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O BOM MÉDICO

Resumo

A prática da medicina exige qualificações pessoais especificas que podem ser resumidas em: 1. conhecimento médico; 2. habilidades técnicas e psicomotoras; 3. relacionamento médico-paciente. O conhecimento médico engloba informações sobre a natureza do ser humano, seu modo de adoecer, o sofrimento e as doenças e a interação saúde-doença-doente. As habilidades psicomotoras dizem respeito a procedimentos técnicos rotineiros ao exame clínico, incluindo habilidades intelectivas como observação clínica, capacidade de síntese e julgamento clínico que devem ser de domínio de todos os médicos, além de outros especializados - que exigem treinamento específico; A qualidade do relacionamento médico­paciente é fator essencial para o sucesso de qualquer intervenção médica e para a satisfação dos pacientes. A insuficiente ênfase dedicada pelas escolas médicas brasileiras à comunicação interpessoal na formação médica pode ser responsabilizada por muitas falhas ao exercício profissional do médico e merece ser urgentemente reparada.

Palavras-chave:
Educação na pré-graduação em medicina; Competência clínica; Competência baseada em educação; Relação médico-paciente

Summary:

The practice of medicine demands cognitive, psychomotor and communicative skills. The author discusses cognitive skills from a broad perspective, which includes knowledge about the nature of human being, the historical evolution of concepts on health and disease and, finally, about the health-disease-patient complex. Psychomotor skills are pertinent to a routine, comprehensive physical examination and should be acquired by all physicians. There are also many specialized ones that· will require additional training depending on the specialialty. They include also intellectual skills such as data collection and processing, clinical observation and judgment. Most importantly, effective treatment outcome is strongly determined by the quality of doctor-patient relationship. The author makes reference to the fact that deficiency in the professional training of physicians may result, if medical schools don’t emphasize the importance of doctor-patient relationship.

Key words:
Medical Education, undergraduate; Clinical competence; Competency-based education; Physician - patient relations

INTRODUÇÃO

"A mais alta e única missão do médico é restabelecer e saúde nos doentes, que é o que se chama curar.” 7 07. HAYDEN, G. On Being responsible. The Philosophical Quartely, v.28, p. 57, 1978.

A prática da medicina humana visa manter ou restabelecer a saúde física e mental dos homens através da cura de suas enfermidades e de orientações quanto à prevenção das mesmas; se a cura é impossível, procura aliviar seu sofrimento ao proporciona-lhe uma melhor qualidade de vida ou de seus últimos momentos. A medicina, ao longo dos tempos, vem desenvolvendo e aperfeiçoando continuamente diferentes métodos de tratamento com um mesmo objetivo: beneficiar o paciente sem prejudicá-lo (primum non nocere1 1 ”Eu adotarei o sistema que, de acordo com a minha habilidade e julgamento, eu considere que será para o benefício de meus pacientes, e evitarei tudo que lhe seja deletério ou pernicioso”(juramento do Hipócrates in: Great Books of the Western World. Vol.10. Chicago, Encyclopaedia Brytannica, Inc., 1980). ). O médico é personagem central para que se alcance este objetivo. Para isto, utiliza seu conhecimento e sua capacidade de análise para conhecer o doente com sua doença; procura sintetizar os dados obtidos através da anamnese e do exame físico - complementados por exames subsidiários - em uma síndrome mínima de valor máximo, isto é, um conjunto suficiente de sinais e sintomas verdadeiros que reúnem em si todas as alterações clínicas relevantes apresentadas pelo paciente, síndrome esta necessária para elaboração de diagnósticos clínicos. Em seguida, o médico prepara uma listagem de problemas clínicos, formula o(s) diagnóstico (s) e estabelece um plano terapêutico com orientações educacionais personalizadas, considerando aspectos de eficácia e custo financeiro. Esta é a sequência lógica e ideal do trabalho médico. Entretanto, em virtude de variações na formação, competência individuais ou condições de trabalho, a qualidade do atendimento não é uniforme e seu resultado evidentemente também não é; com isto, há médicos mais eficientes e menos eficientes.

Dizer que um médico é bom significa que ele é não só tecnicamente competente, mas também digno, respeitoso, culto, cordial, empático, hábil, pontual, honesto. Desempenha suas funções com presteza e profundo senso moral, é consciente de suas limitações, minucioso, atualizado e compreensivo quanto aos problemas do paciente, de sua família ou relacionados; reconhece as limitações do atual estágio do conhecimento médico e dos serviços de saúde em que está inserido e oferece sua contribuição na medida do possível; é confiável, disponível, educador, comunicativo, imparcial e atento (American Board of Internal Medicine). Estes atributos podem ser condensados em três tópicos - conhecimento médico, habilidades técnicas e motoras e relacionamento médico-paciente, ou, de modo mais abrangente, comunicação interpessoal. O nosso objetivo é discutir estes fundamentos a fim de que o médico, consciente de sua missão e de suas capacidades, possa se aperfeiçoar e ser mais útil àqueles que dele venham precisar.

1. CONHECIMENTO MÉDICO

O médico será tanto mais útil quanto maior for seu conhecimento sobre as doenças como um todo (etiologia, fisiopatologia, patogênese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento e prognóstico). Se sua cultura abrange um grande número de doenças será mais competente e preciso frente aos casos clínicos sob sua responsabilidade. Este conhecimento, apesar de necessário, não é entretanto sufici­ente; além das doenças, é desejável que estenda seus conhecimentos a:

natureza do ser humano

evolução histórica dos conceitos de saúde e doença

complexo saúde - doença - doente

1.1 - Natureza do Ser Humano

Os livros-textos comumente adotados em escolas médicas tecem escassas considerações sobre a natureza do ser humano, em especial se omitem quanto às particulares concepções de sofrimento decorrentes de diferentes tradições e sistemas religiosos; em geral o tema não é objeto de discussão curricular no Brasil e é tratado quase exclusivamente em compêndios de psicologia médica ou medicina psicossomática.

Uma análise do tema, mesmo sucinta, nos impõe urna breve revisão histórica. Aristóteles (384-322 a.C.) relacionou a função da matéria (corpo material) com a da alma (corpo espiritual) no ser humano, e rejeitou as teorias materialistas da alma, pré-socráticas. Tomás de Aquino (1224-1274) sustentou que o ser humano resulta da união substancial entre corpo e alma, esta entendida como o conjunto das faculdades psíquicas, intelectuais e morais que integram os seres animais e particularmente o homem. Barthez (1734-1806), baseando-se em concepções filosóficas de Hipócrates, Aristóteles e Tomás de Aquino, considerou que o homem tem uma composição ternária: um componente material ou orgânico (corpo físico), um espírito (ou alma) e um princípio ou energia vital, responsável pelas sensações e estímulos das funções vitais dos seres animais, capaz então de mantê-los vivos. Assim, a energia vital se desfaz com a morte. Lopez Ibor (1975)1111. McMILLAN, R. C. Responsibility to or for in the physician-patiente relationship? Journal of Medical Ethics, v. 21, p. 112, 199. identifica uma zona intermediária onde a proporção entre o psíquico e o físico se acha mais equilibrada, denominando-a de "área vital ou vitalidade". Segundo ele, a "vitalidade, em sua projeção física, consiste em uma série de regulações orgânicas, cuja grande central reguladora se acha no diencéfalo.... A vitalidade, em sua projeção psíquica, é a grande reguladora da vida espiritual". Ainda segundo este autor, a vitalidade representa a costura entre o corpo e a alma e encerra em si a chave das correlações psicossomáticas.

O ser humano é caracterizado pela independência, liberdade e autonomia de pensamento e ações. É dotado de uma consciência e não só a tem, mas sabe que a tem. Por isso é livre frente a suas emoções, satisfazendo ou não seus impulsos, e a natureza permite que exerça seu livre arbítrio, deixando a ele próprio a realização de sua vida. Nos outros seres vivos, a natureza não apenas determina a sua vida, mas também a executa.

O ser humano tem, instintivamente, necessidade de vida em sociedade, assim como outras espécies animais; e aquela exerce sobre ele influências marcantes ao longo da vida, de modo tão acentuado, que passa a fazer parte de sua própria constituição global. Adotando uma perspectiva fenomenológica, o ser humano é um ser do mundo, no-mundo e para-o-mundo, o que, juntamente com seus componentes físico e psíquico, perfaz uma trindade (bio-psico-social) indivisível - o indivíduo. Assim, um desequilíbrio em um de seus componentes pode repercutir nos outros dois, causando uma doença com manifestações físicas, psíquicas e/ou sociais. Para que o médico possa compreender o doente e ajudá-lo é preciso que o analise em sua totalidade.

1.2 - Evolução Histórica do Conceito de Saúde e Doença

Alcmaeon (séc.Vl a.C.) entendia que as doenças resultavam do desequilíbrio entre as potências da natureza: o úmido e o seco, o frio e o quente, o doce e o amargo, dentre outras. Isto é, a "saúde seria uma bem-proporcionada combinação das qualidades".404. ENTRALGO, P. L. Historia de la medicina. Barcelona: Salvat, 1978. Depois de Alcmaeon, deixou a medicina paulatinamente de ser considerada mágica e passou a ser caracterizada como arte (tekne) e o médico só o é se age tecnicamente, ou seja, se sabe o que faz e porque faz. Hipócrates (c.460-377a.C.) considerava a influência de quatro humores no corpo humano (sangue, muco, bile amarela e bile preta), seguindo conceitos anteriores estabelecidos por Empedocles (séc. V a.C.), e renegou a concepção até então vigente de que as doenças resultavam de uma "punição dos deuses". Estabeleceu que "cada doença tem sua própria natureza e surge de causas externas", chamando ainda a atenção para a importância da dieta e do uso de poucas drogas para seu controle. Metodizou o exame do paciente e deixou como maior legado seus preceitos sobre conduta médica através do chamado Juramento de Hipócrates, Galena, que começou a exercer a medicina em Roma no ano 164, fundamentou-se nos ensinamentos hipocráticos, concordando com a teoria dos humores. Introduziu vários conceitos a respeito da anatomia e da fisiologia e focalizou o aspecto organicista das doenças ao transferir para os humanos resultados de suas observações obtidas por dissecções de várias espécies de animais. (Não consta que tenha realizado dissecções em humanos, por razões não muito bem estabelecidas; admite-se que esta prática em humanos contrariava princípios vigentes à época do ponto de vista jurídico, legal e social.)404. ENTRALGO, P. L. Historia de la medicina. Barcelona: Salvat, 1978. A medicina ocidental reconhece muitas conclusões estabelecidas por Galena como fundamentais e perfeitamente válidas ainda hoje.

As doenças em geral são identificadas com base no conhecimento científico que se dispõe a respeito, conhecimento esse em constante e vertiginosa evolução, que privilegia a lesão orgânica.2 2 O médico moderno e atualizado pode vivenciar, ao participar desta evolução, situações ambivalentes: uma de poderio, ao se julgar pleno de conhecimento e de saber, e outra de perplexidade, ao constatar que mesmo este saber imenso se mostra frequentemente insuficiente para a cura das doenças. Uma visão mais informada exige, no mínimo, uma concepção bivalente de doença:

  • Doença como desordem orgânica

  • Doença como modo de viver, de estar404. ENTRALGO, P. L. Historia de la medicina. Barcelona: Salvat, 1978.

A primeira é fruto da vertente objetiva do conhecimento (objeto preferencial de treinamento do médico) e a segunda, da subjetiva (reconhecida pelo próprio paciente quando apropriadamente inquirido). Como desordem orgânica a doença se concentra no plano biológico, somático, procurando explicar o que rompeu a homeostase, desde o plano molecular até o nível dos órgãos e sistemas (fisiopatologia). Apoia-se em relação de causa e efeito agindo sobre um organismo - ou terreno -predisposto à aceitação da doença por fatores diversos: biológicos, ambientais, alimentares e outros. Esta predisposição individual está intimamente ligada à constituição ternária humana (bio-psico-social) com interdependência entre seus componentes1010. LOPEZ IBOR, J. J. Lecciones de psicologia médica. 8. ed. Madrid: Paz Montalvo, 1975. e implica numa abordagem explicativo-causal de seus problemas. Quando se concebe a doença como modo de viver ou estar privilegia-se o plano mental (ou psíquico) e social do paciente como foco de abordagem: o médico precisa então compreender o paciente, buscando nele mesmo os motivos de seu adoecer. Neste caso o ser humano faz a sua doença e o médico se baseia em suas percepção e reflexão para entender o doente e explicar sua doença. O modo de viver ou de estar do indivíduo -vale dizer sua qualidade de vida -é um dos determinantes do seu passado, presente e futuro (por exemplo, hipertensos podem prolongar sua vida - e até reverter complicações já existentes em decorrência da hipertensão arterial - quando melhoram seu modo de viver).)1515. STAMLER, J, STAMLER, R., NEATON, J. D. Blood pressure, systolic and diastolic, and cardiovascular risks. Arch. Inter. Med., v. 153, mar. 8, 1993.),(1616. THE FIFTH REPORT OF THE JOINT NATIONAL COMMITTEE on Detection, Evaluation and Treatment of Hig Blood Pressure (JNC V). Arch. Inter. Med. , v.153, jan. 25, 1993.

Como é fácil de perceber, nenhuma das duas abordagens citadas, isoladamente, é suficiente para o bom desempenho do médico.

Há necessidade de que sejam ampliados os conceitos diagnósticos - às vezes incompletos e acanhados - que são transmitidos pelas escolas médicas, induzem o médico a ser exclusivamente organicista na maioria dos casos despidos de metodologia básica. A pergunta "por que o(a) doente ficou doente?" deve ser uma constante no pensamento do médico, na tentativa de desvendar a origem de seu problema clínico. O reconhecimento da doença como efeito (de determinadas alterações biológicas, psicológicas e/ou sociais) e também como causa (de novas alterações) impõe o uso de uma doutrina de diagnósticos que favorece tanto a visão da enfermidade, como desordem orgânica, quanto a maneira de viver de quem a padece.

Complexo Saúde - Doença - Doente e suas Interpretações

A organização Mundial de Saúde define a saúde como "um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, e não mera ausência de doença ou de invalidez". Esta conceituação revela os estreitos laços psicobiológicos e sociais do homem e busca evitar uma visão exclusivamente organicista do processo saúde-doença. Alerta para a interdependência da área da saúde com outras áreas como educação, habitação, trabalho e condições ambientais.

A percepção da doença pelo médico não é homogênea - e isto depende em parte de sua formação profissional. Se for puramente organicista, conseguirá reconhecer a doença a partir da análise concreta sobre os dados de que dispõe. Se não a reconhecer de pronto, continuará a investigação por tempo variável, solicitando exames complementares ou pareceres de outros médicos, até que surja um diagnóstico compatível com o quadro clínico em questão e que seja - ou venha a ser - do seu conhecimento (portanto, a cultura médica é fundamental). Se, afinal, a queixa do paciente não se justifica para médico que o examina, por não existirem alterações orgânicas ou por não terem sido por ele detectadas, pode surgir a falsa conclusão de que o paciente está são, contrariando a opinião do mesmo. A percepção da doença pelo próprio paciente é mais simples e se baseia no surgimento de sintomas que modificam a qualidade de vida que tinha até então. Segundo Dunharn,303. DUNHAM, C. Lectures on materia medica. 5. ed. Calcula: Bharati, 1969. "sintomas são tudo o que distingue o homem doente de si mesmo, quando não está doente". A comparação de como era ou estava antes e de como é ou está atualmente, se acompanhada da sensação subjetiva de perda, seja no aspecto físico, mental e/ou social, pode levar os pacientes a se julgarem verdadeiramente enfermos, embora nem sempre com o reconhecimento do médico. A este respeito, Moreira1212. MOREIRA, A. A. Teoria e prática da relação médico-paciente. Belo Horizonte: Interlivros, 1979. elaborou urna interessante matriz perceptual de doença, conforme enfocada pelo médico ou pelo paciente (Quadro 1 ).

QUADRO 1
Matriz perceptual da doença

2. HABILIDADES TÉCNICAS E PSICOMOTORAS

Dizem respeito a ações que complementam e enriquecem o exame clínico e favorecem maior precisão nas decisões diagnósticas e maior eficiência nas terapêuticas. Dependem não só do conhecimento, mas também de habilidades específicas e sensibilidade do médico examinador, o qual deve interagir sua mente com seus órgãos dos sentidos, a fim de obter os melhores resultados com a menor morbidade possível.

Algumas devem ser do domínio de todos os médicos como, por exemplo, medida da pressão arterial, ausculta cardíaca, palpação abdominal e outras - e fazem parte do exame clínico rotineiro. Outras são de complexidades maior e exigem treinamento especializado para sua execução, como punções de cavidades, cateterismo cardíaco, tratamento dialítico - dentre muitas outras. A maioria dos casos não requer procedimentos altamente especializados para sua solução.

No rol das habilidades técnicas, o médico precisa dispor ainda de habilidades intelectivas para o correto exercício profissional, tais como:

- Tomada do caso ou observação clínica: Segue critérios pré­estabelcidos pela semiologia médica com técnica adequada de elaboração de perguntas (anamnese) e de exame físico. Visa o reconhecimento dos sinais e sintomas que o paciente apresenta e, ainda, o conhecimento do paciente como ser humano, com seu psiquismo, suas ações e reações, seu modo de ser e de viver. Seu objetivo final é, portanto, conhecer o doente com sua doença.

-Capacidade de síntese: Refere-se à habilidade na seleção, hierarquização e combinação lógica das informações relevantes adquiridas na tomada do caso e elaboração, a partir das mesmas, de um raciocínio claro e articulado que explique os problemas clínicos identificados. Esta condensação do pensamento deve ser de tal ordem que não haja prejuízo do conteúdo, desvelando assim a síndrome mínima de valor máximo, já referida antes, abrangente e lógica. Trata-se de uma qualidade que é aprimorada individualmente durante o exercício da profissão e negligenciada às vezes no treinamento acadêmico do médico. Em geral, o médico recém-formado tem dificuldade em colocar as ideias em ordem e elaborar uma hipótese diagnóstica coerente com os dados que dispõe. Frequentemente apega-se a sintomas de pouca importância ou de pouca confiabilidade e chega a conclusões diagnósticas confusas ou raras ou desvinculadas dos problemas reais do paciente. Vale aqui lembrar o dito do Prof. João Gallizzi (UFMG): “o que é raro é raríssimo, é comum é comuníssimo”.

-Julgamento clínico: Representa a capacidade individual do profissional médico de tomar decisões diagnósticas, prognósticas e teraupêuticas baseadas nos sinais, sintomas e outras informações pessoais coletadas dos pacientes e de elaborar uma lista dos seus problemas clínicos para orientação da melhor conduta a ser tomada. A escolha entre alternativas diagnósticas e terapêuticas mais adequadas ao caso se baseia no conhecimento adquirido da literatura médica, na experiência pessoal e nos princípios éticos que regem a prática profissional do médico. As decisões devem ser inteligentes, conscientes e eficientes para solucionar da melhor maneira possível, isto é, de modo ágil, econômico e se possível confortável, os problemas clínicos detectados.

3. RELACIONAMENTO MÉDICO-PACIENTE

Esse tema corresponde ao terceiro atributo indispensável ao médico competente e está sempre presente em todo ato clínico, que o torna da maior relevância. Inclui noções básicas do processo de comunicação interpessoal e criação e manutenção de relações de empatia, confiança e respeito mútuos, necessárias para criar um ambiente adequado ao trabalho do clínico. É fundamental em todas as etapas desta atividade, desde a tomada do caso para obter o maior número possível de informações válidas, até as proposições finais diagnósticas e terapêuticas. Aqui o paciente se despede suas vaidades e revela à pessoa em quem mais confia naquele momento - o médico - suas queixas, conflitos e segredos interiores, com esperança de solucionar ou atenuar seus problemas. Graças a essa empatia, dispõe-se a colaborar no processo de condução de seu caso, aceitando procedimentos diagnósticos ou terapêuticos às vezes desagradáveis; o clínico se sente mais confortável e seu exame, em consequência, fica mais proveitoso, rico em detalhes e mais propenso a soluções coerentes.

O indivíduo enfermo é habitualmente ansioso, pois tem a doença como seu destino e fica apreensivo quanto ao seu futuro, não raro criando fantasias cruéis e angústias de morte.1717. UCHÔA, D. M. Psicologia médica. São Paulo: SARVIER, 1976. Em geral, ao procurar o médico de sua confiança, espera encontrar alguém tecnicamente competente para ajuda-lo e disposto a ouvi-lo, capaz de sentir sua ansiedade, de compreendê-lo como ser que sofre, e de entender seu problema.

Assim, o médico passa a ser para o paciente não só um técnico, mas também um confessor, protetor e amigo. Do técnico, ele espera soluções; ao confessor, revela seus problemas íntimos -às vezes timidamente, mas com coragem; ao protetor, entrega seu destino; e do amigo, ele espera conforto, solidariedade, compre­ensão e calor humano.808. JOB, J. R. P. P; JOB NETO, F. O Clínico como cura d'almas: O despreparo para um papel socialmente outorgado, implícito na relação terapêutica médico/paciente. R. Bras. Educ. Méd., V. 18, n. 2, p. 70-74, 1994.

Fica, assim, evidente porque o computador não substitui o médico em seu papel essencialmente humano perante o paciente. Quando este se sente frustrado em sua expectativa, surgem barreiras que interrompem a comunicação entre os dois, resultando não raro fracasso nas soluções. Esta frustração se deve quase sempre à inabilidade do médico em manter uma relação de bom nível com o paciente. Algumas queixas comuns são: o médico não parece disposto a ouvir; demonstra impaciência, interrompe a fala do paciente; o médico e8tiÍ distraído; parece estar mais preocupado com a doença do que com o próprio doente.202. CARR, J. E, DEN GERINK, H. A. Behavioral science in the practice of medicine. New York: Elsevier Biomedical, 1983.),(1313. PERESTRELLO, D. A Medicina da pessoa. Rio de Janeiro: Atheneu , 1982.),(1414. PINHEIRO, R. Medicina psicossomática: uma abordagem clínica. São Paulo: Fundação BIK, 1992.),(1717. UCHÔA, D. M. Psicologia médica. São Paulo: SARVIER, 1976.

As escolas médicas atuais nem sempre atentam para o fato de que o paciente humano deseja um médico humano505. FRANKI, V. E. Teoria y terapia de los neurosis. Madrid: Gredos, 1968. e se dedicam mais ao ensino das doenças e dos avanços tecnológicos, cada dia mais atraentes.

Frequentemente esquecem-se de destacar a pessoal portadora da doença para o aluno; desse modo, o médico recém-formado tem, em geral, pouca competência no trato com o doente em si. É de senso comum que os médicos modernos podem ouvir, sentir e perceber melhor os órgãos do que os bons clínicos antigos, mas os antigos ouviam, sentiam e percebiam melhor as pessoas. Para B. P. Siqueira, ex-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (1991) hoje os "médicos recém-egressos das escolas médicas tornam-se, na verdade, técnicos equipamentos-dependentes; ou seja, técnicos que fazem e vêem maravilhas com sua máquina qualquer e nada sabem de medicina e muito menos a respeito do homem.... Se a escola médica está formando seus alunos com base na aquisição de conhecimentos de alta tecnologia apenas, ela não os está formando, e sim deformando-os."

O médico, no cumprimento legal e moral de seu papel, deve idealmente diagnosticar o doente com sua doença; saber perguntar e saber ouvir; evitar inquirir ou oprimir seu paciente ou sugerir respostas a ele; precisa ser suficientemente hábil para que o diálogo seja agradável e profícuo e evitar a todo custo que o paciente se sinta "coisificado", isto é, reduzido a um número, ou a um caso.1313. PERESTRELLO, D. A Medicina da pessoa. Rio de Janeiro: Atheneu , 1982. O exercício da medicina cria situações particulares de relacionamento: na vida cotidiana, os indivíduos geralmente são responsáveis por si mesmos,707. HAYDEN, G. On Being responsible. The Philosophical Quartely, v.28, p. 57, 1978. mas o médico passa a ser responsável também por seus doentes, mesmo que estes tenham capacidade de decisão própria. A angústia vivida pelo paciente quanto ao seu sofrimento e ao seu futuro faz com que ele muitas vezes fique dependente de seu médico, transferindo para ele a sua ansiedade e, intimamente, incitando-o a assumir responsabilidade por ele.1111. McMILLAN, R. C. Responsibility to or for in the physician-patiente relationship? Journal of Medical Ethics, v. 21, p. 112, 199. Isso exige, portanto, seriedade no trato com o mesmo e intenção de oferecer o melhor de si em benefício dele. Torna-se necessário, finalmente, que o médico desenvolva sensibilidade para conviver com o paciente e seus familiares informando-lhes a realidade do caso com honestidade e, de modo suave, sem omitir ou deturpar a dureza dos fatos.

Além das interações com os pacientes, os médicos se relacionam com familiares dos pacientes, com outros médicos ou profissionais da saúde envolvidos no cuidado dos pacientes e, em algumas situações, com os meios de comunicação. A necessidade de desenvolvimento de sadias interações do médico com estes agentes deve ser entendida prioritariamente como pertencente ao dever médico de beneficiar os doentes ou a sociedade como um todo, e não como mecanismo principal de defesa ou prevenção contra possíveis alegações de má-conduta ou erro médico. A postura amorosa e compassiva do profissional médico para com os doentes que atende, familiares ou outros profissionais da saúde que o auxiliam nega toda e qualquer associação com posturas egoístas e temerosas que refletem vícios de origem no comportamento profissional médico. A interação dos médicos com familiares do paciente são necessárias sobretudo para conhecer melhor o doente. Em algumas especialidades chega a ser indispensável (e.g. pediatria, geriatria, psiquiatria, medicina de urgência). Por vezes se torna difícil, dada a natural ansiedade dos familiares com relação ao enfermo, e exige compreensão, tato e bom senso do médico para que a família compreenda e favoreça as soluções e não o contrário. Não se podem negar ao doente e à família informações corretas, mesmo que dolorosas, a respeito da doença. A verdade deve ser sempre dita, embora, em casos particulares, possa não ser dita em sua totalidade num dado momento com a intenção maior de beneficiar os pacientes. Em todos os mo­mentos deve o médico ser solidário, seja na tristeza do desfecho desfavorável, seja na alegria da solução. Dentro dos princípios de cordialidades, atenção e interesse, pode o relacionamento do médico com a família tornar-se profícuo e duradouro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A medicina é uma arte das mais sublimes por permitir que seu agente - o médico - atue no ser humano para atenuar ou eliminar o seu sofrimento ou prolongar sua vida. Seu exercício, ao enfocar o paciente como totalidade indivisível (biopsicossocial), transcende o simples uso de informações e princípios científicos capazes de rever­ter um processo mórbido; objetiva, sobretudo, proporcionar-lhe bem-estar geral - e não somente livrá-lo da doença. O médico, para ser este agente, deve ser dotado de atributos que incluem não só conhecimento e habilidades técnicas, mas também uma adequada capacidade de comunicação humana com pessoas em processos de sofrimento. As escolas médicas têm sua parcela de responsabilidade na formação de profissionais com tais atributos. Entretanto a construção do profissional médico competente depende em última instância do próprio indivíduo pois: a) o conhecimento médico é dinâmico, progressivo e ininterrupto e não pode se limitar ao adquirido nas faculdades; b) o mesmo se aplica às habilidades psicomotoras; c) o relacionamento com o paciente depende fortemente dos valores intrínsecos do médico, de sua personalidade e sensibilidade, de sua concepção de profissão e de vida. É nossa opinião, no entanto, que as escolas de medicina devem expor de forma efetiva os alunos a atividades que propiciem uma reflexão e uma apropriação pragmática de conceitos e instrumentos que resultem em médicos eticamente comprometidos com seus pacientes e ca­pazes de compreendê-los enquanto tentam explicar suas doenças.

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  • 1
    ”Eu adotarei o sistema que, de acordo com a minha habilidade e julgamento, eu considere que será para o benefício de meus pacientes, e evitarei tudo que lhe seja deletério ou pernicioso”(juramento do Hipócrates in: Great Books of the Western World. Vol.10. Chicago, Encyclopaedia Brytannica, Inc., 1980).
  • 2
    O médico moderno e atualizado pode vivenciar, ao participar desta evolução, situações ambivalentes: uma de poderio, ao se julgar pleno de conhecimento e de saber, e outra de perplexidade, ao constatar que mesmo este saber imenso se mostra frequentemente insuficiente para a cura das doenças.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1997
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