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Desencontros da classe médica com as necessidades nacionais de saúde

A queda progressiva do prestígio do médico perante a opinião pública não pode ser ignorada. Bastam dois exemplos para caracterizá-la: a caricaturização, não poucas vezes a ridicularização da figura do médico nos meios de comunicação de massa, e as constantes denúncias de falhas, omissões e até mesmo de incompetência profissional.

Se há insatisfação, denúncias e pilhérias devem existir causas, sejam elas procedentes ou não, relevantes ou irrelevantes, verdadeiras ou imaginadas, de pendentes do desempenho do médico ou não, direta ou indiretamente relacionadas com o contexto da prática médica no País. Quaisquer que sejam as causas, não há como fugir à indagação: estará a Medicina praticada atualmente no Brasil preenchendo as necessidades e expectativas do povo, razão de ser da sua existência?

Desde os primórdios do século XX uma onda de consciência social avassalou os países mais desenvolvidos, resultando na ampliação do conceito de saúde que culminou com a declaração da Organização Mundial de Saúde de que “A saúde não é somente a ausência de doença, mas um completo estado de bem-estar físico, mental e social”: “um direito do cidadão”. Quando a saúde passar a ser um direito básico de cada indivíduo é inevitável que um sistema de saúde desenvolvido como privilégio de pequena parcela da população tenha que sofrer transformações profundas e radicais para tornar-se mais eficiente, mais disponível, aceitável e justo. O público, cada vez melhor informado pelo constante bombardeio dos meios de comunicação de massa e mais conscientizado do seu direito por ações governamentais, passa a aspirar e exigir o que lhe é devido.

Com a Previdência Social assumindo a maior parte das despesas de saúde e como os recursos disponíveis são e serão sempre finitos, surgiu um novo fator nem sempre bem aceito pelos médicos, isto é, a rentabilidade das somas investidas e uma nova disciplina a “economia da saúde”, posto que a coletividade não pode gastar sem contar ou sem saber para que servem os fundos investidos. Se os médicos não se aperceberem da magnitude e da importância deste problema, estudando-o e compreendendo-o profundamente, economistas e administradores, na medida em que forem capazes de computar e julgar os resultados decorrentes dos insumos aplicados passarão a críticos dos médicos, sem que estes possam avaliar objetiva e cientificamente o trabalho daqueles 11. JOLLY, D. - Formação médica continua e qualidade de assistência. La Revue du Practicien. 27 (29):21, maio 1977..

O Brasil se aproxima celeremente desta fase, em que a classe médica reage desordenadamente diante do problema da elevação dos custos da assistência a saúde face a orçamentos limitados, sem que consiga definir sua própria imagem e filosofia.

Devido à legislação, aprendizado e organização, a maneira pela qual os médicos sugerem ações relacionadas à assistência à saúde é confinada, paroquial, olvidando uma complexa problemática que exige soluções abrangentes e propiciando uma mistificação progressiva, praticamente incontrolável, da assistência médica. Com a universalização do acesso aos serviços de saúde houve e continua havendo, por pressão da classe médica, uma crescente aplicação de recursos sofisticados e o pico dos gastos sobe sempre, dirigido a uns poucos selecionados, não tanto por classe social, mas pela própria tecnologia médica. Por exemplo: já foi identificado em alguns países o custo crescente com pessoas gravemente enfermas em unidades de tratamento intensivo. De 226 enfermos estudados por Cullen e Col. 22. CULLEN, D. J. et alii - Survival, hospitalization charges and follow-up in critically III patients. New Engl. J. Med., 194 (18):982, 1976. apenas 17% sobreviveram ao período de tratamento intensivo e, destes somente vintte e sete (l2% da amostra) estavam inteiramente recuperados e devolvidos à força de produção um ano após a admissão. O custo médio de cada tratamento foi de 14.000 dólares. Se tais tratamentos fossem estendidos a todos os pacientes críticos dos Estados Unidos anualmente - estimado em cerca de 2 milhões - o custo chegaria a 28 bilhões de dólares para benefício daqueles doze por cento.

Face a estes dados são inevitáveis as reflexõoes sobre a implantação desordenada de Unidades de tratamento intensivo nos hospitais brasileiros, um modismo da atualidade. Com uma sofisticação tecnológica para qual não existem recursos humanos adequados (enfermeiros diplomados, nem “Know-how” tecnológico de apoio, estas unidades rapidamente se transformam em aparatosos “elefantes brancos” de alto custo, baixo retorno evidenciável e objeto de frustração de médicos e administradores que não conseguem fazê-las funcionar adequadamente: enfim, “um luxo”33. SANTOS, C. B. - CTI: um luxo para bons hospitais. Revista Brasileira de Anestesiologia (24):341, 1976...

O mesmo pode ser repetido em relação a medicamentos, agentes farmacológicos, provas diagnósticas e condutas terapêuticas. Premidos, tangidos e vítimas do impacto publicitário do “marketing” internacional, na sofreguidão de utilizar sofisticada tecnologia diagnóstica, a última conduta terapêutica ou o fármaco mais recente, os médicos parecem não dar conta da interdependência de sua atuação diária com o contexto de transformações, dificuldades e necessidades a seu redor. Será justificável ou realmente benéfico para a maioria dos pacientes o uso destes equipamentos e condutas terapêuticas de alto custo ou será uma mistificação da assistência médica? 44. MAHLER, H. - Saúde: a desmistificação da tecnologia médica. O Mundo da Saúde. (1): 16, 1977..

Refletindo sobre estes e outros exemplos poder-se-ia deduzir, e muitos o fazem, que os médicos consideram que a melhor assistência é aquela em que tudo o que se conhece em Medicina é aplicado a todo indivíduo pelo cientista médico mais especializado e na instituição mais sofisticada, dando como justificativa o próprio atendimento. As implicações destas deduções são vistas como aumento do custo com poucas vantagens mensuráveis e, portanto, um retardamento no processo de universilização da assistência à saúde.

Sem poder influir decisivamente no quantitativo da assistência, diretamente ligado à filosofia de governo e às pressões de um público cada vez mais conscientizado, resta aos médicos gerenciar, pelo menos, o controle de custo, da rentabilidade e da qualidade do tratamento específico prestado por cada médico ou grupo de médicos (o hospital) a cada paciente. Talvez venha a ser a única área de possível atuação dos médicos, como uma classe, para evitar a intromissão, muitas vezes indébita e anti-ética de profissionais estranhos à área de saúde.

Em alguns países desenvolvidos, os médicos, espontaneamente ou por força de lei, criaram e desenvolveram organizações próprias com o objetivo de verificar se os atos médicos praticados nos doentes foram os mais apropriados, médica e economicamente, de acordo com os conhecimentos e recursos disponíveis na área geográfica de atuação. São denominadas “organizações para revisão de padrões profissionais” e conhecidas abreviadamente como “revisão pelos pares” ou “Peer Review”55. PEER review manual. - American Medical Association. Div. Med. Practice, 1971., operadas pelos médicos numa especialidade ou em âmbito mais amplo. Os sistemas privados de seguro saúde e o seguro social governamental recorrem a essas organizações para cobertura e respaldo de litígios e benefícios do seguro. É um caminho aceito pelos médicos, embora com reservas; abordagem válida para enfrentar o problema qualidade/custo.

Ao analisar os recursos humanos para a assistência à saúde é comum comparar o número de especialistas com o total de médicos e não com a quantidade de pessoas que necessitam serviços. Quando o fazemos ficam claras as distorções e a centralização de especialistas não onde há mais doentes, porém onde há mais profissionais.

Não pretendo analisar em profundidade as possíveis e prováveis causas destas distorções objeto de um sem número de ensaios, teses, pesquisas e sugestões. Todavia, não posso deixar de alertar que se não encontrarmos meios de incutir nos médicos, e nos especialistas, profundo conhecimento das transformações por que passa o sistema de assistência à saúde e não tentarmos uma distribuição de médicos e especialistas proporcional à população e suas necessidades, qualquer sugestão ou planejamento estará condenado ao fracasso.

A estratégia para reformar o sistema de assistência a saúde foi consubstanciada na Lei 6.229, de 17.05.75, que institui o Sistema Nacional de Saúde e na Portaria Interministerial 001/78, de 26.07.78, que estabelece diretrizes para execução dos Serviços Básicos de Saúde. A pedra angular do Sistema é a regionalização dos serviços de saúde com formação e absorção local de recursos humanos, sempre que possível. A criação do INAMPS pode ser considerada como o passo inicial da formação da rede nacional do Sistema.

Segundo Mahler 44. MAHLER, H. - Saúde: a desmistificação da tecnologia médica. O Mundo da Saúde. (1): 16, 1977., diretor da OMS, é possível distribuir os recursos financeiros de saúde de um país visando à aplicação de ações médicas realmente eficazes e específicas, com avaliação objetiva da necessidade de recursos humanos em quantidade, habilitações e conhecimentos; bem como definir um sistema de saúde que apresente resultados significativos, beneficiando um maior número de pessoas com custos tão baixos quanto necessários para manter um padrão de qualidade aceitável.

O novo sistema não seria perfeito no início, nem imutável; certamente necessitaria constantes alterações, pois as sociedades, as prioridades e os problemas se modificam continuamente. Também não poderia ser transplantado de um país para o outro; cedo ou tarde apareceriam sinais de rejeição, pois cada país tem um passado que não pode ser descartado, com suas tradições, instituições, conscientização e aceitação pública. Há um meio-termo entre aqueles que bloqueiam qualquer mudança no sistema, orgulhosos das realizações do presente e aqueles racionalistas e pragmatas implacáveis que querem começar tudo de novo.

É comum entre médicos que se dedicam a tarefa absorvente e repetitiva de “tratar doentes” considerar que a área de sua atuação é o centro do universo, impossibilitando-os de conceber que outros aspectos do mundo, do seu país, ou da própria profissão possam ser dignos de atenção e análises. Esta intolerância pode cegá-los a ponto de considerarem tudo o mais irrelevante e bizantino. É como se “tratar doentes” fosse uma peça destacada da existência e não obedecesse às regras do enorme sistema de vasos comunicantes que é a vida. Este pensamento capsular é agarrado com todas as forças, geralmente pelo medo de uma mudança, uma situação nova perante a qual não conhecem a reação eficaz. O processo de racionalização que os sustenta utiliza exclusivamente valores consagrados no meio em que vivem, cuja opinião lhes é tão preciosa, condicionando uma realidade interior “desejada” e recusando analisar a problemática complexa da “verdadeira” realidade.

Só há uma maneira de evitar este condicionamento: a convivência com ambas as realidades, coisa aparentemente simples. Contudo, exige a destruição de resistências altamente “treinadas” que oferecem fortíssimos argumentos para adiar ou negar, pela sofisticação intelectual, pelo tédio ou até pelo ridículo, a atenção necessária. E sem ela, sem confronto da nossa “realidade interior” e a “verdadeira” realidade sairemos desta vida como entramos, salvo engano, em estado de total e absoluta ignorância . . . 66. LISBOA, L. C. - O que é importante. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20.06.1977..

O argumento utilizado freqüentemente é a queda na qualidade do serviço médico, pretexto perigoso para ser usado num sistema de saúde orientado para instituições ou pessoas e não para a solução de problemas.

Quando se debate qualidade de serviço médico, o problema é transferido para a formação profissional deficiente ou inadequada, aspecto comentado ao infinito nos mais diversos meios de comunicação.

O réu é quase sempre a universidade, acusada e vilipendiada pelo seu isolamento às necessidades do meio social, pela “distorção” entre a “educação acadêmica” e o campo de atuação do futuro profissional, pela absorção indiscriminada daqueles que desejam um curso de medicina, pelos profissionais que fazem do ensino um “bico”, pela escassez de equipamento e pela inadequação das áreas de aprendizado prático (o hospital). Na formação do especialista médico, após a graduação, até hoje aguardando legitimação através da regulamentação do Decreto 80.281 de 05.09...1977, e controle do seu ensino, as críticas se repetem, em especial à absorção indiscriminanada de candidatos à especialização, a inadequação do campo de aprendizado (o hospital), e o ensino como “bico” dos especialistas já reconhecidos.

Dentre as medidas recomendadas para adequar a formação de médicos e especialistas médicos, capacitando-os a solucionar os problemas de assistência à saúde sobressai a articulação de unidades de ensino (Universidade e Faculdades) entre si e com os sistemas regionais de saúde, preconizada na Lei do Sistema Nacional de Saúde. Contudo, antes mesmo da implantação dos sistemas regionais, a supervisão das tarefas didáticas nos hospitais do sistema assistencial por pessoal de ensino e a utilização de “hospitais de ensino, universitários ou de clínicas” para serviços de assistência à comunidade. Em outras palavras, a tão falada e pouco praticada “integração ensino-assistência” encontra sérios obstácullos e resistências de ambas as partes: pessoal de ensino e sistema assistencial regional. Obstáculos que provêm da acomodação e oposição a mudanças do “status quo”; enfim, um certo grau de intolerância 77. ROSA, A. R. - A universidade e os hospitais. Medicina de Hoje. (1):905. dez. 1976..

Mesmo porque para integrar, e não se confunda com entregar, é necessário um alto grau de inteligência, arguta percepção e brilhante capacidadee inventiva, pois é muito mais fácil lutar do que integrar. A questão é discutida teoricamente com veemência e consenso, porém raramente são iniciadas as ações necessárias para resolvê-la, ou implantá-la. Nossa maneira de viver, nossa formação, nossa educação e nosso aprendizado nos condicionou para a dominação - importante é vencer o adversário - e a integração não oferece tais emoções. Na verdade, integração significa um meio, uma solução em que ambas as partes obtêm o seu lugar de direito (Ensino Assistência), sem que nenhuma delas tenha que sacrificar coisa alguma. Além disso, a integração representa uma mudança, muitas vezes radical, não só na situação ambiental como em nós mesmos, um processo interativo entre o nosso interior e a situação exterior 88. WARLICH, B. M. S. - Uma análise das teorias de organização, 3 ed. Fundação Getulio Vargas., Rio de Janeiro, 1971 (Cadernos de Administração Pública)..

Quanto à eficácia do ensino, não é difícil chegar a discernir que os problemas mais graves provêm da acomodação do professor tradicional, verdadeira caricatura dos métodos modernos de comunicação, especialmente quando ele tem que enfrentar maior afluxo de alunos. O professor informante, centro de atenção da sala de aula, ou o preceptor como único alicerce do aprendizado, são tristes anacronismo num ambiente moderno, saturado de informações oferecidas pela imprensa, pelo rádio, pela televisão, pelas gravações, pelo cinema, enfim, por um permanente bombardeio sensorial informativo.

Com modernas técnicas de comunicação, o ensino passará mais e mais para uma metodologia de auto-instrução, cabendo ao professor colocar à disposição os “meios” para o aprendizado dos alunos, isoladamente, ou em “grupos”. Ninguém mais contesta que educar-se é um processo de informar-se, isto é, de reagir. Para tanto é essencial que a “atmosfera cultural” esteja saturada de informações, prescindindo reorganizações repetitivas que constituem o processo educativo do passado 99. LIMA, L. O. - Mutações em educação segundo McLuhan. Vozes, Petrópolis, 1971..

Concluindo, a classe médica brasileira parece viver encapsulada no seu mundo exclusivista e individualista, teimando em ignorar as profundas transformações por que passa o país, suspirando por um passado que muitas vezes nem conheceu, que não era melhor e que certamente não se coaduna com o presente - muito menos com o futuro.

É bem verdade que uma das características do médico é o individualismo, o conservadorismo, a intransigência e a resistência cega a qualquer mudança do “status quo” - uma boa dose de intolerância - dificultando o verdadeiro sentido da integração de esforços e da racionalização das atividades.

A solução e o futuro parecem estar em nossas mãos, ou melhor, nas nossas cabeças, desde que tenhamos a tranqüilidade necessária para analisar seriamente os problemas da saúde do povo brasileiro. Afinal, também somos povo; que cultivemos a capacidade de introspecção e rejeitemos o isolacionismo, o individualismo, o conservadorismo, a intolerância. Se nós, médicos e profissionais de saúde, não o fizermos, ou não influirmos decisivamente nas mudanças que estão para vir, certamente alguém o fará e é muito provável que nem nos consultem.

Referências Bibliográficas

  • 1
    JOLLY, D. - Formação médica continua e qualidade de assistência. La Revue du Practicien 27 (29):21, maio 1977.
  • 2
    CULLEN, D. J. et alii - Survival, hospitalization charges and follow-up in critically III patients. New Engl. J. Med, 194 (18):982, 1976.
  • 3
    SANTOS, C. B. - CTI: um luxo para bons hospitais. Revista Brasileira de Anestesiologia (24):341, 1976.
  • 4
    MAHLER, H. - Saúde: a desmistificação da tecnologia médica. O Mundo da Saúde (1): 16, 1977.
  • 5
    PEER review manual. - American Medical Association. Div. Med. Practice, 1971.
  • 6
    LISBOA, L. C. - O que é importante. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20.06.1977.
  • 7
    ROSA, A. R. - A universidade e os hospitais. Medicina de Hoje (1):905. dez. 1976.
  • 8
    WARLICH, B. M. S. - Uma análise das teorias de organização, 3 ed. Fundação Getulio Vargas., Rio de Janeiro, 1971 (Cadernos de Administração Pública).
  • 9
    LIMA, L. O. - Mutações em educação segundo McLuhan Vozes, Petrópolis, 1971.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1979
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