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Experiência de Trabalho Acadêmico Voluntário em um Programa de Promoção à Saúde da Família

Volunteer Student Work Experience in Family Health Promotion Program

Resumo:

Para atender à demanda de alunos voluntários em trabalho comunitário, a disciplina de Políticas de Saúde e o Diretório Acadêmico Gaspar Vianna, da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, realizam uma parceira com uma organização não-governamental, para a prestação de serviços em promoção à saúde. Na área de abrangência delimitada, foram estruturadas atividades de visitas domiciliares, atendimento individual e em grupo e eventos educativos. Nessa rotina de trabalho, foi possível discutir e vivenciar a diferença entre assistência em saúde e assistencialismo, e desenvolver noções de solidariedade, compromisso social e visão sistêmica de família.

Descritores:
Saúde da família; Medicina social - educação; Educação médica; Promoção da saúde

Abstract:

The undergraduate course on Health Polices and the Gaspar Vianna Student Union at the Triângulo Mineiro School of Medicine established a partnership with a nongovernmental organization to involve student volunteers in health promotion work at the community level. Home visits, individual and group assistance, and educational activities were organized and implemented in the target area. Within this work routine it was possible to discuss and experience the difference between health care and paternalism and develop notions of solidarity, social commitment, and a systemic view of the family.

Descriptors:
Family health; Social medicine - education; Education, medical; Health promotion

INTRODUÇÃO

A questão da saúde da família tem sido considerada uma das prioridades de saúde coletiva em nível nacional11. Lecovitz E, Garrido NG. Saúde da família: a procura de um modelo anunciado. Cadernos de Saúde da Família, Ministério da Saúde. 1996; 1: 3-9.),(22. Minas Gerais Secretaria de Estado da Saúde Programa de saúde da família uma estratégia de mudança do modelo de saúde - pessoas para implantação no município. Belo Horizonte, 1997.. No município de Uberaba (MG), a implantação de Programas de Saúde da Família (PSF) tem sido realizada de forma crescente e conta, atualmente, com 22 equipes em atividade.

No mesmo município, está instalada a Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM), que oferece cursos superiores de medicina, enfermagem e ciências biológicas modalidade médica. Com o desenvolvimento dos Programas de Saúde da Família (PSF), docentes da área de saúde coletiva passaram a discutir o engajamento e a adequação da formação dos graduandos, até então muito mais voltada para as diversas outras especialidades. O engajamento dos alunos da FMTM em áreas de PSF coordenadas pela Secretaria Municipal de Saúde iniciou-se em 1999, a partir de atividades integradas a Unidades Básicas de Saúde. Nessas atividades, foi incorporada a participação de alunos de medicina dos últimos períodos de formação na graduação. Entretanto, o Departamento de Medicina Social e o movimento estudantil ligado ao Diretório Acadêmico Gaspar Vianna (DAGV), consensualmente, consideraram importante e oportuno o engajamento voluntário de alunos dos primeiros períodos do curso em atividades comunitárias.

Na FMTM, a disciplina de Políticas de Saúde tem como objetivo geral proporcionar aos graduandos uma visão crítica do Sistema de Saúde no Brasil33. Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes da saúde. In: Mehry E, Onocko R. org. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997.),(44. Mello DA. Promoção à saúde e educação, diagnóstico de saneamento através da pesquisa participante articulada à educação popular (Distrito São João dos Queiroz, Quixadá, Ceará. Brasil). Cad. Saúde Pública. 1998; 14: 583-95.),(55. Mendes EV. Distrito sanitário: o processo social da mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec , 1995.. Objetiva também possibilitar aos alunos a vivência em serviços de Saúde Coletiva por meio de atividades práticas que permitam vislumbrar o funcionamento real do sistema de saúde, pretendendo envolver, responsabilizar e motivar os alunos, fortalecendo neles valores éticos e humanos necessários à consolidação de seu compromisso com a saúde e não apenas como exercício profissional e comercial da medicina.

Na estrutura curricular, a disciplina oferece, a alunos do quinto período, um campo de trabalho na comunidade. Entretanto, tão logo terminam as aulas ou mesmo antes disso, surge entre os alunos uma demanda para continuar as ações comunitárias, que é frustrada porque outras matérias subseqüentes na grade curricular tomam todo o tempo disponível dos alunos. A continuidade de ações de promoção à saúde só é possível, então, em horário especial e em caráter voluntário aos interessados. Para tentar organizar algum projeto nesse sentido, procurou-se a coordenação municipal do Programa de Saúde da Família, que incentivou a implantação de atividades independentes do PSF, que se encontrava em fase de estruturação. Assim, a partir da de manda dos alunos de medicina, a disciplina de Políticas de Saúde e a Coordenação de Saúde Pública do DAGV implantaram, em 1999, um Projeto de Promoção Saúde da Família, na Vila Militar, em Uberaba (MG).

OBJETIVO

Relatar uma experiência de trabalho acadêmico voluntário em um Programa de Promoção à Saúde da Família executado em Uberaba (MG).

MATERIAL E MÉTODOS

Realizou-se parceria com uma organização não-governamental comprometida com o Sistema Único de Saúde e com a proposta de promoção à Saúde da Família. Essa organização, sediada em bairro periférico, tem por objetivo realizar ações de natureza educativa, cultural e assistencial de amparo à velhice, aos enfermos, às crianças, sem distinção de classe, sexo, raça, cor, nacionalidade ou religião. Nesse local, realizam-se atividades religiosas e de assistência material (doação de gêneros alimentícios e medicamentos) à população carente do bairro. A maioria das habitações da localidade é de alvenaria, mas há algumas com estrutura de madeira construídas de forma Irregular; falta saneamento básico e não há escola, embora haja bem serviço de rede de ônibus. Observa-se, entre os moradores, desemprego, violência, dependência química, ocorrência de fatos policiais. Há muitas crianças em situação de rua, cujos pais estão doentes ou afastados da família. Não existe qualquer instituição de saúde e não havia equipe do PSF atuando no bairro porque a população da área não atinge 3.500 habitantes.

Para firmar uma parceria, foram realizados vários encontros com a diretoria da instituição e com membros da comunidade, que consideraram muito interessante a proposta da FMTM. Propôs-se inserir o corpo discente em atividades de nível primário, realizadas na comunidade, com duração mínima de duas horas semanais, sob a supervisão direta de um docente da área de medicina social. Esse trabalho deveria integrar-se técnica e operacionalmente ao sistema de saúde municipalizado (SUS) e ao hospital-escola da FMTM.

No segundo semestre de 1999, foi realizado um reconhecimento de área por meio de visitas domiciliares e entrevistas diretas com moradores e informantes-chave.

O objetivo geral do programa consistiu em promover saúde da família por intermédio de visitas domiciliares; grupos de auto-ajuda para temas específicos (sexualidade, dependência química, nutrição, doenças crónico, degenerativas e outros); mutirão de limpeza; combate a vetores; cursos de noções básicas em saúde coletiva; seleção, treinamento e atividades de saúde com agentes comunitários voluntários (informais, não-profissionalizados), moradores do bairro, e atendimento clínico individual em nível primário. Os recursos humanos envolvidos são docentes e funcionários do Departamento de Medicina Social, alunos de graduação de medicina e enfermagem da FMTM, voluntários, vinculados ao Diretório Acadêmico Gaspar Vianna, agentes de saúde e outros moradores da área de abrangência.

Os recursos materiais constituíram-se de instalações físicas situada, na comunidade; material de escritório, instrucional e de registro médico a cargo da FMTM. O projeto não contou com recursos financeiros próprios.

RESULTADOS

As atividades foram iniciadas em setembro de 1999, em caráter voluntário e experimental. Aos sábados, com a presença de cerca de trinta acadêmicos, a primeira hora de trabalho era utilizada para orientações técnicas e conceituação básica quanto a ações comunitárias. Em seguida, eram realizadas visitas domiciliares a moradores da área de abrangência para realização de entrevista, identificação de problemas da saúde nas famílias e encaminhamento e/ou orientação. Atendimento ambulatorial ou em grupo era feito naquele mesmo local às segundas-feiras das 8:30 às 11:00, para atender, em nível primário, os moradores encaminhados pelos alunos. Pequenos grupos foram formados por membros da mesma família ou por moradores com o mesmo problema de saúde: tabagismo; hipertensão arterial; obesidade; depressão; folha de água potável em casa.

Para iniciar a aproximação junto à comunidade, muitas dúvidas foram abordadas, como o relacionamento com a população; a forma de entabular conversação com os moradores; quais seriam as primeiras ações de prestação direta de serviço a realizar, uma vez que o grupo discente era constituído de alunos de primeiro e segundo períodos, com pouco conhecimento técnico em saúde. Foram estabelecidas algumas regras entre os participantes: vestir-se com sobriedade; usar obrigatoriamente o crachá da FMTM; trabalhar em duplas ou trios mistos (um acadêmico com uma acadêmica, sempre que possível); cumprir o horário; manter-se distante de situações violentas ou de qualquer forma de assédio sexual.

Periodicamente, os responsáveis pelo programa realizaram encontros para redefinir estratégias, escolher temas para as reuniões preliminares, avaliar o andamento das atividades e decidir o cronograma do projeto, mediante situações como vésperas de provas, feriados e férias na FMTM.

Durante o andamento do programa no ano de 2000, foram realizado, 134 atendimentos clínicos e visitas domiciliares periódicos a 28 famílias adoecidas, identificadas como grupo prioritário entre todas as entrevistadas em domicílio. Na primeira hora de trabalho, o docentes e acadêmicos discutiram os seguintes temas: Visão sistêmica de família6, sexualidade e gravidez na adolescência. No final do semestre, os acadêmicos organizaram um evento educativo no bairro. Ofereceram às crianças três peças teatrais com bonecos fantoches e coordenaram dois times para uma gincana constituída de questões teóricas e tarefas referentes a higiene pessoal.

COMENTÁRIOS FINAIS

No programa em andamento, procura-se transformar, por meio da ação em serviço, comportamentos que denotam preconceitos, estigmas sociais e postura paternalista, bem como sentimentos e valores relacionadas a essas questões. Procura-se promover a capacitação técnica aliada à politização, à visão crítica do sistema de saúde77. Santos M. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1996.),(88. Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec , 1999. e a uma concepção de solidariedade que resgate e inspire o fortalecimento do compromisso social do profissional de saúde, independentemente de suas opções político-ideológicas, cujas diferenças são encaradas como previsíveis numa sociedade democrática.

Como a sede do trabalho uma instituição religiosa, ocorre também a discussão das crenças e da espiritualidade, tema geralmente desprezado durante os treinamentos para o exercício técnico da profissão, mas que é resgatado diante da necessidade de convivência com a situação de miséria e desigualdade de condições de vida, que exigem reflexões sobre ética e justiça social. De nossa parte, o tema é tratado de uma perspectiva pluralista, que valoriza todas as formas de expressão religiosa, incluindo as cristãs não-cristãs, entendendo como parte importante da formação dos jovens discutir a concepção de um poder superior. Entretanto, é respeitado a postura agnóstica e ateísta, porque religiosidade nem sempre garante espiritualidade, e entre pessoas que se dizem descompromissadas com um poder transcendental superior encontram-se muitas que exprimem profundo senso ético e sensibilidade em relação ao seu semelhante.

No primeiro dia de atividades, com a anuência de todos, foi realizada uma leitura de trecho bíblico; logo depois, os presentes deram-se as mãos, formando um círculo, e um acadêmico proferiu uma prece em favor do bom andamento das atividades ali iniciadas. Em nossa experiência, observamos que os acadêmicos desejam trabalhar esses assuntos com docentes universitários e encontram poucas oportunidades de fazê-lo durante os cursos que freqüentam porque, evidentemente, não fazem parte da temática central das disciplinas. Porém, chamamos a atenção para que o ensino técnico, sempre que possível e sem prejuízo de conteúdo, remeta aos aspectos culturais, afetivos e valorativos dos acadêmicos, para que a informação seja revertida em verdadeira formação de identidade, harmonizando aspectos bio-psíquico-sociais

Discute-se ainda a questão do assistencialismo em contraponto a um modelo assistencial problematizador e promotor de cidadania. Para tanto, procura-se exercer uma abordagem que sempre aponte às pessoas e aos grupos a necessidade de tomada de atitude em busca de solução dos problemas, lembrando que o serviço de saúde é um apoio um direito do cidadão, mas a qualidade de vida é uma conquista. Procura-se desmistificar o poder curador dos medicamentos, por exemplo, e observa-se, num primeiro momento, uma resistência inicial das pessoas a pensarem saúde sob uma ótica mais abrangente

A questão da empatia e da solidariedade pode ser enfatizada desde a postura corporal de aproximação e receptividade até a articulação de pessoas para a procura de soluções de problemas. Em certo dia de trabalho, por exemplo, os académicos identificaram, nas visitas domiciliares, uma família que iria jogar algumas telhas de zinco no lixo e, em endereço não muito distante, outra família com área da casa descoberta por falta de telhas. Promoveram o encontro dessas famílias e a discussão de uma solução solidária entre elas. Noutra situação, entraram em contato com família em precaríssimas condições de higiene, com infestação por pediculose, e puderam reeducar comportamentos de rejeição à aproximação física e sua capacidade de discutir o assunto com clareza sem humilhar os moradores da localidade.

A teoria sistêmica de família tem sido introduzida aos poucos, a partir da percepção do grupo familiar nuclear e extenso e das inter-relações entre sintomas e dinâmica familiar, principalmente na abordagem de famílias com problema de dependência química, doença mental grave e violência doméstica. Grande esforço tem sido empreendido para o reconhecimento de pacientes implícitos que sabotam ou se interpõem entre seus familiares e os recursos disponíveis de saúde, desde o transporte de ambulância para uma internação urgente, o uso necessário de medicação e até a recusa categórica a participar de grupos de auto-ajuda incipientes a partir do atendimento realizado às segundas-feiras.

Ao longo desse trabalho, pareceu-nos vantajosa a parceria com organização não-governamental constituída de grupos interessados em proposta de trabalho voluntário, cujo retorno não é institucionalizado, financeiro ou político-partidário.

No segundo semestre de 2000, o programa passou a contar com mais alunos das áreas de enfermagem e ciências biológicas, o que trará possibilidades de ampliar a abordagem e o intercâmbio interdisciplinar e institucional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Lecovitz E, Garrido NG. Saúde da família: a procura de um modelo anunciado. Cadernos de Saúde da Família, Ministério da Saúde. 1996; 1: 3-9.
  • 2
    Minas Gerais Secretaria de Estado da Saúde Programa de saúde da família uma estratégia de mudança do modelo de saúde - pessoas para implantação no município. Belo Horizonte, 1997.
  • 3
    Campos GWS. Subjetividade e administração de pessoal considerações sobre modos de gerenciar trabalho em equipes da saúde. In: Mehry E, Onocko R. org. Agir em saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997.
  • 4
    Mello DA. Promoção à saúde e educação, diagnóstico de saneamento através da pesquisa participante articulada à educação popular (Distrito São João dos Queiroz, Quixadá, Ceará. Brasil). Cad. Saúde Pública. 1998; 14: 583-95.
  • 5
    Mendes EV. Distrito sanitário: o processo social da mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec , 1995.
  • 6
    Minuchin P, Colapinto J, Minuchin S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
  • 7
    Santos M. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1996.
  • 8
    Vasconcelos EM. Educação popular e a atenção à saúde da família. São Paulo: Hucitec , 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2001
  • Aceito
    25 Jun 2001
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