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Do Legado de Pina Bausch: uma entrevista com Dominique Mercy

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Dominique Mercy, em Viktor. Tanztheater Wuppertal Pina Bausch

As peças de Pina Bausch são os seus bailarinos, mas cada bailarino é Pina Bausch. Não que a tomem como modelo e a imitem. Cada um é ele-próprio, mas não ganharia identidade sem o olhar de Pina Bausch, que imprime, dá sentido aos seus movimentos e os relaciona com o todo que vai construindo (Sasportes apud Galhós, 2010GALHÓS, Cláudia. Pina Bausch - ensaio biográfico. Lisboa: D.Quixote, 2010., p. 73).

Talvez nenhum outro autor tenha melhor caracterizado o trabalho dos bailarinos de Pina - e, por conseguinte, da artista ela mesma - senão José Sasportes - notável crítico e historiador de dança português. Essa breve constatação de Sasportes, feita em um texto intitulado Acção para bailarinos, e a propósito de um evento sediado em Lisboa em homenagem a Pina Bausch, permite perceber de maneira muito nítida o sentido da experiência e do legado de uma notável artista que se condensam na figura de um de seus maiores colaboradores, Dominique Mercy.

Dominique certamente dispensa qualquer apresentação. Vale, contudo, recobrar alguns momentos que antecederam seu fortuito encontro com Pina, no início dos anos de 1970, em Saratoga, nos Estados Unidos. Nascido em 1950, na cidade de Mauzac, na França, Dominique deu seus primeiros passos profissionais no mundo da dança a partir da metade dos anos de 1960 no Grande Teatro de Bourdeaux e, posteriormente, no Ballet du Art Contemporain, de Amiens. Em 1973, dois anos depois de seu primeiro encontro com Pina no Festival de Verão de Saratoga, em 1971, Dominique se dirige à Alemanha, em Wuppertal, para fazer parte do recém-formado Tanztheater.

Sua estreita relação com Pina permitiu, com efeito, que o legado desta pudesse se manter vivo após sua repentina morte no ano de 2009. Junto com Robert Sturm, Dominique assumiu por alguns anos que se seguiram a direção artística da companhia - tendo então passado o posto a seu também colega bailarino, Lutz Forster. Foi ao lado de Pina e tantos outros do ensemble de Wuppertal que Dominique acabou escrevendo uma das mais importantes páginas nos anais da história da dança do século XX.

A experiência de Pina - ou diria, com Pina -, que cada um aparentemente tem quando com a sua obra se depara pela primeira vez - permitindo compreender, em certa medida, o fascínio que ela exerce ainda hoje sobre o público -, passa também e imprescindivelmente por aqueles que com ela e por intermédio dela trabalharam. Minha primeira vez com Pina foi, por certo, ao lado de Dominique Mercy; ou diria, à sua frente; Dominique mostrou-se a mim seminu, vestindo apenas um tutu e carregando um regador. Isso foi em 2006, quando da apresentação de Fur die kinder von gestern, heute und morgen, em Porto Alegre. Pina também lá estava.

O encontro insólito - ainda que apartado pelo arco do proscênio - acabaria por se repetir anos mais tarde, em Paris; dessa vez, contudo, sem Pina e sem nenhuma linha a nos dividir. À Dominique fui introduzido após uma das apresentações de Como el musguito em la piedra..., por intermédio do também bailarino do Tanztheater Wuppertal, Daphnis Kokkinos, em 2011. Naquela ocasião, Dominique mostrou-se de uma maneira extremamente leve e acolhedora. Com o passar dos anos, percebi que aquela não havia sido uma forma protocolar de apresentação, mas a doação mesma de uma parte daquilo que ele era, como ele era, de ser não de uma maneira, mas à sua maneira, com ou sem tutu. Ao recordar esse encontro com Dominique, em janeiro de 2018, em sua casa nos arredores de Barmen, em Wuppertal, ele não o lembrava; tampouco poderia, uma vez que, absorto no meu encanto, naquele momento, eu pouco - ou provavelmente nada - havia articulado. Todavia, mesmo no meu recolhimento involuntário, algo me havia sido dado, uma presença, duradoura.

Foi à maneira de Dominique, generosa, honesta e delicada, que essa entrevista efetivamente se deu. Agradeço a ele pela atenção dispensada e pelo café; como também a meu querido amigo Eddie Martinez que me possibilitou esse e tantos outros encontros felizes.

Marcelo de Andrade Pereira - Você poderia nos dizer sobre o início do seu trabalho com Pina?

Dominique Mercy - Bem, ninguém pensou ou mesmo sabia que nós nos tornaríamos parte da história da dança. Eu conheci Pina nos Estados Unidos por acaso, se é que o acaso existe. Ela foi convidada por Paul Sanasardo para um curso de verão em Saratoga Springs. Talvez você já saiba dessa história. Ela foi convidada para participar do quadro de professores, para ensinar, reviver e estudar uma das coreografias de Sanasardo para a companhia de lá e, também, para ela própria dançar. Ela dançou um solo baseado na música de Pierre Henry.

Da minha parte, eu fui convidado por um dos bailarinos de Paul Sanasardo, Manuel Alum, que eu havia conhecido na França. A companhia em que eu trabalhava havia naquela ocasião convidado Alum. Ele estava dando algumas aulas lá e nós entramos em contato e começamos a entender um ao outro muitíssimo bem. De alguma maneira, suas aulas, sua personalidade e nossa química foi uma grande revelação para mim. Malou Airaudo também estava muito envolvida porque ela havia deixado uma companhia e também estava trabalhando com Manuel Alum.

No verão de 1972, Manuel me perguntou se eu poderia fazer parte do quadro do curso de verão que ele estava ministrando para além do trabalho que realizava com Paul Sanasardo. Ele tinha sua própria companhia, composta pela maioria dos membros e bailarinos de Paul Sanasardo, porém, com alguns outros convidados. Numa noite ele me disse que ele estava montando uma pequena peça em Saratoga e ele me perguntou se eu poderia acompanhá-lo, porque queria trabalhar comigo; eu não fazia ideia de quem Pina era, nunca havia conversado sobre ela, pois essa não era a ideia. Eu estava apenas de férias e não tinha nenhum plano preestabelecido. Eu nunca havia estado nos Estados Unidos e eu pensei, por que não? Pensei que seria uma ótima oportunidade para fazer coisas diferentes. Quando eu desembarquei na estação rodoviária de Saratoga já era tarde da noite. Foi bem legal. Três pessoas estavam esperando por mim: Manuel Alum, Malou Airaudo e uma jovem mulher que eu não conhecia. Primeiro, pensei que ela fosse a irmã de Manuel porque ela tinha uma estrutura ósseo-facial similar à dele. Mas era Pina. Então, para esse curso, bailarinos e estudantes foram encaminhados para diferentes casas; havia casas muito bonitas em Saratoga. Malou, Manuel, Pina e eu fomos enviados para a mesma casa. Assim, mesmo antes de qualquer laço de trabalho ou artístico nós nos tornamos amigos e podemos nos conhecemos melhor. Eu não falava alemão, Pina não falava francês e naquela época ela provavelmente falava inglês melhor do que eu. Ainda assim, conseguíamos nos comunicar, de uma maneira diferente, certamente. No começo eu fiquei bastante impressionado pela aula dela e por sua técnica de dança. Da sua técnica eu não sabia absolutamente nada, embora eu fosse europeu e morasse perto da Alemanha - eu nunca havia tido aulas sobre Kurt Jooss ou Jean Cébron ou sequer conhecia esse lado da dança europeia. Para mim, os movimentos representaram uma grande descoberta. Eu senti que eram muito próximos de mim, como se eu reconhecesse algo que na verdade eu nunca havia conhecido. De um lado, eu vi o trabalho que Pina estava fazendo com a companhia; penso que era uma das coreografias apenas com mulheres; esqueci o título agora. Eu fiquei muito impressionado porque eu vi todos aqueles estranhos movimentos que eu realmente gostava. Mas, sobretudo, o que mais me impressionou foi ver Pina como bailarina e artista. Quando ela dançou sua performance solo, eu fiquei completamente deslumbrado e me senti mais uma vez muito próximo daquilo. Eu senti como algo a que eu já pertencesse. E eu sabia que era uma experiência muito bonita e nós realmente nos conectamos. Em certo momento na cozinha de nossa casa em Saratoga eu lembro de Pina ter me dito que ela eventualmente desenvolveria um projeto na Alemanha. Ela então me perguntou se eu gostaria de trabalhar com ela, e eu disse: sim, claro. Mas eu nada sabia sobre esse projeto. Você sabe, quando você tem um projeto você fica um pouco supersticioso acerca do mesmo e não fala muito sobre ele. Pina não entrou em detalhe algum; apenas queria saber se eu gostaria de trabalhar com ela. Nós deixamos Saratoga e seguimos para Nova Iorque por um breve período; e de lá eu voltei para a França com todas essas experiências. Digo, com tudo mesmo - o lado artístico de Pina, Manuel, a atmosfera e o simples fato de ter estado nos Estados Unidos naquela época. Era 1972 e muitas coisas estavam acontecendo. Eu também havia assistido todas essas diferentes pessoas dançando; já tinha Pilobolus, Paul Sanasardo, Antony Tudor. Eu vi muitas outras pessoas e coisas - foi uma experiência muito forte.

Quando retornei à França, eu sabia que eu não podia mais continuar trabalhando na companhia em que eu estava. Naquela época eu era membro do ballet du art contemporaine, em Amiens. Ao chegar em Amiens, eu disse aos diretores que aquela seria a minha última temporada no ballet. Então foi isso. Eu não tinha planos. Eu apenas sabia que o que havia me acontecido me provocou esse sentimento de que outras coisas deveriam acontecer, para além daquilo que eu estava fazendo naquele lugar. Logo depois disso eu recebi uma carta de Pina. Ela me perguntava se eu lembrava do projeto que ela estava pensando. Malou já tinha dito sim. Pina então me perguntou se eu me juntaria a ela, pois estava montando uma companhia em Wuppertal, na Alemanha. Ela me perguntou se eu queria fazer isso e para mim era óbvio. Digo, era claro que sim. Então, ao fim da temporada, eu deixei a França e segui para Wuppertal, no verão. Era agosto. Eu desembarquei em Wuppertal não tendo ideia sequer do que esperar, exceto que Pina estava lá. E eu não conhecia ela assim tão bem. Já sabia que estávamos nos expandindo conjuntamente. O tempo que nós passamos juntos teve um grande impacto sobre mim. Mas eu não sabia se tudo aquilo daria certo - eu apenas havia tido algumas aulas com ela. Durante o período em Saratoga, ela já apresentava uma série de problemas nas costas, devido aos movimentos. E eu apenas sabia que aquilo não era fácil para ela. Eu não estava esperando nada. Então nós começamos com a primeira peça. A primeira noite foi um programa com três coreografias, nele estava inclusa A mesa verde, de Kurt Jooss. É claro que tudo aquilo foi um grande passo para dentro dessa técnica e toda essa tradição dessa parte da Europa, essa dança alemã foi uma grande descoberta para mim - conhecer os ensinamentos de Hans Züllig e Jean Cébron, especialmente Hans Züllig, para mim, e claro, Jooss, sem saber nada dessa grande história.

Então, no programa tínhamos A mesa verde, de Jooss, e também Rodeo, de Agnes de Mille - uma outra grande faceta da história da dança ocidental que eu também não conhecia. Foi fantástico porque Agnes esteve conosco por um momento. Nós a conhecemos e pudemos trabalhar com ela. Foi muito divertido. Havia uma terceira peça no programa, de Pina, chamada Fritz. Fritz foi a primeira peça que Pina fez em Wuppertal, um espetáculo muito estranho. Contava a história de um garoto e sua família; pai, mãe e sua avó. Num determinado momento eles se tornariam uma família muito triste. Não era uma família feliz. Era como um sonho perdido. O garoto se encontraria no meio desses três membros da família. E de repente uma atmosfera fantástica tomaria conta e tornaria o quarto cada vez maior. Haveria também um grande desfile de convidados muito estranhos; gêmeos, uma mulher com barba, uma mulher que era um abajur, um abajur de mesa e um guarda-chuva, uma mulher com braços muito longos e uma mulher careca usando um vestido longo e um jovem, doente e estranho rapaz num pijama - esse era eu. Para mim foi uma experiência incrível, pela primeira vez eu havia tido uma real e verdadeira colaboração com os coreógrafos. Eles estavam trabalhando comigo como eu realmente era, de uma maneira muito pessoal. Um dia, eu estava tossindo e, de algum modo, nós pudemos trabalhar nisso para criar a dança; então, todos começavam também a tossir. Para mim foi uma muito forte e bonito. E me motivou. Durante aquela temporada também foi montada a primeira ópera de Gluck, Ifigenia auf Tauris. Foi como um grande presente, porque a música era muito bonita. Eu adoro a música dessa ópera, e sobretudo os cantos. Nós nos comunicamos e trabalhamos juntos lindamente. Estávamos fazendo isso juntos. Vários coreógrafos estavam fazendo isso já havia algum tempo, mas para mim foi uma experiência muito especial e íntima.

Marcelo de Andrade Pereira - Como o público respondia a essas peças nessa época?

Dominique Mercy - Eu creio que havia tipos diferentes de público. Primeiro, nós tínhamos que lidar com o público do ballet de Wuppertal. Eles tinham uma companhia de ballet muito clássica antes de Pina e para o público foi como colocar tudo de cabeça para baixo. Era como se eles não soubessem o que fazer com tudo aquilo que aparecia. Pina era tão diferente e eu penso que mesmo coreografias como Rodeo e A mesa verde também eram assim para eles. O público tinha se acostumado a repertórios de ballet, que tinham por muitos anos. Eu lembro que quando tudo isso começou foi muito difícil para todos, especialmente para Pina, porque ela recebia cartas e reações muito fortes, telefonemas, inclusive. Num determinado momento ela achou que sua própria vida estava em perigo; foi muito forte. Nós começamos com um público muito pequeno e acabava com um público ainda menor. Eu não me lembro quanto. Foi muito difícil. Ao mesmo tempo, havia um outro público, um público mais misturado, de pessoas que estavam interessadas no nosso trabalho. Havia também um terceiro público que, provavelmente, vinha da ópera. Não era o mesmo público do ballet. Naquele tempo havia também todos esses assinantes do teatro e outras coisas. Havia certamente um público muito grande de ópera para Ifigenia auf Tauris. Durante essa peça, o cantor se encontrava entre a plateia, no balcão, assim como o coro, também. No palco, acontecia apenas a dança; e de repente isso foi um tremendo sucesso. Então de alguma maneira nós tínhamos esses dois opostos por um certo período de tempo. Na temporada seguinte, nós montamos uma peça com a música de Mahler, outro espetáculo em que ela colocava todos nós a cantar; não havia música senão nosso canto; havia também, no mesmo programa, uma outra peça de Kurt Jooss e, por último, a coreografia de Pina para a ópera Orpheus und Eurydike, de Gluck. Assim, nós nos mantínhamos nesses dois níveis: de um lado, um sucesso incrível com a ópera, e, de outro lado, um público extremamente difícil.

Marcelo de Andrade Pereira - E o que te manteve na companhia frente a todas essas dificuldades?

Dominique Mercy - Bem, muitas coisas, porque havia também diferentes aspectos; havia algo entre nós que nos fazia reagir a essas dificuldades, alguma coisa, até onde me lembro - porque todos esses anos que se passaram cobrem tudo isso -, porque nem ela e nem nós pensávamos estar fazendo algo extra para provocar ou tentar provocar o público ou procurar por algo estranho.

Tratava-se apenas do jeito natural de pesquisar, de procurar por uma linguagem, por um meio de dizer algo, de nos colocar no palco, para compartilhar coisas; nós pensávamos que estávamos no caminho certo, de alguma maneira; não havia dúvida. Eu penso que foi muito mais difícil para Pina, porque no fim ela era responsável por tudo isso e nós não tínhamos essa responsabilidade. Digo, nós estávamos compartilhando e trabalhando juntos, mas a coisa não estava literalmente sobre os nossos ombros.

Marcelo de Andrade Pereira - Mas alguns bailarinos deixaram a companhia à época, certo?

Dominique Mercy - Assim como eu (risos). Havia, contudo, diferentes razões; é verdade. Eu penso que leva tempo para achá-las, como acontece em muitas outras companhias. Mesmo com todo o trabalho, havia ainda algumas dúvidas. Eu sempre tive muitas dúvidas e me indagava sobre isso a todo momento. Eu não briguei, mas quase discuti com Pina, porque, de vez em quando, nós não concordávamos em algumas coisas, talvez porque nós não entendíamos um ao outro. Sempre houve uma espécie de conflito dentro da companhia. Foi tão longe que eu decidi ir embora. Eu acho que era um tempo de muitas dúvidas. Jo [Josephine Ann Endicott] talvez possa lhe dizer mais sobre isso, pois ela também estava lá. Então, eu deixei a companhia e retornei para assistir algumas performances ou mesmo para fazer outras performances como convidado. Havia um tempo em que isso foi muito difícil. Pina tinha muitos problemas com a companhia.

Um dia ela disse: está certo, quem quer vir comigo e ir trabalhar no studio? Houve um momento em que mesmo ela deixou o studio para trabalhar e foi para um outro lugar em Wuppertal, que eu penso era o studio de Jan Minarik. Ele tinha uma escola de dança em uma casa em Barmen e Pina foi para lá para ensaiar. Havia apenas duas, três ou quatro pessoas; e, pouco a pouco, os bailarinos começaram a retornar; e, finalmente, fizeram a peça juntos. Não era fácil para o público e muito menos dentro da companhia. Para mim, havia também um outro aspecto, visto que eu havia começado a trabalhar com dança muito jovem. Eu realizei minha primeira temporada profissional quando eu tinha apenas 15 anos. Assim, quando entrei na companhia de Pina eu tinha quase 23 anos. Tive antes todos esses anos de juventude entre os 15 e os 22 anos. Eu nunca me arrependi, mas muito cedo eu fui como que submetido a uma disciplina, a uma agenda muito severa: aula, ensaio, intervalo, ensaio, aula, intervalo, ensaio, intervalo, ensaio, aula, dum, da rum da ra da ra. Pois, por um tempo foi completamente normal e óbvio, mas num outro momento eu tive todos esses conflitos. Eu nunca tinha me dado por conta. Eu sentia que precisava respirar um pouco, porque eu havia pulado do teatro e começado em uma companhia, e dessa companhia eu pulei para Wuppertal. Eu nunca soube, como muitos outros jovens bailarinos, o que era estar numa cidade maior, tendo as aulas que eu queria, não aulas de companhia, mas tendo aula com um professor com outras pessoas. Eu precisava também estar disponível para ver espetáculos de outros artistas, estar em uma cidade grande, em meio a um mundo agitado. Eu senti que eu tinha que me distanciar dessa rotina, desse ritmo e fazer outras coisas. Essa foi a principal razão pela qual eu deixei Wuppertal. Malou deixou a companhia comigo naquele tempo, nós éramos muito amigos à época. Então eu parti. Eu não sabia precisamente o que eu queria. Eu só sabia que eu queria estar numa cidade grande. Então eu não retornei a Wuppertal. Eu fui para Paris e lá fiquei.

Marcelo de Andrade Pereira - Quando você retornou então a Wuppertal?

Dominique Mercy - Retornei a Wuppertal na temporada de 1978. Havia ainda aquele conflito, entretanto, era uma temporada muito rica; começamos com a montagem de Renate wander aus, que era um espetáculo muito charmoso, depois que fizemos Bluebeard. Pina estava procurando por outras coisas e também alguns textos. Havia muita improvisação. Depois de fazermos Renate, Pina foi com alguns de nós para Bochum, e de lá se originou nossa primeira coprodução, com a peça Macbeth, intitulada Er nimmt sie and der hand un fürth in das Schloss, die anderen folgen. Um título bastante longo, retirado do Macbeth de Shakespeare. Esse foi um momento incrível, porque nós também fizemos Kontakthof. Eu não estava lá quando ela montou a peça inspirada em Macbeth, mas foi quando ela começou a fazer perguntas muito simples, solicitando também um movimento simples ou que o bailarino entrasse em determinado estado emocional. Ela continuava então a fazer outros tipos de perguntas referentes àquilo que a inspirava em Shakespeare, da história de Macbeth. Foi um tempo muito rico e criativo, mas ainda com conflitos, com muitas dúvidas e questões de maneira geral. Quando nós voltamos, Malou e eu, depois dessa temporada, eu havia tomado a minha decisão, e também Malou, de sair da companhia mais uma vez. Eu não sei, havia algo na atmosfera da companhia ou um conflito; algo que não nos fez reagir ou simplesmente desistir, não desistir, que seja. Eu não saberia dizer. Foi maravilhoso, porque de alguma maneira Pina sabia que nós estávamos indo embora. Por um momento não foi fácil, porque nós tínhamos uma relação muito forte e, quando amigos te deixam, isso sempre te machuca. De qualquer maneira, era algo que eu não me dava por conta naquele momento. Mas depois eu entendi e percebi que aquilo era realmente incrível e muito generoso. Todavia, ela sabia que nós estávamos indo embora, e ela nos perguntou se nós queríamos ser parte disso.

Ao mesmo tempo, foi o trabalho com a peça Macbeth. Uma vez que éramos alguns bailarinos, ela teve uma ideia com Rolf Borzik, que era seu namorado e o cenógrafo, para montar uma noite com outros coreógrafos. Então ela convidou um assistente, Hans Pop. Havia uma coreógrafa franco-romena, chamada Gigi Castigliano, e, também, Gehrad Bohner, que era um coreógrafo alemão contemporâneo. Ela então pediu que eles trabalhassem com a companhia, e montassem três pequenas e diferentes coreografias; e teve a ideia de achar um fio, algo que ligasse todas as peças; haveria, assim: um homem com óculos, um sofá e cadeiras, uma mulher com uma peruca e sapatos vermelhos. Tratava-se de algo que se poderia achar em cada uma das peças, passando por todo o programa; sendo cada um livre para usar como bem entendesse. Então, quando estávamos fazendo a peça Macbeth eles estavam trabalhando nisso e, quando nós retornamos de Macbetth, Pina perguntou a Malou e a mim, uma vez que ela queria acrescentar uma peça ao programa, se nós gostaríamos de participar. Pina sabia que nós tínhamos alguns problemas com outros bailarinos e outras coisas, mas ela disse: eu sei da situação, que é um pouco difícil e que vocês estão lutando, mas vocês aceitariam? E nós dissemos: sim, é claro. E essa peça era Café Müller.

Quando você pensa nisso é absolutamente maravilhoso ter ela sido capaz de ter dado tal passo, sabendo que nós estávamos deixando a companhia, ser capaz de tentar algo tão bonito e tão forte como Café Müller, sem saber que isso seria Café Müller. Essa foi uma experiência muito forte. De qualquer modo, nós deixamos a companhia depois disso porque eu estava em meio a uma crise muito séria. Eu realmente pensei que eu não queria fazer mais nada associado à dança. Eu queria largar tudo. Eu estava fortemente interessado no canto, mas eu não dei de fato os passos necessários para estudar numa escola ou num conservatório, alguma coisa que tivesse a ver com canto. Eu estava, contudo, tendo algumas aulas, tentando trabalhar a minha voz. Mas teve um tempo em que eu pensei que eu não queria mais dançar.

Marcelo de Andrade Pereira - E o que você fez então?

Dominique Mercy - Eu deixei Paris e segui para o sul da França. Num momento eu estava numa cidade do interior e finalmente percebi: não, eu preciso voltar, eu pertenço a outro lugar; ainda que eu adorasse jardinagem, a terra, o interior, eu sentia algo. Então, eu retornei para Paris e foi muito bonito, em ambas as vezes. A primeira vez em que estivemos lá, Malou e eu, foi quando eu conheci Carolyn Carlson. Para mim, esse foi um encontro muito importante. Ela tinha uma pequena companhia que pertencia à Ópera de Paris, uma espécie de companhia experimental. Eu esqueci precisamente o nome. Ela estava trabalhando com uma nova peça e foi muito bonito, porque alguns dos bailarinos que nós havíamos conhecido em Nova Iorque haviam deixado a cidade e se dirigido à França, tais como Jan Patarrosse, Dominique Petit, Chris Valjean. Essas pessoas trabalharam com Paul Sanasardo naquela época. Então, quando nós deixamos Wuppertal, nós nos encontramos novamente; dois deles estavam trabalhando com Carolyn Carlson. Malou e eu fomos lá, Malou não se conectou muito rapidamente, mas depois sim, e eu me senti muito confiante. Eu realmente gostava, porque era um ambiente muito arejado e novo para mim, uma nova porta pela qual passar. Foi uma experiência muito bonita e importante e Carolyn me perguntou se eu gostaria de me juntar à companhia. Eu disse: desculpa, eu realmente gostaria de trabalhar com você, Carolyn, mas eu lamento não poder. Eu recém deixei uma companhia e não quero me envolver com outra. Eu estava muito feliz e ela me manteve em seu projeto. Eu estava feliz, mas eu não sentia que eu poderia assinar um contrato e me envolver com a companhia e, por isso, eu recusei. Foi a primeira vez que eu e Malou, juntos com outros dois bailarinos, começamos a nos divertir. Passamos algum tempo no studio para criarmos com eles algo. Fizemos um pequeno grupo e nós tínhamos nosso próprio trabalho e começamos a atuar. Não foi fácil, mas foi divertido. Então, quando eu retornei a Paris na segunda vez, para uma segunda temporada, que era a última de Carolyn Carlson na Ópera, ela nos perguntou se nós gostaríamos de participar de sua última peça para a Ópera, que era construída a partir da música de Bach. Então para mim foi um outro passo de volta à dança. Ao mesmo tempo, eu fui ver os espetáculos de Pina no Theatre de la Ville [Paris]. E eu finalmente me dei por conta a qual lugar pertencia. Foi quando eu senti: sim, meu lugar é lá, ao lado de Pina; esse é o lugar a que pertenço, sim. Esse também foi o lado bom de ter deixado Wuppertal. Eu pude ver os espetáculos; então eu vi peças que me ajudaram a entender coisas que não eram óbvias ou coisas com as quais eu lutava, dentro da companhia.

De repente, eu vi a peça de fora e de fora eu vi que eu estava eventualmente dentro. Isso me fez perceber que esse era o lugar em que eu deveria estar. Então eu retornei a Wuppertal. A cada vez havia muita generosidade, apesar de ela saber e compreender que havia sido difícil. Ela não ficou feliz por termos deixado a companhia, mas ela abriu as portas mais uma vez. Nós pudemos então retornar, o que não era esperado. Isso foi em 1980.

Marcelo de Andrade Pereira - Vamos trocar um pouco de assunto? Sabemos que você se tornou codiretor da companhia com Robert Sturm, quando Pina faleceu em 2009. Você poderia nos dizer o que foi passar por aquele momento? O que aconteceu?

Dominique Mercy - Foi difícil. Em primeiro lugar foi difícil, porque era, obviamente, uma grande responsabilidade. Eu não sentia que eu teria a força necessária para fazê-lo, por isso perguntei a Robert Sturm se ele poderia fazer isso comigo. Mas a parte mais difícil, bem, eu não sei se isso foi uma boa ideia, mas eu pensei, se eu ouso tentar fazer isso eu preciso de alguém que faça comigo, alguém com quem eu possa partilhar o trabalho da sala de ensaio, o trabalho artístico e a organização. Nós fracassamos um pouco nisso, porque nós não organizamos nossas responsabilidades, se é que eu posso dizer desse modo. Nós fizemos nosso melhor, é claro, para sermos honestos e objetivos - se é que isso é possível. Esse foi provavelmente o caminho que nós tínhamos que tomar, mas foi muito difícil. Foi muito difícil, além da grande responsabilidade, porque até aquele momento, eu tinha estado sempre muito perto de Pina. Não raro as pessoas me procuravam e me perguntavam se eu poderia falar com ela, ou me encaminhavam a ela para dizer o que eu deveria dizer em seu nome. Você sabe, algo que não funcionava ou as pessoas gostariam de dizer a Pina mas que elas não se atreviam.

Seja como for, eu era um bailarino dentro de uma companhia com outros membros da companhia. De repente, eu era também o diretor, foi uma situação bem embaraçosa. Pina tinha essa capacidade de ter uma conexão muito forte com cada um de nós. Isso era muito bonito e foi provavelmente o que fez com que a companhia sobrevivesse. Cada um sabia de sua responsabilidade. Mas isso também significava que cada coisa deveria ser colocada em questão. Então foi muito difícil tomar a iniciativa ou encontrar um meio de ser democrático dentro da companhia. Ela nunca havia sido democrática, porque qualquer coisa que acontecesse, Pina era a referência, o centro da companhia. Tudo vinha dela ou se voltava para ela. E, de repente, era o mesmo tipo de estrutura, mas de modo algum comparável. Foi muito difícil, porque em certo ponto haviam alguns obstáculos ou tempestades no meio do caminho. E num determinado momento uma tempestade era maior que a outra. Eu decidi então deixar a posição, dar um passo atrás e ser apenas um bailarino novamente, para trazer o que eu poderia trazer como um bailarino com a minha história, minha memória ou o que fosse; de tentar ser parte disso, mas não mais responsável por isso. Era demais para mim. Tentar dançar, tentar ter toda essa responsabilidade, todos esses sentimentos, sensibilidade, demandas e expectativas. Sim, isso foi demais.

Marcelo de Andrade Pereira - Com a morte de Pina muitos bailarinos deixaram a companhia. Foi necessário reorganizar o trabalho? De que modo?

Dominique Mercy - Oh, sim e não, porque pessoas estão constantemente deixando a companhia, começando por mim, não começando, mas pertencendo àquelas pessoas que você conhece. Há alguns bailarinos como eu na companhia, por exemplo, Nazareth Panadero, Josephine Ann Endicott, Helena Pikon que deixaram a companhia mas retornaram. Algumas pessoas deixaram a companhia e nunca mais voltaram. Ou eles se tornaram convidados dependendo do espetáculo, porque Pina ainda queria ter um bailarino específico, pertencendo a uma peça específica. Então muito cedo todos nós tivemos que lidar com todas essas mudanças de elenco, com novas pessoas vindo. Por um período isso foi muito bom para a companhia, pois era muito enriquecedor. Quando a companhia foi criada nós éramos mais ou menos da mesma geração e com a mesma idade. Com o tempo, com a chegada de novos bailarinos à companhia, esse hiato se tornava ainda maior. Então foi muito legal ter, em um certo momento, bailarinos jovens, que ofereciam diferentes energias ou qualidades de movimentos diferentes. Isso também era muito enriquecedor para Pina. Trouxe muitas coisas novas, novas qualidades para trabalhar com e para ter novos membros. De vez em quando ela não trabalhava com os mais velhos da companhia. Era demais. Ela estava tentando combinar diferentes elencos. Alguns de nós estávamos fazendo todas as peças, mas outros eram parte de uma peça numa temporada, mas não na outra, ou talvez duas temporadas em sequência e depois não na outra. Mas você sempre tinha o instinto para criar, o sentimento para, de algum modo, continuar. Por alguns anos, depois de Pina ter falecido, nós tentamos convidar e encontrar um meio de nos manter criativos. Nós também tentamos convidar coreógrafos ou pessoas do teatro.

Marcelo de Andrade Pereira - E como foi?

Dominique Mercy - Era provavelmente cedo demais e não deu muito certo. Faltavam momentos criativos e era muito compreensível que algumas pessoas quisessem deixar a companhia e ter uma outra vida criativa ou outra dinâmica de trabalho, porque nós não sabíamos ainda para onde iríamos. E isso foi provavelmente um dos grandes desafios e o responsável por todo o conflito que se deu após a morte de Pina. Um lado disso era muito forte, de estarmos juntos e de tentar manter viva a companhia. Nós tivemos também uma grande oportunidade. Assim que Pina morreu, a cidade de pronto nos disse: não se preocupem, nós apoiaremos vocês, não haverá restrição, nós queremos que a companhia continue a existir. Isso foi muito generoso e um grande suporte da cidade, porque nós não precisaríamos lutar, ao menos não com relação a isso, depois da morte de Pina.

Marcelo de Andrade Pereira - Como nós sabemos, Pina costumava escolher seus bailarinos. Depois de sua partida, como os novos bailarinos são escolhidos?

Dominique Mercy - Bem, quando num certo momento alguns bailarinos decidiram deixar a companhia nós tivemos que fazer uma audição. Não me lembro quando exatamente fizemos a primeira. Foi provavelmente em 2012 ou na temporada de 2013. Então nós nos organizamos. Nós decidimos formar um grupo, misturando os bailarinos históricos com alguns novos bailarinos para fazer uma espécie de comitê e organizar a audição. Tudo deu muito certo, porque nós percebemos que ainda que um ou outro tivesse uma preferência diferente ou diferentes sentimentos por uma pessoa, cada um tinha olhos e sentidos muito aguçados. E, ao fim, nós percebemos isso. Em certo momento, você sentia que tal pessoa era a certa. É assim que funcionamos. Robert Sturm e eu deixamos a direção da Companhia. Então nós pedimos para Lutz Forster assumir, pois estávamos abertos para uma mudança de qualquer modo. Então, já estávamos preparando o terreno para Lutz dentro da companhia. Ele aceitou e ficou à frente do trabalho por três ou quatro anos. Então nós fizemos uma audição com o mesmo princípio. Talvez tenha sido divulgado demasiadamente, porque muitas pessoas vieram a Wuppertal. Foi difícil chegar a uma decisão. Sete ou oito de nós, incluindo Lutz, tivemos que decidir que bailarino seria admitido pela companhia. E nós ainda tínhamos a ideia de um repertório, que ainda é de algum modo difícil e um pouco diferente.

Marcelo de Andrade Pereira - Como se dá a relação entre a nova e a antiga geração? Como funciona?

Dominique Mercy - Penso que é diferente para cada um de nós. Acho que tem a ver com a perda de Pina. Para mim nunca foi um problema. Eu sempre gostei de dar as boas-vindas para os novos membros na companhia e eu nunca senti essa espécie de distância entre a velha ou a mais antiga geração e a mais jovem. Nunca foi um problema para mim. No fim nós pensamos que a riqueza da companhia se encontra justamente nessa mistura. Mas, ao mesmo tempo, sem Pina estando lá, desde a sua morte, há esse legado deixado em alguns dos bailarinos, que estiveram lá por anos, sem saber se tornou um pouco o velho e o novo, talvez inconscientemente há alguma coisa a ser percebida ou vista especialmente pelos mais jovens.

Houve um tempo em que se sentiu que isso era um pouco estranho. Mas eu penso agora, com tudo o que aconteceu e com o fato de contarmos com uma nova diretora artística, Adolphe Binder, que chegamos a um tempo em que nós temos de passar as coisas adiante mais organicamente. Pouco a pouco as coisas que as peças demandam estão se tornando cada vez mais exigentes, tal como dificuldades físicas. Você tem que perceber que existem algumas peças em que nós estávamos quando criadas e que, com os anos, nós envelhecemos. Então, é um pouco diferente, mas nós ainda atuamos em peças que criamos quando éramos mais jovens. Existe algo bonito nisso. Eu penso que também é algo muito único que nós sejamos ainda capazes de fazer essa jornada, essa jornada no tempo por meio do repertório. Há limites, ainda que você não queira. E você tem que considerar e ver eles, senti-los, nós precisamos ficar em paz conosco mesmo. Então, essa relação entre jovens e velhos está acontecendo muito mais desde que se trabalha em conjunto, um papel de transmissão e compartilhamento mais orgânico. Eu penso que agora é um pouco diferente; tem que haver um tempo em que você sente essa espécie de hiato entre dois grupos.

Marcelo de Andrade Pereira - Se você pudesse resumir o legado de Pina para a dança, o que você diria?

Dominique Mercy - Ai meu Deus. O que eu poderia dizer? Essa é uma questão muito difícil, pois existem muitas coisas a se considerar ou envolver. Digo, sobretudo há essa honestidade na procura. Há essa constante procura, mesmo quando as pessoas dizem ou quando você sente… ela está ficando no mesmo padrão. Você pode ver em cada um dos espetáculos ou bloco de espetáculos… mesmo se você não consegue explicar ou apontar. Talvez existam pessoas mais inteligentes em algum lugar capazes de apontar ou explicar, mas eu não consigo. Mas você pode sentir que há diferentes passos. Então há essa constância em toda essa procura e nesse tentar ir sempre adiante, sempre mais e mais, de alguma maneira. Eu não sei o que é o mais importante, mas existe essa conexão sem ser didático ou intelectual. Pina era tudo, menos uma intelectual. Ela nunca decidiu nada em nível conceitual. Ela sempre foi o primeiro público e isso tinha que significar algo, provocar algo para ela. Acima de tudo tinha que durar, ainda que às vezes ela dissesse: está bem, essa peça é o que é, ela foi feita, eu não posso mudá-la. Há algumas peças que ela queria mudar e que, de fato, mudou algumas coisas. Então ela continuava a trabalhar para nos tornar tão eficientes quanto possível. Em seu último ano, ela estava disposta a revisitar e mudar algumas peças antigas, alguma coisa que ela sentia que era muito longa ou muito repetitiva, coisas que ela pensava não serem mais necessárias. Ela queria como que limpar, ela não chegou a voltar às mesmas, mas queria isso de alguma maneira. O que fez disso tudo tão vivo foi provavelmente o seu modo de compartilhar e de olhar para o ser humano, eu penso. De olhar para dentro do ser humano desde fora, de se preocupar com tudo isso com o que nos preocupamos, com o qual temos de lidar, com os conflitos, perguntando por e tentando achar uma linguagem dentro disso tudo, tentando achar uma forma, mas incluindo esse olhar de dentro da humanidade. Porque quando você assiste a algumas das peças, mesmo que nunca tenha conhecido o assunto, ela estava sempre preocupada com o mundo ao redor. É por isso que digo fora e dentro do ser humano. Quando você assiste algumas peças antigas elas são tão atuais, o tema é tão atual, a forma é ainda a certa; quando você vê algumas peças e você sabe quando elas foram feitas e você olha ao redor um pouco o que você vê em diferentes palcos ou diferentes companhias ou coreógrafos atuais, você percebe que o hiato é muito grande e, mesmo assim, Pina é tão precisa, tão hoje, tão moderna de algum modo. É claro que às vezes você pode sentir que algumas peças são datadas, pois algumas coisas são datadas se você olha o trabalho todo junto, as fraquezas, mas, o que há de mais forte, é simplesmente maravilhoso, você sente isso quando você está na plateia; você sente de alguma maneira que você está no palco, dentro daquele tempo; quando você senta na plateia e o seu estômago embrulha… Seja como for, hoje assisto a tantos outros espetáculos e sempre tento achar um lado positivo. Mas no fim resta tão pouco em mim, tão pouco que eu levo comigo. Porém, quando você se senta na plateia e assiste a um espetáculo de Pina é simplesmente incrível, porque você realmente é afetado, não há nenhuma peça em que você não se sinta pessoalmente afetado em um determinado momento ou noutro, e isso é o que você está procurando, de alguma maneira.

Reference

  • GALHÓS, Cláudia. Pina Bausch - ensaio biográfico. Lisboa: D.Quixote, 2010.
  • Este texto inédito, traduzido por Marcelo de Andrade Pereira, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018
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