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Protagonismos de Corporeidades Dissidentes: processos de criação para o projeto Decolonizando Práticas Cênicas...

Protagonisme des Corporites Dissidentes: processus de création Du Project Décoloniser les Pratiques Scéniques...

RESUMO

Protagonismos de Corporeidades Dissidentes: processos de criação para o projeto Decolonizando Práticas Cênicas... – Este texto apresenta princípios fundamentais da perspectiva decolonial em possíveis intersecções com as artes do corpo. Elabora-se uma breve reflexão crítica de atividades artístico-pedagógicas que compuseram o projeto cultural Decolonizando Práticas Cênicas..., executado em 2021, cujo objetivo central foi o enaltecimento de sujeitos em dissidência e sua efetiva alçada ao status de protagonistas de videoperformances autorais. Analisam-se algumas dessas obras por meio de conceitos e práticas que permeiam as artes performativas, o giro decolonial e os estudos de gênero e sexualidade.

Palavras-chave:
Artes do Corpo; Colonialidade; Gênero; Sexualidade; Videoperformance

RÉSUMÉ:

Protagonisme des Corporites Dissidentes: processus de création Du Project Décoloniser les Pratiques Scéniques... Ce texte presente les príncipes fondament aux de la perspective décoloniale dans des intersections possibles avec les arts Du corps. Une brève réflexion critique est menée sur les activités artistico-pédagogiques qui ont constitué Le projet culturel Décoloniser les Pratiques Scéniques..., réalisé en 2021, dont l’objectif central était de faire l’éloge de sujets em dissidence et de leur élévation effective au statut de protagonistes de performances vidéo d'auteur. Certaines de ces œuvres sont analysées à l’aide de concepts et de pratiques qui imprègnent les arts de las cène, Le tournant décolonial et les études sur Le genre et la sexualité.

Mots-clés:
Arts du Corps; Colonialité; Genre; Sexualité; Vidéo performance

ABSTRACT

Protagonisms of Dissident Corporealities: creative processes for the project Decolonizando Práticas Cênicas... This text presents fundamental principles of the decolonial perspective in possible intersections with the arts of the body. A brief critical reflection is made on the artistic-pedagogical activities that made up the cultural project Decolonizando Práticas Cênicas… (Decolonizing Scenic Practices…), held in 2021, which central objective was to praise dissident subjects and their effective elevation to the status of protagonists of authorial videoperformances. Some of these works are analyzed using concepts and practices that permeate the performing arts, the decolonial turn and gender and sexuality studies.

Keywords:
Arts of the Body; Coloniality; Gender; Sexuality; Videoperformance

Há mais de década desenvolvo uma pesquisa teórico-prática que compreende questões concernentes à identidade de artistas ou alunes1 1 Tenho optado há alguns anos por usar o gênero neutro em meus discursos, sejam orais ou escritos, como uma forma de estratégia performativa que compreende a pluralidade de identidades de gênero e de sexualidades. Atualmente, existem algumas variáveis acerca do gênero neutro na língua portuguesa; com isso optei por utilizar a letra ‘e’ como um possível marcador deste debate político, para além de uma pretensão de reinventar o idioma com este artigo. Dessa forma, vocês encontrarão neste texto o uso do ‘e’ no lugar das letras ‘o’ ou ‘a’ sempre que sujeitos forem diverses. como base para a criação performativa nas diversas possibilidades das artes do corpo, considerando-se as questões geo-histórico-políticas como condição sine qua non para um complexo diálogo entre arte e sociedade. Em virtude dessa perspectiva, meus projetos pessoais, sejam artísticos, acadêmicos ou pedagógicos, tendem a refletir anseios que perpassam o debate-crítico acerca das políticas do corpo colonizado. Por meio deste texto proponho-me a desenvolver uma breve análise-reflexiva acerca de determinadas atividades artístico-pedagógicas contidas no projeto cultural Decolonizando Práticas Cênicas: processos formativos em artes, gêneros e sexualidades no Rio Grande do Sul2 2 O projeto em questão foi realizado durante os meses de abril a setembro de 2021 através do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas realizado com recursos da Lei Aldir Blanc nº 14.017/20. , coordenado por mim em 2021 e executado em duas etapas principais: o workshop online e gratuito intitulado Arte, Gênero & Sexualidade e o Festival virtual Plurais3 3 Todas as atividades do Festival virtual estão disponibilizadas gratuitamente no canal do YouTube, a saber: https://www.youtube.com/c/DanielColinDr/videos. , cuja programação artística incluiu 21 videoperformances produzidas por alunes do curso, além de conversas com convidades e debates políticos. Todas as atividades desse projeto cultural foram marcadas sobretudo por seu caráter formativo e seu enfoque transdisciplinar entre os campos das artes do corpo, do giro decolonial e dos estudos de gênero e sexualidade, considerando-se para tanto a intersecção desses campos teóricos em contextos sul-americanos.

Por uma perspectiva decolonial, pensar e fazer arte na América Latina e, neste caso específico, no Brasil, pressupõe considerarmos nossa condição sudaca4 4 Sudaca seria um termo estigmatizante incutido sobre pessoas sul-americanes, mas que tem sido reapropriado por determinades sujeitos como uma afirmação da diferença marginalizada para uma crítica anticolonial. pautada por uma lógica geo-histórico-política que ostensivamente nos relegou à marginalidade ontológica e epistêmica, como nos elucida Larissa Pelúcio (2016, p. 132)PELÚCIO, Larissa. O cu (de)Preciado – estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil. Iberic@l, Revue d’études ibériques et ibéroaméricaines,n. 9, p. 123-136, 2016.:

Na geografia anatomizada do mundo, nós nos referimos muitas vezes ao nosso lugar de origem como sendo ‘cu do mundo’, ou fomos sistematicamente sendo localizados nesses confins periféricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografia como legítima. E se o mundo tem cu é porque tem também uma cabeça. Uma cabeça pensante, que fica acima, ao norte, como convêm às cabeças. Essa metáfora anatômica desenha uma ordem política que assinala onde se produz conhecimento e onde se produzem os espaços de experimentação daquelas teorias.

Percebam que a elaboração discursiva de Pelúcio nos faz refletir sobre os processos colonizatórios do nosso país; não somente uma colonização de corpos, mas também de imaginários, subjetividades e ontologias – colonização perpetuada por séculos de discursos baseados na ego-política do conhecimento5 5 A noção de ego-política do conhecimento refere-se à ideia de centralização epistemológica em um sujeito universal, descorporalizado e des-historicizado, capaz de produzir e se apropriar de um conhecimento desde um não-lugar. Para mais informações, ler Restrepo e Rojas (2010). . Walter Mignolo (2009)MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opción decolonial). Crítica y emancipación, Buenos Aires, año 1, n. 2, p. 251-276, 2009. ISSN: 1999-8104. defende que a modernidade nos acostumou a pensar que existe apenas uma forma unívoca de compreensão da realidade, ao passo que a opção decolonial seria a forma que surge da diversidade do mundo e das histórias locais, assimilando que o problema central reside na matriz colonial de poder. Por isso que, para a opção decolonial, a problemática reside na descolonização do saber e do ser: “[...] saberes que mantienen y reproducen subjetividades y conocimientos y que sonmantenidos por um tipo de economía que alimenta lasinstituciones, los argumentos y los consumidores” (Mignolo, 2009, p. 254MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opción decolonial). Crítica y emancipación, Buenos Aires, año 1, n. 2, p. 251-276, 2009. ISSN: 1999-8104.). Mignolo reforça que o pensamento decolonial é uma opção (decolonial) de coexistência (ética, política e epistêmica) de conflito, bem como de reivindicação ao direito de reexistência em todas as ordens do pensar e do viver. De modo que tenho enfatizado tais aspectos na minha práxis na condição de artista-pesquisadorprofessor, elaborando diálogos e reflexões decoloniais acerca do corpo latino-americano em processos de criação. E aqui retomo o projeto-tema deste texto: em meio à pandemia da COVID-19, que boicotou a maioria dos meus trabalhos, a realização do projeto Decolonizando Práticas Cênicas... foi a oportunidade perfeita de não somente ser remunerado pelo meu ofício, como também de poder contratar dezenas de profissionais, em sua maioria da comunidade LGBTQIAP+, e de proporcionar para centenas de pessoas o acesso gratuito ao pensamento decolonial, a processos artísticos autorais e, consequentemente, ao debate crítico aprofundado. E, mais do que isso: foi a circunstância ideal – leia-se brecha no sistema – que encontrei para acentuar protagonismos não-hegemônicos embasados em discursos geo-históricolocalizados e, assim, auxiliar sujeitos em dissidência a vislumbrar “um outro-modo ou modo-outro de vida”, parafraseando Catherine Walsh (2015)WALSH, Catherine. Notas Pedagógicas desde las Grietas Decoloniales. Clivajes. Revista de Ciencias Sociales, Año II, n. 4, jul./dez. 2015. ISSN: 2395-9495..

Como estudo de caso, este artigo pretende analisar algumas das videoperformances produzidas por alunes do workshop “Arte, Gênero & Sexualidade” e disponibilizadas no Festival Plurais, atividades artístico-pedagógicas que compuseram o projeto supracitado, como uma reflexão-crítica acerca de possíveis processos de criação performática no Brasil que reconheçam as diferenças coloniais de sujeitos em dissidência para, a partir delas, alçar os mesmos sujeitos ao status de protagonistas de suas próprias narrativas artísticas. Por ora, entretanto, antes mesmo de adentrarmos na análise das obras, acredito que precisamos elucidar alguns conceitos e problemáticas que envolvem a perspectiva da decolonialidade e, mais do que isso, creio que devemos estabelecer quais são as pontes de relação entre os embates decoloniais e as pesquisas que envolvem as artes do corpo no Brasil contemporâneo.

O que queremos dizer ao usarmos as expressões giro decolonial e corporeidades dissidentes?

[...] estamos em Latinoamérica, ¿Cómo vamos a dar cuenta de nuestra ubicación geográfica e histórica em nuestras prácticas artísticas y políticas? De seguro no será deificando referentes cuyas producciones artístico-políticas obedecen a una visión eurocentrista (Castelli; Cavalero, 2012, s/p.CASTELLI, Rosario; CAVALERO, Lucía. Un posporno situado. Muestra de Arte Pospornográfico, 2012. Disponível em: https://muestraposporno.wordpress.com/textos/un-posporno-situado/. Acesso em: 01 jun. 2023.
https://muestraposporno.wordpress.com/te...
).

Com estas palavras, Rosario Castelli e Lucía Cavalero (2012)CASTELLI, Rosario; CAVALERO, Lucía. Un posporno situado. Muestra de Arte Pospornográfico, 2012. Disponível em: https://muestraposporno.wordpress.com/textos/un-posporno-situado/. Acesso em: 01 jun. 2023.
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nos convocam, ainda que indiretamente, a um giro performativo epistêmico em prol de ações decoloniais, tão recorrentes na América Latina nas últimas décadas. Quando escrevo ações decoloniais, com efeito, reporto-me àquelas cujas perspectivas denunciam o mecanismo de colonialidade que se estende até os dias atuais e se referem a “[...] um patrón de poder que opera a través de la naturalización de jerarquías territoriales, raciales, culturales y epistémicas, posibilitando la re-producción de relaciones de dominación” (Restrepo; Rojas, 2010, p. 15RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2010.), em perpétua centralização de subjetividades e corporeidades específicas – aqui compreendidas como hegemônicas –, em detrimento de tantas outras que são paulatinamente empurradas para as periferias do sistema mundo moderno/colonial – consequentemente reconhecidas como marginalizadas ou subalternizadas. Parece-me evidente, portanto, que a condição de precariedade em que tais sujeitos periferializades são inserides é uma construção colonial produzida com objetivos propositalmente excludentes, arraigados a processos históricos que marcam todas as subjetividades. Note que a ideia de colonialidade, nesta conjuntura, refere-se a um processo complexo, duradouro e ininterrupto no qual seguimos existindo, em que a racialização das relações de poder consiste em um padrão mundial inventado pelos europeus.

O coletivo latino-americano Modernidade/Colonialidade (M/C) se organizou em meados da década de 1990, com propostas que tangenciavam os processos coloniais em três modalidades, a constar: as colonialidades do poder, do saber e do ser. A filósofa argentina María Lugones (2014)LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014. ISSN 1806-9584. relaciona a noção de colonialidade do ser com todo um processo de desumanização de sujeitos colonizades e relembra que a lógica categorial dicotômica, imprescindível para o capitalismo, expressa-se na hierarquia separatista que distingue entre o humano e o não-humano, imposta sobre corpos colonizades por países europeus desde a colonização das Américas e do Caribe, e que veio acompanhada por outras discriminações hierárquicas dicotômicas, incluindo aquela entre homens e mulheres. Se por um lado houve a estigmatização e animalização dos povos originários das Américas, assim como de africanes escravizades, que foram todes àquela época classificades como nãohumanes, por outro, estabeleceu-se, em contraponto antagônico, o combo casal colonizador burguês branco cis-heterossexual monogâmico cristão advindo da Europa como sinônimo de humanidade e civilidade. Dentro desse pensamento distintivo, hierárquico e segregador, os animais foram divididos entre machos e fêmeas, sendo os primeiros associados à perfeição, ao passo que as fêmeas eram entendidas como uma inversão e deformação do macho; e, na dissidência desse binarismo de gênero, constatamos que “hermafroditas, sodomitas, viragos e os/as colonizados/as, todos eram entendidos como aberrações da perfeição masculina” (Lugones, 2014, p. 937LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014. ISSN 1806-9584.) – categoria à qual travestis e sujeitos trans também foram colonialmente enquadrades. Daí que Lugones conceitualiza como colonialidade de gênero aquilo que se estabelece quando existe o acentuamento da opressão de gênero, com especial atenção às questões interseccionais que, segundo sua perspectiva, aludem à combinação dos processos de racialização, colonização, exploração capitalista e heterossexualismo. Podemos afirmar com isso que o regime cisheteronormativo, tantas vezes defendido como algo unívoco e inato, é, portanto, uma das estruturas discursivas que sustentam o sistema hegemônico colonial e patriarcal em que (sobre)vivemos. Perceber tal estrutura, denunciá-la e resistir a ela é por si só uma prática decolonial.

Quando intencionamos discutir especificamente as sexualidades e os gêneros marginalizados por esta estrutura colonial, com frequência seremos cooptades pelo discurso queer como ferramenta teórica para o debate crítico, porém, sem querer menosprezar os êxitos da teoria queer estadunidense, há que se problematizar as formas pelas quais tal movimento foi assimilado na América Latina, de modo que não invisibilize ainda mais subjetividades e existências sudacas já marginalizadas. Por compreender que o queer “não tem a mesma ressonância em todos os lugares” (Ochoa apud Pelúcio, 2016, p. 126PELÚCIO, Larissa. O cu (de)Preciado – estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil. Iberic@l, Revue d’études ibériques et ibéroaméricaines,n. 9, p. 123-136, 2016.), Larissa Pelúcio se propôs a pensar algumas possibilidades epistêmicas acerca das torções da teoria no Brasil, já que a “pretensão universalizante” (Pereira apud Sousa Júnior, 2014, p. 56) dos conceitos queer revelaramse insuficientes se confrontada ao contexto das práticas no Brasil. Por isso, a pesquisadora sugere uma nova designação para o queer: teoria cu, uma epistemologia situada geopoliticamente:

Assumir que falamos a partir das margens, das beiras pouco assépticas, dos orifícios e dos interditos fica muito mais constrangedor quando, ao invés de usarmos o polidamente sonoro queer, nos assumimos como teóricas e teóricos cu. [...] Falar em uma teoria cu é acima de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas contribuições tão impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pensar com elas, mas também de localizar nosso lugar nessa “tradição”, porque acredito que estamos sim contribuindo para gestar esse conjunto farto de conhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e geopolíticas também (Pelúcio apud Pelúcio, 2014, p. 31PELÚCIO, Larissa. Breve história afetiva de uma teoria deslocada. Revista Florestan, Ano 1, n. 2, p. 26-45, 2014.).

Pensar em uma teoria cu implica admitir nossas marcas históricas e culturais – leiam-se feridas coloniais –, que cumprem papel fundamental na territorialização dos discursos do Sul como periferializados ao sistema de saber hegemônico, para pensarmos fora das dicotomias que enaltecem certas partes do corpo (cabeça) como órgãos-verdades em detrimento de outras partes (cu) e que politicamente perpetuam desigualdades subjetivas e simbólicas, conforme discorri anteriormente. Cito Larissa Pelúcio aqui como referência, mas de fato a discussão queer tem tomado outras proporções na América Latina, salientando um território sexopolítico de fricção conceitual: pesquisadores e artistas como Érica Sarmet, Pêdra Costa, Tertuliana Lustosa, Bruna Kury, Thy Angel e Sara Elton Panamby também são exemplos de sujeitos dedicades à discussão conceitual e empírica pela qual o embate entre a teoria queer e os neologismos cuir/kuir/tropicuir tem transitado. O uso de tais neologismos configura-se como uma estratégia política de denúncia do caráter higienista propagado pela teoria queer na América Latina, sobretudo em contextos acadêmicos, e evidencia aquilo que Jota Mombaça (2015, s/p)MOMBAÇA, Jota. Pode um cu mestiço falar? Medium, 2015. Disponível em: https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-cu-mestico-falar-e915ed9c61ee. Acesso em: 01 jun. 2023.
https://medium.com/@jotamombaca/pode-um-...
chamou de “fenômenos da dissidência corpo-política nos trópicos” e que faz recordar de aspectos debatidos por Felipe Rivas San Martín acerca da noção de “dissidências sexuais”, a qual

[...] nos retira dessa lógica multiculturalista inócua, neste momento já muito perto do discurso do Estado, e também não é simplesmente uma repetição de um discurso norte-americano do queer, de um discurso metropolitano hegemônico. Ao mesmo tempo, dissidência é pós-identitário porque não fala de nenhuma identidade em particular, mas põe o acento na crítica e no posicionamento político e crítico (San Martin apud Colling, 2019, p. 16COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019. P. 11-40.).

Para o autor chileno, a dissidência sexual se localiza nas margens da margem, nos limites radicais de uma periferia sexual que se arrisca ao aproximar-se do espaço reservado para a norma, no centro do poder colonial. A “Dissidência Sexual” utilizada pelo pesquisador corresponde ao nome sob o qual se articulam uma série de práticas políticas, estéticas e críticas e, não obstante, foi tomada emprestada por Leandro Colling (2019)COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019. P. 11-40. na conceitualização do que o autor denominou como “artivismo das dissidências sexuais e de gênero”, considerando que o conceito artivismo deve ser compreendido como “causa e reivindicação social e simultaneamente como ruptura artística” (Raposo apud Colling, 2019, p. 13COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019. P. 11-40.). Colling (2019, p. 31)COLLING, Leandro. A emergência e algumas características da cena artivista das dissidências sexuais e de gênero no Brasil da atualidade. In: COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA, 2019. P. 11-40. reconhece uma franca efervescência dos artivismos das dissidências sexuais e de gênero nessa última década na América Latina e, a despeito das diferenças existentes nos trabalhos de coletivos e artistas das cenas artivistas em questão, o autor constata que, em tal artivismo “[...] o corpo das pessoas artistas não é um suporte para a arte – o corpo já é a sua arte” ou, dito de outro modo, a produção artística das dissidências sexuais e de gênero utiliza o corpo e a performatividade de gênero de artivistas como argumento fundamental para a criação.

Em termos de categorizações, agrada-me a proposta de Colling, de pensar uma cena artivista pelo viés das dissidências sexuais e de gênero, porque percebo o artivismo em uma acepção que compreende a arte como manifesto vinculado diretamente com seu entorno, por meio de uma relação complexa de arte-sociedade que lhe caracteriza como prática liminar, pois, assim como Ileana Caballero (2011, p. 22, grifos da autora)CABALLERO, Ileana. D. Cenários liminares: teatralidades, performances e política. Uberlândia: EDUFU, 2011. defende, “[...] interessa-me insistir na liminaridade como antiestrutura que coloca em crise os status e hierarquias, associados a situações intersticiais, ou de marginalidade, sempre na beira do social e nunca fazendo comunidade com as instituições”. Aproprio-me dessas concepções e busco vínculos com o convite de Pelúcio para (re)pensarmos uma teoria cu que provenha da nossa condição dissidente de cucarachas. Para além de esteticismos e elitismos, as artes do corpo podem – e devem! – optar pelo giro decolonial e conectar-se às corporeidades em dissidência para, assim, colaborar na proliferação de protagonismos insurgentes e na ressignificação de espaços e relações de poder.

Alguns possíveis cruzamentos entre a opção decolonial e as artes do corpo no Brasil

[...] vejo a arte do teatro como ferramenta de autoconhecimento: um corpo esmiuçado, que ousa se autoconhecer, se acariciar, saber o que lhe dá prazer e o que lhe repulsa, é um corpo vivo, um corpo tocante. [...] É um veículo de comunicação sensorial e subjetivo e, exatamente por isso, subversivo (Cassapo, 2021, s/p.CASSAPO, Carla. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.).

Elisa Belém (2016a;BELÉM, Elisa. Afinal, como a crítica decolonial pode servir às artes da cena? Ilinx – Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, n. 10, p. 99-106, 2016a. ISSN: 2316-8366. 2016bBELÉM, Elisa. Notas sobre o teatro brasileiro: uma perspectiva descolonial. Sala Preta, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 120-131, 2016b. ISSN: 2238-3867.) é uma das pesquisadoras brasileiras que tem pensado pontes factíveis entre as artes do corpo e o giro decolonial. Para a autora, a abordagem decolonial busca distanciar a perspectiva da colonialidade de uma geo-política do conhecimento e erige uma visão crítica sobre os processos de definição de colonialidades do poder, do saber e do ser, que interferem na subjetividade ao se fundarem como um panorama de fundo nas relações em sociedade, evidenciado pela ferida colonial. Belém afirma que a ferida colonial é uma consequência do discurso de raças e estaria entrelaçada a um senso de inferioridade incutido nos povos colonizados, silenciados por séculos pelo controle europeu de conhecimentos e de subjetividades, e que a reversão dos processos de exclusão e silenciamento passam em primeira instância possivelmente pela visibilização da colonialidade de poder que constitui tais processos; algo que pode ser impulsionado pelas artes da cena, tendo em vista que elas “[...] trabalham exatamente com práticas que privilegiam as ações afetivas contribuindo para que o próprio indivíduo ou a sociedade reconheça aquilo que cerceia a expressão e comunicação humana, ou seja, possíveis silenciamentos” (Belém, 2016b, p. 122BELÉM, Elisa. Notas sobre o teatro brasileiro: uma perspectiva descolonial. Sala Preta, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 120-131, 2016b. ISSN: 2238-3867.) – silenciamentos estes que podem, inclusive, tratar de questões de gêneros, sexos e sexualidades.

Refletindo acerca das atividades formativas do projeto Decolonizando Práticas Cênicas..., podemos perceber que elas foram planejadas com o intuito de minimizar tal “senso de inferioridade” (Belém, 2016aBELÉM, Elisa. Afinal, como a crítica decolonial pode servir às artes da cena? Ilinx – Revista do LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, n. 10, p. 99-106, 2016a. ISSN: 2316-8366.), contra tal processo histórico de silenciamento de corpos e subjetividades, conforme poderemos compreender na análise crítico-reflexiva de algumas ações que compuseram as primeiras duas atividades artístico-pedagógicas do projeto em si – o workshop e o Festival. O workshop Arte, Gênero & Sexualidade foi idealizado a partir das minhas experiências anteriores como professorartista-pesquisador e na inter-relação existente entre práticas performativas e estudos de gêneros e sexualidades. Quando digo que pesquiso práticas performativas, quero com isso salientar em meu trabalho a noção de performatividade, que “[...] age diretamente no coração e no corpo da identidade do performer, questionando, destruindo, reconstruindo seu eu (moi), sua subjetividade, sem a passagem obrigatória por uma personagem” (Féral, 2009, p. 207FÉRAL, Josette. Performance e performatividade: o que são os Performance Studies? In: MOSTAÇO, Edélcio; OROFINO, Isabel; BAUMGÄRTEL, Stephan; COLLAÇO, Vera (Org.). Sobre performatividade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009. P. 49-86.); noção esta imprescindível para a execução das artes da cena contemporâneas. O workshop foi composto por 12 encontros interdependentes e realizados entre os meses de maio e junho de 2021, sempre em caráter virtual e online, e ministrado majoritariamente por mim, com o auxílio de Hênrica Ferreira como minha monitora e com a participação especial de quatro ministrantes convidades, a saber: Elena Trindade, Silvana Rodrigues, Thais Fernandes e Xico Tuchtenhagen.

A turma do workshop foi composta por 40 participantes de diversas cidades brasileiras – e inclusive algumas do exterior –, todes escolhides por meio de uma seleção aberta via internet. O fato de que alunes advieram de diferenciadas localidades fez-se importante, porque acredito piamente que as situações geo-histórico-políticas nas quais cada sujeito da turma estava localizade colaborou no aprofundamento do debate decolonial de forma imprescindível, tendo em vista que cada participante pôde se (re)territorializar para elaborar seus discursos a partir de seus próprios lócus de enunciação6 6 O conceito lócus de enunciação pode ser compreendido como a localização geopolítica e corpo-política do sujeito que fala, segundo Ramón Grosfoguel (2006). , levando-se em conta suas existências situadas nos locais onde (sobre)vivem como condição sine qua non para a compreensão da potência corpo-política envolvida. É de extrema relevância relembrarmos que a noção de corpopolítica do conhecimento, tão cara ao giro decolonial, pressupõe que todo conhecimento é situado e que essa situacionalidade enfrenta relações de poder inscritas no corpo do sujeito, como bem elucida Ramón Grosfoguel (apud Restrepo; Rojas, 2010, p. 140RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2010.), ao definir que

[...] siempre hablamos desde un lugar en particular em las estructuras de poder. Nadie escapa a la clase, lo sexual, el género, lo espiritual, lo lingüístico, lo geográfico y las jerarquías raciales del ‘sistema mundo moderno/colonial capitalista/patriarcal’.

Tomando a afirmação de Grosfoguel, provoquei todes os/as participantes do workshop, já no nosso primeiro encontro, e logo após conversarmos sobre os textos acadêmicos indicados à turma para leitura, a se apresentarem umes para outres, a partir da indagação pretensamente simples: “Quem é você?”, mas desafiando que a resposta deveria ser dada não como uma retórica verbal, mas como uma manifestação performática, de duração aproximada de dois minutos. A maioria de alunes então optou por apresentar trabalhos registrados em vídeo no próximo encontro e já ali me surpreendi tanto com os aspectos discursivos e decoloniais levantados (críticas à masculinidade hegemônica, às opressões de gênero e sexualidade, aos privilégios eurocentrados, para citar alguns exemplos), quanto com as características estilísticas utilizadas nos vídeos, alguns deles com exímio apuro técnico. Nessa primeira provocação, fomos apresentades a debates deveras plurais, que transitaram por temas como feminilidades, memórias, sexualidades dissidentes, violências de gênero, religião, corpos com deficiência dentre outros assuntos. Em sua maioria, a turma demonstrou estar bastante apropriada das diferenças coloniais que têm marcado suas vivências há décadas; por diferenças coloniais refiro-me ao conceito que se configura como o resultado da lógica que consiste em categorizar grupos de pessoas e identificá-las em suas faltas ou excessos, o que determina a diferença e inferioridade em relação a quem classifica. E, mais do que isso: o coletivo mostrou-se disposto a experimentar práticas a partir da habitação dessas diferenças, expressão que tomo emprestada de María Lugones (2014, p. 942)LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, set. 2014. ISSN 1806-9584., quando ela explica que habitar a si mesmo refere-se ao ato em que o/a sujeito subalternizade passa a habitar um lócus fraturado, “[...] construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os ‘lados’ do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla”. A autora enfatiza a fratura no lócus de enunciação tendo em vista que ela advém da subjetividade ativa de colonizades contra a invasão colonial através da sua presença, que resiste. Habitar a diferença colonial, para mim, estabelece uma forma viável de superação dessa diferença, ou ao menos de visibilização das relações de poder ocultas por trás da demarcação de tais diferenças, num processo individual no qual cada alune se reconhece como possível protagonista de suas narrativas; protagonismo este eclipsado por séculos de silenciamentos, invisibilizações e marginalizações de corpos não-conformados à lógica colonial. Algumas das performances apresentadas, inclusive, foram revisitadas e aprofundadas no trabalho final que integrou o Festival Plurais, conforme explicarei a seguir, como foi o caso da obra Ovos Moles, de Carla Cassapo, um experimento mostrado de forma embrionária já no segundo encontro. Cassapo reconhece os pontos discursivos e temáticos que sedimentaram seu trabalho, tanto na fase inicial quanto no decorrer do workshop, quando constata que

[...] sou uma imigrante europeia e venho de um país com o qual me identifico em vários aspectos culturais e que, ao mesmo tempo, foi o (ir)responsável pela colonização/invasão do Brasil. [...] A performance Ovos Moles foi o meu autodesafio para falar sobre inquietações que estão presentes neste momento da minha vida [...]: exposição, identidade portuguesa, sexualidade/pornografia mainstream, religião, colonização, apropriação, abuso, prazer e o uso do humor em cena (Cassapo, 2021, s/p.CASSAPO, Carla. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.).

Por meio dessas palavras de Carla, podemos reconhecer e exemplificar o quanto o exercício performático proposto com a questão “Quem é você?” foi capaz de gerar reflexões e reverberações acerca dos privilégios e inferioridades a que determinades sujeitos são territorializades neste sistema mundo moderno/colonial, ainda que façam parte de certas categorias privilegiadas. É importante salientar que tal constatação de Carla apresentou-se de forma semelhante nos discursos de outres participantes do workshop, conforme exposto pela turma em conversa ocorrida no segundo encontro, o que permitiu ao coletivo se observar e se identificar dentro desse sistema colonial, gerando empatia entre todes.

Protagonismos de corporeidades dissidentes no Festival Plurais: 21 corpos em 21 videoperformances

Ao final do workshop, todes alunes foram convidades a produzir videoperformances autorais que dessem conta dos aportes teóricos e dos referenciais práticos utilizados durante os 12 encontros, a partir dos quais cada participante pôde reavaliar suas vivências do dia a dia. Tais vídeos foram incluídos na programação do Festival Plurais, um espaço virtual composto por debates, bate-papos e mostra artística. A produção de videoperformances autorais foi de inteira responsabilidade de cada criadore, assim como foilhes dada a liberdade de optar por produzir o material videográfico ou não. As diretrizes definidas pelo grupo para a produção de cada videoperformance determinavam que as obras deveriam: 1) partir dos conceitos abordados no workshop; 2) referenciar os lócus fraturados de cada autore; 3) durar no máximo três minutos; 4) atentar-se às normas do site YouTube, em relação às questões de direitos autorais, nudez ou conteúdos sexuais7 7 Tal item foi amplamente problematizado nos nossos encontros, acerca dos limites existentes entre censura, liberdade artística e mercado cultural, mas optamos por buscarmos estratégias estilísticas que nos permitissem utilizar a plataforma YouTube para a veiculação das obras. . As 21 videoperformances produzidas pela turma foram: Auto – “P” – seeyah (RS), de Alexandre Azevedo; Como eu vim parar aqui (RS), de Mariana Rizzo; M.Ã.E. (RS), de Fernanda Possamai; Ame, Sobreviva, Repita (MG), de Flavio de Mesquita Guimarães e Lorene Vilaça; Receita (RS), de Bruna Pavan; O João Freire chora (mas também ri) (RJ), de João Freire; Tempo Solo Solo Tempo (SC), de Taís Mattos; butterfly (RS), de Denis Gosch; Anjo (RS), de Jackson Reis; Paredes (RS), de Lucas Tegner; Ovos Moles (RS), de Carla Cassapo; Mulher Porca (RS), de Maiara Cemin; Sede (RS), de Julio Zaicoski; O Avesso do Corpo-Caixa (RS), de Clarissa Brittes; Dicotômica (RS), de Sarah Baes; BRAZIU (MG), de Pablo Abritta; QUIBOLDOBOM (RS), de Ketelin Abbady; Naquele Lugar (RS), de DIONNY; Não consigo ver seus ossos (RS), de Eva Carpa; Fluidos (RS), de Darlan Gebing; Eu não sei costurar, lembra? (MG), de Gabriel Bittencourt.

Considerando-se depoimentos e entrevistas com participantes do workshop, pude perceber que o objetivo principal do Festival – enaltecer protagonismos dissidentes – foi ampliado, com o debate decolonial se entrelaçando com temas como políticas públicas, saúde, educação, acessibilidade, negritude, dentre outros. Apesar de querer descrever todas as atividades contidas no Festival, optarei por me dedicar a fazer uma breve análise de algumas das 21 videoperformances, pois creio que a mostra artística pode ser considerada uma sinédoque do Festival, o qual, como bem percebe DIONNY (2021, s/p)DIONNY. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista., um dos artistas-criadores, “[...] deu espaço a corpos, histórias e temas que a mídia (e não só ela) não tem dado espaço. Não posso deixar de citar o lindo trabalho do Jackson [Reis], que também fala sobre sexualidade de pessoas com deficiência física. Foi a primeira vez que assisti a um trabalho com este tema”. Tal afirmação faz referência à videoperformance Anjo, de Jackson Reis, na qual o artista tanto faz uma crítica às formas como a sociedade infantiliza, assexualiza ou mesmo higieniza os corpos com deficiência, como também consegue abrir nossa reflexão para percebermos que tais corpos também têm direito a usufruírem de suas sexualidades a seu bel prazer, sejam elas hegemônicas ou não.

E, para não nos atermos exclusivamente às benesses trazidas ao Festival por Anjo, faz-se importante registrar que tivemos em Plurais outros 20 trabalhos, cuja profusão de temáticas, bem como de estéticas, só fortaleceram o caráter de pluralidade almejado para o evento. Cada obra lidou de forma autônoma com aspectos que eram urgentes nas vivências de artistascriadores e, com isso, obtivemos uma diversidade ímpar de protagonismos, discursos e temas, como: a questão da memória e da ancestralidade como fontes impulsionadoras para a criação (percebidos nas obras Como Eu Vim Parar Aqui, Paredes e Eu Não Sei Costurar, Lembra?); as críticas ao conservador e violento ex-governo federal (BRAZIU e Mulher Porca); os aspectos referentes ao corpo das mulheres, seja pela perspectiva da maternidade (em Tempo Solo Solo Tempo e M.Ã.E.), pela ótica da sexualidade feminina ou da objetificação da mulher (em Mulher-Porca, Ovos Moles, QUIBOLDOBOM e Dicotômica), pelos parâmetros dos padrões sociais (Eu Não Vejo Seus Ossos) ou ainda pelo tópico da liberdade de escolhas, muitas vezes proibida a estes sujeitos (em Receita e O Avesso do Corpo-Caixa); alguns aspectos referentes às performatividades e subjetividades das bixas afeminadas (constatado em butterfly, Sede, Naquele Lugar e Eu Não Sei Costurar, Lembra?); ou ainda o destaque às violências sexuais ou de gênero (em Paredes, Sede, butterfly e Dicotômica), dentre tantas outras temáticas decoloniais que poderíamos listar e que problematizam as diferenças coloniais que cada performer se decidiu confrontar.

Como reconhece Maiara Cemin (2021, s/p)CEMIN, Maiara. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.: “As videoperformances deram espaço para as pautas identitárias na arte, criando um lugar para ser ocupado pelas minorias em direitos. [...] são criações afirmativas e de representatividade, que se tornam resistência no atual contexto brasileiro”. Percebam que Maiara assente o quanto os discursos trabalhados por artistas da mostra estão intrinsecamente conectados às políticas públicas do Brasil contemporâneo, realçando uma enérgica crítica às imposições coloniais defendidas pelo governo bolsonarista em vigor àquela época. Concluo com isso que o autorreconhecimento performativo individual, que possibilitou a cada artista produzir sua videoperformance, configurou-se como elemento fundamental à crítica social geo-historicamente situada. O mais potente, entretanto, é o fato de que esses corpos em dissidência tiveram a oportunidade de reconhecer suas diferenças coloniais, como algumas das supralistadas, para, a partir delas, poderem insurgir-se artisticamente contra o sistema, pois “repensar el mundo moderno/colonial desde la diferencia colonial modifica presupuestos importantes em nuestros paradigmas” (Grosfoguel, 2006, p. 30GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización de la economía política y los estúdios postcoloniales: transmodernidad, pensamento fronterizo y colonialidad global. Tabula Rasa, Bogotá, n. 4, p. 17-48, enero-junio 2006. ISSN: 1794-2489.). Por esse motivo que, às artistas-criadores dos vídeos, foi instigada a vontade de mergulhar em suas próprias memórias, ancestralidades e vivências pessoais, como ponto nevrálgico para a criação artística performativa decolonial.

Um dos aspectos mais imprescindíveis para compreendermos como se deu o protagonismo desses corpos em dissidência na produção das videoperformances refere-se, justamente, aos procedimentos que condicionaram as suas criações. Para além de uma reflexão temática, foi importante reconhecermos o caráter de liminaridade envolvendo cada um dos processos em questão, tendo em vista que todes performers refletiram acerca das suas diferenças coloniais e expuseram suas próprias corporeidades e subjetividades como elemento principal dos vídeos, muito influenciades pelas atividades desenvolvidas durante o curso. Quando Lucas Tegner, por exemplo, articula o vídeo Paredes sobre resquícios e marcas de um abuso sexual vivido quando ainda era uma criança, ainda que de forma bastante lírica e visualmente delicada, somos de fato confrontades com espaços intersticiais nos quais arte e vida dialogam e se impulsionam, alçando o artista a um status liminar por excelência e propiciando diversos questionamentos sobre opressões de gênero e violências sexuais, sobretudo se considerarmos seu corpo transmasculino, diferença colonial que o mantém inferiorizado à norma hegemônica.

Cabe aqui pensarmos os modos pelos quais a noção de dissidências engloba tanto os já citados artivismos de gêneros e de sexualidades, como também abraça outras categorias que vão além dessas caixinhas e se abrem para as interseccionalidades que pontuam a existência de determinade sujeito. Se concordarmos com Atilio Rubino (2019, p. 62-63)RUBINO, Atilio. Hacía una (in)definición de la disidencia sexual: una propuesta para su análisis en la cultura. Revista Luthor, n. 39, p. 62-80, fev. 2019., que compreende as dissidências sexuais como “[...] aquellas expresiones de sexualidad que cuestionan el régimen heteronormativo y la matriz heterosexual. Pero también a aquellas manifestaciones normativas de la sexualidad no heterosexual, es decir, la homonormatividad”, seremos provavelmente instigades a fazer novas analogias desse pensamento com categorias sociais outras, que marcam corporeidades em suas diferenças sociais e que, por também questionarem o padrão hegemônico e os dispositivos de poder, poderiam perfeitamente ser consideradas dissidentes: corpos gordos, velhos, soropositivos, com deficiência e por aí segue uma infinidade de sujeitos e subjetividades. E é no justo reconhecimento e empoderamento dessas diferenças coloniais que a base do trabalho performativo de protagonização se dá para tais corpos em dissidência.

Evidentemente que desenvolver a análise de todas as videoperformances demandaria um espaço textual que infelizmente não possuo neste momento, mas contentar-me-ei com a possibilidade de referenciar algumas dessas obras como exemplos dos protagonismos em dissidência, no que tange a aspectos de gêneros ou de sexualidades. Fica desde já o convite para que vocês assistam a todos os trabalhos, que seguem disponíveis no YouTube, e tirem suas próprias conclusões, deixando-se levarem por sensações, reflexões e emoções que a experiência plural possa lhes proporcionar. Por ora, quero salientar que quando Taís Mattos, por exemplo, verbaliza que o que a impulsionou a criar seu trabalho final intitulado Tempo Solo Solo Tempo foi “uma vontade louca de gritar que não existe romantização nem beleza em ser uma mulher sobrecarregada” (Mattos, 2021, s/p.MATTOS, Taís. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.), há de se perceber que esse discurso não somente se reflete nas escolhas políticas da artista, em pensar uma obra de alto teor feminista, expresso inclusive no texto proferido em off (ouvimos: De santa não tenho nada, mas pareço santa aos olhos dos meus filhos), como também nas opções estéticas, que englobam a fotografia de determinadas cenas em preto e branco, os enquadramentos e takes escolhidos, os quais privilegiam imagens de liberdade, ou mesmo o uso do discurso da trilha sonora que encerra o vídeo, a canção Minha Força, de Kaê Guajajara (ouvimos: Ah, se eu soubesse sempre da força que carrego, fico tipo um cavalo sem entender a força que eu tenho). Praticamente todas as escolhas estético-linguísticas de Taís na produção de sua obra direcionam nossa percepção ao protagonismo de uma mulher/mãe solo/madura que não pretende romantizar aspectos clichês reforçados pelas mídias e pelo capitalismo acerca da maternidade ou dos padrões exigidos a uma mulher de meia idade, o que me parece fazer coro aos ativismos de grupos invisibilizados e inferiorizados descritos por Stela Fischer (2017, p. 20)FISCHER, Stela Regina. Mulheres, performance e ativismo: a ressignificação dos discursos feministas na cena latino-americana. 2017. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. em sua tese, compostos por mulheres indígenas, negras, latinas, mestiças, imigrantes e periféricas que “[...] aparecem no pensamento decolonial como categorias fundamentais no enfrentamento às colonialidades”. O próprio fato de presenciarmos o protagonismo de uma mulher cisgênero mãe solo latino-americana nãojovem, que desafia normas etaristas preservadas pelo status quo e por dispositivos midiático-semióticos, já é algo extremamente relevante para que possamos renovar nossos olhares acerca das corporeidades presentes em materiais audiovisuais a que com frequência assistimos. A própria Taís observa, ao fazer um balanço dos protagonismos dissidentes encontrados em Plurais, que o que se destaca seria “[...] exatamente essa vontade de botar pra fora tamanha sensibilidade, cansaço de se mostrar forte, diante de uma sociedade opressora, que condena e massacra o que não é igual a tudo que eles julgam ser certo!” (Mattos, 2021, s/p.MATTOS, Taís. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.). Notem que a artista salienta aspectos sociais que ela mesma reconhece como característicos de uma sociedade colonial sobre corpos não-hegemônicos.

Partindo das palavras de Taís sobre “o que eles julgam ser certo”, seguramente um dos aspectos mais desviantes para nossa sociedade cisheteronormativa seja concernente às sexualidades dissidentes, tema utilizado por DIONNY como norteador de sua obra, intitulada Naquele Lugar. Nesse vídeo, o artista expõe sua própria homossexualidade, confrontando-a sobretudo à segregação colonial de corpos preservada por discursos evangélicos, e constatado por nós na evocação das memórias do artista referentes a um período opressivo em sua vida: “lembrei de quando era criança e quando me empurraram pra dentro de um modelo de masculinidade hegemônica, e também de como sofri com aquilo, como refletiu e ainda reflete em mim” (DIONNY, 2021, s/p.DIONNY. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.). O artista, para realizar sua crítica às imposições cristãs sobre os corpos dissidentes, utiliza-se de recursos como áudios de pastores proferindo palavras potentes, da ressignificação de imagens sacras e textos narrativos em off, reforçando a imposição de um corpo-bixa como protagonista no exorcismo de imposições catequizantes que reverberam desde as invasões europeias em nosso território. O protagonismo do corpo-bixa em Naquele Lugar se estabelece como um giro performativo à estigmatização que o homem efeminado sofre no Brasil, levando-se em consideração que a média brasileira ainda segmenta os homens que se envolvem em relações homoeróticas em dois grupos: um primeiro englobando o homem, epítome do homem verdadeiro, sujeito ativo da relação, o penetrador anal; e um outro grupo abarcando a bixa, sujeito efeminado e passivo, a boneca, aquele que é penetrado pelo cu. E pior: “gosta disso!”. Evidente que esta distinção, binária e antagônica, eclipsa uma grande variedade de outras possibilidades de identidades de gênero e de sexualidades, revelando uma correlação direta com o padrão homem (sujeito ative) e mulher (sujeito passive) – e todas as suas relações hierárquicas de poder contidas nessa cisheteronorma difundida pelo senso comum. Daí a importância de reversão simbólica de tal padrão colonial que inferioriza sujeitos feminizades ou, mais do que isso, que execra tudo aquilo que se refere à feminilidade em si.

No que tange ao corpo-bixa, outro trabalho cuja tônica transita pela performance de masculinidades dissidentes é butterfly, de Denis Gosch, no qual o artista faz uma reflexão acerca das masculinidades hegemônicas no Brasil, utilizando-se para tanto, como DIONNY, de sua diferença colonial como sujeito bixa – o próprio vídeo inclusive se inicia com três definições do dicionário para a palavra anglófona butterfly, dentre as quais destaca-se o termo afeminado. A fim de pontuar sua crítica, o artista toma como referência todas as ideias contidas naquilo que Paul B. Preciado (2018, p. 131)PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018. chamou de “[...] alguns códigos semióticos-técnicos da masculinidade heterossexual branca pertencentes à ecologia política farmacopornográfica do pós-guerra”, como por exemplo: “Bruce Willis, a operação Tempestade no Deserto, a velocidade, o terrorismo, o sexo pelo sexo, ficar de pau duro como Ron Jeremy, saber beber, ganhar dinheiro, Rocky, Prilosec, a cidade, o bar, as putas, o boxe, a garagem, a vergonha de não ficar de pau duro como Ron Jemery, Viagra, câncer de próstata”.

Listo acima apenas uma parte de tais códigos, mas saibam que o autor espanhol elenca outros tantos na intenção de estabelecer – e debochar de! – um padrão característico à hegemonia masculina em nossa sociedade; padrão este bastante naturalizado pelo imperialismo midiático estadunidense e tido como algo unívoco. Denis, em sua videoperformance, recita todos os códigos listados por Preciado em off, enquanto apresenta seu próprio corpo por meio de close ups e enquadramentos que em muito remetem à estética pornográfica mainstream, sobretudo nas imagens iniciais, em que não conseguimos distinguir quais partes do corpo estão sendo mostradas (Imagem 1), bem como na ênfase ao líquido viscoso roxo e purpurinado que escorre sobre o rosto e o corpo do performer, que também nos alude ao cumshot, um dos planos mais cruciais da pornografia comercial, centrada no arremesso do sêmen do sujeito ativo sobre o corpo de passives. Contudo, parece-me nítida a intenção do artista de carnavalizar a estética pornô para, assim, apresentar uma contraproposta política a ela, que mais provoque do que explicite, que mais questione do que afirme, por meio de uma corporeidade afeminada que problematiza os códigos semióticos de masculinidade, reiterados inclusive na canção que permeia toda a videoperformance: Guri, de César Passarinho, cantada à capela por Beta Ribeiro, evoca a tradição gaúcha que habitualmente enaltece normas estandartizadas de masculinidade. Ao final da videoperformance, Denis arranca de si o líquido roxo já endurecido sobre sua epiderme, como se estivesse trocando de pele ou livrando-se de tudo que lhe foi lançado, como um ato de transmutação. E lembramo-nos da terceira definição para butterfly apresentada ao início do vídeo: transmutar. O corpo-bixa de Gosch assevera que não há o que seja feito, a borboleta sempre sairá do seu casulo, em devir-metamorfose, para enfim poder voar livremente. butterfly representa, a partir de uma passagem traumática na vida pessoal do performer – bullying escolar –, uma obra artística potente sobre o desabrochar simbólico de autoaceitação da bixa afeminada, apesar das violências sociais que sofre diariamente.

Imagem 1
Frame de butterfly, de Denis Gosch.

Um último exemplo que podemos citar aqui é o do processo de criação da artista Maiara Cemin, já que sua Mulher Porca surgiu de vários aspectos problematizantes em suas vivências cotidianas, como ela mesma explica:

O contexto político brasileiro atual, junto à misoginia e o patriarcado da nossa sociedade, foram os principais incômodos que permeiam minha existência enquanto mulher-artista-mãe-historiadora-feminista, e que serviram de inspiração para a crítica presente na videoperformance. Tentei trazer também uma estética diferente do considerado belo (causando confusão no espectador quanto ao que lhe atrai sexualmente) tratando assim a sexualidade da mulher quando limitada a objeto, muito explorada na pornografia (Cemin, 2021, s/p.CEMIN, Maiara. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.).

Maiara apresenta uma obra provocadora, que faz uma crítica ao governo bolsonarista de forma direta, mas debochada, estruturando metáforas textuais que nunca são ditas pelas mulheres-porcas, tendo em vista que elas só sabem grunhir (eis aqui uma nítida alegoria sarcástica proposta pela atriz, como se quisesse dizer que o contexto machista não acredita que as mulheres brasileiras sejam capazes de formular discursos compreensíveis, corroborando as “ficções somáticas heterossexuais” propostas por Preciado (2018)PRECIADO, Paul B. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições, 2018., que determinam que à mulher cis cabe, em nossa sociedade patriarcal, o dever de fechar a boca e abrir as pernas). Na obra, somos confrontados por uma corporeidade híbrida, que mescla um corpo de mulher com uma cabeça-máscara suína, trajando um maiô escuro e executando movimentos que nos reportam à imagem de uma stripper sensualizando para a câmera, por vezes usando um balanço para realizar sua coreografia grotesca, por vezes cheirando a câmera em si, como um animal que quer reconhecer algo pelo faro. A mulher-porca executa seu freaky show por meio de danças, grunhidos, poses erotizadas e discursos políticos incompreensíveis não fossem as legendas que os traduzem. A principal constatação decolonial que podemos salientar na proposta da Maiara talvez seja a perceptível crítica que a artista tece à desumanização de sujeitos subalternizades própria da estrutura colonial, aqui expressa de forma simbólica: o corpo feminino surge sintetizado em uma figura bizarra cujo hibridismo com a porca nos faz rememorar as formas pelas quais a sociedade consome tanto um corpo quanto o outro, bem como sobre as inferiorizações simbólico-políticas impostas a determinadas existências. A videoperformance instaura-se ainda como uma metáfora à realidade colonial e carnavaliza o Brasil, transformando-o em um circo de horrores em que o presidente é um palhaço e, a plateia, é cúmplice do show que está sendo apresentado. Mas a Mulher-Porca, sujeito menosprezada, diferença colonial alegorizada, preconiza com invejável lucidez política, em sua performance lasciva-repulsiva, que “quando acabarem as porcas, terão as vacas. Depois das porcas, virão as vacas”, um presságio metafórico ao gado que acredita estar a salvo de ser devorado pelo sistema colonial.

Imagem 2
Frame de Mulher-porca, de Maiara Cemin.

A análise de todas as 21 videoperformances seria o trabalho para uma pesquisa mais aprofundada, já que, como dito, apresentam ferramentas estético-linguísticas as mais diversas, mas acredito que, com a percepção dos trabalhos aqui descritos, já podemos constatar a importância do debate decolonial na produção de tais obras artísticas, assim como podemos perceber o quanto cada performer conseguiu habitar seus lócus fraturados para se impor como protagonista por meio das artes do corpo, ocupando assim certos espaços de poder que historicamente lhe foram negados. Inclusive, um dos motivos que me fizeram eleger essas quatro performances para a análise, é o fato de que o quarteto de criadores optou por centralizar o discurso estético das obras sobre seus próprios corpos8 8 Digo isso porque algumas das 21 obras do Festival utilizam outras estratégias estilísticas, como é o caso da videoperformance BRAZIU, por exemplo, na qual o corpo do artista Pablo Abritta mal aparece em quadro. Abritta concentra-se em apresentar imagens aleatórias e sons de manifestações populares para problematizar a situação política do Brasil sob um governo de extrema-direita. , colocando em quadro majoritariamente suas marcas e marcadores corporais, como epítome de suas ideias acerca da noção de protagonismos dissidentes. Por meio das quatro obras analisadas, podemos refletir sobre epistemes corpo-políticas em insurgência, cujos discursos e experiências pessoais dialogam com o debate decolonial e reverberam nas escolhas estéticas e narrativas de cada videoperformance, como descrito anteriormente.

Preciso deixar registrado, no entanto, que constato de forma patente a ausência na mostra de videoperformances de sujeitos-criadores e de discursos que se propusessem a discutir questões relacionadas a aspectos de raça ou de transgeneridade. Apesar de contarmos no workshop com uma pequena porcentagem de alunes que se autodeclararam negres ou transgêneres, a maioria dessas pessoas – ou quase todas elas! – não pôde ou não quis concluir o workshop ou ainda não teve interesse em produzir o trabalho final, ainda que tivessem colaborado com debates acerca de negritude e existências trans durante as aulas. Mas infelizmente são problemáticas que estão ausentes de praticamente todos os trabalhos que compõem a mostra artística de Plurais, o que marca a invisibilização de protagonismos negros ou transgêneros no festival, salvo talvez a exceção do vídeo Paredes, em que o artista trans Lucas Tegner rememora processos de abusos sexuais em sua infância (de fato, porém, as discussões sobre transgeneridade não estão em pauta na obra).

Conclusões-marés diante de um oceano de possibilidades decoloniais

O corpo é colonizado. A colonização da mente perpassa primeiramente o corpo, como ele se comporta e como é domesticado. O padrão parte do que se vê e é possível tocar. O corpo é subversivo. A partir do momento que ele é assumido na sua totalidade existencial, ele se torna ameaça ao conservadorismo. A arte é o espaço que podemos ocupar com o corpo, para atacar o sistema colonizante e assim problematizar, transformar e acolher diferentes corpos e existências (Cemin, 2021, s/p.CEMIN, Maiara. Entrevista concedida a Daniel dos Santos Colin. Porto Alegre, 2021. Entrevista.).

Ainda que registrar textualmente tais experiências do projeto Decolonizando Práticas Cênicas... seja de vital importância para o debate aprofundado dos temas aqui discutidos, não podemos olvidar que cada palavra aqui anotada faz referência a vivências e práticas que ocorreram nos corpos de diversas pessoas simbolicamente territorializadas no cu do mundo; pessoas estas que, em muitas situações, viram-se menosprezadas, silenciadas ou mesmo invisibilizadas e que, pelos motivos aqui ditos, conseguiram se alçar ao status de artistas-protagonistas de suas obras e de suas próprias reflexões, fazendo coro àquilo que Leandro Colling tem rotulado como artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Foram tantas as atividades em um único projeto cultural que seus registros textuais não cabem em poucas páginas de um artigo –ainda mais se considerarmos a complexidade existente na reflexão sobre as experiências e subjetividades surgidas no encontro entre tantas pessoas, mesmo que de forma virtual –, por isso a opção em destacar momentos específicos, como uma forma de compreendermos os percursos pelos quais o projeto transitou. Não há limites para este tipo de giro performativo, que retira algo da margem e o faz perceber o seu valor, ainda que de forma aparentemente efêmera. Foi extremamente estimulante para mim presenciar cada participante se autorreconhecendo e se autovalorizando, inserides em um sistema perverso que constantemente faz com que se sintam um lixo. Como artista da cena que trabalha há duas décadas no cu do Brasil (ainda que o sul do Brasil colonialmente se sinta a cabeça do mesmo...), não posso conceber um fazer artístico que não passe por essas liminaridades e por essas brechas no sistema. Considerar outros protagonismos que não aqueles perpetuados pelo teatro eurocêntrico e, mais do que isso, pensar estratégias que oportunizem espaço a tais dissidências, a meu ver, torna-se condição primordial para que a arte mantenha seu papel na sociedade e possa continuar dialogando com todos os tipos possíveis de público e não somente com aquele a quem historicamente as artes foram oportunizadas. O que tenho pensado, pesquisado e escrito com frequência nos últimos anos têm considerado que as práxis artísticas que derivam da margem do sistema normalmente se configuram também como práticas de existência, noção que sampleio de Larissa Pelúcio, autora que percebe que as potências das produções latino-americanas são geridas na ambiguidade das margens, no “estar aqui e lá a um só tempo” (Pelúcio, 2016, p. 132PELÚCIO, Larissa. O cu (de)Preciado – estratégias cucarachas para não higienizar o queer no Brasil. Iberic@l, Revue d’études ibériques et ibéroaméricaines,n. 9, p. 123-136, 2016.), tendo em vista que sujeitos marginalizades que as concebem estão corporalmente – e ontologicamente, eu complementaria – imbuídos de suas condições de precariedade. Em pleno século XXI, não nos cabe mais inferiorizar tais expressões artísticas, pelo contrário: precisamos romper o centro, deixar que as margens possam invadir os espaços que lhe foram negados. E se fomos de alguma forma colocades nesta condição subalternizante, que tenhamos força, ânimo, lucidez e potência para nos insurgirmos contra tudo aquilo que quiser nos manter nessa situação de inferioridade. Acredito que o meu papel como artistaprofessor seja incentivar todes artistas-alunesa potencializar suas corporeidades por meio da visibilização do jogo colonial que retém ou mesmo derruba cada ume deles constantemente. Por isso, o texto de Maiara Cemin, inserido no início destas conclusões, torna-se tão impactante, porque ele nos faz perceber que, para que a colonialidade seja ameaçada, torna-se urgente e imprescindível que o corpo seja assumido em sua potência de subversão e, como bem disse Maiara, é aí que as artes podem – e devem! – trabalhar. Pensar em realizações artísticas enfocadas em protagonismos de corporeidades dissidentes pressupõe uma mudança de mirada não somente dos nossos padrões hegemônicos de corpos, como também uma alternância éticopolítica das nossas compreensões acerca do que é produzir arte aqui na América Latina. Valorizar outras culturas e saberes que se encontram na periferia da lógica canônica da civilização eurocêntrica pode contribuir, no caso específico do Brasil, para as transformações nas relações raciais, para a reversão dos processos de subalternização e para o alargamento do pertencimento cultural, como defende Elisa Belém. Eu aqui incluiria também a contribuição para as modificações referentes às relações de gêneros e sexualidades, o que poderia ser de extrema importância, tendo em vista os altos índices de violências sexuais e de gênero no Brasil.

Acredito que produzir um projeto que foi financiado por empresa privada, ainda que sob uma lei federal, não necessariamente se configure como uma experiência de sujeição aos esquemas capitalistas tão característicos do mundo/colonial, pelo contrário: vejo essa oportunidade como uma forma de reconhecer determinadas rachaduras no próprio sistema para privilegiar precisamente sujeitos que não seriam beneficiades caso esse projeto não tivesse sido contemplado pelos recursos previstos na lei. Por meio das videoperformances, do debate com convidades especiais, das aulas ministradas por professores qualificades e deste texto escrito afetuosamente, e que agora está sendo lido por vocês, o debate decolonial pôde ser levado a centenas de sujeitos e certamente lançou fagulhas de inquietação em diversos imaginários, saberes, corporeidades e experiências. E esse movimento é apenas o começo de infinitas e vindouras revoluções, sejam individuais ou coletivas. Se existe de fato um oceano de possibilidades decoloniais em contraponto a um riacho ínfimo de normas hegemônicas, que venha logo um tsunami capaz de virar o jogo colonial de cabeça para baixo.

Notas

  • 1
    Tenho optado há alguns anos por usar o gênero neutro em meus discursos, sejam orais ou escritos, como uma forma de estratégia performativa que compreende a pluralidade de identidades de gênero e de sexualidades. Atualmente, existem algumas variáveis acerca do gênero neutro na língua portuguesa; com isso optei por utilizar a letra ‘e’ como um possível marcador deste debate político, para além de uma pretensão de reinventar o idioma com este artigo. Dessa forma, vocês encontrarão neste texto o uso do ‘e’ no lugar das letras ‘o’ ou ‘a’ sempre que sujeitos forem diverses.
  • 2
    O projeto em questão foi realizado durante os meses de abril a setembro de 2021 através do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas realizado com recursos da Lei Aldir Blanc nº 14.017/20.
  • 3
    Todas as atividades do Festival virtual estão disponibilizadas gratuitamente no canal do YouTube, a saber: https://www.youtube.com/c/DanielColinDr/videos.
  • 4
    Sudaca seria um termo estigmatizante incutido sobre pessoas sul-americanes, mas que tem sido reapropriado por determinades sujeitos como uma afirmação da diferença marginalizada para uma crítica anticolonial.
  • 5
    A noção de ego-política do conhecimento refere-se à ideia de centralização epistemológica em um sujeito universal, descorporalizado e des-historicizado, capaz de produzir e se apropriar de um conhecimento desde um não-lugar. Para mais informações, ler Restrepo e Rojas (2010)RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Colombia: Editorial Universidad del Cauca, 2010..
  • 6
    O conceito lócus de enunciação pode ser compreendido como a localização geopolítica e corpo-política do sujeito que fala, segundo Ramón Grosfoguel (2006)GROSFOGUEL, Ramón. La descolonización de la economía política y los estúdios postcoloniales: transmodernidad, pensamento fronterizo y colonialidad global. Tabula Rasa, Bogotá, n. 4, p. 17-48, enero-junio 2006. ISSN: 1794-2489..
  • 7
    Tal item foi amplamente problematizado nos nossos encontros, acerca dos limites existentes entre censura, liberdade artística e mercado cultural, mas optamos por buscarmos estratégias estilísticas que nos permitissem utilizar a plataforma YouTube para a veiculação das obras.
  • 8
    Digo isso porque algumas das 21 obras do Festival utilizam outras estratégias estilísticas, como é o caso da videoperformance BRAZIU, por exemplo, na qual o corpo do artista Pablo Abritta mal aparece em quadro. Abritta concentra-se em apresentar imagens aleatórias e sons de manifestações populares para problematizar a situação política do Brasil sob um governo de extrema-direita.

Disponiblidade de dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Referências

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    » https://muestraposporno.wordpress.com/textos/un-posporno-situado/.
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Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2023
  • Aceito
    12 Set 2023
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