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Editorial

Editorial

José da Rocha Carvalheiro

O Editor

Com este número completamos o primeiro ano da Revista Brasileira de Epidemiologia. Tem sido uma árdua batalha que estamos nos esforçando por vencer com auxílio dos leitores, colaboradores e, em especial, de nossos pareceristas ad hoc. Incluímos nele um Artigo Especial, um primeiro trabalho da seção Gavetas e Prateleiras, além de seis Artigos Originais.

Os Artigos Originais transitam por áreas variadas, obedecendo à dinâmica própria da Revista de publicar os artigos à medida em que passem pelo complexo processo de revisão pelos pares (peer review). Dois deles abordam a epidemia de aids, ambos provenientes de instituições situadas no Rio de Janeiro. Num, os autores (UNI-RIO, UERJ e FIOCRUZ) empregam modelos para estimar o número de casos de aids no Brasil, corrigindo pelo atraso da notificação e detectando, através da regressão de Poisson, mudança nos padrões de notificação após a introdução da distribuição gratuita dos anti-retrovirais. Noutro, os autores (UFRJ, UERJ e FIOCRUZ) empregam um modelo de regressão logística na análise de fatores de risco de infecção por HIV entre usuários de drogas injetáveis no Rio de Janeiro. Um artigo, de autoras da USP, analisa a questão do aborto com um recorte limitado aos registros de hospitalização na rede do Sistema Único de Saúde (SUS); ainda assim, foi possível identificar algumas características epidemiológicas importantes relacionadas com essa ocorrência em todo o Estado de São Paulo. Outro trabalho, também do Rio de Janeiro (UFRJ e UERJ), permite às autoras incursionar pela relação entre sobrepeso e pressão arterial em adolescentes de uma amostra de domicílios do Rio de Janeiro. Finalmente, dois trabalhos relacionam-se com diabetes. Num deles, do Instituto Nacional de Endocrinologia de Havana, Cuba, o autor correlaciona a duração do aleitamento materno em crianças cubanas com a presença de diabetes mellitus. No outro, de autores da University of Montreal, Canadá, e do Center for Nonlinear Science, do Texas, é analisado o processo de modelagem do diabetes na linha dos processos adaptativos complexos (processos fractais), reconstruindo a dinâmica do processo patológico que leva à doença; uma análise pouco freqüente na literatura epidemiológica que por certo causará polêmica.

O Artigo Especial, de Jaime Breilh, do Centro de Estudios y Asesoria en Salud (CEAS), de Quito, Equador, é baseado na Conferência que o autor pronunciou durante o Congresso Brasileiro de Epidemiologia, realizado no Rio de Janeiro, em 1998 (EpiRio 98). Contempla a contribuição da "nova" Epidemiologia, ou Epidemiologia crítica, ao debate sobre a sociedade e a modernidade. O autor, um dos mais respeitados na América Latina, aborda a contribuição do Continente ao debate teórico no marco da complexidade da hegemonia e da contra-hegemonia no campo da saúde pública e da epidemiologia. É notável a maneira como aborda a relação conflituosa da epidemiologia com a gerência, tal como a propõe o "pós-modernismo conservador" , que nega o passado (gerência reativa) e o futuro (gerência prospectiva) e assume a gestão de um "eterno presente" como a única capaz de lograr uma atividade real e eficaz. Nesta perspectiva de uma dialética do passado, do presente e do futuro, incorporando o Princípio da Determinação, encontra-se a raiz de uma Epidemiologia da Esperança e da Dignidade, que preserve seu objeto social, sem renunciar a técnicas de apoio oriundas de outros ramos da ciência.

Inauguramos neste número a seção Gavetas e Prateleiras, com a finalidade de resgatar textos importantes que tenham marcado época pelo seu significado no campo teórico, metodológico ou mesmo pela riqueza de um relato factual. Poderão ser inéditos (as gavetas) embora divulgados informalmente, o que é uma tradição em nossa área. Preferivelmente serão publicações "clássicas" de grande repercussão, ou mesmo precursores que tenham passado (quase) despercebidos, sempre com grande potencial de gerar polêmica e/ou controvérsia que alimente a seção correspondente da Revista (as prateleiras). Esperam-se indicações dos leitores para textos nesta seção.

A primeira contribuição para esta seção é curiosa. Como se verá na apresentação do Editor convidado, José Ruben de Alcântara Bonfim, o documento escolhido como inaugural somente teve uma edição extremamente limitada, quase um mimeografado. Embora uma publicação da extinta Fundação SESP, do Ministério da Saúde, não se encontra em nenhum registro oficial. Não consta também de nenhum dos registros de publicações dos autores. É, portanto, uma espécie de híbrido entre uma gaveta e uma prateleira. Destaco dois aspectos relevantes. Um, relacionado com a verdadeira obra de arqueologia que o Editor especial, José Ruben realizou; outro, com a obra em si. Acompanhar o trabalho do Editor especial foi fascinante: com a estreita colaboração do Dr. José Esparza, da UNAIDS, em Genebra, foi possível ter acesso às atas da Assembléia Mundial de Saúde em que os brasileiros "Maneco" Ferreira e Ernani Braga apresentaram o Economic value of health. Daí a ter um levantamento completo da Bibliografia do final da obra foi uma distância enorme, coberta pelo Editor especial com pertinácia. Descobrir quem foi o autor principal, Paulo de Assis Ribeiro, e seu papel de relevo intelectual no IBGE, um verdadeiro achado. Perceber que a seção da Assembléia Mundial de Saúde em que a questão da economia em saúde foi introduzida teve a presença de dois vultos que marcaram este século: o sanitarista Winslow e o economista Myrdal. Enfim, descobrir no autógrafo que um dos autores (Manoel Ferreira) escreveu, dedicado ao Professor Pedreira de Freitas, a cuja Biblioteca particular pertenceu o exemplar resgatado, sua curiosa opinião pessoal sobre sua obra: "se o seu problema é insônia, eis o remédio". Quanto ao trabalho em si, é instigante a maneira como há quase cinqüenta anos, no limiar de um novo período, após a tragédia da Segunda Guerra Mundial, já havia uma preocupação de medir a saúde e a doença do ponto de vista econômico. Numa visão produtivista, baseada nos gastos diretos e indiretos com a manutenção da saúde e as perdas devidas à morte prematura e à doença. Passados quarenta anos, em 1993, o Banco Mundial lança suas idéias de privatização das ações de saúde mais complexas, de uma cesta básica de ações mais simples. E introduz uma medida única para a carga da doença, com pesado componente econométrico. No intervalo, diversas outras tentativas foram feitas. Ressalte-se, ao menos, a do National Center for Health Statistics, dos E. U. A., que aproveitou seus inquéritos domiciliares de morbidade referida para compor um indicador sintético de tempo de vida perdido devido à doença e à morte, além de outros possíveis indicadores de anos de vida perdidos prematuramente. O trabalho que ora divulgamos é um importante precursor. Esperamos que tenha o mérito de iniciar na Revista um importante debate sobre este tema tão atual. Fizemos um esforço especial para atualizar as fórmulas do texto, desenhadas à mão no original. Não podemos terminar sem antes citar do texto pelo menos uma das observações impregnadas de intenso humor, tão próprias de nossos queridos e saudosos Ferreira e Braga: Após a abolição da escravatura, a idéia de atribuir um valor financeiro ao homem foi quase abandonada por algum tempo. No sistema antigo , pelo menos, apenas uma pequena parcela da população tinha um valor em dinheiro e o homem livre valia menos que o escravo.

Passado tanto tempo, o tema volta a nos perseguir.

Tenham todos uma boa leitura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1998
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