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Os fundamentos da física dos férmions de Dirac sem massa em (1+2)-D e o grafeno

(Fundamentals of the massless Dirac fermion physics in (1+2)-D and graphene)

Resumos

O grafeno é um material alotrópicoo do carbono, formado por uma monocamada de átomos de carbono arranjados em uma estrutura cristalina de favo de mel (ou honeycomb), podendo ser obtido por diversos métodos experimentais, sendo a esfoliação do grafite o modo mais simples. Trata-se do primeiro material verdadeiramente bidimensional porque é constituído de um única camada atômica, em contraste com estruturas que se comportam como bidimensionais, porque uma das dimensões é muito reduzida em relação às outras duas, mas essa dimensão diminuta ainda assim é constituida de várias camadas atômicas. Uma das mais espetaculares previsões teóricas para o grafeno, confirmada experimentalmente, é a de que os elétrons se comportam como férmions de Dirac sem massa nos chamados pontos de Dirac, ou seja, agem efetivamente como partículas “relativísticas” sem massa em um espaço-tempo de (1+2) dimensões, sendo uma dimensão temporal e duas espaciais. Esse comportamento exótico abre o campo para emular física de altas energias em matéria condensada, além de prometer uma revolução na eletrônica de alta velocidade. O objetivo desse trabalho é apresentar os fundamentos da física de férmions de Dirac e como surge o modelo efetivo no grafeno. Entendemos que há pouca literatura referente ao assunto em idioma português. Além disso, esse sistema físico é muito útil como introdução às teorias de campos relativísticas e aos métodos de segunda quantização.

Palavras-chave:
grafeno; equação de Dirac; férmions de Dirac


Graphene is an allotropic form of carbon made by a monolayer of carbon atoms arranged in a honeycomb crystalline lattice. It can be experimentally obtained through the use of several methods, being the exfoliation of graphite the easiest way. Graphene can be considered the first genuinely two-dimensional material, since it is constituted of a single atomic layer, in contrast to several material structures, such as thin films, which behave as two-dimensional ones, due to the fact that one of the three space dimensions is highly reduced in comparison to the others, but still consisting of many atomic layers. The most striking theoretical prediction, experimentally confirmed, is that electrons in graphene behave as massless Dirac fermions in a “relativistic” (1+2)-D space-time, consisting of one temporal dimension and two space dimensions, near the so-called Dirac points, opening the possibility of emulating high-energy physics through the use of a low-energy condensed matter system, beside the promise to revolutionize the high-speed electronics. The aim of the present contribution is to put forward the fundamentals of Dirac fermions, explaining how the effective model emerges in graphene. We understand that there is a poor literature on the subject in Portuguese. Also, graphene provides a useful introduction to relativistic field theory and to the second quantization methods.

Keywords:
graphene; Dirac equation; Dirac fermions


1. Introdução

O grafeno é uma forma alotrópica do carbono que apresenta propriedades físicas extraordinárias, devido a sua estrutura cristalina de favo de mel e ao fato de que toda a física relevante em baixas energias poder ser descrita através de uma teoria efetiva que emula férmions de Dirac sem massa próximo aos chamados pontos de Dirac [1][1] A.K. Geim and A.H. MacDonald, Physics Today 60, 35-41 (2007).. A estrutura de bandas do grafeno foi abordada ainda no ano de 1947, no trabalho seminal de P.R. Wallace [2][2] P.R. Wallace, Phys. Rev. 71, 622 (1947)., em que utiliza-se o modelo de tight-binding como primeira parte da solução das bandas de energia do grafite, uma vez que este último é meramente um empilhamento de camadas de grafeno. O assunto da estrutura de bandas do grafite foi vastamente abordado posteriormente, sendo que os parâmetros de algumas constantes físicas relevantes no modelo de tight-binding podem ser encontradas no trabalho de J.W. McLure, de 1957 [3][3] J.W. McLure, Phys. Rev. 108, 612 (1957).. A conexão da teoria de bandas da monocamada de grafite, nome pelo qual o grafeno era originalmente conhecido, com a teoria de férmions de Dirac em (1+2) dimensões está demonstrada pelo menos desde 1984, em um trabalho de G.W. Semenoff [4][4] G.W. Semenoff, Phys. Rev. Lett. 53, 2449 (1984).. Todavia, foi a partir da descoberta de uma técnica experimental simples que permitiu a obtenção inequívoca de uma monocamada de grafeno, pelos físicos russos A. Geim e K. Novoselov [5[5] K.S. Novoselov, D. Jiang, F. Schedin, T.J. Booth, V.V. Khotkevich, S.V. Morozov and A.K. Geim, PNAS 102, 10451 (2005).,6[6] K.S. Novoselov, A.K. Geim, S.V. Morozov, D. Jiang, Y. Zhang, S.V. Dubonos, I.V. Grigorieva and A.A. Firsov, Science 306, 666 (2004).], em 2003, na Universidade de Manchester, que ocorreu um aumento exponencial na produção científica referente a esse fantástico material, podendo ser encontrados estudos das mais diversas propriedades, desdes magnetismo à possibilidade de eletrônica considerando o pseudo-spin [7[7] A.H. Castro Neto, F. Guinea, N.M.R. Peres, K.S. Novoselov and A.K. Geim, Rev. Mod. Phys 81, 109 (2009).

[8] S. Das Sarma, S. Adam, E. H. Hwang and E. Rossi, Rev. Mod. Phys. 83, 407 (2011).

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[49] S.J. Woo and Young-Woo Son, Phys. Rev. B 87, 075419 (2013).

[50] Andrei Andryieuski, Andrei V. Lavrinenko and Dmitry N. Chigrin, Phys. Rev. B 86, 121108(R) (2012).

[51] D. Drosdoff and L.M. Woods, Phys. Rev. B 82, 155459 (2010).

[52] E. Prada, P. San-Jose and H. Schomerus, Phys. Rev. B 80, 245414 (2009).

[53] Takahiro Morimoto, Yasuhiro Hatsugai and Hideo Aoki, Phys. Rev. B 78, 073406 (2008).

[54] P.S. Cornaglia, Gonzalo Usaj and C.A. Balseiro, Phys. Rev. Lett. 102, 046801 (2009).

[55] Yafis Barlas, T. Pereg-Barnea, Marco Polini, Reza Asgari and A.H. MacDonald, Phys. Rev. Lett. 98, 236601 (2007).
-56[56] T. Tudorovskiy and S.A. Mikhailov, Phys. Rev. B 82, 073411 (2010).]. No ano de 2010, Geim e Novoselov foram agraciados com o prêmio Nobel de Física pelo feito [29[29] A.K. Geim, Nobel Lecture: Random Walk to Graphene, Rev. Mod. Phys. 83, 851 (2014).,30[30] K.S. Novoselov, Nobel Lecture: Graphene: Materials in the Flatland, Rev. Mod. Phys. 83, 837 (2011).]. O entusiasmo gerado por essa descoberta experimental deve-se ao fato de que trata-se do primeiro material verdadeiramente bidimensional porque é constituído de um única camada atômica, em contraste com estruturas que se comportam como bidimensionais, porque uma das dimensões é muito reduzida em relação às outras duas, mas essa dimensão diminuta ainda assim é constituida de várias camadas atômicas. Uma das mais espetaculares previsões teóricas para o grafeno, confirmada experimentalmente, é a de que os elétrons se comportam como férmions de Dirac sem massa nos chamados pontos de Dirac, ou seja, agem efetivamente como “partículas relativísticas” sem massa em um espaço-tempo de (1+2) dimensões, sendo uma dimensão temporal e duas espaciais. Esse comportamento exótico abre o campo para emular física de altas energias em matéria condensada, além de prometer uma revolução na eletrônica de alta velocidade. Cabe lembrar que os elétrons no grafeno apenas são descritos por uma matemática análoga à equação de Dirac para férmions sem massa em (1+2) dimensões, e são “relativísticas” com a velocidade de Fermi υFc/300fazendo o papel da velocidade da luz.

Uma mera curiosidade associada ao físico A. Geim, um dos recebedores do Nobel pelo grafeno, é que em 2000 ele havia recebido o nada honorável prêmio IgNobel de Física, juntamente com M. Berry, por experimentos com a levitação magnética de uma rã [29][29] A.K. Geim, Nobel Lecture: Random Walk to Graphene, Rev. Mod. Phys. 83, 851 (2014).. Diz o lema do IgNobel, de acordo com a própria página eletrônica [57][57] Ver página da web http://www.improbable.com/ig.
http://www.improbable.com/ig...
, que os prêmios são destinados a “pesquisas que primeiro nos fazem rir e depois nos fazem pensar”. Excelentes trabalhos de revisão, abordando tanto aspectos teóricos quanto experimentais, em idioma inglês são facilmente encontrados, dos quais destacamos as Refs. [7[7] A.H. Castro Neto, F. Guinea, N.M.R. Peres, K.S. Novoselov and A.K. Geim, Rev. Mod. Phys 81, 109 (2009).

[8] S. Das Sarma, S. Adam, E. H. Hwang and E. Rossi, Rev. Mod. Phys. 83, 407 (2011).
-9[9] M.A.H. Vozmediano, M.I. Kastnelson and F. Guinea, Physics Reports 496, 109 (2010).]. Todavia, há pouca bibliografia de revisão disponível em idioma português, abordando o essencial da física dos férmions de Dirac e suas aplicações ao grafeno.

O objetivo desse trabalho é apresentar os fundamentos da física de férmions de Dirac e como surge o modelo efetivo no grafeno, de forma bastante didática, que permita o uso desse sistema físico como introdução simplificada às teorias de campos relativísticas e aos métodos de segunda quantização.

A organização dessa contribuição está feita da seguinte maneira: Na Seção 2 serão discutidos os aspectos mais relevantes da estrutura do tipo favo de mel, bem como o modelo de tight-binding e sua solução através de decomposição dos operadores de criação e aniquilação em componentes de Fourier. Na Seção 3, a partir da linearização da relação de dispersão energia-momento nas bandas de energia do grafeno vamos obter a teoria de Dirac para férmions sem massa e as soluções da equação de Dirac expressas na forma de ondas planas uniformes, em (1+2) dimensões do espaço-tempo. Na Seção 4, o campo de Dirac será quantizado a partir das regras de quantização canônica para férmions e relações importantes entre os spinores de Dirac e as matrizes de Dirac, bem como a introdução do acoplamento ao campo eletromagnético, são apresentadas. Ao término da Seção 4 alguns exercícios, como a obtenção do propagador de Feynman, são propostos, com a finalidade de deixar ao leitor a tarefa de aprofundamento nos cálculos. Finalmente, na última Seção algumas conclusões e considerações finais são apresentadas.

2. A estrutura favo de mel e o modelo de tight-binding no grafeno

O grafeno constitui-se de um arranjo de átomos de carbono em uma rede cristalina do tipo favo de mel, conforme ilustrado na Fig. 1.

Figura 1
A estrutura cristalina do tipo favo de mel do grafeno, com os vetores primitivos a1 e a2 e as duas sub-redes A e B.

A estrutura de favo de mel forma uma rede de Bravais com base de dois átomos, um deles pertencente a uma sub-rede triangular, denotada por sub-rede A e o outro pertencente a uma sub-rede triangular B rotacionada de 180° em relação à rede A. Aqui é importante enfatizar que a estrutura de favo de mel somente pode ser descrita como rede de Bravais com uma base, uma vez que os vértices onde se encontram os átomos de carbono somente não satizfazem as condições matemáticas requeridas pela definição de rede de Bravais [58[58] N.W. Ashcroft, N.D. Mermin, Solid State Physics (Ed. Cengage Learning, 1976, New York), 1st. ed.,59[59] C. Kittel, Introduction to Solid State Physics(Ed. John Wiley and Sons, New York, 2004), 8th. ed.]. A base constitui-se de um átomo da sub-rede A e um átomo da sub-rede B, formando um haltéres, cuja distância entre os átomos de carbono vale a =1,42 Å. Para formar toda a rede bidimensional são necessários dois vetores primitivos a1 e a2, dados por

(1) a 1 = 3 a x ̂ ,
(2) a 2 = 3 a ( 1 2 x ̂ + 3 2 y ̂ ) ,

onde x̂e ŷ são os vetores unitários indicando as direções no plano x, y. Observe o leitor que, alternativamente, podemos pensar a rede favo de mel tendo por base um hexágono de lado acontendo 1/3 de átomo de carbono em cada um de seus 6 vértices. Esse hexágono pode ser deslocado em relação ao seu centro por translações na forma R=n1a1+n2a2, sendo n1=0,±1,±2e n2=0,±1,±2quaisquer números inteiros, permitindo construir toda a rede.

O átomo de carbono tem uma estrutura eletrônica do estado fundamental dada por 1s22s2p2e como podemos observar a camada de valência corresponde ao número quântico principal n = 2, com quatro funções de onda orbitais de valência sp, p, px, py e pz, cada um deles duplamente degenerados devido ao spin eletrônico, significando que caberiam um total de 8 elétrons na camada de valência, estando ela metade preenchida nesse caso. Uma descrição simples das ligações químicas do carbono se dá através da utilização de orbitais híbridos [60][60] M. Alonso and E.J. Finn, Física (Editora Escolar, 2012, São Paulo). obtidos da superposição adequada dos orbitais atômicos. No carbono as hibridizações mais importantes são dos tipos sp2 e sp3. A estrutura cristalina formada na hibridização do tipo sp3 é o diamante, onde todos os orbitais combinam-se linearmente para formar novos orbitais de simetria tetraédrica, com ângulo de aproximadamente 109° entre eles, ao passo que o grafite e o grafeno tem estruturas cristalinas que podem ser entendidas de maneira simples utilizando a hibridização do tipo sp2, onde dois orbitais do tipo p, no caso, px e py, se combinam com o orbital sp gerando os seguintes orbitais híbridos

(3) | ψ 1 = 1 3 ( | s + | p x + | p y ) ,
(4) | ψ 2 = 1 6 ( | s + | p x 2 | p y ) ,
(5) | ψ 3 = 1 2 ( | s | p x ) ,

enquanto o orbital pz não se mistura aos demais, ficando perpendicular ao plano x, y que contém os orbitais hibridizados sp2. Não é difícil mostrar que as funções orbitais acima são ortogonais entre si no espaço de Hilbert, e formam um ângulo de 120° entre si no espaço real (ver Fig. 2).

Figura 2
Os orbitais pz e sp2 do carbono. Os orbitais sp2 formam ângulos de 120° entre si no plano x, y e são todos ortogonais no espaço ao orbital pz, que é perpendicular ao plano x, y e comporta dois elétrons com spins contrários. A combinação de átomos de carbono com hibridização sp2 contidos no plano leva automaticamente à estrutura de favo de mel.

Desse modo os átomos de carbono pode formar ligações químicas do tipo σ no plano x, y, que são altamente direcionais e difíceis de quebrar. Obviamente que um átomo de carbono liga-se através dos orbitais sp2 a outros três átomos no plano, e cada ligação realizada forma um ângulo de 120° com as demais. Desse modo é fácil mostrar que a estrutura formada por ligações sp2 no plano só pode ser uma rede favo de mel, e além disso o panorama que um observador tem nesse plano a partir de um átomo de carbono é rotacionada de 180° quando comparada à visão que teria em qualquer um dos seus três primeiros vizinhos. Como cada carbono tem 4 elétrons de valência, três desses ficam fortemente localizados em algum dos orbitais sp2que associam-se a um dos orbitais sp2 de um primeiro vizinho para formar uma ligação do tipo σ. O elétron restante ficará no orbital pz, perpendicular ao plano. No caso da ligação entre apenas dois átomos de carbono, a interação entre os orbitais pz leva a ligações químicas conhecidas como ligaçoes π por conta do formato do orbital molecular resultante da combinação linear dos orbitais pz desses átomos. Em uma estrutura cristalina do tipo favo de mel contendo um número muito grande de átomos de carbono, os orbitais pz combinam-se para formar uma nuvem eletrônica, que passa a ser conhecida como bandas de energia π (menor energia) e π* (maior energia). Os elétrons nesses orbitais π e π* são mais fracamente ligados aos respectivos átomos de carbono e tem funções de onda deslocalizadas, quando comparadas aos elétrons nas ligações σ no plano. Desse modo é natural imaginar que os elétrons σ pouco contribuem no caso da rede favo de mel para o transporte, enquanto que toda a física do transporte no grafeno deve estar contida nos elétrons ocupando as bandas π e π*. Claramente nessa aproximação cada átomo de carbon contribui com um elétron apenas e como a célula unitária do grafeno no espaço real contém dois átomos de carbono que formam a base, há somente dois elétrons por cela primitiva, o que permite determinar a densidade eletrônica facilmente. Na prática, efeitos de imperfeições e interação com o substrato podem alterar grandemente essa densidade eletrônica teórica ideal.

Uma vez conhecida a rede cristalina no espaço real podemos determinar os vetores relativos entre primeiros vizinhos e também a rede recíproca (espaço dos vetores de onda k), que são úteis nos cálculos que seguirão. Nesse caso, fica como exercício para o leitor demonstrar que os vetores relativos δ1, δ2 e δ3, conectando os 3 primeiros vizinhos de um carbono da sub-rede A, conforme mostrado na Fig. 3, são dados por

(6) δ 1 = a y ̂ ,
(7) δ 2 = a 2 ( 3 x ̂ y ̂ ) ,
(8) δ 3 = a 2 ( 3 x ̂ y ̂ ) .
Figura 3
Os vetores δ1 δ2 e δ3conectando os três primeiros vizinhos de um átomo da sub-rede A, que pertencem à sub-rede B. Para um átomo da sub-rede B os vetores relativos ligando-o aos três primeiros vizinhos da sub-rede Asão dados por -δ1, -δ2 e δ3.

É fácil ver ainda que para um átomo de carbono na sub-rede B, os vetores relativos ligando-o aos três primeiros vizinhos, que pertencem à sub-rede A, são dados por -δ1, δ2 e -δ3, uma vez que a sub-rede B é rotacionada de 180° em relação à sub-rede A e vice-versa. A rede recíproca é determinada obtendo os vetores primitivos b1 e b2 da rede recíproca, conforme o procedimento usual [31[31] A.C. Ferrari, J.C. Meyer, V. Scardaci, C. Casiraghi, M. Lazzeri, F. Mauri, S. Piscanec, D. Jiang, K.S. Novoselov, S. Roth and A.K. Geim, Phys. Rev. Lett. 97, 187401 (2006).,32[32] M.V. Milovanovic, Phys. Rev. B 78, 245424 (2008).]

(9) b 1 = 2 π a 2 × z ̂ ( a 1 × a 2 ) z ̂ = 4 π 3 a ( 3 2 x ̂ 1 2 y ̂ ) ,
(10) b 2 = 2 π z ̂ × a 1 ( a 1 × a 2 ) z ̂ = 4 π 3 a y ̂ .

A partir dos vetores acima pode-se construir toda a rede recíproca considerando um ponto como origem e realizando translações desse ponto na forma Khk=hb1+kb2, com (h, k) assumindo números inteiros. A Fig. 4 ilustra a rede recíproca obtida através desses vetores.

Figura 4
Rede recíproca do grafeno a partir dos vetores b1, b2. Note que trata-se de uma rede hexagonal.

Agora, utilizamos o método usual, traçando retas entre um ponto de referência da rede recíproca e todos os demais, e posteriormente, retas perpendiculares a essas primeiras no ponto médio das retas que ligam o ponto de referência aos demais pontos da rede recíproca, para obter a primeira zona de Brillouin do grafeno. O resultado será dado pela menor entidade geométrica fechada, delimitada pelo procedimento mencionado, e é ilustrado na Fig. 5. Há dois pontos inequivalentes, K=4π/(33a)x̂e K=Kque não podem ser conectados por nenhum vetor da rede recíproca. Esses são os chamados pontos de Dirac, cujo nome ficará mais claro mais adiante.

Figura 5
Primeira zona de Brillouin na rede recíproca do grafeno. Há dois pontos inequivalentes, K e K=Kque não podem ser conectados por nenhum vetor da rede recíproca. Esses são os pontos de Dirac.

Uma vez que já temos conhecimento de todos os aspectos geométricos da rede favo de mel, tanto no espaço real quanto no espaço recíproco, podemos considerar a descrição da física dos elétrons nos orbitais pz no grafeno, que determinam todas as propriedades de transporte de carga essenciais em regime de baixos campos aplicados, através de um modelo de tight-binding simples, considerando a probabilidade de salto de um elétron entre átomos primeiros vizinhos e segundos vizinhos apenas, sendo o hamiltoniano desse modelo dado por

(11) H ̂ = t ij σ ( a ̂ i b ̂ j σ + b ̂ j σ a ̂ i σ ) t i j σ ( a ̂ i σ a ̂ j σ + b ̂ i σ b ̂ j σ ) + U i ( a ̂ i a ̂ i a ̂ i a ̂ i + b ̂ i b ̂ i b ̂ i b ̂ i ) ,

onde âiσ((âiσ)é um operador fermiônico que aniquila (cria) um elétron de spin verdadeiro σ=,no i-ésimo átomo sub-rede A,b̂jσ((âjσ)é um operador fermiônico que aniquila(cria) elétrons na sub-rede B, ijdenota a soma sobre os primeiros vizinhos e ija soma sobre os segundos vizinhos. Note que os primeiros vizinhos de um átomo da sub-rede A são 3 átomos da sub-rede B, e vice-versa, enquanto que os segundos vizinhos de um dado átomo totalizam 6 e são da mesma sub-rede. O parâmetro de hopping entre primeiros vizinhos t2,8eVé pelo menos uma ordem de magnitude maior do que entre os segundos vizinhos t<0,1eV, e supõe-se que a repulsão coulombiana U entre os elétrons, mais pronunciada se dois elétrons de spins contrários ocuparem os orbitais pz de um mesmo átomo, pode ser menosprezada, em primeira aproximação. Desconsiderando a interação entre segundos vizinhos e a repulsão coulombiana o hamiltoniano que descreve o sistema toma a forma mais simples

(12) H ̂ = t i j σ ( a ̂ i σ b ̂ j σ + b ̂ i σ a ̂ j σ ) .

Para diagonalizar o hamiltoniano acima, podemos decompor os operadores em termos de componentes de Fourier, conforme a transformação discreta de Fourier, dada por

(13) â i σ = 1 N k â k σ e i k r i ,
(14) â i σ = 1 N k â k σ e i k r i ,
(15) b ̂ i σ = 1 N k b ̂ k σ e i k r i ,
(16) b ̂ i σ = 1 N k b ̂ k σ e i k r i ,

onde k é o vetor de onda no chamado espaço recíproco, enquanto ri é o vetor de posição do i-ésimo átomo na sub-rede correspondente. Note que existem N átomos em cada sub-rede e a transformação leva os operadores de criação e aniquilação do espaço real, onde as posições correspondem ao índice i, j para o espaço de momento k=(kx,ky), já que estamos em duas dimensões espaciais. Nas equações acima, que representam transformadas de Fourier discretas, N é o número de átomos total da rede (ou de sítios). Utilizando a identidade

(17) δ k k = 1 N i e ± i ( k k ) r i ,

onde δkké a função delta de Kronecker no espaço recíproco, e substituindo as Eqs. (13)-(16) na Eq. (12), fica como exercício para o leitor demonstrar que o hamiltoniano de tight-binding assume a forma seguinte no espaço recíproco

(18) H ̂ = k σ ψ k σ H N ψ k σ ,

onde HN é uma matriz e ψkσé um pseudo-spinor na chamada representação de Nambu, dados por

(19) H N = ( 0 f ( k ) f ( k ) * 0 ) , ψ k σ = ( a k σ b k σ ) .

A função f(k=tn=13eikδné definida no modelo de tight-binding através interação com os primeiros vizinhos, com vetores relativos δndefinidos previamente nas Eqs. (6)-(8). Um cálculo explícito leva ao resultado final

(20) f ( k ) = t e i k y a [ 1 + 2 e i 3 2 k y a cos ( 3 k x a 2 ) ] .

Há duas soluções para a energia do sistema, de igual módulo e sinais contrários, para cada valor do vetor de onda k nesse modelo simples, que são encontradas pela determinação dos autovalores da matriz HN

(21) E ± ( k ) = ± | f ( k ) | = ± t 1 + 4 cos ( 3 k x a 2 ) cos ( 3 k y a 2 ) + 4 cos 2 ( 3 k x a 2 ) .

Cada uma dessas funções determina uma banda de energia no grafeno, sendo E+(k) a banda de maior energia e E(k) a de menor energia, sendo simétricas em relação à energia linha de energia E = 0. O potencial químico μ(T=0)=EFdo grafeno em temperatura nula (T = 0) passa exatamente por zero, ou seja, o nível de Fermi no grafeno é exatamente zero. Essas duas bandas de energia são retratadas na Fig. 6, dentro da primeira zona de Brillouin [32][32] M.V. Milovanovic, Phys. Rev. B 78, 245424 (2008).. A Fig. 7 mostra um mapa de contorno da banda de energia denotada por E+(kx,ky), dentro da primeira zona de Brillouin.

Figura 6
Bandas de energia do grafeno mostradas na primeira zona de Brillouin, obtidas a partir das funções (21), em função de k=(kx,ky), lembrando que o nível de Fermi passa exatamente pelo plano E = 0.
Figura 7
Mapa de Contorno da banda de maior energia do grafeno mostradas na primeira zona de Brillouin, em função de k=(kx,ky).

Como se pode ver claramente na Fig. 6 nos vértices da primeira zona de Brillouin as duas bandas de energia se tocam, porque f(k=0nesses pontos e consequentemente E+=E=0. É importante lembrar que nesses pontos está o potencial químico do grafeno, sendo que por esse motivo a física relevante em baixas energias se desenvolve nas proximidades desses pontos. Como somente há dois pontos inequivalentes, K=4π/(33a)x̂e K=K, podemos expandir a função f(k em séries de Taylor em torno desses pontos, bem como as funções de energia, levando a uma teoria efetiva de férmions de Dira sem massa. Isso será feito em maiores detalhes na seção seguinte.

3. A equação de Dirac em um espaço-tempo de (1+2) dimensões

Confome mencionado acima, a função f(k)anula-se nos pontos K=4π/3(3a)x̂e K=K. A função também se anula nos outros 4 vértices do hexágono que representa a primeira zona de Brillouin, como pode ser mais claramente percebido na Fig. 6. Nas proximidades de cada um desses pontos, as bandas formam um duplo cone (um voltado para cima e outro para baixo, tocando-se no ponto de energia nula, representando as duas soluções de energia possíveis), mas somente 1/3 de cada duplo cone está dentro da primeira zona de Brillouin. Como são 6 vértices, podemos ver que existem 6 × 1/3 = 2 duplos cones, que são inequivalentes e podem ser montados de forma completa a partir de translações dos vértices com vetores da rede recíproca. Isso explica porque somente dois pontos de Dirac são inequivalentes.

Agora, vaamos expandir a função f(k) em séries de Taylor torno do ponto K=4π/3(3a)x̂, lembrando que f(K)=0, e portanto

(22) f ( q ) = f ( k K ) = q k f ( k ) | k = K = 3 a t 2 [ q x i q y ] ,

onde o vetor q=(qx,qy)=kKé corresponde a um pequeno deslocamento no vetor de onda k em torno do ponto K e k=(/kx,/ky)é o operador gradiente em relação às variáveis k.

A constante 3at/2 tem unidades da constante de Planck vezes velocidade e pode ser expressa na forma υF, onde υFé a velocidade de Fermi para esse caso, porque o nível de Fermi passa exatamente pelo ponto K, onde estamos fazendo a expansão. A velocidade de Fermi aqui tem o mesmo papel da velocidade da luz no vácuo, para partículas relativísticas. Utilizando os valores das constantes para o grafeno, t = 2,8 eV, a = 1,42 Å e para a constante de Planck =6,59×1016eV.s, pode-se obter facilmente υF=9×105106m/s. Esse valor corresponde a aproximadamente 1/300 da velocidade da luz no vácuo.

Considerando a função f(q)=υF(qxiqy)na definição de HN na Eq. (19) podemos escrever o hamiltoniano expandido em torno do ponto K na forma que segue

(23) H ̂ = υ F q σ ψ q σ ( 0 q x i q y q x + i q y 0 ) ψ q σ ,

onde ψqσ=(bqσaqσ)é um pseudo-spinor de Nambu, onde a componente aqσ(bqσ)corresponde à amplitude de probabilidade de um elétron ocupar um átomo na sub-rede A (B) com spin verdadeiro σ e momento q em relação ao vetor K, ou seja, o vetor de onda total seria dado por k=K+q.

Para mostrar que o hamiltoniano acima corresponde à descrição de um férmion de Dirac sem massa, primeiro vamos considerar as matrizes de Pauli para um pseudo-spin (ou espaço de isospin), na forma

(24) τ x = ( 0 1 1 0 ) ,
(25) τ y = ( 0 i i 0 ) ,
(26) τ z = ( 1 0 0 1 ) ,

que permite escrever a Eq. (23) na forma

(27) H ̂ = υ F q σ ψ q σ τ q ψ q σ ,

sendo τ=(τx,τy) e τq=τxqx+τyqy. Na sequência vamos apelar a um truque envolvendo a função delta de Kronecker, a saber: veja que ΣqΣqFqGqδqq=ΣqFqGqpara quaisquer funções Fqe Gqe além disso podemos utilizar a definição da função delta de Kronecker na forma (17). Fazendo isso, a Eq. (27) toma a forma

(28) H ̂ = υ F q q σ ψ q σ τ q ψ q σ δ q q = υ F 1 N j q q σ ψ q σ τ q ψ q σ e i ( q q ) r j .

O próximo passo é levar o somatório sobre j ao limite do contínuum, lembrando que ψσ(rj)=Σqψqσeiqrje que o termo τqpode ser obtido fazendo a substituição q=i, onde ∇ opera sobre as variáveis r no espaço real. O resultado final é dado por

(29) H ̂ = i υ F σ d 2 r ψ σ ( r ) τ ψ σ ( r ) ,

onde d2r=dxdycorresponde à integração das variáveis espaciais, depois que o limite para o contínuum foi tomado. Podemos lembrar que ié o operador momentum p na mecânica quântica e as matrizes τx,τyfazem o papel das matrizes α de Dirac, dando origem a uma teoria de Dirac para partículas sem massa.

Se retrocedermos um pouco em nossos cálculos, podemos diagonalizar a matriz que aparece na Eq. (23) e teremos os seguintes autovalores de energia

E ± ( q ) = ± υ F | q | = ± υ F q x 2 + q y 2 .

Esse tipo de relação de dispersão linear entre momento e energia, que em duas dimensões resulta em um duplo cone, corresponde ao caso de partículas relativísticas sem massa. Portanto, no grafeno os elétrons próximos dos pontos de Dirac, comportam-se efetivamente como férmions de Dirac sem massa, mas o papel da velocidade da luz é assumido pela velocidade de Fermi υF.

Para obter as equações de movimento da função de onda ψ, observe que a Eq. (29) tem a forma de um valor médio, se assumimos que ψ é uma função de ondas clássica, porque a média de um operador Ôcom relação a uma função dada é definida como ψσ|Ô|ψσ=d2rψσ(r)Ôψσ(r). O operador em questão na Eq. (29) é o hamiltoniano de Dirac em duas dimensões espaciais, para uma partícula relativística sem massa, ou seja, ĤD=iυFτ=υFτp. A função de onda ψσ(r)deve satisfazer a equação de Schrödinger dependente do tempo com esse hamiltoniano, ou seja,

(30) i ψ σ t = H ̂ D ψ σ = i υ F τ ψ σ .

Agora é conveniente adotar a notação relativística para o espaço-tempo, fazendo as seguintes definições

(31) x μ = ( υ F t , x , y ) ,
(32) g μ ν = d i a g ( 1 , 1 , 1 ) ,
(33) μ = x μ = ( 1 υ F t , ) ,
(34) γ μ = τ z ( 1 , τ x , τ y ) = ( τ z , i τ y , i τ x ) = ( γ 0 , γ ) ,

onde o índice μ vai de 0 até 2, sendo a componente 0 sempre associada ao tempo e 1, 2 às coordenadas espaciais, xμé a μ-ésima componente do o vetor de coordenadas no espaço-tempo em 1 + 2 dimensões, gμv=gμvé o tensor métrico no espaço de Minkowski, diag denota uma matriz diagonal com elementos da diagonal dados entre parênteses, μé o operador diferencial e γμ=(γ0,γ1,γ2)são as matrizes de Dirac, que devem satisfazer a álgebra

(35) { γ μ , γ ν } = γ μ γ ν + γ ν γ μ = 2 g μ ν 1 ,

sendo 1 a matriz identidade com a dimensionalidade das matrizes de Dirac. No caso de considerarmos apenas os férmions de Dirac em 1 + 2 dimensões sem spin e sem levar em conta o outro ponto K, elas são matrizes 2 × 2, como é claro pela sua representação em termos de matrizes de Pauli. Fica como exercício para o leitor demonstrar essa álgebra de Dirac no espaço-tempo de (1+2) - dimensões. É conveniente utilizar a convenção de Einstein, para soma de índices repetidos, ou seja, Σμ=02AμBμAμBμe para subir ou descer um índice de um vetor qualquer utiliza-se o tensor métrico, como é usual no cálculo tensorial tão comumente utilizado na teoria da relatividade, na forma Aμ=gμvAve Aμ=gμvAv. Pode-se facilmente demonstrar, por exemplo, que xμ=gμvxv=(υFt,x,y) e portanto xμxμ=υF2t2x2y2, enquanto kxkμxμ=ωtkxxkyy=ωtkr.

Utilizando a convenção de Einstein, pode-se mostrar sem muito esforço, que a equação de Dirac (30), após multiplicá-la por τz=γ0e dividí-la por 1/(υF), pode ser reescrita na forma compacta

(36) i γ μ μ ψ σ = 0.

Definindo ainda um spinor adjunto na forma ψ¯σ=ψσγ0, podemos escrever uma função densidade de lagrangiana

(37) = i υ F σ ψ ¯ σ γ μ μ ψ σ ,

de onde podemos derivar a Eq. (36) a partir das equações de Euler-Lagrange, que são mostradas abaixo para um campo ϕ qualquer

(38) ϕ μ ( μ ϕ ) = 0.

Fazendo ϕ=ψ¯σna equação acima leva-nos diretamente à equação de Dirac. Da formulação lagrangiana, podemos definir uma densidade de momento canonicamente conjugado ao campo ϕ, denotado por π, através da equação π=L/ϕ, onde ϕ=ϕ/t. Dessa forma obtemos para o campo ψ a densidade de momento

(39) π = ψ ̇ = i ψ ¯ γ 0 ,

enquanto que a densidade de momento canônico π¯, associada à ψ¯é exatamente zero. Uma transformação de Legendre permite encontrar a densidade hamiltoniana (ϕ,π,ϕ) a partir da densidade lagrangiana (ϕ,μϕ), na forma

(40) = π ϕ ˙ ,

o que nesse caso, lembrando que γ0γ=τresulta em

(41) = i υ F σ ψ ¯ σ γ ψ σ = i υ F σ ψ σ τ ψ σ ,

cuja integração no espaço real nos dá novamente a Eq. (29), e assim percorremos todo o caminho até voltarmos ao ponto original.

Convém discutir um ponto muito importante, associado à quiralidade no grafeno, antes que possamos passar para a quantização do campo de Dirac. Na literatura corrente é comum mencionar que há um termo de quiralidade no grafeno. Rigorosamente falando não há operador de quiralidade em dimensões ímpares, porque não existe nesses casos uma matriz γ5 análoga à matriz que aparece no espaço-tempo de (1+3) dimensões. A quiralidade é definida como a propriedade de dois objetos que podem ser convertidos entre si por combinações de translações, rotações e reflexões em planos especiais combinadas, mas não por rotações combinadas a translações somente. Matematicamente, busca-se uma matriz γ5 que é solução para o problema {γ5,γμ}=γ5γμ+γμγ5=0, ou seja, dado um espaço com n dimensões há n matrizes γμ distintas e busca-se uma matriz adicional γ5 que anti-comuta com todas as outras. Em (1+3) dimensões essa matriz é dada pelo produto das outras quatro matrizes de Dirac na forma γ5=iγ0γ1γ2γ3[61][61] S. Weinberg, The Quantum Teory of Fields(Cambridge University Press, Cambridge, 1996), v. I.. Todavia, através da teoria de grupos e do lema de Schur pode-se mostrar que tal solução em dimensões ímpares não existe [62][62] M. Tinkham, Group Theory and Quantum Mechanics(Dover Publications New York, 2003).. Isso significa que dois objetos inicialmente distintos podem ser colocados em uma forma equivalente utilizando apenas rotações e translações em dimensões ímpares. Vejamos que no espaço-tempo de (1+2) dimensões teríamos γ5=iγ0γ1γ2=1, ou seja, não há nenhuma matriz adicional que possa ser associada à quiralidade. Na teoria relativística no espaço-tempo de (1+3) dimensões, o operador denominado quiralidade é exatamente a matriz γ5, e existe um operador de helicidade representada por σp, sendo σ as matrizes de Pauli associadas ao spin verdadeiro das partículas. Para partículas sem massa, os operadores de quiralidade e helicidade tem os mesmos autovalores e podem ser simultaneamente diagonalizados, no caso em que exista operador de quiralidade. Costuma-se de forma equívoca chamar o operador helicidade de quiralidade, em alguns casos, sobretudo em altas energias, quando a massa torna-se irrelevante e esses dois operadores se confundem. No grafeno, costuma-se denominar o operador τ.p de operador de quiralidade, sendo as soluções de energia autoestados desse operador. Essa nomenclatura, rigorosamente falando, não é a mais correta e deveria ser substituída por operador de pseudo-helicidade, uma vez que τnão está associado ao spin verdadeiro, e sim ao pseudo-spin. Assim teríamos no grafeno um operador de helicidade verdadeira e um de pseudo-helicidade, mas nenhum operador verdadeiramente de quiralidade. Note ainda que para férmions de Dirac em (1+1) dimensões, ou seja, dimensionalidade total par, novamente recuperaríamos o operador de quiralidade verdadeiro, porque poderíamos fazer γ0=τze γ1=iτypermitindo definir uma matriz de quiralidade diferente da identidade, γ5=γ0γ1=τx, possuindo autovalores ±1.

4. A quantização canônica do campo de Dirac

Antes de apresentar a quantização canônica convém lembrar que os elétrons no grafeno possuem, além do pseudo-spin, spin-verdadeiro σ=,, e além disso, fica como exercício ao leitor demonstrar que a expansão da função f(k) dada na Eq. (20) em torno do ponto K=Kleva a uma outra cópia idêntica da teoria de Dirac para férmions sem massa, com uma única modificação de sinal na matriz τx e γ1, consequentemente, porque é como se produzíssemos uma inversão de coordenada xx, o que faz inverter o sinal de kx para manter a teoria invariante. Nesse caso, é possível escrever matrizes γμ estendidas, bem como spinores de Dirac ψ contendo as 4 cópias idênticas de férmions de Dirac, proveniente de 2 spins verdadeiros × 2 pontos de Dirac distintos. Uma representação explícita das matrizes de Dirac levando em conta o spin verdadeiro e os dois pontos de Dirac são dadas por

(42) γ 0 = ( τ z 0 0 0 0 τ z 0 0 0 0 τ z 0 0 0 0 τ z ) ,
(43) γ 1 = ( i τ y 0 0 0 0 i τ y 0 0 0 0 i τ y 0 0 0 0 i τ y ) ,
(44) γ 2 = ( i τ x 0 0 0 0 i τ x 0 0 0 0 i τ x 0 0 0 0 i τ x ) ,

sendo o spinor de Dirac ψ expresso na forma de um vetor coluna com 8 números complexos

(45) ψ = ( ξ ξ ζ ζ ) ,

ψ¯=ψγ0o spinor adjunto, os spinores ξσ(ζσ)tem duas componentes complexas, descrevendo um elétron no ponto de Dirac K(K)com spin verdadeiro σ=(,). Usualmente define-se um número quântico conhecido como pseudo-spin de vale α, mencionado previamente, correspondendo aos pontos de Dirac K(α=+1) e K=K(α=1), isto é, os spinores ξ e ζ correspondem aos autovalores +1 and −1, respectivamente, para o pseudo-spin de vale. Finalmente, quanto ao pseudo-spin de sub-rede, associado às matrizes τ=(τx,τy,τz), para um elétron no ponto K com spin σ os autovalores de τz correspondem a elétrons na sub-rede Aou B.

Utilizando as matrizes γμ dadas nas Eqs. (42)-(44) e a função ψ na forma (45) podemos escrever a lagrangiana de Dirac numa forma compacta

(46) = i υ F σ = , α = + 1 , 1 ψ ¯ σ α γ σ α μ μ ψ σ α = i υ F ψ ¯ γ μ μ ψ .

Para utilizar a quantização canônica, precisamos determinar a densidade de momento canônico ao campo, bem como as soluções de ondas planas uniformes para o campo livre de Dirac. Vamos obter essas soluções considerando a equação de Dirac [61[61] S. Weinberg, The Quantum Teory of Fields(Cambridge University Press, Cambridge, 1996), v. I.,63[63] L.H. Ryder, Quantum Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996), 2nd. ed.,64[64] W. Greiner, J. Reinhardt, Field Quantization(Ed. Springer-Verlag Berlin, Berlin, 1996), 1st ed.]

(47) i γ μ μ ψ = 0 ,

que pode ainda ser escrita de forma mais explícita

i γ 0 1 v F t + i γ ψ = 0.

Sabendo que as matrizes de Dirac são matrizes 8×8 existem 8 soluções distintas para a equação acimada equação, porém podemos utilizar o fato de haver 4 cópias idênticas de férmions de Dirac, para escrever as soluções de ondas planas na forma

(48) ψ k , + = ( ϕ k , + 0 0 0 ) e i k x , ψ k , + = ( 0 ϕ k , + 0 0 ) e i k x ,
(49) ψ k , = ( 0 0 ϕ k , 0 ) e i k x , ψ k , = ( 0 0 0 ϕ k , ) e i k x ,

onde ϕk,α=(Ak,αBk,α)é um pseudo-spinor de sub-rede no ponto de Dirac correspondendo a α=+1,1,0=(00)e kx=ωtkr. Nesse caso, conforme o leitor poderá demonstrar, a equação de Dirac para ϕk,αtoma a forma

(50) [ k 0 τ z i α τ y k x + i τ x k y ] ϕ k , α = 0 ( k 0 α k x + i k y α k x + i k y k 0 ) ( A k , α B k , α ) = 0 ,

onde k0=ω/υFestá associado um número associado à energia na forma E=υFk0. O trabalho restante é meramente encontrar os autovalores K0 e autovetores da equação acima, que só possui solução se det(k0τziατykx+iτxky)=0, o que nos fornece

(51) k 0 2 k x 2 k y 2 = 0 k 0 = ± | k | ,

havendo, como em todo sistema relativístico, uma solução de energia positiva (k0>0) e uma solução de energia negativa (k0 < 0). Os autovetores correspondentes, já normalizados, são

(52) u k , α + = 1 2 ( 1 α e i α φ k ) ,
(53) u k , α = 1 2 ( 1 α e i α φ k ) ,

onde μk,α+e μk,αsão os pseudo-spinores correspondentes às soluções de energia positivas e negativas, respectivamente e o ângulo φké definido através da relação tanφk=ky/kx.

Agora, o campo de Dirac ψ(x) pode ser expandido em componentes de Fourier, utilizando os spinores determinados acima, e por uma questão de completeza matemática, temos que levar em conta tanto as soluções de energia positiva e quanto negativa, na forma

(54) ψ ( x ) = k , σ , α [ C k , σ , α , + u k , α + e i ( k r k 0 t ) + C k , σ , α , u k , α e i ( k r + | k 0 | t ) ] ,

onde k0=±|k|, Ck,σ,α,+é o coeficiente de Fourier da onda plana de energia positiva (υFk0>0) e momento k no ponto de Dirac α com spin verdadeiro σ=,, enquanto Ck,σ,α,é o coeficiente de Fourier da onda plana de energia negativa (υF|k0|<0) e momento k.

Para proceder com a quantização canônica primeiro determinamos o momento canônico π(x), a partir da lagrangiana (46), que nos dá

(55) π = ( ψ t ) = i ψ ¯ γ 0 = i ψ ,

e então, para quantizar um campo fermiônico, convertemos ψ e π em operadores ψ̂,π̂de forma que satisfaçam as relações de anti-comutação a tempos iguais, na forma [36][36] D.S.L. Abergel, E.H. Hwang and S. Das Sarma, Phys. Rev. B 83, 085429 (2011).

(56) { ψ ̂ ( r , t ) , ψ ̂ ( r , t ) } = 0 ,
(57) { π ̂ ( r , t ) , π ̂ ( r , t ) } = 0 ,
(58) { ψ ̂ ( r , t ) , π ̂ ( r , t ) } = i δ 2 ( r r ) ,

onde {Â,B̂}=ÂB̂+B̂Â, para quaisquer operadores Âe B̂e δ2(rr)é a função delta de Dirac nas duas dimensões espaciais. Para que ψ̂,π̂sejam transformados em operadores é necessário que os coeficientes de Fourier Ck,σ,α,+e Ck,σ,α,sejam convertidos em operadores de aniquilação fermiônicos ĉk,σ,α,+e ĉk,σ,α,+satisfazendo relações fermiônicas na forma

(59) { c ̂ i , c ̂ j } = { c ̂ i , c ̂ j } = 0 ,
(60) { c ̂ i , c ̂ j } = δ i j ,

onde ĉianiquila um elétron com números quânticos i=(k,σ,α,±) e ĉjcria um elétron com números quânticos dados pelo índice i, δijé a função delta de Kronecker. Fica como exercício ao leitor demonstrar que as relações (59) e (60) são consistentes com as Eqs. (56)-(58).

Como último passo na quantização cabe reinterpretar as soluções de elétrons com carga negativa e energia negativa como buracos de carga positiva e energia positiva. Para tanto fazemos a troca dos operadores de aniquilação ĉk,σ,αde elétrons com energia negativa por um operador de criação de buraco d̂k,σ,α+com energia positiva e vetor de onda k=k, ou seja, movendo-se no sentido contrário ao do elétron [61[61] S. Weinberg, The Quantum Teory of Fields(Cambridge University Press, Cambridge, 1996), v. I.,63[63] L.H. Ryder, Quantum Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996), 2nd. ed.,64[64] W. Greiner, J. Reinhardt, Field Quantization(Ed. Springer-Verlag Berlin, Berlin, 1996), 1st ed.]. Desse modo os operadores ψ̂e ψ¯̂tomam a forma

(61) ψ ̂ ( x ) = k , σ , α [ c ̂ k , σ , α u k , α + e i ( k r υ F k 0 t ) + d ̂ k , σ , α u k , α e i ( k r + υ F | k 0 | t ) ] ,
(62) ψ ¯ ̂ ( x ) = k , σ , α [ c ̂ k , σ , α u ¯ k , α + e i ( k r υ F k 0 t ) + d ̂ k , σ , α u ¯ k , α e i ( k r + υ F | k 0 | t ) ] ,

onde u¯=uγ0. Observe que no termo de energia positiva eliminamos o sinal + que indicava energia positiva no operador de aniquilação de elétrons, ou seja, ĉk,σ,α,+ĉk,σ,α,, porque não há nenhum risco de confusão com os operadores de energia negativa, que são reinterpretados como buracos, ĉk,σ,α,ĉk,σ,α. Uma vez que o somatório sobre o vetor de onda k percorre todos os valores, no sentido positivo e negativo em relação a um dado eixo orientado qualquer, podemos trocar k por −k no segundo termo, e utilizar a notação relativística kx=υFk0tkrpara escrever

(63) ψ ̂ ( x ) = k , σ , α [ c ̂ k , σ , α u k , α e i k x + d ̂ k , σ , α υ k , α e i k x ] ,
(64) ψ ¯ ̂ ( x ) = k , σ , α [ c ̂ k , σ , α u ¯ k , α e i k x + d ̂ k , σ , α υ ¯ k , α e i k x ] ,

onde simplificamos a notação para uk,α=uk,α+e υk,α=uk,α=uk,α+. Esses últimos passos devem ser demonstrados pelo leitor interessado, mas a dica é notar que a inversão do momento de k para −k corresponde a uma rotação de 180° dos vetores em relação ao eixo z perpendicular ao plano. Nesse caso o ângulo φkdefinido por tan(ky/kx)tranforma-se na forma φkφk+180°, levando diretamente à relação υk,α=uk,α=uk,α+.

Ao leitor sugere-se ainda demonstrar os seguintes resultados de traço das matrizes de Dirac na representação 8×8 aqui mostradas, no caso de 4 réplicas idênticas dos férmions de Dirac sem massa em (1+2) dimensões espaço-temporais, bem como dos produtos de pseudo-spinores

(65) σ α u α k ū α k = α s υ α k υ ¯ α k = 1 2 k 0 γ μ k μ ,
(66) t r ( γ μ ) = 0 ,
(67) t r ( γ μ γ ν ) = 8 g μ ν ,
(68) t r ( γ μ γ ν γ α γ β ) = 8 ( g μ ν g α β g μ α g ν β + g μ β g ν α ) ,

e além disso tr(γμγυγα)=0para um produto de n matrizes sendo n um número ímpar, tr(…) denota o traço.

Para introduzir o acoplamento ao campo eletromagnético, podemos adotar o princípio de gauge [61[61] S. Weinberg, The Quantum Teory of Fields(Cambridge University Press, Cambridge, 1996), v. I.,63[63] L.H. Ryder, Quantum Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996), 2nd. ed.,64[64] W. Greiner, J. Reinhardt, Field Quantization(Ed. Springer-Verlag Berlin, Berlin, 1996), 1st ed.], que requer a invariância da lagrangiana da teoria, a menos de uma divergência total, por transformações de fase do grupo U(1) aplicada à função ψ(x) na forma

(69) ψ ( x ) = e i Λ ( x ) ψ ( x ) , ψ ¯ ( x ) = ψ ¯ ( x ) e i Λ ( x ) ,

onde Λ(x) é uma função escalar dependente do espaço-tempo. Aqui seguimos mais de perto a notação e os métodos apresentados na Ref. [63][63] L.H. Ryder, Quantum Field Theory (Cambridge University Press, Cambridge, 1996), 2nd. ed.. É fácil perceber que a lagrangiana de Dirac do campo livre dada na Eq. (46) não é invariante porque μψ=eiΛ(x)μψ+i(μΛ)ψ, fazendo com que . Isso deve-se ao fato de que as derivadas ordinárias μψnão tem a mesma lei de transformação da própria função ψ. Para remediar o problema, introduzimos um potencial Aμ e substituímos a derivada ordinária μna lagrangiana do campo livre, por uma versão denominada derivada covariante

(70) D μ = μ i g A μ ,

onde g=e/(υF) a carga elétrica e=1.6×1019Cé a constante de acoplamento no caso eletromagnético. Observe que redefinindo o operador de derivada obtemos, para a aplicação Dμψo resultado

D μ ψ = ( μ i g A μ ) ( e i Λ ψ ) = e i Λ ( μ i g A μ + i μ Λ ) ψ ,

permitindo definir a transformação de gauge sobre o campo

(71) A μ = A μ + 1 g μ Λ ,

e então

(72) D μ ψ = e i Λ D μ ψ ,

seguindo a mesma regra de transformação que a própria função ψ, dada na Eq. (69) e tornando a lagrangiana invariante, conforme requer o princípio de gauge. Um termo invariante de gauge para os potenciais leva a definição do campo Fμv=μAvvAμe à introdução de uma lagrangiana do campo Fμvlivre [61][61] S. Weinberg, The Quantum Teory of Fields(Cambridge University Press, Cambridge, 1996), v. I.. O resultado final da teoria é

(73) = i υ F ψ ¯ γ μ μ ψ e υ F ψ ¯ γ μ A μ ψ 1 4 F μ ν F μ ν .

Podemos ainda aplicar o teorema de Noether [36][36] D.S.L. Abergel, E.H. Hwang and S. Das Sarma, Phys. Rev. B 83, 085429 (2011). para encontrar a densidade de corrente elétrica no grafeno. Tal teorema diz que para uma transformação infinitesimal de gauge, ou seja, fazendo Λ0na Eq. (69), temos uma densidade de corrente conservada μJμ, onde a densidade de corrente Jμtem a forma [35[35] Irina V. Lebedeva, Andrey A. Knizhnik, Andrey M. Popov, Olga V. Ershova, Yurii E. Lozovik and Boris V. Potapkin, Phys. Rev. B 82, 155460 (2010).,36[36] D.S.L. Abergel, E.H. Hwang and S. Das Sarma, Phys. Rev. B 83, 085429 (2011).]

(74) J μ = ( μ ψ ) δ ψ + δ ψ ¯ ( μ ψ ¯ ) ,

onde δψ=ψψ=iΛψ, δψ¯=ψ¯ψ¯=iΛψ¯e além disso (μψ)=iυFψ¯γμe (μψ¯)=0. Uma vez que Λ é arbitrário, devemos dividir Jμ por Λ e multiplicar pela carga do elétron para obtemos a densidade de corrente elétrica nas unidades apropriadas

(75) J μ = e ψ ¯ γ μ ψ .

É importante ressaltar que no grafeno o acoplamento dos elétrons com o potencial eletromagnético Aμ deve possuir alguns termos adicionais, do tipo Chern-Simmons, porque de fato o grafeno é um material de duas dimensões espaciais embutido em um espaço de três dimensões, diferentemente de um problema onde o espaço é puramente bidimensional [3][3] J.W. McLure, Phys. Rev. 108, 612 (1957)..

Para finalizar deixamos alguns exercícios ao leitor interessado, a saber: i) a obtenção da densidade de hamiltoniana da teoria dos férmions de Dirac livres, bem como a hamiltoniana de segunda quantização, integrando a densidade sobre as variáveis x, y, tendo como resultado

(76) H ̂ = k σ α [ E k c ̂ k , σ , α c ̂ k , σ , α + E k d ̂ k , σ , α d ̂ k , σ , α ] ,

onde Ek=υFké a energia de um elétron ou um buraco. Pede-se também que o leitor demonstre que o operador de carga elétrica Q̂=d2rJ0(r,t)resulta em

(77) Q ̂ = e k σ α [ c ̂ k , σ , α c ̂ k , σ , α d ̂ k , σ , α d ̂ k , σ , α ] ,

após já haver eliminado o termo de vácuo quântico Q0=Σkσα1. ii) Obter o propagador de Feynman SF(xx), que corresponde a

(78) S F ( x x ) = 0 | T ̂ [ ψ ̂ ( x ) ψ ¯ ̂ ( x ) ] | 0 ,

onde T̂é o operador de ordenamento temporal, e |0é o vácuo quântico. O resultado deverá ser da forma

(79) S F ( x x ) = 1 ( 2 π ) 3 d k 0 d 2 k γ μ k μ k 0 2 k 2 + i ε e i k ( x x ) ,

onde ε0é um número infinitesimal positivo para garantir a convergência.

5. Conclusões

Sumarizando, neste trabalho apresentamos um panorama geral da teoria de férmions de Dirac sem massa e suas conexões com o material bidimensional conhecido como grafeno. A emergência da teoria de férmions de Dirac no grafeno foi detalhadamente discutida através do modelo de tight-binding, cuja solução próximo aos pontos de Dirac em uma rede do tipo favo de mel leva à descrição de férmions de Dirac sem massa em (1+2) dimensões. Na sequência apresentamos o roteiro tradicional de quantização canônica da teoria de Dirac em (1+2) dimensões, já tendo em conta o fato de que no grafeno há 4 cópias dos férmions de Dirac sem massa, devido à existência do spin verdadeiro, que é duplamente degenerado em termos de energia na ausência de campos magnéticos, vezes dois pontos de Dirac inequivalentes na primeira zona de Brillouin. As matrizes de Dirac, que para um único tipo de férmion de Dirac sem massa, tem dimensão mínima 2×2, tomam a forma de matrizes 8×8. Após a introdução do potencial eletromagnético e seu acoplamento ao campo de Dirac, alguns exercícios são propostos. Consideramos que a presente contribuição pode ser útil no ensino tanto da teoria básica do grafeno, quanto da teoria quântica de campos. Restringindo a um único férmion de Dirac sem massa, ou seja, no caso em que as matrizes de Dirac são obtidas a partir de matrizes de Pauli em (1+2) dimensões, o trabalho de álgebra essencialmente é a multiplicação de matrizes de Pauli, o qual estudantes de física em nível de pós-graduação já devem estar habituados, sendo muito mais simples do que o caso de (1+3) dimensões do espaço-tempo nas teorias do modelo padrão. Além disso, a análise de teorias de férmions relativísticos em dimensões distintas daquela usualmente considerada em livros introdutórios da teoria quântica de campos e física das partículas elementares permite compreender alguns aspectos essenciais dessas teorias, como quiralidade e helicidade, que são de fato distintas, mas muitas vezes tratadas como sendo a mesma propriedade física. Alguns outros tópicos relevantes, como a solução do problema dos férmions de Dirac na presença de um campo magnético perpendicular ao plano, foram deixados de lado para não tornar a leitura muito extensa e cansativa.

Agradecimentos

C.A. Dartora agradece ao CNPq pelo suporte financeiro parcial através de Bolsa de Produtividade em Pesquisa Nível 2. Miguel J. Saldaña Jimenez e Fernando Zanella agradecem à agência de fomento CAPES pelo auxílio financeiro através de bolsa de doutorado no programa PIPE/UFPR. Os autores agradecem as importantes contribuições e sugestões do revisor anônimo para a forma final desse trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2014
  • Aceito
    13 Jan 2015
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