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A construção discursiva sobre a dengue na mídia

Resumos

O objetivo deste artigo é compreender o tratamento dado pela imprensa pernambucana à dengue, doença que vem afetando cada vez mais os brasileiros. Tendo como ponto de partida a epidemia explosiva registrada no Brasil em 2002, buscamos compreender os efeitos de sentido produzidos, avaliando as estratégias discursivas utilizadas em 2002, 2004, 2006 e 2008. Para tanto, selecionamos as 291 matérias e notas veiculadas no Jornal do Commercio do Recife (Brasil) nesses anos, abordando a situação da dengue em Pernambuco, além dos registros da virose realizados pela Secretaria de Saúde de Pernambuco. De forma complementar à análise, propomos a elaboração do diagrama midialógico, que busca estabelecer uma relação entre os textos da imprensa e os casos notificados da doença. Os resultados indicam que o noticiário costuma acompanhar, em geral, a curva epidemiológica da moléstia, com algumas diferenças em determinados períodos do ano, conforme o agendamento da imprensa, indicando o apelo da dengue como fenômeno midiático.

Dengue; Diagrama midialógico; Discurso jornalístico; Epidemia; Memória discursiva; Noticiabilidade


The aim of this paper was to understand how the media in the state of Pernambuco portrays dengue fever, a disease that is affecting more and more Brazilians. Taking the explosive epidemic of 2002 as the starting point, we tried to understand the effects of meaning produced by the press in a comparative discourse strategy analysis used in 2002, 2004, 2006 and 2008. We selected 291 articles and notes published in the Jornal do Commercio (Recife-Brazil), on the situation of this viral disease in the state of Pernambuco in the four years. We also analysed dengue fever surveillance reports published by the health department of Pernambuco. To complement discourse analysis, we proposed the construction of a medialogy diagram, a graphic representation that tries to establish a relationship between newspaper texts and number cases of dengue reported. Results indicate that media coverage generally followed the development of dengue fever cases, with more news published during the epidemic periods and showing the appeal of the illness as a mass media phenomenon despite its risk to the Brazilian people.

Dengue fever; Discourse memory; Epidemic; Journalistic discourse; Medialogy diagram; Newsworthiness


ARTIGOS ORIGINAIS

A construção discursiva sobre a dengue na mídia

Luiz Marcelo Robalinho Ferraz; Isaltina Maria de Azevedo Mello Gomes

Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE

Correspondência Correspondência: Luiz Marcelo Robalinho Ferraz Rua Maria Ramos, 1153/02, Bairro Novo Olinda, PE CEP 53030-050 E-mail: marcelorobalinho@yahoo.com.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é compreender o tratamento dado pela imprensa pernambucana à dengue, doença que vem afetando cada vez mais os brasileiros. Tendo como ponto de partida a epidemia explosiva registrada no Brasil em 2002, buscamos compreender os efeitos de sentido produzidos, avaliando as estratégias discursivas utilizadas em 2002, 2004, 2006 e 2008. Para tanto, selecionamos as 291 matérias e notas veiculadas no Jornal do Commercio do Recife (Brasil) nesses anos, abordando a situação da dengue em Pernambuco, além dos registros da virose realizados pela Secretaria de Saúde de Pernambuco. De forma complementar à análise, propomos a elaboração do diagrama midialógico, que busca estabelecer uma relação entre os textos da imprensa e os casos notificados da doença. Os resultados indicam que o noticiário costuma acompanhar, em geral, a curva epidemiológica da moléstia, com algumas diferenças em determinados períodos do ano, conforme o agendamento da imprensa, indicando o apelo da dengue como fenômeno midiático.

Palavras-chave: Dengue. Diagrama midialógico. Discurso jornalístico. Epidemia. Memória discursiva. Noticiabilidade.

Introdução

A dengue é uma das preocupações atuais da saúde pública brasileira. Apesar de ter perdido espaço no noticiário em 2009 para a pandemia de gripe A(H1N1) que assolou o planeta, ela nunca deixa de ser notícia pela característica de apresentar ciclos epidêmicos que atingem em maior ou menor grau a população, a depender da circulação viral e das condições ambientais que favoreçam a infecção. Ao lado da AIDS, a dengue surgiu de fato e se tornou conhecida no país na década de 80 do século XX, quando foram registradas sucessivas epidemias em diversas cidades brasileiras, começando pelo Rio de Janeiro e se disseminando para outras localidades.

Em Pernambuco, o mosquito Aedes aegypti (transmissor da doença) foi identificado no final de 1984 em 90 municípios do Estado. Com a reintrodução do vírus e a ocorrência da primeira epidemia no Rio, em 1986, o monitoramento começou a ser adotado pelas autoridades de saúde. Ainda no mesmo ano, foram notificados os primeiros registros, sendo casos importados de Alagoas e do Ceará, sobretudo. O primeiro surto - já com a constatação do vírus circulando no território pernambucano - ocorreu em 1987 (2.118 casos), como pode ser visto na Tabela 1.

Com exceção do ano de 1989, Pernambuco vivenciou um hiato na notificação de casos até 1995, quando voltou a contabilizar novos registros de dengue, iniciando uma segunda epidemia, provocada pela introdução do DENV-2.1 A partir de então, a doença passou a ser uma realidade para os pernambucanos, especialmente nos primeiros semestres de cada ano, período em que há historicamente maior número de casos. A epidemia de 2002 - causada pela introdução do terceiro sorotipo (DENV-3) no Brasil e de característica explosiva por envolver "em pouco tempo a quase-totalidade das pessoas atingidas" e ter a progressão rápida dos casos como critério diferenciador2 - constituiu um acontecimento significativo para a saúde pública no Estado. Houve 116.245 notificações, sendo 96.470 casos confirmados de dengue clássica e 340 do tipo hemorrágico, além de 20 mortes, sendo determinante para a mídia divulgar amplamente o assunto.

Tendo em vista a força da dengue no agendamento da mídia, sobretudo com o registro de epidemias da última década para cá, buscamos analisar os discursos produzidos na imprensa pernambucana nos anos de 2002, 2004, 2006 e 2008, tendo a grande epidemia de dengue de 2002 como ponto de partida. Optamos pelo meio jornal para buscar compreender como um objeto simbólico escrito, com enunciados estabilizados, produz sentidos. Um dispositivo de legibilidade no qual o "peso das palavras" desempenha um papel de prova para estabelecer a verdade, como diz Charaudeau (2006, p. 113)3. Para o autor, a mídia escrita tem como característica:

[...] uma relação distanciada entre aquele que escreve e aquele que lê, a ausência física da instância de emissão para com a instância de recepção; uma atividade de conceitualização da parte das duas instâncias para representar o mundo, o que produz lógicas de produção e de compreensão específicas; um percurso ocular multiorientado do espaço de escritura, que faz com que o que foi escrito permaneça como um traço para o qual se pode sempre retornar: aquele que escreve, para retificar ou apagar, aquele que lê, para rememorar ou recompor sua leitura.

O Jornal do Commercio (Recife-Pernambuco) foi o veículo escolhido como material do estudo por ser um dos três periódicos pernambucanos mais importantes e com maior tiragem no Estado. Possui uma média de circulação paga de 31.847 exemplares vendidos às terças-feiras (dia de menor circulação), chegando a 65.028 exemplares no domingo (dia de maior circulação)4. Outro fator foi a importância dada pelo jornal ao tema saúde. A preocupação e o interesse pelo assunto são confirmados por meio dos resultados de um levantamento que vem sendo feito anualmente, desde 2004, pelo Instituto Ipsos Marplan, a pedido do próprio JC. O intuito é avaliar os assuntos de maior interesse do seu público (Gráfico 1).


Observando o interesse dos leitores por temáticas ligadas à saúde, entendemos em parte o privilégio que a dengue teve, e ainda tem, dentro do jornal. Isso porque, pensando nos assuntos de interesse do público-leitor, a doença poderia ser incluída tanto no conjunto temático saúde/bem-estar/qualidade de vida e medicina/descoberta científica/cura quanto em atualidades/notícias do momento, especialmente se considerarmos os períodos de maior risco da dengue, como na epidemia de 2002, quando foram produzidos 144 textos jornalísticos, ou em 2008, ano em que a dengue voltou a ameaçar novamente Pernambuco, levando o periódico a publicar 106 matérias.

Neste artigo, concentramos a análise nas matérias, reportagens e notas, já que a quantidade de textos publicados sobre a doença (291 ao todo) aponta para uma dupla importância da dengue: como fenômeno epidemiológico e midiático. Complementando o nosso trabalho, buscamos estabelecer uma relação entre os textos da imprensa e os casos notificados da doença. Para isso, construímos um dispositivo gráfico que nomeamos de diagrama midialógico da dengue, pois foi inspirado na metodologia de acompanhamento realizada pela saúde pública. O diagrama midialógico nos ajudou a compreender a sazonalidade da mídia na abordagem à dengue, sendo um instrumento auxiliar de aprofundamento das análises, a partir da visualização dos momentos de silêncio e superexposição da dengue nas páginas do jornal.

Para construção do diagrama midialógico, selecionamos os textos do JC e as notificações da doença a fim de avaliar a evolução do noticiário em paralelo ao registro de casos. Acreditamos que os resultados obtidos nos ajudaram no aprofundamento das análises. Por apontar questões interessantes nos anos estudados, a intenção foi examinar com mais atenção os discursos produzidos pela imprensa, sobretudo nos períodos de crescimento dos registros da dengue (com foco nas epidemias) e decréscimo, além dos momentos em que as matérias não acompanharam a curva epidemiológica.

O discurso, a memória e o jornalismo

A presença cada vez maior da dengue levou a um envolvimento dos veículos de comunicação na divulgação de notícias. Pela posição privilegiada que ocupa no espaço público, a mídia se configura num locus de sentidos importante. Em grande parte, as informações de que dispomos sobre a dengue advêm da divulgação da imprensa, tendo como base a fala de diferentes atores relacionados ao assunto: gestores, médicos, cientistas, cidadãos e pacientes, para citar os mais expressivos. Baseada nessas falas e na própria evolução da doença, a mídia foi, e vai, construindo o seu discurso e consolidando o arcabouço de informações e valores que permeiam a dengue.

Sabemos que essa construção não partiu apenas do presente. O passado também é fundamental para o entendimento que temos das doenças, sobretudo as infecciosas, que respondem hoje em dia por mais de 25% das mortes anuais no mundo5. Articulando, então, passado e presente, a mídia foi construindo a sua própria memória da dengue, tendo a epidemia como fio condutor para produção dos sentidos. O evento epidêmico de 2002 é um exemplo recente dessa memória na construção discursiva nos anos seguintes.

Acontecimento epidemiológico que afeta o ecossistema da saúde, a epidemia se inscreve na memória pela imprevisibilidade e a singularidade6. Falar de epidemia nos remete à desordem causada pelo caráter acidental da doença em larga escala, provocando mortes e afetando a rotina das cidades. Por isso, elas adquirem um sentido simbólico no cotidiano das sociedades contemporâneas, diz Barata (1990, p. 385)7:

Na área da saúde, o papel preponderante dos meios de comunicação irá se revelar nas situações coletivas, como as epidemias, quando a população se vê indistintamente ameaçada, isto é, a importância da imprensa, enquanto canal de informação/reivindicação, é mediatizada pelo caráter mais ou menos coletivo do agravo em questão, bem como pelo potencial de difusão social do problema.

Para a Análise do Discurso (AD), o discurso é concebido como a linguagem sendo posta em prática no meio social; um trabalho simbólico de produção de sentidos constitutivo do homem e de sua história, conforme Orlandi (2007, p. 15)8:

A Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico está na base da produção da existência humana.

Nessa concepção, o discurso é visto como estrutura de uma prática de linguagem que alia atualidade e memória ao mesmo tempo. Tomando como base significados criados anteriormente (a memória), o discurso se constitui a partir de acontecimentos novos, que desmancham regularizações existentes, fazendo surgir um novo sistema por meio de um jogo de forças que visa manter o já-produzido e, em sentido contrário, modificar os sentidos existentes9. Na AD, a memória tem um papel importante por "invocar" os elementos pré-construídos, ou seja, traços existentes em outros enunciados.

As reflexões sobre discurso e memória discursiva levaram ao desenvolvimento do conceito de interdiscurso, ao constatarem que os discursos não estão isolados, e sim articulados entre si. Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 286, grifos dos autores)10 determinam dois sentidos para o interdiscurso: um mais restritivo, referindo-se a um espaço discursivo, "um conjunto de discursos (de um mesmo campo discursivo ou de campos distintos) que mantém relações de delimitação recíproca uns com os outros"; e outro mais amplo, como "o conjunto das unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores do mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros gêneros etc.) com os quais um discurso particular entra em relação implícita ou explícita".

Discutir a respeito do interdiscurso é também avaliar como os sentidos foram sendo produzidos pela mídia com base na memória de outras doenças. Embora as moléstias tenham características distintas, os sentimentos que envolvem cada uma delas - adoecimento, medo, mal, risco, morte e epidemia - mobilizam redes partilhadas de memória sobre enfermidades em geral11. No caso das matérias sobre saúde, fazemos correlação com as epidemias. Consideradas acontecimentos significativos ao tratarmos de doenças, sobretudo as infecciosas (por afetarem parte ou o conjunto da sociedade), as epidemias são determinantes para a mídia divulgar o assunto, configurando-se num acontecimento discursivo de grande apelo e fazendo evocar o passado. Foi assim com a gripe A (H1N1), cujo registro da pandemia levou a imprensa a noticiá-la permanentemente na fase inicial de descoberta do vírus e dos primeiros casos, vinculando-a ao horror vivenciado durante a gripe espanhola no final dos anos 1910, quando cerca de 22 milhões de pessoas morreram12. Costuma ser assim com a dengue, cujas epidemias fazem com que os veículos divulguem notícias com mais intensidade, discursivizando um maior risco de o mosquito transmissor infectar e matar11.

O aparecimento de doenças em coletividades tem um forte apelo jornalístico pela atualidade, singularidade, peso social e magnitude do fato, ao levarmos em conta os principais critérios de noticiabilidade de um fato13. Foi assim em 2002, quando a epidemia se enquadrou em quase todas essas características de marcação. Já em 2008, o aumento de casos de dengue e as mortes foram o principal motivo para a doença ser notícia, tendo valores-notícia semelhantes aos de 2002, com base em uma experiência-memória discursiva recente.

Os critérios de noticiabilidade têm relação direta com a noção de agenda-setting, desenvolvida nos anos 70 por McCombs e Shaw14. Segundo esse conceito, através dos fatos que se tornam notícia, a mídia define os temas que serão ou não discutidos pela opinião pública, modificando, de certa maneira, a realidade social, de acordo com Barros Filho (2001)15. Daí, Traquina (2000) ter descrito o processo de agendamento como interativo, uma vez que a agenda pública influencia a mídia e vice-versa16.

Além disso, há que se considerar a credibilidade que a mídia tem na sociedade. Por retratarem as transformações da realidade e registrá-las, os meios de comunicação alcançaram uma posição de "porta-voz oficial dos acontecimentos" e com "poder de elevar os acontecimentos à condição de históricos", conforme Ribeiro (2005, p. 115)17. Segundo esta autora, isso leva os veículos a produzirem enunciados sobre a realidade social aceitos como verdadeiros. "O que passa ao largo da mídia é considerado, pelo conjunto da sociedade, como sem importância" (p. 115). Para a autora, esse fenômeno decorre do mito da neutralidade e da imparcialidade, criado em meados do século XIX com o jornalismo informativo e que se consolidou no século seguinte, com o advento do conceito de objetividade (bastante questionado, diga-se de passagem).

O mito da objetividade, por mais que já tenha sido exaustivamente criticado pelos próprios jornalistas e pelos teóricos da comunicação, é um dos grandes responsáveis pela acolhida que o jornalismo tem. Ainda hoje, o seu discurso se reveste de uma aura de fidelidade aos fatos que nos leva a acreditar que o que "deu no jornal" é a verdade. Além disso, por mais que os estudiosos provem a não-objetividade jornalística, nunca poderão negar a sua ancoragem factual.

[...]

O discurso jornalístico possui, assim, uma certa objetividade, um efeito de sentido, produzido por suas próprias estratégias enunciativas. E é essa objetividade o que lhe atribui, nas sociedades contemporâneas, o estatuto de porta-voz das verdades factuais. (2005, p. 117-8, grifos da autora)17

Embora a mídia tenha a pretensão de atuar a favor da democracia, não podemos esquecer que ela apresenta uma finalidade dúbia. Segundo Charaudeau, essa ambiguidade decorre do fato de ser um organismo especializado o qual atua sob duas lógicas: uma democrático-cidadã, que torna públicas as informações de interesse geral, participando assim da construção da opinião pública, e outra comercial, que capta o público com um produto economicamente rentável, que é a notícia3. Uma mercadoria especial que responde aos apelos e demandas mercadológicas18.

Uma leitura dos discursos sobre a dengue

Neste artigo, fizemos a análise com auxílio do diagrama midialógico da dengue, proposto por nós e inspirado na lógica de acompanhamento da saúde pública. De concepção simples e diferente do diagrama de controle (usado para acompanhar a evolução da dengue), o nosso gráfico traz os textos jornalísticos e os casos notificados. A intenção é visualizar a sazonalidade na abordagem à dengue como prática midiática, observando se a maior "incidência" de notícias se deu na mesma época em que os registros de casos aumentaram ou se ocorreu de maneira diversa (Gráfico 2).


Pela grande diferença numérica entre casos e matérias, inserimos uma escala no lado direito, em que se vê o número de matérias (em preto), variando de 0 a 60, e outra no lado esquerdo, na qual estão os registros de dengue (em cinza), que vão de 0 a 45.000. Apesar de as colunas pretas estarem bem próximas, às vezes até acima, da área pintada de cinza, há uma grande diferença quantitativa entre as duas variáveis. Daí a necessidade de se observar os números nos dois lados. A opção pela dupla escala foi feita para reunir as duas variáveis em um só gráfico de forma a ter uma visão global intuitiva e imediata da ligação entre esses dois grupos, evitando assim uma distorção que ocorreria se houvesse apenas uma escala.

Em termos de cobertura, verificamos que a imprensa costuma acompanhar a evolução da dengue, publicando mais textos no primeiro semestre dos anos estudados do que no segundo. Essa tendência também ocorre com a distribuição mensal de casos de dengue em Pernambuco. Historicamente, os registros são mais numerosos nos seis primeiros meses do ano, devido a uma correlação entre mudanças na temperatura e ocorrência de chuvas. Aliado a isso, o Estado ainda enfrenta, há décadas, a intermitência no abastecimento, obrigando a população a armazenar água muitas vezes de forma inadequada, favorecendo nas estações secas a proliferação do mosquito vetor19.

Pela leitura do diagrama midialógico, identificamos dois momentos em que a curva de matérias acompanhou a de notificações, algo que já era esperado, uma vez que agenda pública influencia a mídia, a exemplo da ocorrência de epidemias e calamidades. Esses dois momentos a que nos referimos coincidiram com os períodos epidêmicos de maior magnitude nos anos 2000. O primeiro deles ocorreu no início de 2002, com a epidemia explosiva. Foram publicados 144 textos no Jornal do Commercio, dos quais 119 no primeiro semestre (82,6% do total), sobretudo nos meses de fevereiro e março (94 textos). Comparando com as notificações, o noticiário teve uma influência direta do aumento de registros. Pelos dados, foram notificados 116.148 casos, sendo 111.729 no primeiro semestre de 2002 (95,7% do total). O Quadro 1 traz as manchetes daquele período, influenciadas pela evolução da dengue no início da epidemia.


Verificamos que contextos de epidemia ou de risco de epidemia levaram o JC a publicar matérias numa quantidade bem superior aos períodos sob controle. O aumento de casos e as mortes por dengue possuem um apelo jornalístico forte, impondo uma cobertura permanente do desenrolar dos acontecimentos, devido à ameaça provocada pela doença. Discursivamente, vimos que o noticiário reforçou o enfoque dado ao dizer notificador. Nas manchetes, o verbo confirmar - que significa "afirmar a verdade ou a exatidão", "validar", "comprovar"20 - foi bastante utilizado como estratégia enunciativa do jornal. Além de confirmar, o verbo atingir apareceu nos títulos das matérias, exprimindo o sentido de "chegar até" e "alcançar". Amparado nos números fornecidos pela saúde pública, o jornal mediatizou os registros de casos e conferiu sentido à doença atingindo os corpos e confirmando, pouco a pouco, um quadro de possível descontrole.

Ainda nessa fase da cobertura, observamos o uso dos termos "dengue hemorrágica", "saúde" e, sobretudo, "epidemia" nas estratégias de titulação das matérias. Todos eles, especialmente este último, tornaram-se significantes para produção de sentidos. Fausto Neto (1999, p. 62)21 afirma que o uso de termos específicos como esses na edição dos títulos do jornal cria uma subagenda sobre a temática em questão dentro da agenda cotidiana definida pelo veículo de comunicação. "Através dele, o jornal anuncia uma espécie de 'encontro marcado' com o leitor". Assim, a epidemia ocupou um espaço privilegiado e visível ao público no Jornal do Commercio, conferindo sentido às manchetes.

O segundo momento em que a curva de matérias acompanhou a de notificações ocorreu no fim do primeiro trimestre de 2008, quando houve um aumento importante de casos, levando a imprensa a intensificar a cobertura (Gráfico 2). Saíram 106 textos sobre a doença, das quais 99 nos primeiros sete meses do ano (93,3%), com destaque para abril, maio e junho (88 textos), período em que o número de registros também cresceu.

Pelas manchetes selecionadas é possível identificar o sentido negativo dado à dengue. A nosso ver, as noções de medo e mal estão intimamente ligadas à produção de sentidos das doenças infecciosas, transmitidas por um agente biológico (no caso da dengue, um vírus). Nessas enfermidades transmissíveis, a materialização da doença no contexto da coletividade expõe a noção do "mal" se alastrando no território e espalhando o medo entre as pessoas. Apesar de não ter a marca de outras enfermidades, como a hanseníase (a antiga lepra), a AIDS e o câncer, que marcaram a memória pelas mudanças visíveis no corpo, a dengue traz consigo o risco potencial de morte, sobretudo pelo maior desenvolvimento da forma hemorrágica. Entender essa ameaça é fundamental para entender o estado de alerta da mídia diante do aumento de casos e suspeitas de óbitos.

Nos quatro anos pesquisados, observamos também que as iniciativas do poder público para controlar a dengue tiveram espaço privilegiado no jornal, sobretudo com a constatação do aumento de casos e o registro das primeiras mortes. Dos 291 textos produzidos pelo JC em 2002, 2004, 2006 e 2008, as matérias sobre mutirões de combate e anúncios de novas medidas somaram 27,5% do total. Assim, o Aedes aegypti se converteu no grande "vilão", o qual era necessário combater, eliminando seus criadouros. O quadro 2 reúne trechos de matérias reforçando esse combate.


No Brasil, o uso de metáforas bélicas nos remete às primeiras campanhas de vacinação, a exemplo da estratégia empreendida por Oswaldo Cruz no início do século XX para conter a epidemia de varíola12. Os conceitos de contenção e vigilância, de inspiração militar, surgiram depois da Primeira Guerra, sendo utilizados pela saúde pública, que adotou a visão do "inimigo" para combater os problemas sanitários da época. Posteriormente, esses termos foram assimilados pela imprensa na construção do seu discurso ao tratar de doenças, segundo Gomes (2000, p. 190, grifos da autora)22:

[...] nas matérias que envolvem o desenvolvimento de drogas contra doenças, as pesquisas também são tratadas como uma guerra, com o uso de expressões como desafio, estratégia, ataque, alvo e comandado. Por pertencerem a um outro contexto, tais expressões funcionam como recursos precisos no sentido de ressemantizar o que é enunciado.

A nosso ver, o discurso de guerra presente nos enunciados jornalísticos sobre a dengue reforça a ideia de uma doença difícil de ser controlada, demandando a adoção de verdadeiras "táticas" para conter a sua expansão. Esse tipo de discurso foi observado nos trechos destacados através do uso de termos bélicos, tais como reforçar o combate, exército de combate, combate à dengue, armas, ocupar palmo a palmo o território da cidade, luta contra a dengue, visitar, identificar e destruir. Discursivamente, esse fenômeno caracteriza o papel da memória discursiva na produção de significados, a partir do momento em que a mídia retoma não apenas sentidos do passado das doenças, como também sentidos comuns ao campo militar para consolidar o arcabouço de informações e valores que permeiam a dengue.

Considerações finais

Possivelmente nenhuma outra doença infecciosa tenha tido tanto espaço nos últimos anos no noticiário quanto a dengue, devido à ocorrência cíclica de epidemias e o risco de morte pela forma hemorrágica, que representa uma ameaça cada vez maior. A dengue encontra sempre lugar cativo na imprensa, tornando a experiência da doença mais comum para a população pela ampla divulgação do assunto.

Pela análise empreendida neste artigo, constatamos que a epidemia costuma ser priorizada pela imprevisibilidade, novidade, peso social, proximidade geográfica, impacto sobre o público e perspectivas de evolução do acontecimento, praticamente todos os critérios que norteiam a noticiabilidade de um fato. Além disso, a noção de epidemia resgata discursivamente a memória de antigas pestes na constituição de sentidos, trazendo à tona nas matérias noções como medo, mal, morte e risco, ligadas às moléstias que fizeram história no passado11. A partir da ideia de proximidade do perigo, provocada a cada nova epidemia, a imprensa valoriza assim o descontrole como forma de conferir significado à dengue. Talvez por isso mesmo, o uso de metáforas bélicas - bastante comuns tanto na fala dos gestores da saúde quanto no próprio discurso midiático - é uma forma de corresponsabilização da sociedade, que é chamada a fazer parte do "exército" nas "batalhas" contra a dengue.

Ações pautadas pela corresponsabilidade entre governo e população vêm sendo, aliás, enfatizadas cada vez mais como forma de garantir sucesso no combate à dengue. Apesar de a mobilização social fortalecer a cidadania e a consciência sanitária e promover a configuração de um ambiente saudável23, os discursos midiáticos têm levado, nos últimos anos, à culpabilização da sociedade de um modo geral, como se ela fosse a responsável pela situação da dengue. Diante da inviabilidade de erradicação do mosquito Aedes aegypti, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu, desde 1995, a participação da comunidade envolvida e de todos os setores da sociedade como um dos elementos básicos para prevenir e controlar a dengue, segundo Guzmán e Kourí24. Ao avaliar o tratamento dado pela imprensa à dengue, acreditamos ser importante promover uma discussão sobre o assunto, lançando luzes no repensar as estratégias de controle e prevenção da dengue também no âmbito da comunicação.

A elaboração do diagrama midialógico como instrumento auxiliar de análise do noticiário nos ajudou a visualizar os momentos de superexposição da doença, bem como os períodos de "silêncio", reconhecendo que a dengue é uma doença sazonal não apenas do ponto de vista epidemiológico, como também midiático. Esse fenômeno poderia ser explicado pela teoria do agendamento, que, segundo Pena (2006, p. 142), "defende a ideia de que os consumidores de notícias tendem a considerar mais importantes os assuntos que são veiculados na imprensa, sugerindo que os meios de comunicação agendam nossas conversas"25. A ênfase dada à dengue na cobertura mostra também a tendência da imprensa de valorizar determinadas moléstias em detrimentos de outras, como a hanseníase e a tuberculose, consideradas doenças negligenciadas pelo Ministério da Saúde e que representam entrave ao desenvolvimento de um país26.

Em nossa opinião, a análise dos dados nos dá indicações de como a mídia pode ser sensibilizada quanto à importância de se falar sobre a dengue em períodos diferenciados do ano. Mais que cumprir com o seu papel de divulgar informações completas e de forma transparente, os órgãos governamentais podem e devem incentivar a adoção de hábitos saudáveis na imprensa, estimulando um conhecimento mais amplo dos jornalistas sobre o campo da saúde.

Por outro lado, os próprios meios de comunicação também podem e devem reavaliar a sua cobertura, buscando abordar outras questões que permeiam o assunto dengue, mas que são pouco exploradas nas reportagens. Dentre eles podemos destacar o saneamento básico e o racionamento d'água (que favorecem a proliferação do mosquito Aedes aegypti). Além disso, a importância da prevenção poderia ser enfocada nos momentos em que ainda é possível eliminar os criadouros, e não apenas nos períodos epidêmicos, quando as ações de combate e o discurso de guerra propalado pela mídia buscam apenas garantir domínio ao desequilíbrio, não auxiliando na alteração do curso da doença.

Por fim, consideramos que a ênfase dada à dengue no noticiário indica caminhos para avaliação do comportamento da mídia em relação a outras moléstias que também representam risco à população brasileira, como a leptospirose, a hanseníase, a tuberculose, a AIDS e a própria gripe A (H1N1), a fim de verificar o peso que o campo jornalístico confere às diferentes enfermidades.

Recebido em: 16/08/10

Versão final apresentada em: 20/02/11

Aprovado em: 01/05/11

* Este artigo é derivado da dissertação de mestrado de Ferraz (2010), financiada pela bolsa de estudos do Programa Reuni de Assistência ao Ensino-UFPE.

Agradecimentos ao estatístico francês Olivier Georger pela ajuda na confecção do diagrama midialógico.

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  • Correspondência:
    Luiz Marcelo Robalinho Ferraz
    Rua Maria Ramos, 1153/02, Bairro Novo
    Olinda, PE CEP 53030-050
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      16 Ago 2010
    • Aceito
      01 Maio 2011
    • Revisado
      20 Fev 2011
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