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Aprendendo física com as estrelas binárias

Learning physics with binary stars

Resumos

Neste trabalho descrevo aspectos enriquecedores para a compreensão e fixação de importantes conceitos de física através de temas astronômicos, em específico com o estudo de uma classe especial de estrelas, as estrelas binárias. Em particular, as conhecidas estrelas binárias espectroscópicas são exploradas para fins didáticos, mostrando como a aplicação do efeito Doppler-Fizeau pode ser utilizada para determinação de grandezas como as velocidades das estrelas. São apresentados ainda os conceitos de espectro de radiação eletromagnética e espectros estelares, temas estes que podem ser discutidos em uma abordagem didática utilizando as estrelas binárias para o aprendizado contextualizado de física. Como aspecto suplementar, são também discutidas as principais características das estrelas binárias no contexto astrofísico e sua importância para diversos estudos em subáreas da física e astronomia

ensino de astronomia; física ondulatória; efeito Doppler-Fizeau; estrelas binárias


In this work I describe some aspects of physics teaching based on astronomical subjects using a special class of stars, the binary or double stars. The known spectroscopic binary stars are studied for teaching purposes. In special, it is shown how that the application of the Doppler-Fizeau effect can be used to determine physical data such as the velocity of stars. It is also presented the basics of electromagnetic radiation spectrum, stellar spectra, and how these topics can be further discussed using the binary stars as a motivation to learning physics. As a supplementary aspect, it is also discussed the main features of the binary stars in the astrophysical approach and the importance of binary stars to several studies in physics and astronomy

Astronomy teaching; wave physics; Doppler-Fizeau effect; double stars


ARTIGOS GERAIS

Aprendendo física com as estrelas binárias

Learning physics with binary stars

Daniel R.C. Mello1 1 E-mail: mello@on.br.

Observatório Nacional, São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Neste trabalho descrevo aspectos enriquecedores para a compreensão e fixação de importantes conceitos de física através de temas astronômicos, em específico com o estudo de uma classe especial de estrelas, as estrelas binárias. Em particular, as conhecidas estrelas binárias espectroscópicas são exploradas para fins didáticos, mostrando como a aplicação do efeito Doppler-Fizeau pode ser utilizada para determinação de grandezas como as velocidades das estrelas. São apresentados ainda os conceitos de espectro de radiação eletromagnética e espectros estelares, temas estes que podem ser discutidos em uma abordagem didática utilizando as estrelas binárias para o aprendizado contextualizado de física. Como aspecto suplementar, são também discutidas as principais características das estrelas binárias no contexto astrofísico e sua importância para diversos estudos em subáreas da física e astronomia

Palavras-chave: ensino de astronomia, física ondulatória, efeito Doppler-Fizeau, estrelas binárias.

ABSTRACT

In this work I describe some aspects of physics teaching based on astronomical subjects using a special class of stars, the binary or double stars. The known spectroscopic binary stars are studied for teaching purposes. In special, it is shown how that the application of the Doppler-Fizeau effect can be used to determine physical data such as the velocity of stars. It is also presented the basics of electromagnetic radiation spectrum, stellar spectra, and how these topics can be further discussed using the binary stars as a motivation to learning physics. As a supplementary aspect, it is also discussed the main features of the binary stars in the astrophysical approach and the importance of binary stars to several studies in physics and astronomy

Keywords: Astronomy teaching, wave physics, Doppler-Fizeau effect, double stars.

1. Introdução

De acordo com o conteúdo de física do ensino médio (Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - PCNEM [1]), tópicos como física ondulatória, física eletromagnética e mecânica são imprescindíveis para uma compreensão do mundo da física como um todo e devem, portanto, ser explorados pelo professor em sala de aula utilizando ferramentas didáticas distintas. Interados destas necessidades, diversos trabalhos têm apontado aspectos positivos do uso de temas relacionados à astronomia como ferramenta didática para o ensino de física no ensino médio e também para o ensino de ciências no ensino fundamental [2, 3]. Alguns pontos positivos relacionam-se ao fato do aprendizado com temas astronômicos ser mais dinâmico, atraente e enriquecedor, já que a astronomia em geral suscita fascínio, questionamentos e maior interatividade entre professores e alunos. Neste contexto, temas como o efeito Doppler-Fizeau, o espectro de radiação eletromagnética, as séries temporais, as leis do movimento de Newton e outros conceitos podem ser explorados com o uso da astronomia estelar, especialmente com o uso de uma classe específica de estrelas, as estrelas binárias. O uso destas como ferramenta para enriquecer o aprendizado de física é o principal foco deste trabalho.

Ao observar o céu em noite isenta de nuvens, poucos imaginam que boa parte das estrelas aparentemente tão isoladas são na verdade pares ou conjunto de estrelas. Quando estão gravitacionalmente ligadas, estes pares são denominados de estrelas binárias ou estrelas duplas. Define-se estrela binária, como um par de estrelas ligadas pela gravidade que giram em torno de um centro de massa (CM) comum. As estrelas podem formar ainda sistemas triplos ou múltiplos, com mais de três estrelas, todas ligadas gravitacionalmente. Os membros de um sistema binário ou estelar são denominados de componentes. A estrela mais massiva ou brilhante de um sistema binário é a compomente primária e sua companheira, em geral mais fraca, a componente secundária. A Fig. 1, à título de ilustração, mostra esquematicamente a configuração de um sistema binário estelar típico. Nesta figura, a componente primária (estrela azul) e a componente secundária (estrela amarela) orbitam ou translacionam em torno de um centro de massa comum.


Estudos de especialistas têm sugerido que aproximadamente um terço das estrelas da nossa galáxia, a Via Láctea, são componentes de sistemas estelares [4]. Aliás, durante um certo tempo, conjecturou-se que até o nosso Sol teria uma estrela companheira, denominada Nêmesis. Esta estrela seria supostamente bem pequena, de brilho muito fraco e estaria muito distante do Sol para ser observada facilmente. Entretanto, a não detecção desta suposta estrela, apesar do desenvolvimento tecnológico astronômico crescente nas últimas décadas, tem feito a hipótese de Nêmesis ser gradativamente descartada por muitos cientistas [5].

Como as estrelas binárias estão a grandes distâncias da Terra e as distâncias angulares entre as estrelas componentes são muito pequenas, nossos olhos são incapazes de identificar ou separar as componentes das estrelas binárias. Devido a este fato, o estudo das estrelas binárias iniciou-se com a fase da astronomia moderna, a partir dos séculos XVII e XVIII, quando os primeiros telescópios fabricados foram usados na astronomia. Como exemplo, podemos citar a estrela Sirius, da constelação do Cão Maior, a estrela mais brilhante do céu noturno: quando vista a olho nu é apenas uma estrela branco-azulada, mas quando observada com grandes telescópios, vemos que se trata na verdade de duas estrelas bem próximas e, como estão ligadas gravitacionalmente, formam um sistema binário.

Historicamente, uma das primeiras estrelas binárias a ser investigada foi a estrela Algol da constelação de Perseus. No século XVIII o jovem inglês John Goodricke (1764-1786) observou que a mesma estrela diminuía seu brilho à terça parte em apenas algumas horas devido a eclipses estelares. O estabelecimento das estrelas binárias como corpos gravitacionalmente interagentes coube ao astrônomo inglês William Herschel (1738-1822) em 1804, ao estimar o período orbital da estrela binária Castor da constelação de Gêmeos. Em 1889, o astrônomo e físico estadunidense Edward Pickering (1846-1919) descobriu um tipo diferente de estrela binária a partir de observações das raias ou linhas espectrais da estrela Mizar da constelação da Ursa Maior. Estas estrelas binárias passaram a ser conhecidas como estrelas binárias espectroscópicas. A partir do século XX, inúmeros sistemas estelares foram descobertos através de diferentes métodos e, geralmente, são estes métodos que determinam as classificações existentes para os sistemas binários conhecidos. Apresentamos uma descrição resumida de cada um dos tipos de estrelas binárias:

1. Binárias eclipsantes: Assim como a Lua pode eclipsar o Sol causando a diminuição do brilho do Sol na superfície da Terra, uma estrela pode eclipsar sua companheira em alguns sistemas binários. Neste caso, o plano orbital do sistema estelar deve estar de perfil para o observador, de forma que uma estrela seja periodicamente eclipsada ou ocultada pela outra, produzindo variações no brilho do sistema binário.

2. Binárias visuais: refere-se ao par de estrelas que pode ser observado visualmente e a trajetória das estrelas componentes do sistema pode ser determinada. Em geral, para ser observada nesta configuração, a separação entre as duas estrelas deve ser grande e o sistema binário deve estar localizado relativamente próximo à Terra.

3. Binárias astrométricas: neste caso, a binaridade, ou estado de estrela binária, é comprovada a partir da detecção de ondulações ou oscilações no movimento da estrela primária, causadas pela presença da estrela companheira.

4. Binárias Espectroscópicas: nesta classe, a binaridade é revelada apenas a partir da constatação da variação das velocidades radiais das estrelas utilizando o efeito Doppler-Fizeau, já que, neste caso, as estrelas do sistema binário estão muito próximas entre si. A variação das velocidades é inferida a partir do estudo das variações temporais dos comprimentos de onda das raias ou linhas espectrais observadas. Iremos explorar mais estes conceitos e compreender melhor este método na próxima seção.

Do ponto de vista astronômico, as estrelas binárias representam peças importantes para o entendimento de muitas propriedades das diferentes classes estelares existentes. Elas nos ajudam ainda a compreender como as estrelas evoluem e como ocorreu a evolução da nossa própria galáxia. O estudo das estrelas binárias pode revelar informações de extrema importância para vários estudos, como as massas das estrelas, os tamanhos de suas órbitas e pode ainda fornecer pistas sobre como as estrelas são formadas. Estrelas binárias relativamente próximas entre si podem ainda transferir matéria de uma estrela para outra, alterando seus tempos de vida, produzindo emissões de radiação de alta energia ou até a queda de uma estrela em sua companheira, fundindo os dois objetos. Parte das conhecidas supernovas, que são eventos estelares explosivos raros que podem emitir luz tão intensa como de uma galáxia inteira, são originadas por estrelas binárias [6]. Estrelas binárias estão relacionadas ainda com certas classes de estrelas variáveis (que variam seu brilho em intervalos de tempos regulares ou não), como as estrelas simbióticas e as novas. Um exemplo de estrela binária nesta classe é a estrela gigante Eta Carina, uma das estrelas mais massivas da nossa galáxia, segundo estudo do astrônomo brasileiro Augusto Damineli [7]. O campo de pesquisa dos planetas fora do nosso Sistema Solar (planetas extrassolares) tem revelado ainda novas estrelas binárias com características especiais, bem como evidências da presença de planetas em torno de sistemas binários e múltiplos [8].

Dado o grande potencial das estrelas binárias, neste trabalho exploraremos um grupo específico de estrelas binárias, as binárias espectroscópicas, para fixação de alguns conceitos de física que são familiares a estudantes e professores do ensino médio. Na Seção 2, descreveremos alguns dos conceitos e tópicos e veremos como estes podem ser trabalhados com o uso das estrelas binárias. Apresentaremos ainda algumas aplicações dos conceitos para estudos de algumas estrelas binárias, mostrando, com base nos conceitos descritos, como quantidades importantes em física como massa e velocidade das estrelas podem ser obtidas. A Seção 3 contem comentários e considerações finais sobre o trabalho apresentado.

2. Explorando alguns conceitos de física

Nesta seção descreveremos alguns conceitos de física que podem ser explorados com as estrelas binárias espectroscópicas, ou de outra forma, como o uso das estrelas binárias pode ser ferramenta útil para fixação destes conceitos de física.

2.1. O efeito Doppler-Fizeau

O efeito Doppler-Fizeau foi inicialmente investigado pelo físico austríaco Johann Christian Doppler (1803-1853). Curiosamente, Doppler apresentou os fundamentos deste fenômeno em 1842 em trabalho relacionado exatamente com as estrelas binárias, intitulado Concerning the coloured light of double stars (Sobre a luz colorida das estrelas duplas). Embora neste trabalho ele tenha apresentado apenas previsões teóricas para fenômenos acústicos e eletromagnéticos, foi somente em 1848 que o físico francês Hyppolyte Louis Fizeau (1819-1896) propôs a larga aplicação do efeito para estudo de fenômenos ondulatórios para fontes luminosas em movimento. Em homenagem aos dois físicos, o fenômeno recebeu mais tarde a denominação de efeito Doppler-Fizeau.

O leitor deve se lembrar das aulas de física ondulatória que podemos obter a velocidade de propragação de uma onda v, para uma fonte emissora em repouso, relacionando sua frequência ν com seu comprimento de onda λ na forma v=νλ. Mas será que os valores de ν e λ não se alteram se o observador e a fonte emissora da onda estão em movimento? O efeito Doppler-Fizeau descreve exatamente a variação do comprimento de onda λ ou frequência ν de uma fonte de onda da qual depende do movimento relativo entre o observador e a fonte. Este efeito pode ser analisado separadamente para três situações: fonte de onda em repouso e observador em movimento, fonte em movimento e observador em repouso e ambos em movimento. Podemos ter uma clara ideia deste efeito quando observamos, por exemplo, ao estarmos em repouso, o deslocamento de uma ambulância em uma estrada e percebemos a variação da percepção do som da sirene à medida que a ambulância se aproxima ou se afasta de nós: o som fica mais agudo quando a ambulância se aproxima e mais grave quando a ambulância se afasta. Neste caso, a frequência da onda sonora que ouvimos é alterada pelo movimento da ambulância. Mas como a velocidade da fonte da onda em movimento pode ser obtida a partir do efeito Doppler-Fizeau?

Utilizando ondas eletromagnéticas, um observador O perceberá a frequência de uma onda de uma fonte em movimento, com frequência original ν (frequência da onda caso a fonte esteja em repouso), da seguinte forma

onde denotam respectivamente as velocidades do observador e da fonte. Lembrando que, neste caso, c=λν, onde c é a velocidade da luz, e escrevendo ν em termos do comprimento de onda λ emitido pela fonte (comprimento de onda de laboratório ou de repouso) e recebida pelo observador λ' (comprimento de onda observado), ficamos com

Para o caso em que vr >> vo ou caso de observador em repouso, podemos escrever

Utilizando , que mede a diferença entre o comprimento de onda observado e o comprimento de onda de laboratório, podemos finalmente escrever

A velocidade da fonte vr obtida com o efeito Doppler-Fizeau é, neste caso em específico, a velocidade radial da fonte luminosa. É importante salientar que estamos analisando aqui o caso não relativístico, em que vrc, ou seja, a velocidade da fonte é muito menor que a velocidade da luz. Outro ponto importante que deve ser compreendido é que se estivermos interessados na caracterização do movimento da fonte, esta não pode ser feita de modo satisfatório com uma única medida de velocidade radial, mas necessitamos de um conjunto de medidas. Com as medidas de vários valores de Δλ em fases ou intervalos de tempo, podemos inferir os valores da velocidade da fonte em diversos intervalos, neste caso a velocidade radial vr de afastamento ou aproximação da fonte e investigarmos as características do movimento de forma satisfatória.

Agora vamos ao caso das nossas estrelas binárias. Em nosso "laboratório" elas serão as nossas fontes luminosas. Entretanto, ao observarmos estas estrelas, não conseguimos inferir diretamente a velocidade com que elas se afastam ou se aproximam de nós, ou seja, não medimos diretamente a velocidade radial. O que estaremos medindo realmente é a variação do comprimento de onda da luz que nos chega destas estrelas para diversos intervalos de tempos diferentes, ou seja, estaremos medindo diversos valores de . Como conhecemos a velocidade da luz c,2 2 A velocidade da luz c é uma das constantes mais importantes da física e seu valor no vácuo vale 299792458 m/s ou aproximadamente 1.08 bilhões km/h. poderemos, com a Eq. (4), obter um conjunto de medidas de velocidades radiais variando no tempo, que possibilita o estudo de propriedades físicas destes objetos. Mas primeiramente, antes de prosseguirmos no estudo da física das estrelas binárias, convem elaborarmos uma primeira pergunta: como podemos medir a variação do comprimento de onda da luz que nos chega destas estrelas para depois obtermos as velocidades radiais?

Quando observam as estrelas, os astrônomos detectam, em suma, a luz ou a radiação que elas emitem. Eles contam com diferentes instrumentos que permitem averiguar uma grande quantidade de propriedades das estrelas e que podem ainda armazenar estas informações. No nosso caso, a medição dos valores dos comprimentos de onda da luz é feita a partir de um conjunto de espectros estelares das estrelas binárias, espectros estes que são obtidos de observações que coletam a luz das estrelas em instrumentos chamados espectroscópios ou espectrógrafos. Estes instrumentos ficam acoplados aos telescópios e então, basta apontarmos o telescópio para estrela desejada e as informações da luz dos objetos ficam registradas em detectores específicos. Posteriormente as informações armazenadas podem ser analisadas em uma tela de computador ou mesmo impressas, por exemplo.

Então, o panorama até aqui é o seguinte: antes da obtenção das velocidades radiais precisamos obter as medidas de e ainda precisamos obter os espectros estelares para efetuar as medidas. Entretanto, isto nos leva a um novo questionamento: o que é mesmo um espectro?

2.2. Os espectros estelares

Isaac Newton (1642-1727), o pai da Lei da Gravitação Universal, observou em 1665, em um de seus experimentos, que a luz branca, como a luz solar, decompunha-se ou separava-se em diferentes cores ao passar por um prisma. Observou ainda que estas cores formavam um espectro, assim como o arco-íris.

Basicamente, o espectro de uma estrela ou qualquer outra fonte luminosa corresponde a quantidade de luz decomposta por um prisma, rede de difração ou espectroscópio que observamos em comprimentos de onda λ específicos, ou em intervalos de λ do espectro eletromagnético. O espectro eletromagnético corresponde a uma extensa faixa contendo os valores de energia e frequência que uma fonte luminosa pode emitir. Existem espectros na faixa do infravermelho, raios-X, micro-ondas, entre outros. Em nosso caso, estamos nos referindo aos espectros na faixa do óptico, ou seja, da luz visível, aquela que nossos olhos conseguem captar.

Ao observarmos um espectro de uma estrela, podemos ver em uma curva gerada e armazenada por um espectrógrafo moderno, como varia a intensidade da radiação (fluxo) em função do comprimento de onda. Nesta curva pode estar impressa também, dependendo do caso, as conhecidas raias ou linhas espectrais, que são regiões estreitas na curva as quais indicam menores ou maiores valores de intensidade de radiação. Elas têm a aparência de pequenos sobressaltos nos espectros e são formadas por átomos que absorvem ou emitem radiação em valores particulares de λ. Para ilustrar, a Fig. 2 mostra o espectro óptico da estrela HD 144587 localizada na constelação de Escorpião. Nesta figura, o eixo vertical indica o fluxo da radiação, enquanto o horizontal indica o comprimento de onda coletado da luz. Ainda nesta figura, é possível notar regiões bem estreitas, com fluxo menor, que são justamente as linhas espectrais. A unidade de medida do comprimento de onda nesta figura é o angstrom (Å).3 3 Cada Å corresponde a e é uma unidade de medida muito utilizada em espectroscopia estelar. O nome foi batizado em homenagem ao astrônomo sueco Anders Ångström (1814-1874).


Cada linha ou conjunto de linhas é formada por um elemento químico em especial. Elas estão relacionadas ainda, à grosso modo, com a composição química e as condições físicas (relacionadas à pressão, temperatura, gravidade) do meio e são produzidas por fótons no próprio meio em que a radiação foi gerada, fornecendo-nos informações sobre o próprio ambiente da estrela. Em outras palavras, as linhas espectrais funcionam como uma espécie de código de barras para cada tipo de estrela estudada. Dessa forma, para as estrelas binárias que estamos focalizando, as linhas espectrais indicam a presença de elementos químicos e condições físicas específicas das próprias estrelas binárias.

A espectroscopia é a ciência que investiga os métodos de decomposição e análise da radiação, possibilitando a medição e o estudo dos espectros. Além de seu uso na astronomia, ela tem ampla utilização na física e na química. A espectroscopia é tão importante para a astronomia, que é possível estabelecer uma classificação das estrelas com base na observação de seus espectros e nas suas cores (que estão relacionadas com temperatura e quantidade máxima de radiação que a estrela emite). Esta classificação divide as estrelas em sete tipos espectrais clássicos, O, B, A, F, G, K e M. Nesta classificação, as estrelas do tipo O são as mais quentes e com coloração azulada e as do tipo M são as mais frias, possuindo coloração avermelhada. Como referência, nosso Sol possui tipo espectral G, caracterizado por uma coloração branco amarelada e uma temperatura bem modesta. Como não é o intuito aqui descrever suscintamente os aspectos relacionados aos espectros estelares e técnicas de espectroscopia, recomendamos três excelentes leituras das Refs. [9-11], onde o leitor poderá encontrar interessantes textos introdutórios e sugestões de atividades para enriquecer o aprendizado acerca do tema. Neste estágio é importante salientar ainda que os espectros estelares podem ser utilizados também no contexto de uma introdução sobre física moderna no ensino médio, em que temas como espectro eletromagnético, física ondulatória e aspectos gerais da física quântica pode ser introduzidos.

Afora a importância ímpar dos espectros e das linhas espectrais para a investigação das características químicas das estrelas em geral, para nossos propósitos da análise das velocidades radiais das estrelas binárias, estamos interessados apenas nos comprimentos de onda destas linhas. Vamos recordar que é a partir das medidas de variação temporal do λ das linhas espectrais na Eq. (3) que poderemos determinar o conjunto de velocidades radiais para as estrelas binárias. Na próxima seção veremos como fazer isso exatamente.

2.3. As estrelas binárias espectroscópicas

Como já discutido, em um sistema binário espectroscópico as componentes do sistema estão tão próximas entre si que a binaridade é revelada somente a partir da observação dos espectros das estrelas companheiras. Como temos neste caso duas estrelas, o espectro mostrará linhas espectrais duplicadas, diferentemente do espectro da estrela da Fig. 2, em que temos linhas espectrais simples, já que a estrela não é binária. Como em um sistema binário as estrelas orbitando o centro de massa (CM) comum estão sempre em movimento relativo ao observador na Terra, o efeito Doppler-Fizeau faz com que o comprimento de onda da luz observada λ' das linhas espectrais das estrelas varie o tempo todo, permitindo as determinações das velocidades radiais das estrelas em intervalos de tempo distintos. A variação das velocidades radiais é um efeito periódico, fazendo com que as linhas espectrais das estrelas componentes, oscilem em torno de um valor de comprimento de onda de laboratório (λ), como vimos na Seção 2.1. Para esclarecer um pouco mais, vamos contar com auxílio da Fig. 3.


Esta figura ilustra esquematicamente em três painéis, duas estrelas em órbita circular (parte superior) em torno do centro de massa (CM) com as respectivas variações em λ das linhas espectrais (parte inferior).

No painel à esquerda, a estrela componente azul se aproxima do observador (deslocamento de para o azul), enquanto que sua companheira vermelha se afasta do observador (deslocamento de para o vermelho). Esta situação se inverte no painel da direita, onde neste caso, é a componente vermelha que se aproxima do observador (deslocamento de para o azul). No painel central, ambas as estrelas não possuem variação de velocidade radial em relação ao observador e o comprimento de onda de laboratório λ coincide com o comprimento de onda observado . Quando medimos as linhas na situação de aproximação (desvio para o azul) estamos registrando velocidades radiais com valores negativos e quando medimos na situação de afastamento (desvio para o vermelho) estamos registrando velocidades radiais com valores positivos. As medidas de são feitas diretamente nos espectros coletados (tal como o espectro da Fig. 2) e com isso podemos finalmente obter as velocidades radiais através da Eq. (4).

O leitor pode perceber agora que a partir do conceito do efeito Doppler-Fizeau podemos investigar propriedades importantes das estrelas binárias e, de outro modo, como estes objetos podem ser utilizados para facilitar ou tornar mais atraente o aprendizado de certos conceitos de física. Para fixar ainda mais os conceitos e tornar a assimilação mais contextualizada, veremos nos próximos parágrafos alguns exemplos de binárias espectroscópicas reais e como físicos e astrônomos usam, na prática, os conceitos descritos nas subseções anteriores para estudar estes objetos.

Como primeiro exemplo, vejamos a estrela HD 208905 da constelação de Perseus. HD 208905 é um sistema espectroscópico triplo, sendo formado por 2 estrelas que orbitam (próximas entre si) em um sistema binário interno e uma terceira estrela, que orbita o centro de massa do sistema binário interno a uma distância bem maior. Devido a este aspecto, os espectros estelares do sistema revelam linhas espectrais de três componentes estelares e não apenas duas, como em sistemas binários normais. As duas estrelas relativamente mais próximas ao centro de massa formam um sistema binário interno e em geral seu período pode ser determinado a partir da análise das velocidades radiais destas estrelas. A estrela HD 208905 é classificada como pertencente ao tipo espectral B, que, como vimos na Seção 2.2, trata-se de uma estrela quente. Estrelas nessa classe apresentam linhas espectrais de elementos químicos como oxigênio, carbono, silício e principalmente hélio. A Fig. 4 apresenta uma série de três espectros tomados em diferentes épocas mostrando a variação em comprimento de onda da linha do hélio em 6678 Å. Nesta figura, as linhas espectrais das componentes 1 e 2 do sistema binário interno estão identificadas para mostrar como o valor do comprimento de onda observado (lembre-se, esse é o ) da linha do hélio oscila em torno do valor do comprimento de onda de laboratório λ (reta vermelha na vertical) devido a variação das velocidades radiais das estrelas do sistema durante o período considerado.


É possível ainda observar nesta figura, uma terceira linha espectral que se mantém praticamente fixa (em comprimento de onda) nas três datas da figura, próxima ao valor do comprimento de onda de laboratório. Ela pertence à terceira componente do sistema que apresenta baixíssima variação de v'r, já que como vimos, está muito distante das duas outras estrelas e portanto, movimenta-se muito lentamente.

Uma das primeiras atividades na análise das medições de velocidades radiais é traçar curvas conhecidas como curvas de velocidades radiais. O intuito inicial é detectar movimentos periódicos nas curvas e com isso estimar em quanto tempo, por exemplo, uma estrela completa uma volta em torno da outra estrela ou em torno do centro de massa. Chamamos isso de período orbital. Como analogia, lembre-se que o período orbital da Terra em torno do Sol vale cerca de 365 dias. A determinação do período permite, com o uso da terceira Lei de Kepler na formulação gravitacional de Newton, a determinação das massas das estrelas. O formato das curvas de velocidades radiais também é muito importante: curvas bem simétricas (tipo seno e cosseno) indicam que as estrelas do sistema possuem massas bem similares e órbitas quase circulares, ao passo que curvas assimétricas podem indicar, a priori, que as estrelas componentes possuem massas bem diferentes e suas órbitas se afastam da condição de órbitas circulares. A acurácia da estimativa do período orbital aumenta na medida em que a série temporal de velocidades radiais se torna mais completa, ou seja, temos mais pontos na curva. A estimativa de períodos é feita com uso de programas ou códigos matemáticos específicos que analisam a série temporal de velocidades radiais no espaço de frequências ou ainda usando uma técnica conhecida como transformada de Fourier.4 4 É uma ferramenta muito empregada na análise de sons, sinais e imagens. Ela pode ser interpretada como uma função matemática que decompõe um sinal em funções mais simples, por exemplo, do tipo seno e cosseno, facilitando a busca por padrões e periodicidades. Para uma pequena revisão sobre a transformada de Fourier veja a Ref. [15].

Para o sistema binário interno da HD 208905, os astronômos estimaram seu período orbital em aproximadamente 26 dias e as massas das estrelas componentes primária e secundária foram estimadas em 14 e 12 M'⊙, respectivamente [14]. A unidade M⊙ indica o valor da massa solar, que em geral, é tomada como referência para as medidas das massas de outras estrelas. Uma massa solar equivale a aproximadamente . Note, portanto, que as estrelas componentes do sistema HD 208905 são bem mais massivas que nosso Sol.

Outro sistema binário espectroscópico interessante é a estrela HD 57370 da constelação do Cão Maior, uma estrela do tipo B, assim como HD 208905. Este sistema apresenta componentes com rápidas variações de velocidades radiais, indicando que as estrelas componentes encontram-se bem próximas entre si. A Fig. 5 mostra, à exemplo da Fig. 4, as variações em da linha espectral do silício em 4552 Å. Para este objeto, os deslocamentos em são maiores que no caso de HD 208905. Como vimos no começo desta seção, quanto mais deslocados estão os das linhas, maiores são as velocidades radiais e menor é a separação entre as componentes do sistema. Realmente, as estrelas binárias de HD 57370 giram tão rapidamente em torno do centro de massa comum, que o período orbital delas é de apenas 6 dias [16].


O sistema binário espectroscópico 78 Tau, localizado na constelação de Touro, possui características distintas dos dois sistemas anteriomente citados. Ao contrário daqueles, este sistema possui como componentes primária e secundária estrelas menos massivas, respectivamente com 2.8 M'⊙ e 2.1 M⊙ e são estrelas do tipo espectral A. Mostramos, à título de ilustração, as curvas de velocidades radiais para este sistema na Fig. 6. Nesta figura, o eixo vertical indica os valores medidos de velocidades radiais para as duas componentes (A e B) e o eixo horizontal está indicando a fase orbital. Um intervalo de fase orbital completo variando de 0 a 1 indica que as estrelas completaram uma órbita completa em torno do centro de massa. Ainda nesta figura, os pontos indicam os valores medidos de velocidades radiais, enquanto que as curvas sólidas indicam os melhores ajustes para os pontos obtidos. Os astrônomos investigadores deste sistema binário estimaram o período orbital em aproximadamente 140 dias [17]. Podemos notar também que as curvas de velocidades radiais para este sistema não são simétricas ou não possuem os formatos simples de senos e cossenos, indicando que a órbita é bem excêntrica, ou seja, está bem distante do formato circular.


Para os três sistemas espectroscópicos citados, as medidas de velocidades radiais, como vimos, fornecem dados imprescindíveis para investigação de propriedades físicas e orbitais. Interesssante notar que o ponto de partida para físicos e astrônomos profissionais estudarem estes objetos são simplesmente os conceitos básicos de física, aprendidos em um curso de ensino médio e aprofundados em cursos de graduação, onde os alunos podem ingressar no fascinante mundo da pesquisa científica.

3. Considerações finais

Neste trabalho apresentamos um estudo sobre aspectos do ensino de física que podem ser explorados com o uso das estrelas binárias e também, como de outro modo, os resultados das pesquisas advindas destas estrelas podem ser utilizadas para fixação dos conceitos de física. Entre as principais considerações, citamos:

1. Estrelas duplas ou binárias correspodem a uma considerável fração das estrelas da nossa galáxia. O estudo destas pode fornecer diversos parâmetros de extrema importância para o compreensão das propriedades da Via Láctea e pode ainda nos ajudar a explicar melhor como as estrelas nascem, evoluem e morrem. A classificação das estrelas binárias em tipos ou classes específicas está intimamente ligada aos métodos de detecção destas estrelas.

2. No contexto do conteúdo de física do ensino médio, conceitos importantes como o efeito Doppler-Fizeau, o espectro de radiação eletromagnética, os conceitos de massa e velocidade e aspectos de física moderna podem ser trabalhados utilizando as estrelas binárias como ferramentas e, especificamente, as estrelas binárias espectroscópicas.

3. Utilizamos dados observacionais e informações advindas de pesquisas modernas acerca de estrelas binárias e mostramos, na prática, como os conceitos de física descritos são utilizados para obtenção de parâmetros importantes para o estudo das estrelas e suas propriedades.

4. A abordagem deste trabalho mostra como os conceitos de física transmitidos em sala de aula podem ser utilizados em "laboratórios" tão distantes como as estrelas e como os dados e informações obtidos destes objetos podem reforçar ainda mais a fixação destes conceitos. A abordagem sugere ainda que o ensino de física contextualizado é mais atraente e pode despertar o gosto pela pesquisa científica entre os estudantes.

Agradecimentos

O autor agradece à Coordenação de Astronomia e Astrofísica (CoAA) do Observatório Nacional, ao Programa de Capacitação Institucional (PCI) do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) pelo auxílio concedido (nível DA, n 302466/2013-4), à Dra. S. Daflon pelos dados das estrelas e aos revisores da RBEF pelas importantes sugestões.

Recebido em 6/11/2013

Aceito em 16/1/2014

Publicado em 7/8/2014

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  • 1
    E-mail:
  • 2
    A velocidade da luz
    c é uma das constantes mais importantes da física e seu valor no vácuo vale 299792458 m/s ou aproximadamente 1.08 bilhões km/h.
  • 3
    Cada Å corresponde a
    e é uma unidade de medida muito utilizada em espectroscopia estelar. O nome foi batizado em homenagem ao astrônomo sueco Anders Ångström (1814-1874).
  • 4
    É uma ferramenta muito empregada na análise de sons, sinais e imagens. Ela pode ser interpretada como uma função matemática que decompõe um sinal em funções mais simples, por exemplo, do tipo seno e cosseno, facilitando a busca por padrões e periodicidades. Para uma pequena revisão sobre a transformada de Fourier veja a Ref. [15].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      06 Nov 2013
    • Aceito
      16 Jan 2014
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