponde à velocidade vq.

Modelo de Bailey

No trabalho de Bailey [3], encontramos a igualdade

em que

  • R é o volume total de chuva que atinge um paralelepípedo equivalente ao apresentado na Fig. 1;

  • vs é a velocidade de percurso;

  • D é a distância percorrida;

  • ρ é o volume de chuva por unidade de volume de ar;

  • vx, vy e vz são as componentes cartesianas da velocidade da chuva;

  • Ax, Ay e Az são, respectivamente, as áreas das faces frontal, lateral e superior do paralelepípedo.

Oberve que ρ, na igualdade (23), não corresponde ao ρ da igualdade (8), mas ao λ da igualdade (1). Assim, trocando ρ por λ na Eq. (23) obtemos, para o caso de uma chuva vertical (onde vx = vy= 0),

Multiplicando R por ρágua obtemos a massa M de água que atinge o indivíduo. Multiplicando também por ρágua o segundo membro da igualdade (24) e usando a igualdade (1), obtemos

A equivalência entre a igualdade (25) e a igualdade (8) fica clara observando-se que

  • M e ρ têm o mesmo significado nas Eqs. (25) e (8);

  • D corresponde, em nosso modelo, à distância L;

  • vs corresponde a v;

  • |vz| corresponde a vq;

  • Ax corresponde ao produto bc;

  • Az corresponde ao produto ab.

Modelo de Kroetz

A igualdade (17) do artigo de Kroetz [4] fica, para o caso de uma chuva vertical (onde as componentes vrx e vry da velocidade da chuva são nulas),

Nesta igualdade,

  • Vtotal é o volume de água que atinge um paralelepípedo equivalente ao apresentado na Fig. 1;

  • P é a taxa de precipitação de chuva;

  • D é a distância percorrida;

  • Axy é a área da face superior do paralelepípedo;

  • Ayz é a área da face frontal do paralelepípedo;

  • vp é a velocidade de percurso;

  • |vrz| é o módulo da componente vertical da chuva - obviamente, a única componente no caso de uma chuva vertical.

A equivalência entre as igualdades (26) e (13) fica clara observando-se as seguintes correspondências:

  • Vtotal corresponde, em nosso modelo, ao volume V;

  • P corresponde a ;

  • D corresponde a L;

  • Axy corresponde ao produto ab;

  • Ayz corresponde ao produto bc;

  • vp corresponde a v;

  • |vrz| corresponde a vq.

Modelo de Ehrmann e Blachowicz

No trabalho de Ehrmann e Blachowicz [5], a relação de proporcionalidade (5) fica, para o caso de uma chuva vertical (onde a componente horizontal vH da velocidade da chuva é nula),

Nesta relação,

  • w é uma grandeza (denominada "wetting" pelos autores) que quantifica o quão molhado o indivíduo conclui o seu percurso (sua dimensão não é importante, porque temos na Eq. (27) uma relação de proporcionalidade, não uma igualdade);

  • r é o raio e h a altura do cilindro que modela o indivíduo;

  • s é a distância percorrida;

  • vx é a velocidade de percurso;

  • vRy é a componente vertical da chuva.

Para encontrarmos a equivalência entre a relação de proporcionalidade (27) e a igualdade (8), devemos inicialmente observar que qualquer gota de chuva que atinge o cilindro de raio r e altura h interceptaria, se continuasse seu movimento retilíneo uniforme em um referencial fixo em relação ao cilindro, uma das seguintes regiões: o retângulo de base 2r, altura h e direção perpendicular à direção de movimento, que divide o cilindro em duas partes iguais; o semicírculo superior de raio r à esquerda deste retângulo; o semicírculo inferior de raio r à direita do retângulo. Em termos de seções de choque, esses dois semicírculos, juntos, correspondem à região superior do cilindro que modela o indivíduo no trabalho de Ehrmann e Blachowicz e, portanto, à face superior do paralelepípedo nas Figs. 1 e 2. O que sobra (o retângulo de base 2r e altura h) corresponde à região lateral do cilindro e à face frontal do paralelepípedo nas Figs. 1 e 2. Assim, a equivalência entre a relação de proporcionalidade (27) e a igualdade (8) fica clara observando-se as seguintes correspondências:

  • a área πr2 corresponde, em nosso modelo, à área ab;

  • a área 2rh corresponde à área bc;

  • s corresponde à distância L;

  • vx corresponde a v;

  • vRy corresponde a vq.

Note que, com essas correspondências, a expressão na Eq. (27) só difere do membro direito na Eq. (8) pelo fator ρ, que pode ser visto como um fator de proporcionalidade.

  • [1] S.A. Stern, American Journal of Physics 51, 815 (1983).
  • [2] A. De Angelis, European Journal of Physics 8, 201 (1987).
  • [3] H. Bailey, The College Mathematics Journal 33, 88 (2002).
  • [4] T. Kroetz, Revista Brasileira de Ensino de Física 31, 4304 (2009).
  • [5] A. Ehrmann and T. Blachowicz, European Journal of Physics 32, 355 (2011).
  • [6] C. Caracciolo, F. Porcù and F. Prodi, Advances in Geosciences 16, 11 (2008).
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      16 Dez 2012
    • Aceito
      16 Mar 2013
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