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A investigação de sentidos e significados com egressos de um curso de Licenciatura em Matemática

An investigation on the senses and meanings with alumni of an undergraduate teacher-training mathematics course

Resumo:

Este artigo apresenta os resultados de uma investigação sobre os sentidos e significados conferidos pelos egressos da Licenciatura em Matemática à sua formação inicial, além de descrever o método de análise utilizado na interpretação das informações. Participaram da pesquisa egressos do curso de Licenciatura em Matemática de uma instituição de ensino superior de Santa Catarina. Os instrumentos para a coleta de dados foram: questionário, cuja análise permitiu a seleção dos sujeitos para entrevista e os temas a serem aprofundados; e entrevista semiestruturada, cujos resultados foram analisados por meio dos núcleos de significação propostos por Aguiar e Ozella (2006). A análise permitiu destacar três núcleos: a) preparação para a sala de aula: atividade constituída por meio de múltiplas experiências; b) conhecimento sobre a profissão: caminhos e desafios para a sua construção; c) aula de matemática e a relação professor-aluno. Ouvir os egressos foi importante para pensar e teorizar não somente sobre esse curso como também sobre os demais cursos de formação de professores.

Palavras-chave:
formação de professores; sentidos; significados; psicologia sócio-histórica

Abstract:

This paper presents the findings of an investigation on the senses and meanings attributed by the alumni of an undergraduate mathematics course to their initial education, as well as describes the methodological approach used to interpret information. Research participants were alumni of an undergraduate mathematics course in a higher education institution of Santa Catarina. To collect data, the instruments used were: a survey, which enabled the selection of interviewees and topics to be further developed; and a semi-structured interview, whose results were analyzed in accordance with the cores of meaning as proposed by Aguiar and Ozella (2006). The analysis highlighted three cores: a) the classroom preparation: activity developed through multiple experiences; b) professional knowledge: challenges and paths for its construction; c) math class and the teacher-student relationship. Listening to alumni was important to reflect and theorize about not only this course but the remaining undergraduate teacher-training courses.

Keywords:
teacher training course; senses; meanings; social-historical psychology

Introdução

Ao considerar as diretrizes nacionais para a formação inicial de professores no Brasil, percebe-se que essas provocaram mudanças, principalmente no sentido de superar o modelo da racionalidade técnica, pois os cursos de licenciatura passaram a contemplar com maior intensidade as disciplinas pedagógicas e houve maior integração dessas com as disciplinas específicas dos cursos. Entre as mudanças, a formação para a prática profissional deve estar presente desde o início do curso não somente nas disciplinas pedagógicas, mas também nos demais componentes curriculares.

Pesquisas como a de Gatti e Nunes (2009GATTI, B. A.; NUNES, M. M. R. (Orgs.). Formação de professores para o ensino fundamental: estudo de currículos das licenciaturas em pedagogia, língua portuguesa, matemática e ciências biológicas. São Paulo: FCC/DPE, 2009.) sobre os cursos de formação de professores no Brasil mostram indicadores relevantes sobre os cursos de Licenciatura em Matemática, objeto desta pesquisa. Ao analisar os dados, as autoras identificaram três tipos de cursos de Licenciatura em Matemática no Brasil: os que investem em formação específica em Matemática e se aproximam dos cursos de bacharelado; os que investem em formação básica em Matemática e algumas disciplinas pedagógicas; e os que oferecem formação específica em Matemática, disciplinas relacionadas à área de educação matemática e à área de educação.

Os resultados obtidos pelas autoras permitem afirmar que os cursos de Licenciatura em Matemática estão formando profissionais com perfis diferentes do esperado pelas diretrizes. Os que têm uma formação matemática profunda talvez não se sintam preparados para enfrentar as situações do cotidiano da sala de aula, que não exigem apenas o saber matemático do professor. Os licenciados, com formação pedagógica desconectada da formação específica em Matemática, são forçados a encontrar as inter-relações entre elas. Já os que têm uma formação mais aprofundada em educação matemática vivenciaram experiências mais contextualizadas e significativas para a construção de sua prática pedagógica.

As pesquisas são subsídios fundamentais para as discussões e avaliações do processo de formação docente. Os estudos educacionais mais recentes buscam dar voz ao professor e conhecer melhor a sua prática. Ao observar tal aspecto, André (2010ANDRÉ, M. E. D. A. Formação de professores: a constituição de um campo de estudos. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 174-181, set./dez. 2010.) considera insuficiente investigar apenas as opiniões, representações, saberes e práticas do professor para constatar o que eles pensam, dizem, sentem, fazem. Em virtude da complexidade do fenômeno educacional, há muito para ser descoberto, inventado e refinado.

A proposta do presente artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa realizada com professores egressos de um curso de Licenciatura em Matemática de uma instituição de ensino superior de Santa Catarina (Brasil) acerca dos sentidos e significados atribuídos à sua formação inicial. Acredita-se que a utilização das categorias sentidos e significados abre possibilidades de apreender com mais propriedade as expressões dos sujeitos e, assim, criar zonas de inteligibilidade sobre suas formas de pensar, sentir e agir. Além disso, o artigo discute as contribuições da proposta metodológica dos “núcleos de significação”, de Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. ), para a análise e interpretação das informações utilizadas. Os pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram a investigação pertencem à psicologia sócio-histórica, cuja referência básica de análise é a historicidade das experiências humanas.

Pressupostos teóricos e metodológicos da pesquisa

Para compreender a proposta metodológica da pesquisa, serão apresentadas algumas considerações sobre as relações entre o pensamento e a linguagem, uma vez que o ponto de partida da investigação é a palavra do sujeito, e esta é a expressão do seu pensamento mediada pelos significados. A base teórica para a compreensão dessas relações é fornecida pelos trabalhos de Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.).

Em suas investigações sobre o desenvolvimento do pensamento humano, Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.) percebe que não há dependência entre as raízes genéticas do pensamento e da palavra. Desse modo, o desenvolvimento de ambos é um produto, e não uma premissa da formação do homem. O autor critica as investigações que consideram o pensamento e a linguagem como dois processos autônomos, isolados, cuja relação é externa - como duas forças independentes que se cruzam entrando em interação mecânica. Ele afirma que é preciso olhar pensamento e linguagem pelo prisma da relação parte-todo, entendidos como um par dialético, que não mantêm entre si uma relação de identidade, mas que jamais podem ser compreendidos isolados, em si mesmos.

Para entender os processos constitutivos dos sujeitos, parte-se do pressuposto de Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.) de que o pensamento se realiza na palavra e que esse é um processo mediado pelos significados. Para o autor, o significado da palavra é um fenômeno do pensamento na medida em que esse está relacionado à palavra e materializado nela e vice-versa - trata-se da unidade da palavra com o pensamento.

Em sua investigação, Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.) encontrou no significado da palavra uma unidade que reflete da forma mais simples a unidade do pensamento e da linguagem. A palavra sem significado é um som vazio. Assim, o significado da palavra é um fenômeno do pensamento; é a unidade da palavra com o pensamento.

Conforme Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.), a relação entre o pensamento e a palavra é um processo, um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento. Todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, pois cumpre uma função, executa um trabalho, resolve alguma tarefa. O fluxo e o movimento do pensamento não coincidem com o discurso, pois, assim como uma frase pode expressar vários pensamentos, um pensamento pode ser expresso por várias frases. O pensamento não coincide com a linguagem verbalizada; ele é sempre algo integral, maior que uma palavra isolada.

Os significados são sociais e, quando compartilhados, podem ser considerados mediadores do processo de comunicação e até mesmo do processo de humanização. Nesse processo de mediação, cabe destacar que, para Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.), o pensamento não é igual à palavra, mas vive com ela uma relação de mediação; ele não é só mediado pelos signos, mas também internamente pelos significados.

Essa via é uma mediação interna do pensamento, primeiro pelos significados e depois pelas palavras. Por isso o pensamento nunca é igual ao significado direto das palavras. O significado medeia o pensamento em sua caminhada rumo à expressão verbal, isto é, o caminho entre o pensamento e a palavra é um caminho indireto, internamente mediatizado. (Vigotsky, 2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009., p. 479).

Assim, os significados sociais são internalizados e transformados em sentidos em um processo subjetivo e dialético, o que ocorre porque os homens, em sua atividade no mundo social e histórico, os constituíram e os constituem permanentemente (Aguiar et al., 2009AGUIAR, W. M. J. et al. Reflexões sobre sentido e significado. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M. A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio-histórica. São Paulo: Cortez , 2009. p. 54-72.).

De acordo com Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009., p. 465):

O sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. [...] o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido.

Sentido e significado são momentos de um processo de constituição do sujeito, no entanto, não são dicotômicos, posto que o sentido não é sem o significado e o significado não é sem o sentido. Para Aguiar et al. (2009AGUIAR, W. M. J. et al. Reflexões sobre sentido e significado. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M. A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio-histórica. São Paulo: Cortez , 2009. p. 54-72., p. 60), significado e sentido

[...] cumprem o papel de dar visibilidade a uma determinada e importante zona do real, ou seja, como construções intelectivas abstratas que são, carregam a materialidade e as contradições presentes no real, condensando aspectos dessa realidade e, assim, destacando-os e revelando-os.

De acordo com a autora, nas pesquisas cujo objetivo é apreender os sentidos, é necessário apreender as contradições, fazer um esforço interpretativo. Por meio de uma análise interpretativa, o pesquisador construirá hipóteses acerca dos sentidos e se aproximará das zonas de sentido.

Uma vez que a atividade dos egressos investigados é mediada pela linguagem, ao realizar a investigação considerou-se a palavra com significado como ponto de partida. Vigotsky (2009VIGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 2. ed. São Paulo: WFM Martins Fontes, 2009.) afirma que o pensamento não se expressa na palavra, mas nela se realiza, e que esse processo é mediado pelos significados. O autor considera que o significado da palavra é um fenômeno do pensamento. Por isso, na pesquisa apresentada neste artigo, considera-se que a palavra com significado permite alcançar as zonas de sentido.

Na pesquisa efetuada com os professores egressos da Licenciatura em Matemática, para apreender o que é ou o que foi para os egressos fazer o curso, foi necessário acessar suas zonas de sentido. Com base no que foi dito pelos sujeitos, pode-se fazer uma análise e construir hipóteses sobre os sentidos dos sujeitos acerca de seu curso de formação inicial.

Um aspecto discutido por González Rey (2005GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.), que foi abordado nesta pesquisa, foi a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico, uma vez que o número de participantes da pesquisa é reduzido. Como fonte de conhecimento, a legitimação do particular implica considerar a pesquisa como produção teórica, pois a partir do singular constitui-se a possibilidade de construção teórica, e dar consistência ao campo teórico. O teórico representa um caminho que tem, em seu centro, a atividade do pesquisador.

A reivindicação epistemológica da significação do singular na construção do conhecimento representa, na realidade, uma opção epistemológica diferente que permite compreender a pesquisa qualitativa como um processo de construção altamente dinâmico, no qual as hipóteses do pesquisador estão associadas a um modelo teórico que mantém uma constante tensão com o momento empírico e cuja legitimidade está na capacidade do modelo para ampliar tanto suas alternativas de inteligibilidade sobre o estudado como seu permanente aprofundamento em compreender a realidade estudada como sistema (González Rey, 2005GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005., p. 12-13).

Para reforçar a legitimidade do singular, utilizou-se o argumento de Vigotsky (1982VIGOTSKY, L. S. Obras escogidas. Madrid: Centro de Publicaciones Del M.E.C., 1982.) de que cada sujeito pode ser considerado um microcosmo, que, como modelo, reflete o todo. Assim, cada pessoa é um pequeno modelo da sociedade na qual ela vive e no qual se reflete a totalidade das relações sociais.

É preciso considerar que a pesquisa realizada tem abordagem qualitativa, que se constrói no ato de pesquisar, no qual o pesquisador deve se permitir ser afetado pela pesquisa. Para tanto, ele precisa de um método, um conjunto de pressupostos para decifrar os fatos, para revelar a estrutura oculta do fenômeno pesquisado. Reitera-se a ideia de Aguiar (2009AGUIAR, W. M. J. et al. Reflexões sobre sentido e significado. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M. A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio-histórica. São Paulo: Cortez , 2009. p. 54-72.) de que cabe ao pesquisador apreender os sentidos expressos pelo sujeito em um processo construtivo e interpretativo, e de que a construção do conhecimento é uma construção do pesquisador.

Sujeitos e instrumento da pesquisa

Participaram desta investigação egressos de 2007, 2008 e 2009 do curso de Licenciatura em Matemática de uma instituição de ensino superior de Santa Catarina (Brasil) - uma universidade comunitária que oferece, há cerca de 50 anos, cursos de graduação e de pós-graduação nas mais diversas áreas, atendendo a toda a região norte de Santa Catarina.

Nessa universidade, o curso de Licenciatura em Matemática, locus da investigação, prevê em seu projeto político-pedagógico o desenvolvimento de competências de comunicação, investigação, compreensão e contextualização das ciências no âmbito sociocultural. A partir das diretrizes curriculares propostas em 2002, a matriz curricular foi organizada em torno de três eixos: disciplinas predominantes na formação matemática, disciplinas predominantes na formação pedagógica e disciplinas predominantes na integração entre ambos os eixos, realizada pelas disciplinas de prática de ensino da matemática e estágio curricular supervisionado.

A investigação contou com os seguintes instrumentos para a coleta de dados: questionário, cuja análise permitiu a seleção dos sujeitos para a entrevista e dos temas a serem aprofundados, e entrevista semiestruturada, analisada por meio da proposta metodológica dos núcleos de significação, de Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. ).

O questionário aplicado foi enviado por correio eletrônico aos 48 egressos dos anos de 2007, 2008 e 2009. Desses, 21 responderam ao questionário. Para a pesquisa selecionaram-se apenas os que estavam atuando como professores, o que correspondeu a 12 respondentes. As perguntas do questionário eram fechadas e abertas e foram divididas em três categorias: a trajetória do aluno no seu curso de formação inicial, o curso de Licenciatura em Matemática e a sua prática docente. A seguir destacam-se alguns aspectos referentes aos resultados obtidos pela aplicação do questionário:

a) A trajetória do aluno no curso de formação inicial: de acordo com os dados, foi marcada pela dificuldade dos alunos em compreender os conteúdos das disciplinas específicas do curso; pela participação exígua em projetos de pesquisa e extensão, uma vez que as políticas institucionais ainda não possibilitam essa oportunidade a todos; e pela valorização das atividades acadêmico-científico-culturais como importante oportunidade de formação.

b) O curso de Licenciatura em Matemática: os egressos destacaram a importância da formação específica, mas deram mais ênfase ao aprendizado das práticas pedagógicas, especialmente ao estágio curricular supervisionado. Os participantes também disseram que gostariam de ter recebido mais atenção de seus professores em relação à matemática básica. Em suas falas percebe-se a crítica em relação à prática pedagógica de alguns professores formadores.

c) A prática docente: por meio dos dados constatou-se que dos 12 egressos que atuam na docência, 8 estão na rede pública de ensino e 4 na rede privada. Em suas respostas, os egressos expressaram algumas dificuldades encontradas em suas práticas, como: manutenção da disciplina de estudo dos alunos; condições de trabalho na escola; realização do planejamento (relacionado às condições de trabalho); práticas com alunos de inclusão. Observou-se também o discurso de culpabilização do fracasso escolar, atribuído aos pais e aos alunos. Além dessas questões, ao escrever sobre as suas práticas, as respostas mostram que os egressos do curso de Licenciatura em Matemática compreendem o valor instrumental, cultural, sociológico e cognitivo da matemática para a formação de seus alunos.

Com a análise dos resultados do questionário, foram reunidos subsídios para escolher os quatro egressos a serem entrevistados, com o objetivo de provocar maior reflexão do sujeito e, assim, produzir informações mais profundas sobre sua formação. Os critérios para a seleção desses professores foram: presença de pelo menos um egresso de cada ano investigado; participantes que tenham respondido a todas as questões do questionário; presença de pelo menos um egresso que tenha realizado projeto de iniciação científica; atuação na rede pública e/ou na rede privada.

De acordo com os critérios estabelecidos pelas pesquisadoras, foram selecionados quatro sujeitos para a entrevista, denominados, neste texto, Guilherme, Sofia, Larissa e Mariana. A seguir é apresentada a caracterização dos sujeitos participantes da entrevista:

a) Guilherme concluiu o curso de Licenciatura em Matemática em 2008. Começou a atuar como professor de matemática no ensino fundamental em uma instituição de ensino particular, logo depois da conclusão do curso. Atuava também como professor de matemática na rede pública municipal.

b) Sofia concluiu o curso de Licenciatura em Matemática em 2009. Durante o curso, ela trabalhava em uma empresa. Sua primeira experiência como professora de matemática foi em seu estágio. No momento da pesquisa, era professora concursada da rede municipal de ensino e ministrava aulas de matemática no ensino fundamental.

c) Larissa era professora da educação básica e atuava há cinco anos. Trabalhava na rede pública de ensino, tendo trabalhado na rede particular. Concluiu seu curso em 2009, de modo que já atuava como docente antes mesmo de concluir o curso.

d) Mariana concluiu o curso de Licenciatura em Matemática em 2007. Durante o curso trabalhava numa empresa de informática e realizou um projeto de iniciação científica cuja temática estava voltada para a empresa. Ela era concursada da rede municipal de ensino, atuava como professora de educação de jovens e adultos no período noturno e continuava atuando na empresa de informática.

A análise por meio dos núcleos de significação

Para analisar as informações obtidas nas entrevistas e apreender os sentidos e significados do que foi para os egressos realizar o curso de formação inicial, utilizou-se a proposta metodológica denominada núcleos de significação, de Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. ). Os autores afiançam que:

A apreensão dos sentidos não significa apreendermos uma resposta única, coerente, absolutamente definida, completa, mas expressões do sujeito muitas vezes contraditórias, parciais, que nos apresentam indicadores das formas de ser do sujeito, de processos vividos por ele. (Aguiar; Ozella, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. , p. 176).

Depois da transcrição do material gravado nas entrevistas, realizou-se a leitura flutuante, que permitiu destacar e organizar o que Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. ) chamam de pré-indicadores: palavras com significado que se destacam no momento empírico da pesquisa, na fala do sujeito. A leitura flutuante ocorreu por meio de diversas leituras do material transcrito, para que houvesse a familiarização com o material e, aos poucos, sua apropriação. Essa leitura possibilitou destacar das falas dos egressos conteúdos que fossem reiterativos e “trechos de fala compostos por palavras articuladas que compõem um significado, carregam e expressam a totalidade do sujeito e, portanto, constituem uma unidade de pensamento e linguagem” (Aguiar; Ozella, 2013AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 94, n. 236, p. 299-322, jan./abr. 2013. , p. 309).

Os temas ou pré-indicadores foram caracterizados pela importância atribuída a eles pelos sujeitos, pela carga emocional percebida e pela relação com o objetivo da pesquisa. O número de pré-indicadores é, geralmente, muito grande, mas eles são importantes para a organização dos núcleos de significação, para que não se perca o ponto de partida, que é o empírico.

Ao realizar as leituras flutuantes, o processo utilizado para determinar os pré-indicadores nesta investigação consistiu no destaque (uso do itálico) das expressões dos sujeitos consideradas relevantes, tanto para o objetivo da pesquisa, como por terem se repetido com frequência. Como exemplo do procedimento, apresenta-se um trecho da entrevista com Mariana, uma das professoras investigadas:

Você tem que explicar de outra forma. Se daquela forma-padrão não deu certo, você tem que exemplificar de outra forma e tentar trabalhar com eles; porém, se você tentou várias formas e não deu certo, eu sempre procuro orientação do coordenador, pois normalmente são alunos que precisam de uma dedicação especial. [C38]

Eu procuro entender o histórico do aluno, pois normalmente se você não consegue se fazer entender depois de várias alternativas, é porque o aluno já tem algum déficit mesmo, ou já vem de outras séries, já tem alguns comentários... Então essa parte é importante. Quando você encontra alguma barreira, é sempre bom procurar o histórico do aluno para ver se ele precisa ter algum estilo diferenciado de estudo, se precisa ter uma avaliação diferenciada ou não. Eu acho que essa parte também é importante. [C39]

O destaque em itálico das expressões permitiu pensar e elaborar pré-indicadores, nesse caso Diferentes formas de explicar o conteúdo, referente ao [C38], e Conhecer a história do aluno, referente ao [C39], que podem se repetir em outros momentos da entrevista. As legendas [C38] e [C39] referem-se ao número do comentário, ferramenta utilizada por meio de editor de texto Word, que facilita a localização do pré-indicador no texto da entrevista. Esse procedimento foi feito ao longo de toda a transcrição da entrevista.

Após nova leitura do material das entrevistas, agora organizado pelos pré-indicadores, partiu-se para o processo de aglutinação, que gerou os indicadores. Toma-se como exemplo o indicador A relação professor e aluno, que foi obtido a partir dos pré-indicadores relacionados na transcrição das entrevistas: [C34] - Atendimento individual do aluno; [C39] - Conhecer a história do aluno; [C41] - Professor: autoridade máxima; [C44] - O professor deve ser amigo dos alunos sem perder a sua autoridade; [C46] - Conhecer e compreender as dificuldades dos alunos; [C47] - Motivar o aluno para o estudo da matemática; [C59] - Liberdade para o diálogo. Essa organização se deu por meio de quadros em que uma das colunas apresenta os pré-indicadores e a outra, os indicadores.

O processo de aglutinação para chegar ao indicador mencionado no exemplo acima ocorreu considerando, principalmente, a similaridade, a complementaridade e/ou a contradição, de modo que permitiu ter uma menor diversidade de temas e uma nova articulação que, com mais propriedade, revelasse o sujeito. Lembrando o princípio do materialismo dialético de que o corpo só se revela no movimento, destaca-se que esse processo de recortar e aglutinar tem como meta produzir sínteses cada vez mais completas e complexas, que, cada vez mais, se aproximem da totalidade, mesmo que provisória, do sujeito. Também é importante considerar que “os indicadores só adquirem algum significado se inseridos e articulados na totalidade dos conteúdos temáticos apresentados, ou seja, na totalidade das expressões do sujeito” (Aguiar; Ozella, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. , p. 13).

Os indicadores, apesar de já expressarem um avanço interpretativo, devem ser negados enquanto tal para, em uma nova articulação (por semelhança, complementaridade e/ou contradição), apresentarem uma síntese mais reveladora do sujeito. Essa síntese, denominada núcleo de significação, deve conter e explicitar as transformações e as contradições que ocorrem no processo de construção dos sentidos e significados dos sujeitos da pesquisa.

A construção dos núcleos, novamente organizados em quadros que mostram pré-indicadores com os respectivos indicadores, possibilitou uma análise e uma interpretação mais consistentes que consideram os aspectos específicos do sujeito, sempre articulados com a totalidade da sua fala e com a realidade histórica que o constitui; permitiu também uma análise que foi além da aparência e que considerou tanto as condições subjetivas quanto as suas condições sócio-históricas: “Os núcleos resultantes devem expressar os pontos centrais e fundamentais que trazem implicações para o sujeito, que o envolvam emocionalmente, que revelem as determinações constitutivas do sujeito” (Aguiar; Ozella, 2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significado como instrumento para a compreensão da constituição dos sentidos. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 26, n. 2, p. 222-245, jun. 2006. , p. 13-14).

O movimento de interpretação dos núcleos de significação começou por um processo intranúcleo e avançou para uma articulação internúcleos. Tal procedimento é marcadamente teórico, e nesse movimento foi possível, a partir de poucos sujeitos, via o movimento de teorização, expandir o conhecimento e produzir zonas de inteligibilidade sobre o real, no caso, os seus sentidos. Destaca-se que o processo de análise não deve ser restrito à fala do sujeito pesquisado, mas articulado com o seu contexto social, político e econômico. Por esse motivo, na pesquisa realizada consideraram-se as condições constitutivas do sujeito pesquisado, as diretrizes institucionais do curso de formação de professores, as políticas públicas para a formação de professores e para a educação básica, além das condições sociais mais amplas.

Os sentidos e significados dos egressos do curso de Licenciatura em Matemática

Pela análise realizada, depreendeu-se que os estudantes chegam ao curso de formação inicial com diferentes expectativas. Eles têm histórias diferentes, viveram experiências diferentes e por isso são sujeitos diferentes. Essa diversidade é importante e enriquece as relações estabelecidas ao longo do curso. No caso de Mariana, a intenção era desenvolver o raciocínio lógico e aprofundar o conhecimento em matemática. Para ela, o curso deveria ensinar matemática e, na disciplina de didática, ela aprenderia como ensiná-la. Para Guilherme e Sofia, o aspecto pedagógico era mais importante, e a expectativa deles era aprender a ensinar matemática. Para Larissa, que já atuava na educação básica, o curso de formação inicial deveria proporcionar conhecimento sobre diferentes formas de ensinar.

Cada sujeito vive uma história única, singular, significando as experiências vividas também de forma singular, pois a construção de sua identidade é idiossincrática. De acordo com Gatti (1996GATTI, B. A. Os professores e suas identidades: o desvelamento da heterogeneidade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 98, p. 85-90, ago. 1996.), a identidade permeia o modo de estar no mundo e no trabalho, afetando as perspectivas do sujeito quanto a sua formação e a suas formas de atuação profissional. O professor é um ser em movimento, construindo valores, estruturando crenças, tendo atitudes. Suas necessidades, motivações, interesses e expectativas são determinantes de sua identidade, de seu modo de ser como profissional.

Sabendo-se que os sujeitos são únicos e que se constituem nas experiências sociais e históricas, considera-se a importância da sua formação inicial. Concorda-se com a afirmação de Imbernón (2010IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010.) de que a formação inicial precisa fornecer as bases para que o sujeito construa o conhecimento pedagógico necessário para ser professor, e que esse conhecimento é dinâmico e não estático: ele se desenvolve ao longo da carreira profissional. Como o curso de formação inicial oferece uma base para o exercício profissional, é fundamental refletir sobre as falas de seus egressos.

Um dos núcleos de significação depreendidos da análise das entrevistas foi a “preparação para a sala de aula”, atividade constituída por múltiplas experiências. Com a análise, percebe-se que disciplinas como matemática fundamental e álgebra foram consideradas importantes para os egressos, uma vez que proporcionaram conhecimentos sobre conteúdos matemáticos diretamente relacionados com aqueles que são ministrados na educação básica. Segundo Mariana, “a disciplina que eu achei fundamental foi a parte de matemática fundamental, porém eu revi muita coisa do que eu já tinha visto”.

Outras disciplinas, como matemática aplicada, deram subsídios para a problematização de situações do cotidiano em suas aulas. Para o egresso, ter domínio do conteúdo específico mostrava-se importante, por fornecer condições para se preparar para a sala de aula, desenvolver o raciocínio lógico e compreender as aplicações da matemática. Além disso, também foi destacado que as disciplinas específicas (principalmente matemática fundamental) foram importantes para que o egresso, por meio do domínio da lógica interna do conhecimento matemático, organizasse seus planejamentos.

Há casos em que o egresso não conseguiu relacionar as disciplinas específicas do curso de formação com seu trabalho na escola. Esse fato pode ser percebido na fala de Guilherme:

Eu não consigo relacioná-las com o conteúdo da educação básica. É difícil ver essa relação. Em algumas oportunidades isso foi demonstrado, então, quando nós estamos trabalhando algumas propriedades, como na disciplina do professor [...], em análise matemática, ele mostrava que a propriedade vinha disso, vinha daquilo. Ele fazia essa demonstração, mas isso é difícil de carregar conosco e fazer toda essa demonstração em sala de aula. Então, eu não consigo encontrar uma relação prática da disciplina.

Tal dificuldade pode estar relacionada à forma como os professores, principalmente os das disciplinas específicas do curso de formação inicial, lidam com a questão da formação do professor de matemática. Concorda-se com a reflexão de Fiorentini et al. (2004FIORENTINI, D. et al. A formação matemática e didático-pedagógica nas disciplinas da licenciatura em matemática. In: ENCONTRO PAULISTA DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 7., 2004, São Paulo. Anais... São Paulo: SBEM/SP, 2004. , p. 9) de que muitas vezes os professores universitários não têm consciência de que são responsáveis pela formação de um futuro professor:

[...] Para isso, os formadores de professores de matemática - sejam eles matemáticos ou educadores matemáticos - precisam realizar estudos tanto em relação aos processos didático-pedagógicos do ensino e da aprendizagem da matemática quanto em relação à ampliação de sua cultura matemática sob uma perspectiva compreensiva, envolvendo aspectos históricos e epistemológicos deste campo de conhecimento.

A dificuldade dos professores formadores pode estar relacionada à sua própria formação, bem como à falta de integração, discussão e estudo de temas relacionados à formação de professores de matemática pelo colegiado do curso. Isso pode ser superado se forem adotadas, como sugerem Fiorentini et al. (2004FIORENTINI, D. et al. A formação matemática e didático-pedagógica nas disciplinas da licenciatura em matemática. In: ENCONTRO PAULISTA DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 7., 2004, São Paulo. Anais... São Paulo: SBEM/SP, 2004. ), práticas de investigação matemática em sala de aula, de desenvolvimento de projetos de modelagem matemática e outras experiências publicadas em revistas que tratam de pesquisas em educação matemática.

O estudante de licenciatura vai para o curso de formação inicial com a expectativa de estudar os conteúdos que vai ensinar e também suas aplicações. Quando depara com disciplinas como cálculo diferencial e integral ou análise matemática, em alguns casos não percebe a contribuição dessas para sua formação. Diante disso, é possível pensar que é necessário haver maior integração entre as disciplinas pedagógicas e as disciplinas específicas do curso, entre professores matemáticos e educadores matemáticos, para que o futuro professor de matemática compreenda a estrutura do conhecimento matemático e sua utilização no campo de atuação.

A dicotomia entre conteúdo específico e prática pedagógica pode impedir a formação de professores comprometidos com a transformação da realidade e imbuídos de uma práxis, pois “as relações entre teoria e prática não podem ser vistas de um modo simplista ou mecânico, a saber: como se toda teoria se baseasse de um modo direto e imediato na prática” (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 257).

Além do estudo das disciplinas específicas, a preparação para a sala de aula ocorreu por meio de múltiplas experiências, na relação com os colegas de turma, em momentos de resolução de exercícios, nas trocas de experiências com colegas que já atuavam como professores. Um exemplo é a manifestação de Guilherme, ao significar as experiências de seus colegas professores como exemplos de casos de ensino a serem seguidos:

Esses dias eu fiz uma atividade com tangram, e eu lembro que o grupo lá da Aline tinha feito uma atividade com tangram, e elas falaram quais foram as dificuldades que elas haviam encontrado lá... Então isso remeteu bastante para a sala de aula e para a prática docente. [...] Nós não tínhamos nenhuma base para a sala de aula, então eu achei isso bem importante.

Os sujeitos demonstraram valorizar o conhecimento da prática, pois significaram as diferentes práticas estudadas nas disciplinas pedagógicas do curso e as experiências de seus colegas como exemplos de casos de ensino a serem seguidos. As disciplinas pedagógicas foram importantes para desenvolver a criatividade, pois deram base de conhecimento para planejar e ministrar aulas. Isso foi percebido quando expuseram como refletiam sobre as metodologias utilizadas em suas aulas.

A reformulação dos cursos de licenciatura tem como base estudos que privilegiam a prática como eixo central. A análise das entrevistas revelou que a prática teve destaque no curso e foi valorizada pelos egressos. Porém, adere-se às ideias de autores como Zeichner (2003ZEICHNER, K. M. Formando professores reflexivos para a educação centrada no aluno: possibilidades e contradições. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. p. 35-55), que indicam o fracasso da formação reflexiva em relação à “ênfase em focar internamente as reflexões dos professores, sobre a sua própria atividade ou seus alunos, negligenciando toda e qualquer consideração acerca das condições sociais do ensino que influenciam o seu trabalho em sala de aula” (Zeichner, 2003ZEICHNER, K. M. Formando professores reflexivos para a educação centrada no aluno: possibilidades e contradições. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. p. 35-55, p. 44).

Os sujeitos da pesquisa consideraram importantes as experiências dos colegas e professores, mas será que essas foram de fato utilizadas de forma a produzir uma reflexão teórica? Será que as condições históricas e sociais dos sujeitos envolvidos foram levadas em conta no desenvolvimento das atividades de ensino e aprendizagem? Será que depreenderam os elementos teóricos das experiências vividas no curso? Concorda-se com Zeichner (2003ZEICHNER, K. M. Formando professores reflexivos para a educação centrada no aluno: possibilidades e contradições. In: BARBOSA, R. L. L. (Org.). Formação de educadores: desafios e perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. p. 35-55): muitas vezes a reflexão sobre a prática é feita de forma individual sem ênfase numa prática social. Assim, o professor passa a ver os problemas apenas como seus, sem relação com os demais e com as estruturas e sistemas escolares.

O estágio foi significado de diferentes formas pelos egressos: como uma tarefa a cumprir no final do curso e como oportunidade de conhecer diferentes realidades, de ter conhecimento sobre as condições de trabalho e de refletir sobre a prática. Em alguns casos, o sujeito só percebe sua importância como momento de aprendizagem quando está na posição de supervisor de estágio em seu campo de atuação. De qualquer maneira, esse período não oferece condições para que ele se sinta preparado para enfrentar os desafios da sala de aula; por isso, houve a sugestão de que o estágio começasse no primeiro ano do curso. Na opinião de Guilherme: “Eu acho que isso contribuiria bastante até para que nós pudéssemos fazer essa socialização nessas disciplinas de práticas ou de didática com alguma base que já fosse da nossa vivência e não somente de olhar”.

Ao refletir sobre a necessidade de aproximar a universidade e a escola de educação básica e de melhorar as condições de realização dos estágios, Lüdke (2009LÜDKE, M. Universidade, escola de educação básica e o problema do estágio na formação de professores. Formação Docente, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 95-108, ago./dez. 2009. , p. 104) diz:

[...] embora haja um debate consistente em torno da necessidade de aproximação dos dois loci principais de formação de professores (universidade e escola), ainda persiste um abismo grande entre eles, que dificulta o intercâmbio de saberes nesses espaços. É nesse sentido que projetos de pesquisa que envolvam universidade e escola, no esforço conjunto de parceria entre os professores da universidade e os da escola básica, são importantes, de modo especial para o desenvolvimento dos cursos de licenciatura e para a melhoria da docência, tendo no estágio o elo principal entre esses dois universos.

O estágio representa uma oportunidade de articulação entre a dimensão teórica e a dimensão prática, ambas indispensáveis à formação do futuro professor. Dessa forma, a instituição de ensino superior, por meio de políticas públicas adequadas, deveria proporcionar maior aproximação e integração entre os cursos de formação inicial e os campos de estágio, com o objetivo de contribuir tanto para a prática dos futuros professores como para a dos professores supervisores no campo de estágio.

Quanto ao segundo núcleo de significação, denominado “conhecimento sobre a profissão: caminhos e desafios para a sua construção”, percebeu-se que os aspectos relacionados à profissão foram pouco explorados na formação inicial. A fala de Mariana revelou a sua preocupação: “Hoje eu trabalho no município, mas eu sinto falta de ter visto legislação municipal, estadual e federal. O que nós temos direito? Qual é o plano de carreira do professor? Eu estou começando agora, então eu estou vendo o plano de carreira agora”.

Hoje há muitos estudos sobre o desenvolvimento profissional dos professores. Sabe-se que esse não ocorre somente no curso de formação inicial, mas ao longo de toda a sua trajetória. Por isso, tais questões poderiam ser mais bem exploradas nos cursos de formação inicial.

O terceiro núcleo de significação identificado com a análise das entrevistas é “a aula de matemática e a relação professor-aluno”. Na formação inicial, objeto desta pesquisa, os egressos destacaram a dimensão humana e relacional do trabalho docente e demonstraram valorizar o diálogo, os conselhos e até a amizade do professor com seus alunos. Em sua vida profissional, da mesma forma que afirmaram se colocar com autoridade em sala de aula, os egressos declararam dialogar com seus alunos, dar oportunidades para cada um se expressar e apresentar ideias sobre o assunto estudado. Para eles, na aula de matemática, o professor deve ser autoridade não no sentido de ser autoritário, mas sim de forma que seus alunos possam participar da aula com questões e sugestões. Eles demonstraram se preocupar com a diversidade, no sentido de perceber que cada aluno tem sua individualidade e aprende de forma diferente. Para lidar com os alunos com dificuldades, Larissa relatou:

Bom, eu expliquei e eu vi que o aluno não entendeu... Eu percebi que é dificuldade dele. O que eu faço? Geralmente, eu vou até ele, faço com que ele me explique o que ele não entendeu. [...] “O que você não entendeu? Mostra para mim a parte, o ponto que você está com dificuldade.” Eu o faço mostrar para mim e, se eu vejo que ele tem dificuldade de entender aquilo, eu o faço tentar fazer de outra forma.

As experiências apresentadas pelos egressos evidenciam que eles valorizavam o envolvimento dos estudantes nas atividades, que se preocupavam em adequar as atividades conforme as características de seus alunos, respeitando sua diversidade. Outro ponto a ser destacado foi o fato de que os egressos, quando do trabalho com as questões do cotidiano, consideravam os conhecimentos prévios de seus alunos, o que se identificou na fala de Mariana: “Dá para trabalhar com a realidade que eles veem em jornal, ou em reportagens... Eles estão sempre vendo alguma informação, e é essa informação que você tem que levar para a sala de aula”.

Ao pensar sobre as experiências relatadas pelos egressos, percebe-se que elas se aproximam da abordagem proposta por Vigotsky (2007VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 94):

Qualquer situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre uma história prévia. Por exemplo, as crianças começam a estudar aritmética na escola, mas muito antes elas tiveram alguma experiência com operações de divisão, adição, subtração e determinação de tamanho.

Dessa forma, observou-se a valorização dos conhecimentos cotidianos como fundamentos para a aquisição do conhecimento científico que deve ser ensinado na escola (Vigotsky, 2007VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.).

Na análise das práticas dos egressos, percebe-se que eles trabalhavam de acordo com o que consideravam importante na prática de alguns de seus professores formadores. Isso pode ser verificado também nos resultados do questionário, revelados por expressões como: “as aulas eram pouco atrativas e existia um vácuo entre professor e aluno. Procuro fazer exatamente o oposto” (egresso T.C.) e “Esses professores [...] para mim foram fundamentais e sempre procuro me espelhar neles quando estou diante dos meus alunos” (egresso L.G.). Os egressos manifestaram que, se as práticas de seus professores eram positivas, poderiam ser seguidas; se negativas, serviriam de contraexemplo, e a ação dos egressos em seu campo de atuação passaria a ser contrária. Mesmo apresentando dificuldades em trabalhar com a diversidade, eles procuravam envolver seus alunos, sempre considerando os conhecimentos prévios deles e auxiliando-os nas dificuldades. Esse perfil de professor é diferente daquele formado de acordo com o paradigma da racionalidade técnica, em que o professor é apenas um transmissor de conhecimentos e executor de rotinas.

Diante do exposto, ressalta-se a afirmação de Imbernón (2010IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010.) de que o desenvolvimento do conhecimento profissional do professor deve ser fomentado por processos reflexivos sobre a educação e a realidade educacional, incluindo os processos cognitivos e afetivos incidentes na prática profissional. Tal desenvolvimento deve ser o produto de uma práxis - processo não apenas de ensinar, mas também de aprender.

Considerações finais

O método de análise utilizado na pesquisa foi essencial para revelar os sentidos e significados dos egressos do curso de Licenciatura em Matemática. O terreno fértil da psicologia sócio-histórica permitiu às pesquisadoras partir do empírico, refletir sobre ele, teorizar e voltar a ele (empírico) com uma nova qualidade, explicando-o de modo a apreender as mediações constitutivas.

A pesquisa consistiu em um trabalho dialético, um movimento em que o pesquisador busca elementos para explicar a realidade e, nesse processo, se transforma na relação com os sujeitos investigados, na construção dos instrumentos, no processo de investigação, ao mesmo tempo que, de algum modo, interfere na realidade pesquisada.

As falas dos sujeitos na entrevista estão prenhes de sentidos e significados. Para apreender os sentidos, ou seja, ir além da aparência, as pesquisadoras tiveram de fazer um esforço interpretativo para compreender as contradições, buscar a constituição histórica do sujeito e as mediações nessa constituição. O sentido é, portanto, uma construção do pesquisador.

Além das contribuições apontadas, considera-se importante destacar o papel da teoria no processo de construção do conhecimento. Ela permitiu às pesquisadoras posicionarem-se diante da realidade e perceber que “a prática não fala por si mesma e exige, por sua vez, uma relação teórica com ela: a compreensão da práxis” (Vázquez, 2007VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 259).

A teorização por meio da construção de núcleos de significação, com base nas falas dos sujeitos da pesquisa, permitiu uma reflexão fundamentada sobre os cursos de formação inicial ao produzir explicações sobre processos, realidades em movimento, de modo a chegar a novas categorias, novas explicações ou mesmo reforçar explicações e análises já existentes.

Ao longo da pesquisa percebeu-se que o empírico é o momento em que a teoria se confronta com a realidade; por isso ele é inseparável do teórico, uma vez que as teorias são facilitadoras da compreensão dos fenômenos empíricos. O pesquisador, por meio de sua capacidade de reflexão, é o responsável pelas mudanças na teoria diante da pressão da realidade estudada. Sem as reflexões do pesquisador, a teoria transforma-se em um conjunto de categorias estáticas e naturalizadas. “O processo de construção teórica é um processo vivo no qual o pesquisador se converte em um núcleo gerador de pensamento que é parte inseparável do curso da pesquisa” (González Rey, 2005GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005., p. 34).

Os resultados da pesquisa realizada são muito importantes para pensar não somente sobre o curso de Matemática, como também sobre os demais cursos de formação de professores. A teorização por intermédio da construção de núcleos de significação, gerados pelas falas dos sujeitos participantes, permite uma reflexão fundamentada sobre os cursos de formação de professores ao produzir explicações sobre processos, realidades em movimento. A teorização comporta a manutenção da “crítica como norte e como companheira nesse caminho de investigar transformando, transformar na investigação, compreender para transformar” (Aguiar et al, 2009AGUIAR, W. M. J. et al. Reflexões sobre sentido e significado. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M. A dimensão subjetiva da realidade: uma leitura sócio-histórica. São Paulo: Cortez , 2009. p. 54-72., p. 70).

Com base nos resultados da pesquisa, entende-se que os cursos de formação inicial têm um papel muito importante, não apenas relacionado aos aspectos do conhecimento profissional do professor, mas a todos os aspectos do desenvolvimento profissional, comprometendo-se com o contexto social e cultural em que ocorre a formação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2016
  • Revisado
    20 Mar 2017
  • Aceito
    03 Maio 2017
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