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UMA NOVA VISÃO DO ENSINO MÉDICO

Vivemos todos numa dimensão unificada de espaço-tempo. Embora os avanços da ciência nos falem agora do tempo cósmico como reversível, isto é, como flechas em duplo sentido, nosso tempo no planeta Terra é medido em função da flecha unidirecional do tempo, em que passado, presente e futuro se sucedem nessa ordem. A passagem do tempo é celebrada no fim de cada ano, e mais ainda no fim de cada década, cada século, cada milênio. Estamos prestes a celebrar dentro de pouco mais de três anos a ocorrência simultânea de todas essas passagens. Psicologicamente esperamos que aconteça algo na noite da passagem para o Ano 2000 que signifique uma transformação em nosso cotidiano, nosso futuro, nossas vidas. Mas esquecemos que no mundo isso ocorre todos os dias. O que é permanente é a mudança, a transformação, num fluxo contínuo. Há no entanto certos momentos em que as transformações se aceleram, caracterizando mudanças paradigmáticas, e novas visões de futuro. Daí o título deste editorial.

O título menciona uma nova e não a nova visão do ensino médico, reconhecendo que qualquer visão de futuro está sempre refletindo a nossa subjetividade. No meu caso particular, ela resulta de minhas vivências anteriores, da observação de megatendências da sociedade contemporânea e da participação em conferências ou leitura de relatórios de reuniões nacionais e internacionais sobre o ensino e a prática da medicina e das demais profissões da saúde. Mudanças em marcha, que para mim e muitos outros significam avanço, para um segundo grupo de pessoas podem significar algo que não é desejável, algo contra o quê se tem de lutar. Como em tudo, há os defensores do "status quo", cuja argumentação respeitamos, e os proponentes de mudanças, aos quais eu me associo.

Estamos numa época em que se esmaecem muitas linhas divisórias e antigas certezas se transformam em dúvidas. Nossa formação cartesiana, da qual resultou nossa te cega no método científico, ficou abalada na medida em que nossa própria ciência, com a teoria geral da relatividade e a mecânica quântica, pôs fim à ideia de um universo determinístico.

O pensamento sistêmico, originalmente aplicado a sistemas fechados no mundo físico, tendentes a um aumento da entropia, foi posteriormente adaptado aos sistemas abertos do mundo biológico e social, que interagem com seu ambiente externo, entorno ou contexto. Tais sistemas são capazes de autopoiese no mundo biológico e de auto-organização no mundo social. São sistemas de entropia negativa, que formam um todo com o ambiente ou entorno em que estão inseridos. Para podermos compreender, pesquisar, atuar em qualquer das suas partes, necessitamos ter uma compreensão e visão do todo.

Perguntamos agora: o que tem tudo isso a ver com o ensino médico? Tem muito a ver. A complexidade atual dos problemas do ensino médico no mundo moderno, não nos permite mais abordá-los com uma visão reducionista, mesmo que ela seja ampla como no caso de uma visão puramente setorial do sistema de saúde. Com uma nova visão, o atual Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto operado ou financiado pelo setor público, é uma parte importante do sistema total, mas não é o seu todo.

O sistema de saúde por sua vez abrange o subsistema de formação de recursos humanos para a saúde, do qual o ensino médico faz parte. Este por sua vez é representado hoje no Brasil, em parte, por 82 instituições -as faculdades ou escolas médicas. Cada uma delas por sua vez está situada cm ambientes ou contextos diferentes, e é constituída por professores, pesquisadores, alunos, funcionários, com suas próprias visões de mundo e de futuro, ou seja, com suas próprias subjetividades. Não existem duas faculdades ou escolas nem dois contextos que sejam iguais.

É para poder lidar com essa diversidade e complexidade que estamos hoje falando em "pensamento complexo", transdisciplinaridade, teoria do caos e processos de auto-organização nas instituições sociais, como uma evolução do pensamento sistêmico. Isso implica em pensarmos a cada escola médica, ou o hospital universitário, ou o hospital de ensino, não como um sistema aberto em que existem o intra-mural e o extra­mural, mas como partes de um todo complexo que abrange o intra-mural e o extra-mural e constituinte de uma realidade local, em pleno processo de transformação, resultante da descentralização e municipalização em marcha. Ao mesmo tempo esta realidade local é parte de outra, nacional, que por sua vez é parte de uma realidade mundial.

A nova visão impõe a todos nós a difícil tarefa de comunicação em diferentes níveis de realidade (micro, macro, global) e entre indivíduos situados em diferentes níveis de percepção. A formação de consensos partindo dos atuais dissensos exige de cada um de nós a capacidade de ouvir o outro, respeitar seus pontos de vista e explicar os nossos com clareza, buscar denominadores comuns.

O que se diz para a comunicação entre indivíduos, é também válido para a comunicação entre instituições, sejam elas de nível local, estadual, ou nacional. Nesse sentido, o papel reservado à ABEM, através de suas reuniões anuais, de sua revista e de sua participação na CINAEM, é de suma importância. O estudo recém divulgado sobre o "Perfil do Médico", feito pela FIOCRUZ, com auspício da FENAM, da AMB e do CFM, e os documentos de trabalho da recente reunião da Rede de projetos IDA e UNI em Salvador, fornecem importantes subsídios para os movimentos de mudança no ensino e na prática médica. Há necessidade de analisá-los em conjunto com políticas nacionais de saúde, de educação, de desenvolvimento econômico e social, para melhor compreensão do todo.

Este editorial está sendo redigido nas vésperas da X Conferência Nacional de Saúde. Suas importantes recomendações deverão ser analisadas e meditadas por todos à luz de uma visão transdisciplinar e trans­setorial do ensino médico. É certo que buscamos um grau muito maior de congruência entre o perfil do produto das escolas médicas e sua prática profissional futura. Mas também é certo que a congruência que buscamos não deve ser estática, isto é, ajustar o produto a um mercado ou sistema tal como ele é. Não se trata pois de uma congruência estática e sim dinâmica. Queremos não só uma congruência, mas também uma confluência entre o sistema de saúde e seu subsistema, o aparelho formador de recursos humanos, ambos interagindo, influenciando-se reciprocamente, e ambos mudando e evoluindo continuamente do que é para o que deve ser. De que modo poderemos avançar mais rapidamente na construção de um sistema de saúde com maior equidade, eficiência e eficácia, e de um sistema educacional médico mais relevante e atento às necessidades de saúde da população? Qual o caminho a seguir? Esse é o nosso grande desafio.

Mário M. Chaves
Assessor Acadêmico da ABEM

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    May-Dec 1996
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