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A Utilização do Cadáver para Fins de Estudo e Pesquisa Científica no Brasil

The Use of Corpse for Study and Scientific Research in Brazil

Resumo:

A legislação brasileira prevê a possibilidade de utilização, pelas faculdades de medicina, de cadáveres não reclamados para fins didático e científico. Apesar disso, há dificuldades no cumprimento da norma pelos estabelecimentos de ensino. Há um conflito de normas federais, questão dirimida no Estado de São Paulo com a edição de um Provimento da Corregedoria de Justiça daquele estado. No restante do país, persiste este conflito de normas. Por outro lado, há a restrição legal no tocante à utilização desses cadáveres apenas nos cursos de medicina, sendo que há outros cursos que exigem o conhecimento da anatomia humana. Para resolver este problema, tramita atualmente no Congresso Nacional um projeto de lei que visa a ampliar a utilização do cadáver não reclamado a outros cursos da área de ciências da saúde. Este trabalho apresenta brevemente a questão, com apontamentos preliminares, com o objetivos de ampliar o debate na comunidade universitária e científica para o adequado ensino da anatomia.

Descritores:
Anatomia - educação; Educação superior; Legislação; Educação médica - legislação

Abstract:

Brazilian legislation provides for the use of unclaimed cadavers for both teaching activities and scientific research in medical schools. However, schools experience difficulties in implementing the existing norms. The existing conflict in Federal standards was settled in the state of São Paulo through a provision by the state Courts, while the conflicting standards have persisted in the rest of the country. In addition, use of cadavers for teaching is legally restricted only to medical schools, whereas other courses require knowledge of human anatomy. In order to solve this problem, a bill of law is currently being reviewed by the National Congress which aims to extend the use of unclaimed cadavers to other courses debate in the scientific and academic community and foster proper teaching of human anatomy.

Descriptors:
Anatomy - education; Education, Higher; Legislation, Education, Medical - Legislation

A relação entre a medicina e o direito tem-se intensificado no decorrer do século XX. O crescente uso da tecnologia, a incessante busca pela cura das mais diversas doenças, bem como a realização de pesquisas cientificas voltadas à prevenção desses males têm colocado os profissionais da área das ciências da saúde em permanentes conflitos éticos.

Esses conflitos se intensificaram especialmente após a Segunda Guerra mundial, quando algumas nações e organismos internacionais tiveram que se posicionar em relação aos experimentos realizados com seres humanos - principalmente aqueles praticados pela Alemanha nazista.

A partir de então, sucessivos fatos contribuíram para o surgimento de uma nova ciência, atualmente denominada “bioética”, que pretende estabelecer princípios e limites para a atuação dos profissionais da saúde e dirimir conflitos éticos decorrentes da atuação profissional, de forma a garantir a evolução das ciências em busca da melhoria da qualidade devida do ser humano, sem, no entanto, violar princípios individuais fundamentais, dentre os quais se destacam a vida, a integridade física, psíquica e emocional, a individualidade, a igualdade no tratamento e a autonomia.

O estudo da anatomia, por se desenvolver mediante a utilização de cadáveres, deve ser realizado com a observância de princípios éticos e normas legais, sempre tendo em vista os seguintes aspectos: 1) respeito ao cadáver: 2) continuidade do ensino e das atividades de pesquisa em nível de excelência, garantindo ao corpo discente e a pesquisadores material suficiente para o aprendizado e desenvolvimento de estudos e pesquisas científicas: 3) condições para que os corpos docente e discente desenvolvam as atividades didáticas e de pesquisa em estrita observância à legislação vigente.

A importância do cadáver humano na prática do ensino e na realização de pesquisas é inquestionável entre os profissionais da área das ciências da saúde.

No Brasil, as hipóteses de utilização do cadáver n o reclamado para fins didáticos e científicos estão previstas na Lei no 8.501, de 30 de novembro de 199211. BRASIL. Lei Federal no 8.501 de 30 de novembro de 1992 - Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, DF, p. 016519, 01 de dez. 1992. Col. 1..

De acordo com essa lei, a destinação de cadáver não reclamado para fins de estudos ou pesquisas científicas cm faculdades de medicina é possível, desde que observados os requisitos e os procedimentos relativos a registro de identificação do cadáver, a publicidade do óbito, a fim de possibilitar eventual reclamação para sepultamento, bem como a realização de exame necroscópico para verificação da causa mortis, quando necessário.

Apesar da existência de norma especial, são crescentes as dificuldades enfrentadas pelas faculdades de medicina para a utilização de cadáveres em aulas de anatomia.

Mencione-se, por oportuno, o trabalho realizado pela Comissão Especial designada pela Portaria no 86, de janeiro de 1980, do Ministério da Educação e da Cultura, a qual foi incumbida, já naquela ocasião, de estabelecer normas disciplinares sobre o uso de cadáveres para estudos de anatomia humana nos cursos da área da saúde.1 1 A Comissão Especial, designada pelo então ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portella, era composta por representantes de instituições de ensino superior - Prof. Ary Monteiro do Espírito Santo (UFG), Prof. José Carlos Prates (EPM), Prof. Paulo Freire (UFF) -, representante do Ministério da Justiça - Dr. Hélio Fonseca -, e representante do Ministério da Saúde - Dr. Fernando Vasconcellos Theóphilo.

Há diversos obstáculos enfrentados pelas instituições de ensino na implementação e cumprimento das normas legais.

Primeiramente, destaque-se a dificuldade que envolve a discussão de valores e sentimentos milenares. Neste aspecto, o relatório da Comissão Especial, oportunamente, refere que “as crenças atávicas ainda estão vivas, embora de forma inconsciente e nos mais profundos substratos da mente humana, criando uma ojeriza natural para a entrega voluntária do corpo para estudos anatômicos ou para qualquer outro fim que não seja a paz do sepulcro”22. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Uso de cadáveres para estudo de anatomia humana nas escolas da área da saúde. Brasília, 1981. (Cadernos de Ciências da Saúde, 1)..

Além da discussão ética e moral que envolve o tema, há também dificuldades jurídicas, que comentaremos mais detidamente.

Como já se mencionou, a Lei no 8.501/92 dispôs sobre a destinação de cadáveres não reclamados para fins de estudos e pesquisa científica, estabelecendo requisitos e procedimentos para isto. No entanto, a Lei de Registros Públicos, ao dispor sobre a lavratura do óbito, estabeleceu em seu artigo 80:

“O assento de óbito deverá conter:

  1. a hora, se possível, dia, mês e ano do falecimento;

  2. lugar do falecimento, com indicação precisa;

  3. o prenome, nome, sexo, idade, cor, estado civil, profissão, naturalidade, domicílio e residência do morto;

  4. se era casado, o nome do cônjuge sobrevivente, mesmo quando desquitado; se viúvo, o do cônjuge pré-defunto; e o cartório de casamento em ambos os casos:

  5. os nomes, prenomes, profissão, naturalidade e residência dos pais;

  6. se faleceu com testamento conhecido;

  7. se deixou filhos, nome e idade de cada um;

  8. se a morte foi natural ou violenta e a causa conhecida, com o nome dos atestantes;

  9. o lugar do sepultamento;

  10. se deixou bens e herdeiros menores ou interditos;

  11. se era eleitor”44. BRASIL. Lei Federal no 6.015, de 05 de dezembro de 1973 - Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] . Brasília, DF, p. 013528, 31 dez. 1973.Col. 1..

Verifica-se, pois, que a lei de Registros Púbicos exige, como elemento indispensável na lavratura do óbito, a expressa menção do local do sepultamento do corpo. No entanto, não há como fazer constar tal Informação na certidão de óbito lavrada para o cadáver destinado a estudo e pesquisa cientifica. Eis o conflito de normas, como mencionar o local de sepultamento de um corpo insepulto?

A fim de dirimir esse conflito, a Universidade Federal de São Paulo formulou consulta à Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo em meados de 1997. Daí resultou a edição de Provimento que regulamentou a matéria, complementando o dispositivo legal.

Assim, de acordo com o Provimento/CG no 16, de setembro de 19972 2 O Provimento da Corregedoria Geral da Justiça foi publicado no Diário Oficial do Estado de 26 de setembro de 1997, no Caderno 1, parte 1, página 41. , a instituição de ensino interessada na utilização de cadáver não reclamado para estudo e pesquisa científica, deverá requerer, perante o cartório competente, o assento de óbito. Para tanto, deverá apresentar a documentação comprobatória do óbito, bem como providenciar a publicação de editais que noticiem o óbito a fim de propiciar a reclamação do corpo por familiares ou responsáveis legais.

Ainda de acordo com o referido provimento, a documentação instrutória do pedido de assento de óbito será objeto de análise pelo juiz corregedor, sendo que, apenas após o deferimento do pedido e da expedição da certidão de óbito junto ao cartório de registro civil competente, o cadáver poderá ser efetivamente destinado para os fins de que trata a Lei no 8.501/92. Nessa hipótese, excepcionalmente e mediante autorização judicial, a certidão de óbito será lavrada sem a menção do local do sepultamento, mas, sim, do local - instituição de ensino - em que se encontra o cadáver destinado ao estudo e pesquisa científica.

Solucionou-se, assim, no âmbito do Estado de São Paulo, o conflito existente entre as normas federais.

No entanto, persiste uma terceira dificuldade na obtenção de cadáveres para estudos e pesquisas na área de ciências da saúde. Trata-se da restrição contida na legislação federal no tocante às faculdades que podem fazer uso do cadáver para fins didáticos e científicos.

A Lei no 8.501/92 restringiu às faculdades de medicina a possibilidade do uso do cadáver devendo descobertos os demais cursos de ciências da saúde, os quais possuem, em seu currículo mínimo estabelecido pelo Ministério da Educação, a disciplina de anatomia humana.

Assim, como explicar que cursos de odontologia, Educação física e fisioterapia, entre outros, devam ministrar disciplina para o estudo da anatomia humano, conforme determina o Ministério da Educação, se a legislação federal não possibilita a essas faculdades a utilização do cadáver não reclamado? Trata-se de mais uma incoerência a ser corrigido para viabilizar o ensino naquelas faculdades.

Neste sentido, vale mencionar o projeto de lei, atualmente em tramitação no Senado Federal, que visa a alterar o artigo 2o da Lei no 8.501/ 92, exatamente para ampliar o universo de faculdades e cursos que podem utilizar o cadáver não reclamado.55. BRASIL Congresso. Senado. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados no 177/1995 - Deputado Federal Couraci Sobrinho. Altera o artigo 2o da Lei 8.501, de 30 de novembro de 1992. Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências (incluindo as escolas de Odontologia e outras relacionadas às ciências da saúde na destinação de cadáver não reclamado, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico). Ementa do substitutivo. Em tramitação nas comissões. Comissão de Constituição e Justiça e de redação em 06 abr. 2000. Relator Deputado Roland Lavigne. Disponível em httpwww.camara.gov.br/netacgi/brs-cgi.exe?sl=cad%Elver+reclamac&d=PROH&S2=ativa&SECT3=PLURON&SECT2=THESOFF&l=25&pgALL&u=/Netahtml/SINO/PesquisaLivre.asp&p=l&r=l&f=G#h Acesso em: 4 de abril 2001.
httpwww.camara.gov.br/netacgi/brs-cgi.ex...
3 3 De autoria do deputado Couraci Sobrinho, o Projeto de Lei no 177/95 na Casa de Origem (no 22/96 no Senado Federal) tem a seguinte ementa: “altera o art. 2o da Lei no 8.501, de 30 de novembro 1992, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências”. Esse projeto resolveria a dificuldade exposta acima, coadunando-se com a legislação educacional e viabilizando os cursos de ciências da saúde. Persistiriam, no entanto, os entraves mencionados inicialmente quanto à Lei de Registros Públicos, atualmente saneados no Estado de São Paulo.

Finalmente, cumpre lembrar que a utilização de cadáver sem a observância dos dispositivos legais vigentes (em especial a Lei no 8.501/92) resultará na prática de condutas ilícitas previstas no Código Penal e em outras normas esparsos. Mencionem-se, ainda que brevemente, os crimes previstos nos artigos 211 (destruição, subtração ou ocultação de cadáver), 212 (vilipêndio a cadáver) e 299 (falsidade ideológica), todos do Código Penal brasileiro66. BRASIL. Decreto-Lei 1o 2.848 de 08 de dezembro de 1940. .Código Penal. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] . Rio de Janeiro, p. 023911 31 dez. 1940. Col. 2..

Estes são apenas alguns apontamentos preliminares para procurar solucionar um problema cada vez mais difundido no pais: a dificuldade das instituições de ensino superior na obtenção de cadáveres para o ensino da anatomia humana. As dificuldades têm sido divulgadas e debatidas cada vez mais freqüentemente, inclusive com a realização de eventos promovidos pelas entidades interessadas. Deles têm participado a comunidade universitária e cientifica, advogados, membros do Ministério Público e da Magistratura, a fim de buscar uma solução ética, legal e eficaz para a manutenção do ensino de boa qualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    BRASIL. Lei Federal no 8.501 de 30 de novembro de 1992 - Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil]. Brasília, DF, p. 016519, 01 de dez. 1992. Col. 1.
  • 2
    BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Uso de cadáveres para estudo de anatomia humana nas escolas da área da saúde. Brasília, 1981. (Cadernos de Ciências da Saúde, 1).
  • 3
    BRASIL. Lei federal no 8.501 de 30 de novembro de 1992 - Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] . Brasília, DF, p. 017208, 15 de dez. 1992. Col. 2.
  • 4
    BRASIL. Lei Federal no 6.015, de 05 de dezembro de 1973 - Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] . Brasília, DF, p. 013528, 31 dez. 1973.Col. 1.
  • 5
    BRASIL Congresso. Senado. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados no 177/1995 - Deputado Federal Couraci Sobrinho. Altera o artigo 2o da Lei 8.501, de 30 de novembro de 1992. Dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências (incluindo as escolas de Odontologia e outras relacionadas às ciências da saúde na destinação de cadáver não reclamado, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico). Ementa do substitutivo. Em tramitação nas comissões. Comissão de Constituição e Justiça e de redação em 06 abr. 2000. Relator Deputado Roland Lavigne. Disponível em httpwww.camara.gov.br/netacgi/brs-cgi.exe?sl=cad%Elver+reclamac&d=PROH&S2=ativa&SECT3=PLURON&SECT2=THESOFF&l=25&pgALL&u=/Netahtml/SINO/PesquisaLivre.asp&p=l&r=l&f=G#h Acesso em: 4 de abril 2001
    » httpwww.camara.gov.br/netacgi/brs-cgi.exe?sl=cad%Elver+reclamac&d=PROH&S2=ativa&SECT3=PLURON&SECT2=THESOFF&l=25&pgALL&u=/Netahtml/SINO/PesquisaLivre.asp&p=l&r=l&f=G#h Acesso em: 4 de abril 2001
  • 6
    BRASIL. Decreto-Lei 1o 2.848 de 08 de dezembro de 1940. .Código Penal. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] . Rio de Janeiro, p. 023911 31 dez. 1940. Col. 2.
  • 1
    A Comissão Especial, designada pelo então ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portella, era composta por representantes de instituições de ensino superior - Prof. Ary Monteiro do Espírito Santo (UFG), Prof. José Carlos Prates (EPM), Prof. Paulo Freire (UFF) -, representante do Ministério da Justiça - Dr. Hélio Fonseca -, e representante do Ministério da Saúde - Dr. Fernando Vasconcellos Theóphilo.
  • 2
    O Provimento da Corregedoria Geral da Justiça foi publicado no Diário Oficial do Estado de 26 de setembro de 1997, no Caderno 1, parte 1, página 41.
  • 3
    De autoria do deputado Couraci Sobrinho, o Projeto de Lei no 177/95 na Casa de Origem (no 22/96 no Senado Federal) tem a seguinte ementa: “altera o art. 2o da Lei no 8.501, de 30 de novembro 1992, que dispõe sobre a utilização de cadáver não reclamado para fins de estudo ou pesquisas científicas e dá outras providências”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2001
  • Aceito
    25 Jun 2001
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