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O Paciente Morre: Eis a Questão

The Patient Dies: That is the Question

Resumo:

O objetivo da pesquisa foi investigar como o tema morte é bordado no decorrer da formação médica de uma faculdade. A abordagem metodológica foi a da pesquisa qualitativa, e os dados foram coletados no início e no fim do curso de medicina. Os resultados indicaram que os estudantes reconhecem papéis relevantes para o médico no acompanhamento do processo de morte de seus pacientes, mas afirmam que não recebem formação específica para isso. Na finalização do curso, identificou-se uma mudança de foco na atenção dos estudantes: quando a família - e não mais o paciente terminal - se torna o foco maior de interesse. Outra mudança foi a percepção dos estudantes de que as situações entendida como preferenciais para o ensino da morte não são mais aquelas referentes às interações com o paciente moribundo, mas centram-se em ambientes hospitalares, e, em decorrência disto, na necessidade de um preparo técnico hospitalar. Conclui-se que tais resultados são formas de ajuste a uma realidade: como, no período de formação, não se concretizam as expectativas de formação específica para lidar com pacientes à morte, os estudantes buscam instruir-se em torno do papel de manutenção da vida humana no modelo de atendimento hospitalar e na perspectiva de reconhecimento da morte como um processo tecnicamente ordenado.

Palavras-chave:
Morte; Educação Médica

Abstract:

The aim of this reseach was to investigate how the subject of death was dealt with in a medical school’s educational program. The methodology was based on qualitative research, and data were collected at the biginning and end of the medical course. Students acknowlegde the physicians’ relevant role in the process of death in terminal patients, but also recognized that they fail to receive any specific training for this role. At the end of the medical course, a change of focus was observed in the students’ attention, where the patients’ Family rather than the patients themselves became the main focus. Another change was the students’ preception that situations that were considered preferential for teaching issues related do death were no longer those related to interactions with terminal patients, but were focused on settings within the hospital and thus required technical hospital trainig. The article concludes that such results reflect ways of adjusting to reality: sice during their training the students do not have their exectations met concerning specific training for dealing with terminal patients, they seek to assimilate instruction concerninf the role of maintaining human life within the hospiatl-care model from the perspective of recognizing death as a technically ordered process.

Key-words:
Death; Education, Medical

INTRODUÇÃO

No exercício da medicina, a morte se faz presença cotidiana. Identificá-la, portanto, como tema relevante para a formação do médico parece uma conclusão óbvia. Mas nossa experiência, em diferentes situações acadêmicas e hospitalares, mostra-nos outra realidade. Por fatos vividos ou relatos ouvidos, frequentemente, observamos o quanto a morte de pacientes se transforma em fonte de inquietação, ansiedade, questionamentos e mesmo fuga para profissionais da medicina envolvidos. Casos que ilustram essa constatação, usualmente, são ouvidos nos hospitais:

Com a proximidade da morte, a presença do médico diminui bastante e aumenta a assistência da enfermagem e do serviço social.

Se o paciente já mostra sinais de impossibilidade de cura e seu aspecto está ruim, colocamos um biombo em torno dele na enfermaria, isolando-o, para evitar que os outros fiquem impressionados.

Conheci um cardiologista que encontraram sua paciente ao concluir sua residência, quando ela fora desenganada por seu clínico. Mais de 20 anos depois, ele ainda acompanha. Acometida por complicações sucessivas, elas vem a falecer. No hospital, ao encontrar a família, esse médico mostra profunda angústia ao relatar a todos suas tentativas de salvar a cliente. A família o conforta, dizendo que não tinha qualquer expectativa de recuperação.

Situações como essas nos ajudam a visualizar uma possibilidade de existência de falha nos cursos de medicina. As escolas ainda não assumiram compromisso educacional com o assunto, embora os avanços tecnológicos da intervenção médica - transplantes, clonagem, criogenia, eutanásia - sugiram sua redobrada importância nos dias de hoje, e ele, formalmente, esteja previsto em documento oficial. Têm sido feitos esforços na direção de propor questões que estimulem a reflexão sobre diferentes e complexos aspectos envolvidos no ensino da morte no âmbito da formação médica, como indicam os trabalhos de Correa, Rosa, Viana & Picceli, Gouvêa, Sayd, Zaidhaft.11. Correa MESH. Preenchimento da declaração de óbito: falta de informação? (dissertação) São Paulo: Departamento de Epidemiologia, Universidade de São Paulo; 2002.), (22. Rosa CAP. A morte e o ensino médico. Rev Bras Educ Méd. 1999; 23: 50-67.), (33. Viana A, Picceli H. O estudante, o médico e o professor de medicina perante a morte e o paciente terminal. Rev Assoc Med Bras. 1998; 44: 21-27.), (44. Gouvêa VM. O paciente terminal: a ameaça do discurso como objeto de desejo. (dissertação). Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1996.), (55. Sayd J. A escola médica e seus implícitos sobre a morte. Rev Bras Educ Méd . 1993; 17: 14-20.), (66. Zaidhaft S. A morte e a formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1990.

O anteprojeto das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Medicina, aprovado no XXXVIII Congresso Brasileiro de Educação Médica77. XXXVIII Congresso Brasileiro de Educação Médica. Ante­projeto das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Medicina; 2000., destaca como um dos objetivos da formação médica, em seu artigo 4°, item IX, ser capaz de "atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde e acompanhamento do processo de morte".

Ainda que proposto oficialmente, o acompanhamento do médico no processo de morrer de um paciente, segundo nossa observação, restringe-se mais à atuação estritamente dentro das chamadas tecnologias médicas. Nesse caminho, busca-se aplicar tudo o que se aprendeu no que se refere a exames, uso de aparelhos, medicamentos. Diante de um paciente próximo à morte, ou de um morto, o que prevalece são as questões relacionadas aos procedimentos mais adequados, a possibilidade de o medicamento não ter atuado como deveria, as medidas que poderiam ter sido antecipadas e, finalmente, a determinação de uma causa para a morte. As questões do morrer parecem limitadas ao âmbito técnico.

Certamente, tais questões são fundamentais no exercício da medicina. Mas o que nos importa aqui ressaltar é que, nesse processo, evidencia-se a ausência de um comportamento especifico, por parte do médico, de acompanhamento de um paciente à morte. Acompanha-se a doença, não o doente. Dito de outra forma, exclui-se a vivência da morte como fato da existência humana e, assim, como objeto de especial interesse para a formação e atuação médicas.

A formação médica tem envolvido, efetivamente, a aquisição de novos, eficazes e elaborados procedimentos técnicos de manutenção da vida humana. Contudo, no que diz respeito ao enfrentamento da situação de sofrimento existencial do paciente que se encontra nos limites entre a vida e a morte, parece faltar a devida orientação ao estudante de medicina e ao médico e, por isso, este se afasta quando a morte se aproxima e sente-se, muitas vezes, frustrado e falho diante de sua ocorrência. Tal reação é compreensível, tendo em vista que, dentro do princípio cientifico e técnico que volta seu foco de interesse exclusivamente para o estudo do agente/doença/remédio/cura, a morte simboliza o fracasso.

Essas reflexões nos conduziram ao propósito de realizar uma pesquisa88. Lino GGS. A morte e o estudante de medicina: contemplam-se, mas não se conhecem [dissertação]. Rio de Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2003. sobre como o tema da morte é visto e tratado no decorrer da formação médica. Para ampliar nossas considerações sobre a questão, primeiramente, empreendemos um estudo de autores de diversas áreas do conhecimento que abordam o assunto. Ainda que outros autores tenham sido consultados para a realização da pesquisa por nós empreendida, selecionamos aqueles cujo pensamento esclarece e sintetiza as questões centrais que abordamos.

Os trabalhos de Aries99. Aries P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves ; 1977. nos introduzem em aspectos históricos. Para esse autor, há uma visão antiga da morte - em que esta se manifestava como familiar e próxima -, que se contrapõe acentuadamente à concepção atual. Hoje, a morte é considerada uma coisa distante e amedrontadora a ponto de tentarmos eliminá-la da vida cotidiana.

Já não se morre em casa, em meio aos parentes, mas no hospital, na solidão. Morre-se no hospital porque este se tornou o local onde se prestam cuidados que não podem ser dispensados em casa. Dessa maneira, a morte deixa de ser ocasião de uma cerimônia presidida pelo moribundo - cercado de parentes e amigos -, que expressava suas vontades em relação ao tipo de funeral que desejava, ao local em que gostaria de ser enterrado, à divisão de seus bens. Agora, ela é um fenômeno técnico, causado pela cessação dos cuidados, ou seja, da maneira mais ou menos declarada, por decisão do médico e da equipe hospitalar.

A morte aparece, assim, parcelada numa série de pequenas etapas, todas elas sob controle de máquinas que substituíram e apagaram a grande ação dramática do antigo morrer, que perdeu parte de seu sentido.

Aries, dessa forma, nos mostra que a ocultação da morte, que observamos no meio médico, em parte, é consequência de uma profunda modificação sociocultural ocorrida na história em relação ao fenômeno do morrer.

Em Morin1010. Morin E. O homem e a morte. São Paulo: Imago; 1997., encontramos uma abordagem mais filosófica: a que identifica a consciência de se saber mortal como específico atributo do homem e que determina a organização de seus modos de vida. Para esse autor, a sociedade funciona como organização por causa da morte. A existência da cultura só tem sentido porque as antigas gerações morrem e, por isso, surge a necessidade de transmitir incessantemente às novas gerações o patrimônio coletivo de saberes, habilidades, normas, regras de organização. A espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a única a crer na sobrevivência ou no renascimento dos mortos, o que faz da morte o traço mais cultural do homem.

O horror à morte, segundo o autor, reside no fato de que ela nos lembra da nossa vulnerabilidade, nos aproxima da nossa porção animal (mortal), desrespeitando status social e não admitindo suborno ou concessões, ou, ainda, pelo fato de que todo o desenvolvimento científico e tecnológico, símbolo máximo de nossa "superioridade", apesar de retardá-la, não foi suficiente para vencê-la. Tudo isso é agravado pela dificuldade que temos de trabalhar a idéia da morte, já que esta é uma idéia vazia, que carece de experiência real e bases con­cretas.

Morin assinala que a consciência da morte não é algo inato e sim produto de uma consciência que capta o real. É só por experiência que o homem sabe que há de morrer. A morte humana é um conhecimento do indivíduo que vem sempre do exterior, é aprendido, o que favorece uma atitude de sempre surpresa diante do fim de urna vida.

Daí certa insistência, segundo ele, na percepção da morte como algo ocasional -acidentes, doenças, infecções-, o que revela nossa tendência de despojar a morte de qualquer resquício de necessidade e fazer dela um fato puramente acidental. Há, culturalmente, o assombro sempre novo provocado pela consciência da inevitabilidade da morte, e qualquer ser humano pode constatar que o fim da vida de um ente próximo é experimentado sempre como algo incrível e paradoxal: aparece como um acidente, um castigo, um erro de tratamento médico, uma doença ainda sem remédio apropriado, uma irrealidade.

Sob a ótica da sociologia, diversos autores procuraram situar a questão da morte nas sociedades contemporâneas. Para Seale1111. Séale C. Construting death - the sodology of dying and bereavement. Cambridge: Cambridge University Press; 1998., por exemplo, pode-se definir a visão atual da morte como sendo o estágio final de um processo tecnicamente ordenado. Essa perspectiva tornou-se possível em virtude do progresso da ciência médica, que permitiu a melhoria nas condições de vida e o retardamento da morte, o que fez com que as sociedades ocidentais contemporâneas colocassem a medicina no lugar da religião como principal fonte de respostas para as questões da morte.

O autor ressalta que o primeiro passo para a representação científica moderna da morte foi o de localizar suas causas dentro do corpo, estabelecendo todo um processo legal para a sua certificação. Isso fez com que o médico, uma presença rara na cabeceira dos moribundos até o século 17, passasse a assumir o papel de lutador contra a morte, o que o torna responsável por uma nova visão de "morte natural" - a que acontece ao término de uma vida longa como resultado de uma doença clinicamente descrita.

A partir daí, segundo Seale, a medicina passa a ter uma participação crescente na vida das pessoas, ganhando força com o aparecimento das compreensões anatomoclínicas das doenças. A liberação da igreja para a dissecação de cadáveres e o grande número de doentes vítimas de epidemias permitiram aos médicos buscarem as lógicas da morte dentro do corpo e favoreceram o desenvolvimento de tecnologias para a melhor avaliação dos doentes, como o estetoscópio e o termômetro, reduzindo a dependência dos médicos de trabalharem apenas com os relatos do paciente. As consequências disso são profundas. Cria-se a dependência em relação aos médicos, que possuem os meios técnicos para lutar com a morte. Antes, a tradição religiosa colocava a morte na "vontade de Deus". A medicalização da morte vai colocá-la em mãos humanas. Assim, a medicina passa a condutora do processo da morte e fonte de respostas para as questões que a cercam.

É outro o enfoque sociológico de Elias1212. Elias N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.. Esse autor ressalta que, nas sociedades avançadas de nossos dias, há uma forte tendência a separar os que adoecem, ou envelhecem, dos considerados "vivos", isto é, aqueles que não estão doentes nem são velhos. Na presença de pessoas que estão para morrer -e dos que as cercam -é possível perceber, diz Elias, um dos dilemas característicos do atual estágio da civilização: o que fazer com os que estão morrendo, isto é, com os que não puderam, mesmo com o uso de toda a tecnologia, manter-se vivos? Nessa situação, o autor constata que apenas as rotinas institucionalizadas e destituídas de sentimentos, encontradas nos hospitais, dão alguma estruturação social para a situação de morrer.

Ressaltando a necessidade e as possibilidades de mudança no trato da morte, Elias faz um paralelo com as mudanças ocorridas na área das relações sexuais. Antes tratados sob tabu absoluto, hoje, questões e problemas sexuais podem ser discutidos publicamente num novo patamar de franqueza, mesmo com crianças.

Assim, também as atitudes que hoje prevalecem em relação aos moribundos e à morte -isolamento, ocultação, encobrimento, desconforto - não são inalteráveis nem acidentais, são peculiaridades de sociedades num estágio particular de desenvolvimento. E aqui se pode dizer que o texto de Elias permite relacionar as dificuldades de lidar com pessoas à morte a um conjunto de convenções sociais que pouco servem ao estabelecimento de vínculos humanos dotados de sentido. Um esforço seria necessário para superar tais dificuldades, o que implicaria reconhecer que há um núcleo de tarefas a serem realizadas. No caso dos médicos, essas tarefas diriam respeito aos cuidados que os moribundos demandam como pessoas, hoje defasados em relação aos cuidados com seus órgãos.

No âmbito especifico da medicina, Kiibler-Ross1313. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes; 1996., psiquiatra com reconhecida experiência na observação e acompanhamento de pacientes à morte e com importantes contribuições no estabelecimento de parâmetros para a melhor compreensão da atitude das pessoas que experimentam a proximidade da própria morte, assim sumariou seu ponto de vista: as pessoas não precisam sofrer sozinhas quando estão à morte. Ainda que o morrer ou a consciência de que se está perto do morrer requeira de uma pessoa um repertório próprio de reflexões e atitudes, não se pode esquecer que isso se dá, ou se pode dar, em um contexto socialmente compartilhado, sendo o médico uma importante presença. É possível ajudar as pessoas que estão para morrer a partilhar suas sensações e a encontrar alívio e paz.

Entretanto, ressalta Kübler-Ross, o atendimento de tais objetivos encontra especiais dificuldades ante o estabelecimento do hospital como local de cura, já que um paciente à morte tem necessidades diferentes das de um paciente cujo mal pode ser curado. Para atender a este, os hospitais se organizaram ao longo do tempo, incorporando uma grande tecnologia. Dessa forma, a morte no hospital passou a ser vista por muitos como um fracasso dos profissionais e da instituição.

Tal percepção da morte compõe um modelo de atendimento médico em que, de certa maneira, acredita-se que cuidados prestados aos que estão à morte são "habilidades" isoladas, que se "ligam e desligam". Mas Kübler-Ross defende o contrário: as habilidades, os relacionamentos, as atitudes e os comportamentos necessários a tais cuidados são fundamentais na rede total de contatos com todos os pacientes. Eles silo necessários tanto a pacientes que estão seriamente doentes, como àqueles que estão se recuperando e prestes a voltar à vida normal na sociedade.

A leitura dos autores citados nos permite dizer que a morte, a cada dia, tende a ser percebida como evento técnico, hospitalar, estatístico. O fato de ser a morte uma contingência da vida é esquecido. Quem morre não é mais o ser vivo social e afetivo, é a máquina biológica. Morrer não seria mais uma experiência global do indivíduo. Seria, antes, uma sequência de eventos parcelados, tecnologicamente controlados -enfim, uma falência de órgãos...

De posse desse referencial teórico, elaboramos nosso projeto de investigação em torno da questão da percepção da morte no âmbito médico, mais especificamente na área da formação do médico: como estariam pensando estudantes de medicina em relação a um horizonte de trabalho em que a morte, certamente, seria uma presença constante?

Reconhecendo que as pesquisas de campo têm sido de grande valor para favorecer maior aproximação de contextos sociais e seus problemas específicos - pressupondo que uma faculdade de medicina represente um contexto social típico, onde confluem diferentes temas, práticas e - objetivos relacionadas à formação médica -, centramos nossa pesquisa em uma faculdade de medicina, a Faculdade de Medicina de Campos1 1 Ressaltamos que a identificação da Faculdade de Medicina de Campos como local de realização deste trabalho se dá com plena aceitação por parte da instituição, que se encontra envolvida em mudança curricular. Esperamos que as observações e sugestões apresentadas ao longo deste trabalho possam ser utilizados nesse processo. , onde buscamos investigar, mediante a aplicação de questionário, as percepções dos estudantes quanto aos possíveis papéis a cumprir no exercício da profissão.

As indagações que permearam o projeto foram: estudantes, ao entrarem na faculdade de medicina, já trazem modos específicos de pensar e atuar no que diz respeito à morte? A passagem pelo curso de medicina interfere nas percepções dos alunos?

METODOLOGIA

O cerne desta pesquisa fundamentou-se no levantamento e análise da percepção de estudantes de medicina relativa à atuação médica durante a assistência a um paciente à morte, bem como na identificação de eventuais mudanças nessa percepção ao longo do curso de medicina. O cenário da pesquisa foi a Faculdade de Medicina de Campos, instituição isolada e comunitária, mantida por uma fundação filantrópica sem fins lucrativos, privada e de domínio público. A faculdade conta com 126 professores, em sua maioria graduados pela instituição e residentes na cidade, que atuam na clínica pública e privada. Destes, 50 possuem pós-graduação stricto sensu: 35 concluíram o mestrado, 15, o doutorado, e 8 têm livre-do­cência; 2 dos mestres atualmente cursam o doutorado; e, entre os demais professores com especialização e capacitação pedagógica, 5 estão em programas de mestrado.

Os estudantes, em sua maioria, são oriundos de cidades do Sudeste do Brasil e pertencem a famílias de classe média, tendo seus cursos pagos pelos pais. Muitos não têm parentes na cidade e moram em repúblicas. O ingresso na faculdade se dá por vestibular realizado pela Fundação Cesgranrio, sendo as turmas compostas de 80 alunos.

O tipo de pesquisa utilizado foi o estudo de caso, Bardin1414. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977., Lefevre1515. Lefevre F; Lefevre AMC.; Teixeira JJV. O discurso do sujeito coletivo. Caxias do Sul: EDUCS; 2000., Minayo1616. Minayo CS. O desafio do conhecimento-pesquisa qualitativa em Saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1992., em um modelo transversal. Por serem semelhantes as características socioeconômicas dos estudantes, foi-nos possível produzir "instantâneos" da situação como um todo, a partir da investigação comparativa do grupo de alunos que inicia o curso de medicina e aquele que o finaliza. O curso de medicina da faculdade estudada dura seis anos, sendo o último dedicado integralmente ao Internato Os dados foram coletados por meio de um questionário, constituído de um texto introdutório, seguido de perguntas abertas, que buscaram propiciar respostas espontâneas e não monossilábicas. Nosso objetivo, com isso, era poder obter, por meio de análise, a identificação e interpretação das percepções dos sujeitos estudados. No texto introdutório do questionário, foi solicitada a colaboração do aluno no seu preenchimento e se incluiu a parte das diretrizes curriculares nacionais que se refere à competência médica de acompanhar um paciente em seu processo de morte. Seguiram-se perguntas que pretenderam buscar: (a) a percepção do estudante quanto ao papel do médico em tal acompanhamento; (b) sua expectativa da forma pela qual tal competência deveria ser ensinada no curso médico; (c) apenas para o grupo dos formandos, perguntou-se se o estudante citaria alguma situação ao longo do curso especialmente voltada para o ensino daquela competência; e (d) uma questão "livre": o que o estudante gostaria de escrever sobre o tema e que não fora perguntado no questionário.

Os questionários foram aplicados aos alunos do primeiro ano no primeiro dia de aula, antes que tivessem qualquer contato com os conteúdos ministrados pelas disciplinas da série. Cuidou-se para que os alunos de cada turma respondessem às perguntas em uma mesma ocasião, na tentativa de evitar que tivessem conhecimento das questões antes da aplicação do questionário. Foram informados a respeito dos objetivos gerais do trabalho, atentando-se para o não fornecimento de dados que pudessem levar, de alguma forma, à indução das respostas. Os alunos receberam ainda informações sobre a forma de utilização do material coletado e a garantia de sigilo. Os questionários foram anônimos, garantindo-se que o material seria manuseado e utilizado de forma a não permitir, em nenhuma hipótese, a identificação dos indivíduos pesquisados e a sua não vinculação às disciplinas ou a qualquer nível burocrático de organização da faculdade. Foi ainda oferecida aos alunos a opção de participarem ou não da pesquisa, ficando a concordância da participação implícita na devolução dos questionários respondidos. Considerou-se que o número destes foi suficiente, equivalendo a mais de 80% do universo de cada um dos grupos de alunos do primeiro e quinto anos.

Os alunos do quinto ano responderam ao questionário após o término das atividades de um dia letivo da série, recebendo as mesmas orientações fornecidas ao primeiro ano.

As respostas referentes aos itens idade e sexo foram avaliadas quantitativamente por meio de procedimentos matemáticos simples (média e percentagem). Já para a análise e interpretação das respostas às perguntas 1, 2, 3 e 4, foi realizada, primeiramente, uma avaliação qualitativa, mediante análise de conteúdo. Com base na identificação de idéias centrais e expressões-chave em cada conjunto de respostas de cada questão e de cada grupo, buscou-se identificar, sempre sob a ótica do estudante: (a) os conteúdos definidores dos papéis desejáveis em um médico envolvido na situação de um paciente à morte (questão 1); (b) os conteúdos definidores das formas pelas quais os estudantes gostariam que o tema morte fosse tratado no curso médico (questão 2); (c) os conteúdos definidores de situações de abordagem ocorridos no curso médico (questão 3); (d) os conteúdos "livres" expressos na questão "livre".

O material, obtido dessa forma, foi preparado de modo a facilitar a sua manipulação e análise. Para isso, tanto as respostas dos questionários quanto suas idéias centrais e expressões-chave foram digitadas, mantendo-se a redação original. Assim, foi possível sumariar os resultados por meio de tabelas quantitativas. Os resultados foram organizados com uso de operações estatísticas simples (percentagem), que permitiram estabelecer um quadro de resultados que condensou e pôs em relevo as informações fornecidas pela análise em cada um dos grupos. Com isso, pretendeu-se chegar a um quadro descritivo para cada grupo e conjunto de respostas dadas a cada uma das questões.

Posteriormente, buscou-se, mediante análise comparativa entre os dois grupos, atingir os objetivos propostos pela pesquisa: identificar e discutir as percepções de estudantes de medicina em relação à atuação médica durante a assistência a um paciente à morte, à luz de suas falas ao início e ao fim do curso de medicina.

RESULTADOS

Responderam ao questionário 133 alunos, 83% do número total. Sessenta e sete alunos pertenciam ao primeiro ano, o que corresponde a aproximadamente 83% do total de alunos dessa série; 66 alunos eram do quinto ano, o que corresponde a cerca de 82% do total de alunos desta série. Observou-se que, em relação ao sexo, houve um aumento do porcentagem de mulheres no primeiro ano (37%) em relação ao quinto (28%), o que nos aponta uma mudança de perfil do profissional médico, antes predominantemente masculino.

Não se detectaram, neste trabalho, diferenças significativas entre sexos no que diz respeito ao tema da pesquisa. As sim, as respostas estão no texto sem tal distinção.

Respostas do 1° Ano à 1a Questão

Na análise das respostas dadas à primeira pergunta do questionário - Para você, qual o papel do médico no acompanhamento do processo de morte de seus pacientes? -, foi possível caracterizar a identificação de cinco papéis associados à ação do médico perante o paciente à morte, sendo que mais da metade dos alunos identificou dois ou mais papéis em suas respostas.

1 - Dar atenção clínica e suporte emocional ao paciente (papel citado por 42 estudantes). Algumas falas ilustram o conjunto das respostas:

O médico, na minha opinião, teria o papel de conferir, principalmente, ao paciente que está próximo da fatalidade, afeto e compreensão.

O médico deve, primeiramente, dar todas as atenções clínicas ao paciente. Deve também participar no acompanhamento psicológico do paciente, para que este possa ir convencendo-se e aceitando o seu processo de morte. E a última coisa, e mais importante, é manter um contato constante, passando para o paciente carinho e afeto.

Atender as necessidades físicas e principalmente psicológicas do paciente.

2 - Dar atenção e suporte emocional à família (papel citado por 27 estudantes). As falas seguintes exemplificam essa percepção:

O médico deve inspirar fortaleza, ser uma pessoa que saiba lidar com a morte mais do que qualquer outro profissional. Isso não quer dizer que deve ser frio ou desumano. O médico deve ser fonte de força, deve semear a compreensão aos parentes e amigos da vítima.

O médico, na minha opinião, teria o papel de ser solidário aos familiares.

O médico deve orientar a família quanto aos procedimentos a serem tomados, tentar confortá-la desde o momento da notícia da morte do parente, explicar - em caso da falta de conhecimento da morte -, à família o que acontece.

3 - Atenuar a dor e o sofrimento do paciente (papel citado por 24 pacientes). A seguir, são referidas algumas falas exemplificadas do conjunto das resposta:

Fazer com que o paciente tenha uma morte tranquila, sem grandes sofrimentos, tentando evitar dores do paciente.

O papel do médico, nesses casos, é tentar ameniza ao máximo o sofrimento do paciente, para que esse possa ter uma melhor qualidade de vida.

Outro papel importante é o de aliviar ao máximo os sintomas de dor de algumas doenças, ou seja, minimizar os sofrimentos.

4 - Evitar a morte (papel citado por 18 estudantes), percepção que pode ser observada nas falar a seguir:

É a obrigação e dever de cada médico lutar pela vida e evitar a morte dos seus pacientes.

Na minha opinião, o médico deve tentar evitar a morte utilizando todos os recursos possíveis para a sobrevivência do paciente.

É papel do médico, apensa de um estado irreversível, continuar tentando prolongar o período de vida do paciente.

5 - Avaliar e acompanhar “tecnicamente” o paciente à morte e/ou após sua morte (papel citado por quatro estudantes). Falas que exemplificam o conjunto das respostas:

O acompanhamento médico é imprescindível, uma vez que as causas das doenças e suas respectivas complicações devem ser acompanhadas de perto para casos como cirurgia de urgência e transplantes.

O acompanhamento do processo de morte de seus pacientes é importante para o descobrimento das causas que levaram o paciente à morte, ou melhor, para se ter um maior conhecimento das doenças, para assim facilitar o combate delas. Logo outros pacientes poderão ser beneficiados.

O papel do médico no acompanhamento do processo de morte de seus pacientes deve ser tratado com respeito, mas também como forma de aprendizagem das técnicas de tratamento, sem deixar que o emocional do médico atrapalhe o processo de morte.

A definição desses papéis propicia-nos visualizar algumas características desses estudantes. Apenas iniciando o curso de medicina, eles foram capazes de identificar e descrever, com riqueza de detalhes, diferentes papéis relacionados à atuação do médico junto ao paciente à morte. Os mais destacados referem-se ao suporte clínico e emocional ao paciente e também à família. Ressalta-se, um pouco abaixo, o de atenuar o sofrimento do paciente.

Considerando-se o que foi apresentado pelos autores citados na introdução deste artigo, é interessante observar que, em relação a este grupo pesquisado, não é possível falar de tendência cultural ao ocultamento da morte ou busca de afastamento da vivência do acompanhamento de alguém à morte. O conjunto de respostas indica que os alunos estão sensibilizados para a necessidade de uma abordagem inte­gral da questão, ou seja, de que o paciente deve ser visto como alguém com necessidades de cuidados físicos e psicológicos.

A comparação desse resultado com o do grupo dos estu­dantes que estão finalizando o curso médico nos permitiu compreender mais amplamente o sentido dessa primeira interpretação, o que será mostrado a seguir.

Respostas do 5° Ano à 1a Questão

Na análise das respostas aos questionários aplicados ao quinto ano, encontramos seis papéis atribuídos aos médicos pelos estudantes, sendo que cinco deles já haviam sido identificados nas respostas do primeiro ano; o sexto - realizar procedimentos legais - foi uma novidade do grupo. Como aconteceu com os alunos do primeiro ano, observamos que a maioria dos que estão concluindo seu curso cita dois ou três papéis de forma interligada.

1 - Dar atenção clínica e suporte emocional ao paciente (papel citado por 21 estudantes), o que se exemplifica pelas falas a seguir:

O médico deve (...) oferecer tranquilidade, sinceridade e escolhas pertinentes ao paciente.

Temos de saber confortar o paciente.

O médico não deve apenas achar que o processo de morte deve-se apenas a uma parada dos órgãos, mas como um ser huma110 que deixou toda a sua vida para Irás e começou outra.

2 - Dar atenção integral e suporte emocional à família (papel citado por 42 estudantes), conforme se ilustra pelas seguintes falas:

O médico deverá acompanhar e dedicar seu tempo a recuperação completa do paciente, usando todos os meios e recursos. Encerrados estes, a morte é uma consequência natural que o médico também deverá acompanhar, dando suporte a todos os familiares.

O papel do médico é total, pois ele é o elo de explicação e conforto que o paciente pode dar aos seus familiares.

Tranquilizar e tentar de alguma forma confortar a família, sendo direto, mas nunca rude ou frio.

3 - Atenuar a dor e o sofrimento do paciente (papel citado por 16 estudantes), percepção que pode ser vista nas falas seguintes:

Proporcionar a ele uma boa qualidade de vida durante este processo, fazendo tudo o que for necessário para que não sofra mais.

O médico deve reduzir, ou pelo menos tentar reduzir, a dor e o desconforto neste momento.

Quando nada mais puder ser feito, o tratamento deve ter o objetivo de aliviar todo o sofrimento e dor do paciente, até a sua morte.

4 - Evitar a morte (papel citado por 12 estudantes). As falas seguintes exemplificam o conjunto das respostas:

O médico deve, em primeiro lugar, fazer uso de todos os seus conhecimentos científicos e práticos para evitar a morte e prolongar o tempo de vida do paciente.

O médico deve oferecer todos os recursos necessários para que os seus pacientes permaneçam com vida.

Em um primeiro momento, é necessário que o médico tente com todo o seu empenho evitar a morte.

5 - Avaliar e acompanhar "tecnicamente" o paciente à morte e/ou após sua morte (papel citado por 15 estudantes). As respostas a seguir exemplificam essa percepção:

Todo médico, após a morte de seu paciente, de causa por ele [médico] não identificada, deveria acompanhar estudos morfo­patológicos (necropsias) para melhor aprendizado. Essa investigação tem um papel importante, pois com isso os médicos saberão se o tratamento foi completado com sucesso, ou não houve melhora do quadro do paciente, evoluindo para o óbito. Também é importante para que o médico venha a descobrir quais as afec­ções que mais acometem o paciente com uma determinada doença para poder fazer uma prevenção e impedir o agravamento da situação.

O médico tem um papel muito importante, pois caso erre pode levar seu paciente à morte (...). Então, o acompanhamento é importante para se analisar o que aconteceu e se aprender com caso ocorrido.

6 - Realização de procedimentos legais relacionados à morte (papel citado por dois estudantes, cujas falas se encontram a seguir):

O médico tem de constatar o óbito, atestar o óbito e fazer o encaminhamento, caso necessite, ao IML para averiguar a causa mortis.

Eu acho que o médico deve acompanhar de perto o processo de morte de seus pacientes, pois, além de ser uma obrigação legal, é importante como uma forma de defesa em casos de processos.

A análise das respostas nos revela semelhanças e diferenças entre os dois grupos. Há semelhanças no que se refere aos papéis por eles definidos, que são praticamente os mesmos, embora haja o acréscimo de um sexto- realizar procedimentos legais - entre os alunos do quinto ano.

Quanto às diferenças, podem ser observadas quando consideramos o foco de atenção maior ou menor atribuído por cada um dos grupos aos papéis mencionados. No caso dos estudantes do primeiro ano, dá-se primordial importância ao paciente que está à morte, a quem deve o médico prestar especial atenção e assistência. Já entre os alunos do quinto ano, a ênfase se desloca para os familiares desse paciente, além de se conferir maior relevo à questão de avaliar e acompanhar "tecnicamente" a morte. Lembremos que a palavra "tecnicamente" expressa, aqui, também um afastamento do paciente à morte, porque a preocupação se refere ao processo da doença e da eficiência das estratégias de diagnóstico e tratamento (uso de medicamentos e outras decisões focadas na dinâmica da doença). Convém notar que a preocupação com a atenuação do sofrimento do paciente à morte sofreu sensível diminuição no quinto ano. Tudo isso parece indicar que a passagem pelo curso de medicina interfere na percepção dos alu­nos no que diz respeito ao tema em foco, questão que voltaremos a abordar na conclusão.

Respostas do 1° Ano à 2a Questão

A análise das falas dos estudantes, em resposta à segunda questão - Como você gostaria que o assunto (acompanhamento da morte de seus pacientes) fosse apresentado durante o curso? -, permitiu-nos identificar cinco grupos de respostas, cada um sintetizando situações semelhantes sugeridas.

No Grupo 1, 18 estudantes afirmaram que gostariam de ver o assunto apresentado abordando-se questões psicológicas do paciente e/ou dos estudantes, como podemos observar nos trechos a seguir:

Gostaria de ter um aprendizado em que fosse preparado psicologicamente para compreender a morte e, com isso, poder tranquilizar meus pacientes e seus familiares.

Gostaria que esse assunto fosse apresentado de matreira caute­losa, afinal para muitas pessoas a morte é um tema delicado e elas não sabem como lidar com isso. Acho o lado psicológico muito importante, tanto para o paciente, como para o médico.

No Grupo 2, 17 estudantes disseram preferir que o assunto fosse apresentado na prática, em situações específicas, conforme podemos ver nos trechos exemplificados:

Gostaria de vivenciar tal acontecimento, infelizmente, com alguma família. Sugiro que quanto mais casos melhor, porque assim podemos nos preparar o melhor possível e podemos crescer e enriquecer nossos conhecimentos, visando atingir o melhor atendimento, sem erros nem arrependimento.

Tudo que se aprende na prática se aprende melhor. Acho que seria muito interessante o acompanhamento de pacientes com câncer ou Aids.

No Grupo 3, 21 estudantes opinaram que o tema da morte deveria ser apresentado com atitude de respeito e consideração. Os trechos a seguir exemplificam essa opção:

Gostaria que os professores fossem bem humanos ao lidar com aulas que tenham cadáveres e nos passassem bastante respeito para com os que já morreram, afinal aquela é uma condição em que um dia também estaremos.

Gostaria que o assunto fosse apresentado de forma que não se enfatizasse somente como o término do funcionamento de um organismo vivo (o homem), mas que, dentro do possível, se mostrasse que se trata de um ser humano, que tem sentimentos, que tem uma história de vida.

No Grupo 4, há um conjunto de dez respostas parecidas com as do Grupo 3, mas com ênfase voltada para o aporte teórico, como podemos observar nos trechos a seguir:

Eu gostaria que esse assunto fosse apresentado de forma bem expositiva e explicativa para que possamos entender detalhes, fazer discussão e aprender de forma contundente sobre a morte de nossos pacientes.

Gostaria que os professores apresentassem uma gama enorme de conteúdos, casos e resoluções de problemas deste assunto, para que nós (alunos) pudéssemos observar, analisar e pesquisar melhor sobre os temas, e termos mais chances de assimilar a matéria.

No Grupo 5, oito estudantes disseram preferir que o assunto fosse apresentado durante todo o curso, como podemos verificar nos trechos exemplificados a seguir:

Durante o meu curso, gostaria que esse assunto fosse bastante explorado durante todos os anos, assim até a 6 a série, pois penso que cada série requer maior amadurecimento do futuro médico.

O assunto deveria ser apresentado durante todas as séries do curso, visando ao amadurecimento emocional do aluno e mostrando como lidar profissionalmente com a morte dos pacientes.

Verifica-se, nessas respostas, que os estudantes do primeiro ano, sob diferentes perspectivas, identificam tanto suas carências pessoais - teóricas e práticas - em relação ao tema tratado, quanto alimentam expectativas de que a faculdade lhes proporcione uma formação ampla e específico sobre o assunto.

Respostas do 5° Ano à 2a Questão

Nos questionários respondidos pelo quinto ano, foi-nos possível identificar seis grupos de respostas bastante semelhantes às dos alunos do primeiro ano.

No Grupo 1, sete estudantes disseram preferir que o assunto fosse apresentado abordando-se questões psicológicas tanto do paciente quanto dos alunos. Nos trechos seguintes, aparece essa percepção:

De forma a nos preparar psicologicamente para o fato de que nem sempre a terapêutica livra o picante da morte, que a morte nem sempre é por falha do médico e também para nos ajudar a lidar com os familiares.

Como está muito relacionado no fator psicológico, acho que poderia ser abordado dessa forma, no sentido de como podemos lidar psicologicamente com isso, para podermos conseguir ajudar realmente os pacientes e a família e qual a melhor forma de ajuda.

No Grupo 2, 24 alunos afirmaram que gostariam que o assunto fosse apresentado na prática, em situações específicas, como podemos observar nos trechos a seguir:

De forma prática colocando-nos em áreas onde ficam os pacientes que estão mais graves (CTI, UTI).

Acho que através de um seminário e, na prática, com estágios em CTI por alguns meses, pois nesses locais é fácil observarmos alguém morrer.

No Grupo 3, apenas um aluno mencionou que gostaria que o assunto fosse apresentado com atitude de respeito e consideração. Parte de sua fala aparece no trecho a seguir:

O mais humano possível. A medicina, muitas vezes, se esquece do lado humanístico. Falta questionamento sobre o assunto.

No Grupo 4, há um conjunto de 17 respostas parecidas com as do Grupo 3, mas sua ênfase se volta para o aporte teórico, o que pode ser verificado nos trechos exemplificados a seguir:

Com uma história completa dos casos, com fotos e com a evolução e tratamento usado, sem omitir erros, e falar de algum tratamento alternativo.

Através de palestras onde profissionais experientes colocassem suas ideias, experiências e vivências para que estas se tomem um exemplo e aprendizado para o aluno.

No Grupo 5, somente um estudante respondeu que gostaria de ver o assunto apresentado durante todo o curso, conforme ilustra o trecho seguinte:

Realmente gostaria que tal assunto fosse abordado durante todo o curso. Acho que isso não aconteceu.

No Grupo 6, três estudantes disseram que o assunto deveria ser apresentado com uma visão técnica, voltada para os aspectos legais, como podemos observar nos trechos seguintes:

Este assunto, assim como os aspectos jurídicos do acompanhamento de morte, deve ser administrado pela cadeira de Medicina Legal.

O assunto, na minha opinião, devia ser abordado na forma de uma aula teórica, ensinando a conduta certa(...) tanto na forma de preenchimento do atestado de óbito, como na forma de encaminhar o corpo para local apropriado e avisando a família do paciente.

Aqui também se observa que os pontos selecionados foram praticamente idênticos nos dois grupos de alunos. O que muda, sobretudo, é a ênfase atribuída a um ou outro aspecto. Como forma de aprender a lidar com as situações que envolvem a morte, ou proximidade da morte, de seus pacientes, os estudantes do quinto ano enfatizaram mais a prática de situações específicas, mas com um detalhe: as situações mais apontadas são as ligadas ao ambiente hospitalar - como no caso do CTI e UTI -, diferentemente dos estudantes do primeiro ano, que lembraram mais situações de interação com o paciente ou a família. Isso pode indicar que, também neste item, os estudantes do primeiro ano preocupam-se mais com o paciente, a família e até consigo mesmos como pessoas carentes de apoio integral. Os alunos do quinto ano preferem mencionar a necessidade de preparo técnico e teórico para enfrentar a situação enfocada.

Respostas do 5° Ano à 3a Questão

Lembramos que, por estarem iniciando o curso médico, os estudantes do primeiro ano não responderam a esta questão.

Quando perguntados sobre a possibilidade de identificar, durante a experiência como estudante de medicina na faculdade em questão, as leituras, discussões, etc. que abordassem formas de lidar com a morte, isto é, que tivessem o objetivo de preparar os estudantes para o acompanhamento do processo de morte de seus pacientes, 16 alunos do quinto ano responderam afirmativamente.

A maioria deles identificou as disciplinas de Medicina Legal e Psicologia Médica como responsáveis por algum tipo de abordagem do tema. Entretanto, esses mesmos alunos explicaram em suas respostas que essa abordagem fora feita de forma vaga e superficial, tendo como principal enfoque o problema da constatação e certificação da morte. Algumas respostas retiradas dos questionários exemplificam essa percepção:

Das diversas disciplinas já cursadas até o momento houve quem falasse sobre o processo da morte, tanto fisiologicamente quanto psicologicamente, mas de uma forma muito vaga, não deixando nenhuma explicação concreta sobre o assunto.

Na disciplina de Medicina Lega, no 4° ano, foi ensinado aos alunos o preenchimento do atestado de óbito e a conduta a ser tomada, apesar de ter sido uma aula dada de forma monótona e improdutiva.

Na verdade, tivemos aulas de Medicina Legal em que aprendemos a estudar a morte, mas lidar com a morte é uma coisa que não foi passada pela faculdade.

Os 50 alunos que afirmaram não identificar, durante o curso de medicina, qualquer ocasião em que o tema da morte tenha sido tratado desenvolveram seu argumento afirmando que, se essas situações ocorreram, deram-se de forma superficial, sem diálogo a respeito. Abaixo, selecionamos algumas dessas respostas:

Se houve coisas nesse sentido, foram efêmeras, e a prova disso é eu não me lembrar delas. Desse modo, esse assunto deveria ser lidado de forma que causasse um maior impacto.

Nunca vi nenhum professor falar sobre o assunto, pois nunca morreu alguém nas enfermarias em que eu estivesse presente.

Nenhuma disciplina, professor, congresso ou jornada de que participei falaram sobre o assunto. Na verdade, acho que muitos médicos também não sabem o que fazer.

Apesar de estar no quinto ano, a faculdade nem outros eventos abordaram o assunto. Pelo contrário, nas práticas, os professores até nos afastam desse processo, muitas vezes agindo totalmente indiferentes ao assunto, como se tivéssemos de agir desta forma.

Sempre que algum paciente morreu, não se discutiu sobre o assunto tanto em Clínica Médica como em Semiologia.

As respostas não deixam dúvidas quanto à lacuna, no curso de medicina, referente ao ensino, à preparação dos estudantes para o enfrentamento e vivência da questão da morte de um paciente, pois os alunos pesquisados não reconhecem qualquer momento efetivo de abordagem do assunto.

Respostas à 4a Questão

A parte final do questionário proporcionou aos estudantes, por meio de uma questão aberta, um espaço para que pudessem se expressar livremente sobre qualquer ângulo referente ao tema. Fizeram uso desse espaço 62 alunos do primeiro ano e 44 do quinto.

Foi possível observar, nas respostas dos estudantes de ambos os grupos, que, embora tenha sido oferecida a oportunidade de expressão sobre questões não expostas antes, os alunos ressaltaram os mesmos cinco papéis do médico diante do acompanhamento da morte de seus pacientes e as formas como gostariam que o tema fosse tratado durante o curso, questões já mencionadas em respostas anteriores. Talvez pela experiência de reflexão que o preenchimento do questionário tenha proporcionado, várias dessas respostas foram dadas mais articuladamente, com os alunos mesclando sentimentos pessoais, reflexões gerais sobre o tema, críticas à formação profissional recebida e observações sobre o comportamento de profes­sores. Os exemplos a seguir são ilustrativos. Note-se o estilo contundente de algumas frases, bem peculiar aos jovens.

Falas do 1o Ano

Lidar com vidas das pessoas requer muita responsabilidade e equilíbrio, e ser médico é difícil por isso, você não pode errar em nenhum momento por que pode implicar na morte de alguém. Além disso, medicina não é a ciência onde se brinca de Deus, onde se tem o controle da vida e da morte e sim a ciência que tenta salvar e, quando isso não é possível, confortar a família com explicações científicas, emotivas e espirituais.

A morte é um fato na vida, não há como escapar, por isso devemos abordar esse tema com mais ênfase na faculdade, pois assim como há o tratamento familiar há também o trauma do médico que passou muito tempo cuidando do paciente e ele morre. Muitas vezes, o médico pode se culpar pela perda do paciente, diminuindo assim a sua capacidade de tomar decisões rápidas e ter sangue-frio, pois ele levará esse trauma por bastante tempo.

Falas do 5° Ano

Acho o assunto delicado, pois é difícil aceita-lo. Por se tratar de irreversibilidade e abstração, a morte é encarada de várias maneiras: com medo, angústia e desespero por uns, enquanto desejada, planejada como uma vida melhor (paraíso) por outros. Eu sinceramente, não tenho uma opinião definida, mas desejo muito que a minha família nunca morra.

Apesar de nunca ter tido experiências com o assunto, acho que este acompanhamento mexerá com a minha sensibilidade, pois me considero uma pessoa sensível ao extremo e penso que será difícil lidar com a morte, quando for preciso. O meu receio é me apegar demais com o paciente e acho também que posso me sentir culpada quando ele morrer.

A morte de um paciente já me assustou quando me confrontei de perto, dentro do hospital. Aquele corpo já frio, numa mesa bem gelada...Senti algo diferente, algo que não sei explicar, se era tristeza, angústia ou dó! Mas o que realmente me assustou foi o desinteresse dos médicos dali daquele plantão em tentar salvar aquela vida. Nenhum esforço foi feito. Hoje já me deparei com a morte muitas vezes, e ainda não sei como interpretá-la, mas o sentimento de ‘vazio’ parece sempre estar presente.

Acho que muitos médicos vem tomando postura de ‘semideuses’, ou seja, achando capazes de decidir a hora de parar de investir em um paciente ou decidir a hora de desligar seu respirador mecânico. Acho que as discussões sobre o assunto são importantes para que as condutas possam ser reavaliadas.

CONCLUSÃO

Ao longo da análise dos resultados desta pesquisa, vimos que os alunos de medicina, ao entrarem na faculdade, percebem o contato com pessoas próximas da morte como uma experiência nova e de muito interesse sob os ângulos pessoal e profissional. A maior parte deles se diz disposta a atender às necessidades integrais do paciente à morte e, para isso, defende como necessária uma preparação cuidadosa. Alguns confessam nunca haver acompanhado situações que lhes tenham permitido qualquer tipo de reflexão sobre a questão. Outros se reportam à dificuldade do tema: "delicado", "difícil", "doloroso".

Entretanto, apesar da pouca vivência em relação ao assunto, foram capazes de perceber papéis relevantes para o médico no acompanhamento do processo de morte de seus pacientes. Esse resultado indica que a percepção desse atendimento como atribuição do médico faz. parte do imaginário social desses alu­nos, formado antes do seu ingresso na faculdade.

Mas, ao finalizarem seu curso, os estudantes de medicina, em boa parte, já se manifestam mais propensos a considerar a família - e não mais o paciente - como o foco principal a demandar a atenção do médico na circunstância apresentada.

No início do curso, as situações preferenciais que denotam a necessidade de ensino sobre a morte de pacientes referem-se às interações com os moribundos e suas famílias. Ao fim, centram-se em ambientes hospitalares, em requisição de preparo técnico.

Essa mudança de ótica torna-se explicável, de um lado, se atentarmos às falas dos alunos. Ante o reconhecimento de que o momento da morte é difícil para todos os que nele se envolvem - sobretudo para os pacientes -, esses alunos assinalam que é preciso preparo para enfrentá-lo. Mas verifica­mos que a expectativa de formação ampla e específica sobre o assunto, alimentada pelos estudantes no início do curso, não se concretiza. Os alunos do quinto ano, veementemente, declaram que a faculdade não lhes propiciou formação efetiva para o acompanhamento do processo de morte de pacientes. Diante dessa lacuna, conscientes de seu despreparo, é compreensível que tantos estudantes já não queiram lidar com uma situação que julgam complexa e dolorosa.

Por outro lado, os autores mencionados na introdução também nos ajudam a compreender a referida mudança. Eles ressaltam que o processo tecnicamente ordenado, parcelado em etapas controladas por aparato tecnológico, conduzido na instituição hospitalar - e que, para ser cumprido com eficiência, exige o isolamento e a ocultação do moribundo e da morte - é o que caracteriza o morrer nas sociedades contemporâneas mais desenvolvidas. Assim, os estudantes, ao entrarem em contato com essa realidade, ao longo do curso, são obrigados a reconhecer a necessidade de se instruírem sobre o uso dos recursos da medicina para a manutenção da vida humana, papel que efetivamente lhes cabe no mundo de hoje e que constitui um modelo de atendimento que responde aos ditames de um dado estágio da civilização.

Mas aparecem questionamentos a esse modelo, tanto na fala dos estudantes, quanto nas reflexões dos autores sobre as atitudes e reações dos médicos e procedimentos hospitalares que hoje prevalecem.

A morte é uma contingência da existência humana que não poderá ser abolida. É um fenômeno difícil de ser enfrentado pelo homem, dada a nossa dificuldade de lidar com a vulnerabilidade e efemeridade de nossa condição. Atualmente, o acompanhamento dos moribundos está entregue aos médicos e estes, especialmente, precisam estar preparados para essa situação. A forma como se dá esse acompanhamento, hoje, põe em relevo o aparato dos recursos tecnológicos e químicos capazes de prolongar a vida e atenuar o sofrimento físico dos que vão morrer. Cuida-se dos órgãos e esquece-se do atendimento ao ser humano integral que experimenta um momento crucial de sua existência.

Diante disso, autores e alunos propõem mudanças tanto na abordagem da questão nas escolas de medicina, quanto nas rotinas que preponderam nos hospitais.

O paciente morre. Essa é uma questão que impõe aos profissionais da medicina, pelos motivos já expostos, cuidadosas reflexões. Os questionamentos apresentados neste trabalho precisam ser debatidos no meio médico. As faculdades de medicina e as instituições hospitalares têm um papel fundamental nesse sentido. Esse papel, como vimos aqui, parece não estar sendo cumprido.

A realização de nossa pesquisa e a divulgação de seus resultados representam nossa contribuição para essa necessária reflexão e debate.

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  • 1
    Ressaltamos que a identificação da Faculdade de Medicina de Campos como local de realização deste trabalho se dá com plena aceitação por parte da instituição, que se encontra envolvida em mudança curricular. Esperamos que as observações e sugestões apresentadas ao longo deste trabalho possam ser utilizados nesse processo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2004

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2004
  • Revisado
    24 Maio 2004
  • Aceito
    02 Jun 2004
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