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Cálculo K: uma abordagem alternativa para a relatividade especial

K calculus: an alternative approach to special relativity

Resumos

Neste artigo apresentamos a abordagem alternativa feita por Bondi para a teoria da relatividade especial. Durante o desenvolvimento, analisamos os diagramas de Bondi, recursos visuais dos quais podemos retirar algumas informações sobre os sistemas analisados, e discutimos o fator K da teoria de Bondi, que está no cerne deste trabalho. Posteriormente, discutimos alguns dos principais resultados obtidos pela relatividade especial de Einstein tais como a dilatação temporal, a contração espacial e a simultaneidade de eventos separados espacialmente, além das transformações de Lorentz. Mostramos também dois outros resultados importantes na física a partir do cálculo K: o momento linear relativístico e a energia total relativística.

cálculo K; relatividade especial; Hermann Bondi; efeito Doppler


In this paper we present an alternative approach due to Bondi for the special theory of relativity. During the development, we analyse the Bondi diagrams, visual resources from which we can take some information about the analysed systems, and we discuss the K factor of Bondi's theory, which is in the core of this work. We then discuss some of the main results obtained from Einstein's special theory of relativity such as the time dilation, spatial contraction and simultaneity of spatially separated events, besides the Lorentz transformations. We also show other two important results in physics coming from K calculus: the relativistic linear momentum and the total relativistic energy.

K calculus; special relativity; Hermann Bondi; Doppler effect


ARTIGOS GERAIS

Cálculo K: uma abordagem alternativa para a relatividade especial

K calculus: an alternative approach to special relativity

G. De Conto; A. Lima; P.H. Ortega* * E-mail: ortega@ift.unesp.br. ; E.R. Schmitz

Instituto de Física Teórica, Universidade Estadual Paulista "Júlio Mesquita Filho", São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Neste artigo apresentamos a abordagem alternativa feita por Bondi para a teoria da relatividade especial. Durante o desenvolvimento, analisamos os diagramas de Bondi, recursos visuais dos quais podemos retirar algumas informações sobre os sistemas analisados, e discutimos o fator K da teoria de Bondi, que está no cerne deste trabalho. Posteriormente, discutimos alguns dos principais resultados obtidos pela relatividade especial de Einstein tais como a dilatação temporal, a contração espacial e a simultaneidade de eventos separados espacialmente, além das transformações de Lorentz. Mostramos também dois outros resultados importantes na física a partir do cálculo K: o momento linear relativístico e a energia total relativística.

Palavras-chave: cálculo K, relatividade especial, Hermann Bondi, efeito Doppler.

ABSTRACT

In this paper we present an alternative approach due to Bondi for the special theory of relativity. During the development, we analyse the Bondi diagrams, visual resources from which we can take some information about the analysed systems, and we discuss the K factor of Bondi's theory, which is in the core of this work. We then discuss some of the main results obtained from Einstein's special theory of relativity such as the time dilation, spatial contraction and simultaneity of spatially separated events, besides the Lorentz transformations. We also show other two important results in physics coming from K calculus: the relativistic linear momentum and the total relativistic energy.

Keywords: K calculus, special relativity, Hermann Bondi, Doppler effect.

1. Introdução

No final do século XIX e início do século XX surgiram inconsistências entre a mecânica clássica e o eletromagnetismo. As conhecidas transformações de Galileu, corroboradas pela mecânica da época, não se aplicavam às equações do eletromagnetismo de Maxwell. A solução deste problema, que fez prevalecer as equações do eletromagnetismo, foi proposta por Einstein em seu artigo seminal Zur Elektrodynamik bewegter Körper, ou Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento, publicado em 1905 [1]. Com contribuições de Lorentz, Poincaré, Minkowski e outros, foi consolidada a relatividade especial [2]. Esta permitia um acordo entre eletromagnetismo e mecânica, contudo, implicando importantes mudanças nesta última.

Tais mudanças trouxeram novos resultados, muito distintos dos encontrados na mecânica clássica. Efeitos como a contração espacial e a dilatação temporal vão contra a experiência cotidiana, pois só se tornam evidentes quando os fenômenos analisados estão a velocidades comparáveis à velocidade da luz. Por isso, podemos utilizar a mecânica clássica para situações do dia-a-dia. Desta forma, a teoria da relatividade especial é comumente associada a tópicos de física moderna, tendo seu ensino presente em cursos de graduação da área de ciências exatas.

Tradicionalmente, o ensino da relatividade especial é dado por meio das transformações de Lorentz, focando na parte matemática da teoria. Tal metodologia nem sempre ressalta os conceitos físicos por trás destas transformações. Uma alternativa às transformações de Lorentz foi desenvolvida por Hermann Bondi em seu livro Relatividade e Bom Senso: Um Novo Enfoque das Ideias de Einstein (originalmente, Relativity and Common Sense: A New Approach to Einstein), de 1964 [3]. Partindo dos mesmos postulados utilizados por Einstein que são [1,2]:

(i) Postulado 1 (Princípio da relatividade): As leis físicas são as mesmas em todos os sistemas de referência inerciais;

(ii) Postulado 2 (Invariância da velocidade da luz): A velocidade da luz no vácuo é a mesma para todos os sistemas de referência inerciais, independentemente do movimento relativo de um dado sistema com relação à fonte de luz;

Bondi desenvolveu o cálculo K. Através do uso de diagramas do espaço-tempo e de experimentos mentais, o cálculo K é construído num formalismo matemático que se relaciona diretamente com os resultados das transformações de Lorentz.

Neste trabalho, estudamos a abordagem feita por Bondi para a teoria da relatividade especial. Primeiramente, discutimos os diagramas de Bondi, recursos visuais dos quais se podem retirar informações sobre os sistemas analisados. Em seguida, obtemos o fator K da teoria de Bondi. Posteriormente, discutimos sobre alguns resultados obtidos pela relatividade especial de Einstein, que são a dilatação temporal, a contração espacial, o conceito de simultaneidade de eventos e também as transformações de Lorentz. Por fim, obtemos dois outros resultados importantes na física a partir do cálculo K, que são o momento linear relativístico e a energia total relativística.

2. Diagramas de Bondi e o fator K

Consideremos dois sistemas de referência inerciais1 1 Denotaremos a partir de agora sistema de referência inercial apenas por referencial. A e B com velocidade relativa constante. Um observador na origem do referencial A emite sinais luminosos em direção a um observador na origem de B em intervalos regulares de 1 minuto. Porém, como B está se afastando de A, estes sinais chegam em um intervalo de tempo maior, digamos, 2 minutos. Podemos ilustrar esta situação com a Fig. (1).


Na Fig. (1) temos o tempo no eixo vertical e a distância no eixo horizontal (apenas uma dimensão espacial é relevante neste exemplo),2 2 Subentende-se aqui a hipótese de isotropia do espaço, que afirma que não há uma direção privilegiada no espaço-tempo. Isto garante que para referenciais se movendo com velocidade relativa constante, a análise pode ser feita considerando qualquer direção, e neste caso, consideramos apenas o eixo que une as origens dos referenciais. ambos relativos ao referencial A. Pode-se ver que conforme o tempo passa, o referencial A (representado pela linha contínua vertical, sobreposta ao eixo temporal) permanece na origem do sistema de coordenadas, enquanto que o referencial B (representado pela linha contínua inclinada) se afasta. As linhas tracejadas representam os sinais luminosos se propagando no espaço. Como a inclinação das linhas está relacionada com a velocidade, temos que qualquer referencial terá uma inclinação no mínimo igual a inclinação das linhas tracejadas,3 3 Definimos as escalas dos diagramas de modo que x/ t = c, onde c é a velocidade da luz no vácuo, corresponda a uma reta com inclinação de 45º com relação ao eixo vertical (ou temporal). já que a velocidade da luz não pode ser superada.4 4 Isto é uma consequência dos postulados de Einstein.

Na Fig. (1) torna-se possível ver a diferença de tempo entre os sinais luminosos medida pelos observadores. Fisicamente falando, isto ocorre porque à medida que o referencial B se afasta, o segundo sinal (o que determina o intervalo de tempo) deve percorrer uma distância maior para atingir B, fazendo o intevalo de tempo ser diferente. Na Fig. (1), como as linhas tracejadas representam os sinais luminosos, a intersecção destas linhas com as linhas de cada referencial representa a emissão (no caso do referencial A) ou a recepção (no caso do referencial B) do sinal luminoso. Comparando o espaço entre cada intersecção para cada um dos referenciais vemos que eles estão menos espaçadas na linha do referencial A do que na linha do referencial B, indicando que os intervalos de tempo entre cada sinal em A são menores do que os intervalos em B.

Consideremos agora o caso em que haja um terceiro observador C, em repouso com relação ao referencial A. Isto pode ser representado pela Fig. (2).


Do ponto de vista do referencial B os sinais passam a cada 2 minutos, enquanto ele vê o referencial C se aproximar. Desta forma, é como se B emitisse sinais a cada dois minutos na direção de C.5 5 É neste ponto que aplicamos o Postulado 2, pois estamos supondo que a velocidade de B não interfere na velocidade da luz. Sabemos que C, por estar em repouso em relação a A, recebe estes sinais num intervalo de 1 minuto. Logo, podemos ver que para um referencial que se aproxima (C se aproximando de B) os intervalos de tempo diminuem em uma proporção inversa ao caso do afastamento (considerando a magnitude das velocidades de aproximação e afastamento iguais). Podemos então generalizar dizendo que no caso em que B se afasta, se A mede um intervalo tA o intervalo medido por B será6 6 A transformação de um referencial para outro deve ser linear para que os intervalos de tempo sejam independentes da origem do sistema de coordenada temporal para quaisquer referenciais.

e no caso em que B se aproxima

O fator de proporcionalidade entre os tempos medidos em cada referencial é chamado de fator K, um parâmetro adimensional relacionado com a velocidade relativa dos referenciais. Podemos encontrar a relação entre K e a velocidade considerando um caso semelhante aos discutidos anteriormente. Suponha novamente que B esteja se afastando de A, e assim que B recebe um sinal ele envia outro de volta para A. Podemos ilustrar esta situação pela Fig. (3).


Como já vimos antes, o tempo que B recebe um sinal é igual ao tempo medido em A multiplicado pelo fator K. Quando B emite o sinal em resposta para A, partimos para o ponto de vista de B, onde A está se afastando de B (com a mesma velocidade que A via B se afastar). Assim, o tempo que A irá medir, do ponto de vista de B, é igual ao tempo em B multiplicando o mesmo fator K. Contudo, no instante que B emite sua resposta, nós já sabemos o seu tempo, que é igual a Kt. Multiplicando este tempo mais uma vez por K, chegamos no resultado mostrado no diagrama: A recebendo a resposta no tempo K2t. O tempo medido por A entre a emissão do sinal e o recebimento da resposta de B é

Da Fig. (3) vemos que o tempo entre a emissão do sinal por A e o recebimento por B é igual a Δt/2. Neste intervalo de tempo, a luz (cuja velocidade denotaremos por c) percorreu uma distância d = cΔt/2. Esta mesma distância foi percorrida por B num intervalo de tempo (K2 + 1) t/2, conforme vemos na Fig. (3). Ou seja, também temos que d = v(K2 + 1)t/2, onde v é a velocidade de B em relação a A. A partir das duas equações para d, chegamos em

Podemos isolar o fator K a partir da Eq. (4). Denotando v/c = β, encontramos

Da Eq. (5) podemos ver que utilizar K no caso em que os referenciais se afastam, e 1/K no caso em que se aproximam, faz sentido. No caso que se afastam, consideramos a velocidade positiva e obtemos K conforme a Eq. (5). Se tomarmos esta equação e invertermos o sinal da velocidade passamos para o caso em que os referenciais se aproximam, e temos que ela se torna igual a 1/K. Explicitamente,

Consideremos agora o caso de três referenciais, A, B e C. Sabendo que o fator K entre A e B é dado por KAB e que o fator K entre B e C é dado por KBC, qual será o fator K entre A e C? Se A enviar um sinal para B no instante t, sabemos que B receberá este sinal num tempo igual a tB = KABt. Se B retransmitir este sinal para C no instante em que o recebeu de A, sabemos que C receberá o sinal de B no instante tC = tBKBC = tKABKBC. Mesmo não sabendo o valor de KAC, sabemos que um sinal enviado por A no instante t atingiria C no instante tC = tKAC. Já que B retransmitiu o sinal no instante que o recebeu de A, podemos afirmar que tC = tKABKBC e tC = tKAC são idênticos. Logo,

A relação dos fatores K entre diversos referenciais é dada pelo produto dos fatores. Já sabemos escrever K em função da velocidade dos referenciais, e agora, a partir da Eq. (7), podemos ver como as velocidades em diferentes referenciais se relacionam. Escrevendo K em função das velocidades, encontramos

Isolando βAC

Temos então a lei de composição de velocidades da relatividade restrita.7 7 Um exemplo semelhante de adição de velocidades pode ser encontrado em [4]. Neste artigo, a autora utiliza os fatores de velocidade, f, ( velocity factors), que são bastante semelhantes ao fator K (onde f = K 2). Também é apresentada uma relação entre o fator de velocidade e a rapidez, já tradicional na relatividade especial. Para detalhes da abordagem tradicional, veja as Refs. [5,6].

3. Dilatação temporal

O caso onde A emite um sinal e B emite outro em resposta apresenta um fato de interesse. Vimos que quando A emite um sinal em tA = t, B recebe este sinal em tB = Kt. Mas na Fig. (3) notamos que, no instante em que B recebe o sinal, o referencial A registra o tempo tA = (K2 + 1)t/2. Escrevendo t em função de tB podemos relacionar o tempo dos referenciais num mesmo instante. Verificamos então que

onde γ = 1/ é o fator de Lorentz. Da Eq. (10) concluímos que do ponto de vista de um observador parado na origem do referencial A, o tempo passa de maneira mais rápida, quando medido do referencial A, do que em um referencial em movimento (o referencial B neste caso). Uma descrição detalhada na abordagem tradicional é encontrada na Ref. [6].

Este efeito conduz a uma questão interessante. Se agora invertemos os papéis dos referenciais A e B,8 8 Isto é, adotando o ponto de vista do referencial B, onde A passa a estar em movimento então o tempo em B passaria mais rápido do que em A. Isto nos leva a um "paradoxo": como pode o tempo passar mais rápido em ambos referenciais? Isto é explicado analisando o chamado paradoxo dos gêmeos.

Este "paradoxo" propõe o seguinte: dados dois irmãos gêmeos, cujo intervalo de tempo entre o nascimento deles é irrelevante, um deles é colocado em uma nave que viaja a velocidade constante para o espaço, enquanto que o outro fica na Terra. Após um intervalo de tempo, segundo a relatividade restrita, do ponto de vista da Terra, o irmão que ficou na Terra ficaria mais velho do que o irmão que foi colocado na nave. Entretanto, do ponto de vista da nave, quem ficou mais velho foi o irmão que está dentro da nave, pois para ele quem viaja com velocidade constante é o irmão que ficou na Terra. Este é o "paradoxo". Isto é resolvido propondo que, para se fazer a verificação é necessário que o irmão que se afastou (o que estava na nave) retornasse, indicando que em algum momento o referencial da nave sofreu alguma aceleração, portanto deixando de ser inercial. Devido a isto, pode-se mostrar que o irmão que estava na nave envelheceu menos do que o irmão que permaneceu na Terra. A demonstração deste resultado é longa e foge do escopo deste artigo. Uma discussão mais detalhada, utilizando a técnica do radar (que é relacionada com o fator K), é encontrada na Ref. [7].

4. Contração espacial

Não só a medida dos tempos, mas também a medida de distâncias é afetada pelo movimento relativo entre os referenciais. Mais uma vez utilizando a emissão de sinais luminosos, podemos verificar este efeito. Consideremos dois eventos, P e Q, com coordenadas P(t, x1) e Q(t, x2) no referencial A (onde x1 < x2). Dois sinais luminosos são emitidos por A de maneira que cada um deles atinja os pontos x1 e x2 no mesmo instante t. Sabemos que para alcançar x1 um sinal leva um tempo t1 = x1/c e para alcançar x2 o tempo é t2 = x2/c. Portanto, A deve emitir um sinal no instante t - t1 e outro no instante t - t2. Cada um dos sinais, ao atingir o alvo, é refletido de volta para A, que receberá estas reflexões nos tempos t + t1 e t + t2. A distância entre os eventos pode ser calculada, já que conhecemos os intervalos de tempo e a velocidade da luz.

onde obtemos o resultado esperado, já que as coordenadas espaciais de cada evento estavam definidas no referencial A. O referencial B pode utilizar a mesma estratégia para medir a distância entre os dois eventos, cujas coordenadas denotaremos por x'1 e x'2. Já vimos como relacionar os tempos medidos em cada referencial, e agora utilizaremos este resultado.

De acordo com B, a distância seria

Aplicando a relação temporal entre os referenciais

O fator γ é sempre maior ou igual a 1, já que β está sempre entre 0 e 1 (uma consequência do fato que nada pode ter uma velocidade maior do que a velocidade da luz). Então vemos que a distância medida em B por A será sempre menor ou igual à distância medida em A por A. Este resultado coincide com o obtido pela abordagem tradicional [6].

5. Simultaneidade de eventos

Consideremos agora a situação da Fig. (4), onde um observador no referencial A mede a distância entre os eventos P e Q.


Com relação ao referencial A, estes eventos são simultâneos, já um observador em B mede o seguinte tempo para o evento P

Para o observador em B, o tempo medido para o evento Q é o tempo inicial da contagem (Kt1) mais a metade do tempo que a luz leva para alcançar e retornar do evento Q. O sinal parte de B no ponto Kt1 e alcança o ponto t4/K, ou seja,

Subtraindo a Eq. (15) da Eq. (14), obtemos

onde a última igualdade vem da simetria: (t2 - t1) = (t4 - t3), de quando A emite os sinais e quando os recebe por reflexão dos mesmos nos eventos P e Q. Agora, a distância que A mede entre os eventos P e Q será exatamente

pois (t2 - t1) é justamente a diferença de tempo entre a emissão do primeiro e do segundo sinal luminoso, de maneira que ambos cheguem ao mesmo tempo nos pontos Q e P, respectivamente. Assim, o primeiro feixe terá viajado uma distância xQ- xP a mais que o segundo. Substituimos a Eq. (17) na Eq. (16), obtendo

Desta forma, vemos que a menos que os eventos P e Q sejam o mesmo evento, estes não serão simultâneos no referencial B, ao contrário do que acontece no referencial A. Vemos assim que simultaneidade de eventos não é um conceito absoluto na teoria da relatividade especial de Einstein.9 9 Para mais detalhes na abordagem tradicional, veja a Ref. [6].

6. As transformações de Lorentz

Consideraremos mais uma vez dois referenciais A e B, desta vez medindo as coordenadas de um evento E com coordenadas (t, x) no referencial A. Supondo que A envia um sinal para E no tempo tA = t - x/c e recebe sua reflexão no tempo tA = t + x/c, tal que o sinal alcance E no tempo tA = t. A situação envolvendo os dois referenciais pode ser descrita pela Fig. (5).


Na Fig. (5) estão as coordenadas temporais para cada um dos referenciais, onde as coordenadas de B estão denotadas por t' e x'. Supondo que B emite um sinal luminoso no mesmo instante que o sinal de A passa por ele, a reflexão do sinal de B será recebida no mesmo instante que o sinal de A passa novamente por B.

A princípio pode parecer estranho adotar as coordenadas (t' - x'/c) e (t' + x'/c) para os tempos de emissão e recepção do sinal de B. Eles implicam que o tempo que o sinal leva para alcançar o evento E, partindo de B, é o mesmo tempo que ele leva para ir de E até B. Como B está se aproximando do evento E, poderíamos pensar que o tempo que o sinal leva para ir do evento E até B deveria ser menor. Contudo, se analisarmos a situação do ponto de vista de B, temos que a posição do evento E está se aproximando de B. Uma vez que o sinal atinge esta posição e é refletido tal posição em relação a B não é mais relevante, já que a distância que deve ser percorrida pelo sinal refletido é a distância que separava B e E no instante da reflexão. A posterior aproximação da posição de E deixa de ser relevante para o sinal refletido.

Da Fig. (5) podemos ver que

A Eq. (19) é análoga ao caso onde A emite um sinal para B, onde relacionamos o tempo em que A emite o sinal com o tempo em que B o recebe, de acordo com o que já vimos. Já a Eq. (20) é equivalente à emissão de um sinal de B para A no instante em que B recebe a reflexão do sinal que foi enviado a E. Isolando as coordenadas referentes a B

Escrevendo K em função de β

Estas são as transformações de Lorentz. A dedução tradicional é encontrada na Ref. [6].

7. Aplicações

Duas grandezas relevantes na discussão de problemas em relatividade especial são o momento e a energia. Já sabemos da mecânica clássica que estas quantidades dependem da velocidade do sistema analisado. Isto sugere que podemos expressar estas quantidades em termos de fatores k. Por exemplo, se estamos analisando o movimento de uma partícula, sempre podemos associar um fator k a ela e consequentemente sua energia e seu momento dependeriam deste fator k. Sendo assim, podemos agora considerá-las como funções do fator k do sistema.

Analisaremos agora o caso de uma partícula em movimento. Isto pode ser representado utilizando a Fig. (3). O referencial A é o referencial de repouso de um observador situado na origem do sistema de coordenadas e o referencial B é o referencial de repouso da partícula. Como B tem fator k = K, então T = T(K) e p = p(K), onde T e p são a energia cinética e o momento da partícula. Agora suponha que ao invés da partícula se afastar, ela se aproxime do observador com fator k = K-1. Sendo assim, temos que T = T(K-1) e p = p(K-1). Como uma partícula se afastando com fator k = K é equivalente a uma partícula se aproximando com fator k = K-1, pois trata-se apenas de uma inversão da direção da velocidade, temos então

Sendo assim, obteremos agora alguns resultados importantes da relatividade especial.

7.1. O efeito Doppler

Consideraremos novamente o caso em que A envia sinais luminosos para B em intervalos regulares conforme B se afasta de A. Desta vez, os sinais possuirão um único comprimento de onda λ (nos casos anteriores isto não era relevante), e o intervalo entre a emissão de cada sinal será o tempo necessário para a luz percorrer um comprimento de onda, ou seja, o período da onda. Como sempre, o intervalo de tempo medido por B será

Em termos da frequência ν

Escrevendo também o tempo em B em função da frequência

Escrevendo K em função da velocidade entre os referenciais

que é a fórmula para o efeito Doppler relativístico. No caso em que os referenciais estejam se aproximando, basta trocar K por 1/K, o que é equivalente a trocar o sinal de β. A dedução completa deste efeito pode ser vista nas Refs. [6,8].

7.2. O momento relativístico

Considere a colisão entre um fóton e um elétron no referencial de repouso do elétron, que denotaremos por A.

As condições iniciais do elétron para este referencial são

onde escrevemos pIe(1) em contraste com p(k), que virá logo a seguir.

O momento inicial total pIT do sistema é escrito como

onde pIf é o momento inicial do fóton, pIe o momento inicial do elétron, νI é a frequência inicial do fóton e h é a constante de Planck. Após a colisão, temos a situação descrita na Fig. (7).


Neste caso, o momento final total pFT do sistema é

onde os índices subscritos F indicam os valores finais de cada termo. Para este caso, o fator k relaciona o referencial de repouso do elétron antes da colisão com seu referencial de repouso após a colisão. Pela conservação de momento, temos

Consideremos agora um referencial B, o referencial de repouso do elétron após a colisão. Esta situação é ilustrada na Fig. (8).


Como a velocidade do fóton é superior à velocidade de B em relação à A, temos que antes da colisão o fóton está se aproximando de B e após a colisão ele está se afastando. Podemos escrever os momentos em relação ao referencial B da seguinte maneira:

onde utilizamos as relações do efeito Doppler relativístico para reescrever os momentos do fóton. Como no referencial A a velocidade do elétron era nula, antes da colisão, no referencial B ele possui uma velocidade que depende do inverso de k. Já após a colisão, sua velocidade no referencial B é nula, pois estamos no seu referencial de repouso. Utilizando mais uma vez a conservação do momento

Contudo, usando a Eq. (25) já que se trata apenas de uma inversão na direção da velocidade, encontramos então que

Usando a Eq. (35) podemos escrever

Consideraremos agora um referencial C se afastando de A, tal que o fator de Bondi entre eles seja K. Neste referencial os momentos serão

No momento final do elétron o fator kK representa a dependência do momento em relação a velocidade do elétron em relação a C, o que implica que temos que utilizar a composição de velocidades (lembrando que k depende da velocidade do elétron com relação a A e K depende da velocidade de C com relação a A). Pela conservação do momento

Utilizando as Eqs. (35), (40) e (43) podemos escrever

Se tomarmos o limite de k → 1 no primeiro termo da Eq. (44), encontramos 0/0. Sendo assim, podemos utilizar a regra de L'Hôpital para encontrar

onde p'(K) indica a derivada de p com relação a K. Tomando o mesmo limite para o último termo

que nos leva a

Temos que p'(1) é apenas uma constante com dimensão de momento. Agora podemos integrar a equação acima para encontrar p(K)

Para o momento na mecânica clássica temos

que não satisfaz as relações da relatividade especial, mas nos mostra que há uma parte dependente da velocidade multiplicada por uma constante (neste caso, mc). Como estamos tratando do caso k → 1, o que é equivalente a velocidade tendendo a zero, podemos considerar válida a mecânica não relativística. Podemos então, supondo a relação da mecânica clássica, calcular p'(k).

Assim,

Substituindo a Eq. (51) na Eq. (48)

que é a mesma equação relativística para o momento encontrada pela abordagem tradicional, sendo v a velocidade da partícula. Veja também as Refs. [6] e [5].

7.3. A energia cinética relativística

Vimos que na colisão do fóton com o elétron a variação de energia do fóton foi

Como o elétron estava em repouso antes da colisão, concluímos que -ΔE é a energia cinética do elétron. Usando as Eqs. (39), (40) e (52) podemos escrever a energia cinética T(k) do elétron como

Esta é a mesma expressão obtida pela maneira usual [9].

7.4. A energia total relativística

Consideremos uma colisão entre duas partículas de mesma massa no centro de momento destas (ou seja, velocidades v e -v), de modo que após a colisão as partículas se mantenham unidas em uma única partícula de massa M. Neste caso, podemos escrever os momentos como

onde k é o fator que relaciona o referencial de repouso de cada partícula com o referencial do centro de momento do sistema. Neste referencial, após a colisão, temos uma única partícula parada, ou seja,

Considerando agora um novo referencial S', com fator K em relação ao referencial do centro de momento, podemos reescrever os momentos finais e iniciais da seguinte maneira

que é o momento de uma partícula de massa M' = M'(m).

Utilizando a equação relativística do momento, podemos reescrever as Eqs. (57) e (58) como

Como os momentos iniciais e finais são idênticos, podemos encontrar a relação

Vemos que a massa da partícula formada depois da colisão depende das velocidades das partículas iniciais e que é maior ou igual à soma das massas destas mesmas partículas, algo não verificável na mecânica clássica. Notamos também que a energia total, quando apenas considerada a soma das energias cinéticas das partículas, não é conservada, apesar de não considerarmos dissipações de energia. Sendo assim, para mantermos a conservação de energia total, consideraremos que a energia total seja a energia cinética relativística acrescida de um termo a, dependente das velocidades, isto é, α = α(k), por enquanto desconhecido. Para compreendermos este parâmetro, faremos algumas considerações sobre ele. Sabemos que a energia deve independer do sentido do movimento da partícula, ou seja,

Como ET(k) = T(k) + α(k) e T(k-1) = T(k) (Eq. (26)), então

Agora podemos determinar a energia total. A energia inicial é dada por

e a energia final fica

onde, na energia final, já utilizamos a relação entre m e M' (também note a diferença entre α e ). Como estas energias são iguais, vemos que

Para entendermos melhor o comportamento destas funções α e consideraremos o caso onde as partículas estão paradas uma em relação à outra. Para isto, basta tomarmos o limite da Eq. (66) para k → 1.

pois, usando a Eq. (61) temos

Vemos que , a função correspondente à partícula formada após a colisão, é sempre o dobro da função α correspondente a cada uma das partículas iniciais. Agora, ao invés de considerarmos as partículas paradas, retornaremos ao referencial do centro de momento. Neste caso, o limite a ser tomado é K → 1

onde usamos as Eqs. (61), (63) e (67).

Pode-se verificar que a Eq. (69) é a equação de conservação de energia para o referencial do centro de momento (afinal, partimos da equação de conservação de energia do referencial S' e levamos este referencial ao referencial do centro de momento). A partir da Eq. (69), podemos considerar as seguintes possibilidades:

(1) 2α(k) = -mc2(k + k-1) e 2α(1) = -2mc2.

(2) 2α(1) = mc2(k + k-1) e 2α(k) = 2mc2.

Contudo, ao considerarmos a primeira opção encontramos que

isto é, obtemos uma energia total negativa, o que é fisicamente inaceitável para o nosso caso. Considerando a segunda opção temos que

Agora temos uma energia total positiva, o que é aceitável. Ainda podemos observar que

Esta quantidade depende apenas da massa da partícula, independendo do seu movimento com relação ao seu referencial de repouso. Concluímos então que se trata da energia de repouso da partícula, isto porque, mesmo quando a energia cinética é nula, este termo ainda permanece. Finalmente, podemos escrever a energia total de uma partícula de massa m como

recuperando o resultado já conhecido da relatividade restrita. O mesmo pode ser visto na Ref. [9].

8. Conclusão

Neste artigo utilizamos apenas os postulados da relatividade especial e as relações entre as medidas de intervalos de tempo entre diferentes referenciais inerciais, por meio da troca de sinais luminosos. Estas considerações levaram-nos ao fator K e consequentemente aos mesmos resultados obtidos por Bondi, Hermann Bondi. Além dos resultados mais básicos, como dilatação temporal e contração espacial, tanto o momento relativístico quanto a energia total relativística puderam ser deduzidos a partir de experimentos mentais. Apesar de termos deduzido estes resultados por meio do formalismo do cálculo K, mostramos suas relações com os resultados advindos da abordagem tradicional da relatividade restrita.

Algumas vantagens do cálculo K são a sua simplicidade matemática e a maneira com que os conceitos físicos se tornam explícitos, facilitando a compreensão dos efeitos relativísticos. Por estas vantagens, acreditamos que o cálculo K pode ser utilizado para um primeiro contato com a teoria da relatividade. Além do mais, este método não se restringe apenas ao entendimento da teoria, possuindo também aplicações [10].

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Prof. Dr. Bruto Max Pimentel Escobar por suas sugestões e à CAPES pelo apoio financeiro.

Recebido em 18/3/2013;

Aceito em 14/8/2013;

Publicado em 30/10/2013

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  • [5] A.T. Wilson, America Journal of Physics 75, 799 (2007).
  • [6] K.D. MAchado, Teoria do Eletromagnetismo (Editora UEPG, Ponta Grossa, 2002), v. 2.
  • [7] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Editora Blucher, São Paulo, 1998), 1 ed., v. 4.
  • [8] C.E. Dolby and S.F. Gull, America Journal of Physics 69, 1257 (2001).
  • [9] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (John Wiley & Sons, Inc., Hoboken, 1999), 3 ed.
  • [10] S. Vieira, A. Barros, I. Araújo e J.C.T. Oliveira, Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 93 (2004).
  • [11] A. Dasgupta, European Journal of Physics 28, 817 (2007).
  • *
    E-mail:
  • 1
    Denotaremos a partir de agora
    sistema de referência inercial apenas por
    referencial.
  • 2
    Subentende-se aqui a hipótese de
    isotropia do espaço, que afirma que não há uma direção privilegiada no espaço-tempo. Isto garante que para referenciais se movendo com velocidade relativa constante, a análise pode ser feita considerando qualquer direção, e neste caso, consideramos apenas o eixo que une as origens dos referenciais.
  • 3
    Definimos as escalas dos diagramas de modo que
    x/
    t =
    c, onde
    c é a velocidade da luz no vácuo, corresponda a uma reta com inclinação de 45º com relação ao eixo vertical (ou temporal).
  • 4
    Isto é uma consequência dos postulados de Einstein.
  • 5
    É neste ponto que aplicamos o Postulado 2, pois estamos supondo que a velocidade de
    B não interfere na velocidade da luz.
  • 6
    A transformação de um referencial para outro deve ser linear para que os intervalos de tempo sejam independentes da origem do sistema de coordenada temporal para quaisquer referenciais.
  • 7
    Um exemplo semelhante de adição de velocidades pode ser encontrado em [4]. Neste artigo, a autora utiliza os fatores de velocidade,
    f, (
    velocity factors), que são bastante semelhantes ao fator
    K (onde
    f =
    K
    2). Também é apresentada uma relação entre o fator de velocidade e a rapidez, já tradicional na relatividade especial.
  • 8
    Isto é, adotando o ponto de vista do referencial
    B, onde
    A passa a estar em movimento
  • 9
    Para mais detalhes na abordagem tradicional, veja a Ref. [6].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      18 Mar 2013
    • Aceito
      14 Ago 2013
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