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Comentários sobre o artigo "Aulas práticas sem animais: podemos substituí-los sem perda da qualidade?", publicado na Revista Brasileira de Educação Médica

CARTA AO EDITOR

Comentários sobre o artigo "Aulas práticas sem animais: podemos substituí-los sem perda da qualidade?", publicado na Revista Brasileira de Educação Médica

Telma M. T. ZornI; Zuleica Bruno FortesII

IProfessora Titular do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento, ICB-USP

IIProfessora Titular do Departamento de Farmacologia, ICB –USP

O título do artigo de Diniz et al., publicado no volume 30 (2), 2006, nos chamou a atenção e nos fez analisá-lo. Os autores se perguntam se podemos substituir os animais em aulas práticas com a mesma qualidade de ensino. Esperávamos, de início, que o estudo tivesse empregado modelos, robôs ou programas de computadores, que vêm sendo utilizados cada vez com maior freqüência para substituir animais em aulas práticas. Entretanto, no estudo, os autores utilizaram camundongos e os próprios alunos, com o objetivo de comparar o grau de aprendizado entre duas turmas de alunos do curso de Medicina submetidas a aulas distintas e, de acordo com os autores, "com e sem o uso de animais". O título é claramente impróprio, uma vez que a espécie humana não pode ser considerada não animal, pois faz parte do reino animal.

A leitura atenciosa do artigo mostra que, de fato, o estudo envolveu duas questões. A primeira foi comparar o aprendizado de apenas um tipo celular, as células epiteliais de revestimento presentes em esfregaço de mucosa bucal. A segunda foi verificar os sentimentos de estudantes do primeiro ano de um curso de Medicina diante do sacrifício de um animal em aula prática. Este último aspecto foi o único resultado conclusivo do artigo. Este fato nos causou uma profunda estranheza, uma vez que o artigo dedica um espaço relevante à questão da ética em ensino e pesquisa.

Em nossa experiência de mais de 30 anos como docentes na Universidade de São Paulo, jamais sacrificamos animais em aulas práticas com o intuito de estudar a morfologia de células, tecidos e órgãos, quanto mais apenas um tipo celular, como feito no experimento. Não nos surpreende, portanto, que os estudantes recém-ingressos em um curso superior tenham se mostrado chocados diante do sacrifício de animais, tendo como resultado um aprendizado muito limitado. Em aulas com o objetivo proposto no artigo, utilizam-se rotineiramente preparados histológicos obtidos de animais de experimentação ou de peças cirúrgicas de voluntários humanos. Estes preparados são chamados "permanentes", por durarem décadas, o que minimiza sobremaneira o sacrifício de animais ou a coleta de amostras de doadores humanos. Em humanos, o procedimento relatado no estudo feito em sala de aula poderia ser ampliado, dentro dos padrões éticos estabelecidos, no máximo para a coleta de sangue. Utilizar-se-iam os estudantes para coletas de outros tipos de tecidos e órgãos? Eis uma questão ética crucial que não foi discutida pelos autores.

É importante enfatizar que a substituição de amostras de animais por aquelas de humanos, como feito no experimento relatado no artigo, constituiu uma demonstração muito simplista da complexidade celular de um organismo de mamíferos, o qual apresenta perto de uma centena de tipos celulares com funções específicas. Deste modo, a questão colocada como central no artigo, que é a da avaliação do aprendizado, não foi adequadamente respondida. Os próprios autores reconhecem que os dados não foram conclusivos. Além do mais, o artigo não foi suficientemente criterioso para enfatizar e reconhecer que o conhecimento transmitido aos estudantes naquela aula foi muito limitado. E o entendimento dos processos fisiológicos e farmacológicos? Poderia ser adquirido sem o uso de animais?

O emprego de métodos alternativos ao uso de animais em ensino e pesquisa tem sido objeto de discussão há muitos anos e tem se intensificado ultimamente. O trabalho, entretanto, não permite chegar à conclusão de que "é possível manter a qualidade do ensino com a substituição de animais", pois nele foram usados humanos para substituir camundongos, ambos do reino animal. Portanto, não podem propor substituição, de modo que o estudo apenas reforça a idéia da adequação do uso de animais de experimentação para estudos de doenças de humanos e mesmo daquelas de interesse veterinário. Além disso, o estudo fornece elementos para validar a transposição de dados obtidos em animais para a espécie humana.

Acreditamos que a necessidade de utilizar métodos alternativos deve ser consciência geral de todos aqueles que se dedicam à nobre arte de ensinar e educar. Os métodos alternativos ao uso de animais em aulas práticas são muitos e variados e implicam o uso de filmes, videoteipe, modelos que imitam estruturas como a pele e órgãos humanos, experimentos in vitro (em tubos de ensaios), culturas de células e até robôs, mas, na maioria das vezes, não substituem completa e satisfatoriamente o uso de animais de experimentação. Como afirmam alguns estudiosos do tema, "deve-se reconhecer que alguns objetivos educacionais somente podem ser alcançados pela utilização de experimentos em preparações vivas, i. é, animais." [tradução nossa] (Modell, Amer. J. Physiol. 256:S1820, 1989). Outros autores afirmam que "o fato de os estudantes estarem mais e mais deixando de ver animais está fazendo com que as bases experimentais de medicina sejam aprendidas apenas na sala de emergência, caminho mais difícil e árduo, isto é, árduo para o paciente" (Tips, 12:176, 1991) [tradução nossa], fato que pode ter conseqüências imprevisíveis para o paciente.

A nosso ver, portanto, a pergunta, que é o título do artigo, não foi respondida, uma vez que não se pode propor uma substituição que não foi adequadamente ensaiada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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