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Contra as secas: estudos, planos e obras para o semiárido do Brasil

Against droughts: studies, plans and works for the semiarid region of Brazil

FERREIRA, A. L; DANTAS, G. A. F; SIMONINI, Y. . (org.). Contra as secas: técnica, natureza e território. Rio de Janeiro: Letra Capital; INCT/Observatório das Metrópoles, 2018, 406p. ISBN 978-85-7785-578-0

Em 2018, a editora Letra Capital e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/Observatório das Metrópoles publicaram o livro Contra as secas: técnica, natureza e territórioFERREIRA, A. L .; DANTAS, G. A. F .; SIMONINI, Y . (Org.). Contra as secas: técnica, natureza e território. Rio de Janeiro: Letra Capital; INCT/Observatório das Metrópoles, 2018., organizado pelos professores Angela Lúcia Ferreira, George Alexandre Ferreira Dantas e Yuri Simonini. A obra é fruto dos trabalhos do Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do Urbanismo (HCUrb), sediado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Apresentado pelos professores Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (IPPUR/UFRJ) e Maria Lucia Caira Gitahy (FAUUSP), o livro reúne parte da relevante produção acadêmica do HCUrb sobre a temática das secas no semiárido do Brasil, escrita por uma soma de autores com olhares e formações sólidas e diversas, notadamente nas áreas de arquitetura e urbanismo, história e geografia. Garantem-se assim leituras e análises consistentes e multidisciplinares, necessárias quando se pretende abordar as vastas questões que envolvem a problemática dos períodos de escassez hídrica na porção setentrional do país. Mais do que uma discussão localizada e regionalizada sobre provimento de água, realização de obras públicas e disputas políticas, oligárquicas e orçamentárias, como não raro acontece, o assunto está no cerne dos processos de constituição da nação e da formação e modernização do território brasileiro - e do seu inverso também.

Em suas mais de quatrocentas páginas, a coletânea de textos trata da emergência das secas como problema nacional e de sua formulação simultânea como questão técnica e científica a ser enfrentada pelo Estado, contemplando um recorte temporal que se inicia na segunda metade do século XIX e vai até a segunda metade do XX, do império à ditadura militar, com resquícios e reflexões que rebatem até a atualidade. Na transição dos séculos, parte dos meios técnicos e políticos brasileiros enxergava a instabilidade do regime de chuvas nos chamados sertões do Norte como responsável por um conjunto de mazelas econômicas e sociais que tensionavam a integração do país, em termos físicos e políticos, e atravancavam seu desenvolvimento rumo ao proclamado progresso, às lógicas do mundo capitalista em expansão. Diante do quadro, seria necessário superar as adversidades ocasionadas pelo fenômeno climático, “lutar contra as secas”. Isso resultou em uma série de ações que buscaram compreender e transformar o território, fazendo da semiaridez um campo de conhecimentos e práticas logo institucionalizados no Brasil, depois da criação, pelo governo federal, da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS, 1909), mais tarde batizada de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS, 1919) e, desde 1945, Departamento Nacional Contra as Secas (DNOCS). Das inúmeras iniciativas elaboradas antes e a partir da estruturação do órgão, as principais se ocuparam do esquadrinhamento científico dos territórios semiáridos e do desenvolvimento de estudos, planos e obras de intervenção no espaço que fossem capazes de estabilizar os meios de vida e fixar a população sertaneja, majoritariamente pela recomposição florestal e pela dotação de redes de infraestruturas hídricas e viárias.

Caminhando por esse universo, o livro (FERREIRA; DANTAS; SIMONINI, 2018FERREIRA, A. L .; DANTAS, G. A. F .; SIMONINI, Y . (Org.). Contra as secas: técnica, natureza e território. Rio de Janeiro: Letra Capital; INCT/Observatório das Metrópoles, 2018.). explora e costura abordagens diversas, fundamentais para a compreensão das muitas e complexas camadas que compõem o cenário: os embates e as conciliações entre natureza, técnica e sociedade; as relações entre o fenômeno das secas e os debates para a modernização do país; os discursos e as representações que colaboraram com a gestação das ideias de sertão e Nordeste; a circunscrição das zonas semiáridas e a configuração do espaço regional nordestino; a consolidação da engenharia e dos engenheiros como campo disciplinar e categoria profissional munidos das ferramentas necessárias para a transformação do meio e a consequente conquista do progresso; a formação de uma cultura técnica moderna dedicada a particularidades da geografia nacional; as obras contra as secas como ações de planejamento e ordenação territorial; as infraestruturas hídricas e viárias como sistemas de articulação e desenvolvimento para o semiárido brasileiro; as discussões ambientais que atrelaram alterações climáticas e desmatamento da caatinga; a construção de uma paisagem moderna para os sertões. O repertório de assuntos transita por extensões espaciais que vão da macro à microescala, adentrando temas de interesse da história, geografia, ciências sociais, arquitetura, planejamento urbano e regional, cartografia, meio ambiente, engenharias. Unindo todas as perspectivas, procedimentos metodológicos rigorosos, o levantamento amplo de documentação primária e os exercícios acurados de sistematização e análise.

Com base nessas premissas, o livro é dividido em três partes e onze capítulos. A primeira parte problematiza as secas e o sertão. A discussão se inicia com um percurso sobre os significados da palavra sertão e de como o termo foi associado ao espaço das secas, ou de que maneira as secas delimitaram um espaço geográfico, com especificidades físicas, socioeconômicas e culturais. Para além de aspectos etimológicos e semânticos, os autores mapeiam o uso do vocábulo ao longo do tempo, mobilizando escritos desde os primeiros momentos de colonização do Brasil até o princípio dos novecentos. Relatos de viajantes nacionais e estrangeiros, comissões técnicas e científicas, intelectuais, escritores, imprensa, políticos e demais personagens colaboraram no processo de construção histórica da ideia de sertão. De um sentido amplo e impreciso, que designava as áreas afastadas do litoral e dos centros urbanos de todo o território brasileiro, heterogêneo e sem limites definidos, os sertões (no plural) tornaram-se o sertão (no singular) nordestino, das secas, plasmando sentidos que ajudaram a edificar uma leitura até hoje estereotipada sobre o lugar, frequentemente acessada de acordo com os interesses de ocasião. O sertão como lugar inóspito, áspero, incivilizado, que precisava ser transformado, integrado ao país. Foi nesse contexto que surgiram muitos dos diagnósticos e das justificativas para as intervenções capitaneadas pelo Estado.

A análise continua e se aprofunda no capítulo seguinte, com foco nas relações estabelecidas entre natureza, sociedade e sertão. Com o pressuposto de que a região Nordeste também é definida por sua paisagem singular, na qual a natureza é elemento central e evocador de identidades (botânica, clima), o autor traça uma linha histórica dos vínculos entre os homens e o meio natural da caatinga. O texto avança do relato das convivências dos povos originários com a semiaridez, passando pelas ações antrópicas disparatas pelas lógicas da colonização, até a construção técnica e científica do problema das secas do século XIX em diante. Nesse contexto, sobressaem as visões que entendiam o meio físico como responsável pelos infortúnios causados pelos períodos de estiagem, compatíveis com as teorias mesológicas e deterministas da época. Como consequência, muitos esforços se direcionaram para pensamentos e iniciativas de intervenção e modificação da natureza, alimentando debates científicos de matrizes variadas, e por vezes discordantes. Uma das teses investigadas defendia que, para estabilizar o clima, e combater as secas, seria necessário proteger e recompor as florestas do semiárido, com o intuito de resguardar as bacias hidrográficas e aumentar a umidade da região (em conjunto com a evaporação das águas acumuladas nos açudes), elevando os índices de precipitação. Independentemente de algumas compreensões equivocadas e reduzidas do passado, e do que se pode tirar de lição para as urgências presentes, o fato ganha revelo por estar situado nos primórdios das preocupações e discussões ambientais, lançando as bases que se encaminharam para o estabelecimento de uma legislação federal de proteção das florestas brasileiras.

A primeira parte se encerra situando o processo histórico de delimitação técnica das secas. Os autores examinam as primeiras tentativas de organização dos debates sobre o assunto em meados do século XIX, com a criação de comissões técnicas e científicas dedicadas à questão e com a realização de fóruns nas entidades de classe dos engenheiros. A intensidade desses movimentos consolidou o olhar científico para a instabilidade pluviométrica nos sertões do Norte, constituiu um campo disciplinar para lidar com suas especificidades e originou uma série de propostas e ações para superar o problema. É interessante observar que foi ainda nos oitocentos que surgiram muitas das premissas que estruturaram as políticas para o semiárido no século subsequente: a aposta em um modelo de desenvolvimento econômico e social centrado nos recursos hídricos, com a construção de açudes e sistemas de irrigação que promovessem a agricultura moderna e o assentamento da população sertaneja, evitando as migrações em massa. Isso foi pensado em paralelo ou em articulação com uma política de maior integração do território nordestino ao país, por meio da construção de redes viárias (ferrovias, rodovias) e telegráficas. As convergências sobre a urgência da questão e em torno de algumas ideias culminaram com a institucionalização da temática da semiaridez, com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, em 1909. A repartição federal não se fundou como um caso isolado no mundo. Sua organização se referenciou em experiências internacionais similares, como a congênere estadunidense Reclamation Service, e representou um momento de crença positivista no progresso, na ciência e nas soluções técnicas como caminhos possíveis para promover a transformação e a modernização das zonas semiáridas do país.

A segunda parte do livro é composta de cinco capítulos que tratam da construção do território das secas. Inicialmente, as atenções se voltam para a classe dos engenheiros. O texto mapeia a formação e a consolidação da categoria profissional e sua emergência como agente de modernização do Brasil - apta, portanto, a lidar com os problemas das estiagens nos sertões. A pesquisa revela um contexto de intensos debates e conexões entre o campo da engenharia (profissionais, escolas, entidades, publicações) e o Estado, no sentido de constituir uma engenharia nacional forte e direcionada para os interesses da nação. Elevados ao status de intelectuais e pensadores do país, os engenheiros se vestiram de autoridade técnica para elaborar os diagnósticos e as soluções que conduziriam o Brasil ao progresso, mediante a intervenção e a transformação de suas áreas rurais e urbanas. Aqui, é interessante notar que muitos dos principais nomes da engenharia estavam comprometidos com o processo de modernização do país em perspectiva ampla, com atuação em várias frentes, da ordenação territorial, passando pela reforma e o planejamento das cidades, até as obras contra as secas, como foram os casos de André Rebouças, Aarão Reis e Saturnino de Brito. Foi esse cenário que fez da IOCS/IFOCS uma instituição sobretudo de engenheiros e da engenharia.

Os três textos seguintes dialogam com os três principais eixos que estruturam as políticas “contra as secas”: i) obras viárias (ferrovias, rodovias), ii) obras hídricas (poços, açudes, perímetros irrigados) e iii) proteção das florestas e reflorestamento. O primeiro faz um apanhado da implementação das ferrovias no Brasil e no Nordeste especificamente, com foco no estado do Rio Grande do Norte. Desde o século XIX, as discussões, os planos e as realizações ferroviárias no semiárido estiveram vinculadas aos desejos de integração econômica e política do vasto território nacional, a interesses de interligação entre portos litorâneos e centros econômicos regionais e às políticas de enfrentamento das estiagens. Como previsto em seu regulamento inicial, a IOCS assumiu a atribuição de planejar e construir estradas de ferro nos sertões, incumbência que foi substituída de maneira paulatina pelo modelo rodoviarista, notadamente a partir da década de 1930. O desenho de muitas dessas redes de circulação foi imaginado de forma articulada às obras hídricas, com o intuito de dinamizar uma lógica econômica alicerçada, sobretudo, no represamento das águas. Essa relação pode ser observada no capítulo seguinte, no qual o autor transita por quase cem anos da política de açudagem no semiárido brasileiro, com ponto de origem na grande seca de 1877. O texto explora como a construção de barragens se tornou uma das principais estratégias para a superação da instabilidade climática. O entendimento era de que pequenos, médios e grandes açudes, públicos ou particulares, funcionariam como elementos estabilizadores dos meios de vida e de produção, garantindo segurança hídrica para a manutenção e o desenvolvimento de atividades nas cidades e, especialmente, no campo. Questionável, a política de açudagem teve larga implementação, fazendo do Nordeste brasileiro “a segunda região do mundo em quantidade de reservatórios” (p. 216). O debate em torno dos três eixos se fecha com um percurso histórico sobre as questões ambientais no Brasil, suas relações com a problemática das secas e do modo como a discussão avançou para a construção de um aparato legal de proteção das águas e florestas nacionais.

Ao fazer uma análise entre as secas e a ordenação do território do Nordeste, o capítulo que encerra a segunda parte do livro funciona como uma espécie de síntese dos temas até então apresentados. O mote são as políticas implementadas no semiárido brasileiro como ações de planejamento e estruturação do espaço regional nordestino, do estabelecimento da IFOCS, em 1919, até a fundação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959. O autor discorre sobre as principais bases teóricas e conceituais do campo do planejamento regional na Europa e nos Estados Unidos, assim como sobre seus rebatimentos no Brasil da primeira metade do século XX. Com isso, é traçado um interessante paralelo entre as ideias em circulação no país e no mundo e as inciativas de órgãos estatais como a IOCS/IFOCS/DNOCS, a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e a Sudene. Esse percurso institucional seguiu os avanços dos modos de pensar e agir sobre a região, que caminhou do planejamento feito por engenheiros e com foco nas transformações do meio, com o protagonismo das soluções hidráulicas, até o planejamento que teve como ponto de partida a reestruturação das matrizes econômicas do Nordeste e do país, de acordo com os pressupostos estabelecidos por intelectuais como Celso Furtado. Por fim, e tomando o histórico das obras contra as secas, o capítulo abre uma discussão relevante acerca dos primórdios do planejamento regional no Brasil.

A terceira e última parte da publicação contempla as cartografias do sertão. Os três capítulos da seção partem da produção de mapas da IOCS para analisar aspectos relacionados às representações gráficas que retratam o semiárido brasileiro, à vegetação da caatinga e ao longo debate sobre a transposição do rio São Francisco, que remonta ao século XIX. As exposições são precedidas e cruzadas por um escopo teórico pertinente que problematiza a cartografia como instrumento de representação da realidade. No caso da inspetoria, uma de suas primeiras e grandes frentes de trabalho foi a realização de estudos e levantamentos acerca dos sertões do Norte, de modo a ampliar o conhecimento sobre o lugar e, assim, subsidiar os planos de intervenção. Nesse cenário, a elaboração de mapas ocupou lugar de destaque. Longe de terem sido apenas operações técnicas, os textos mostram como o esquadrinhamento dos relevos, das bacias hidrográficas, da botânica e das infraestruturas existentes, dentre outros interesses, também significou a ampliação do poder e do controle do Estado sobre a região, contribuindo inclusive com a construção histórica do espaço regional nordestino. Com esses entendimentos em comum, os autores percorrem os contextos de confecção das peças, voltam às cartografias que antecederam a inspetoria, identificam métodos e profissionais envolvidos e, por fim, interpretam as informações à luz da época e do presente.

Em diálogo com outras chaves de análise, igualmente importantes e necessárias para a compreensão do tema, a obra direciona os olhares para um viés ainda pouco investigado no meio acadêmico, especialmente no campo da arquitetura e urbanismo: a dimensão técnica das secas, ou a relação entre o problema da semiaridez e a formação de uma cultura técnica moderna no Brasil. O texto final discute essa perspectiva, apresentando questões metodológicas, teóricas e conceituais que guiaram e alinhavaram o conjunto das abordagens selecionadas. A exposição é seguida por uma lista com breves biografias dos engenheiros e demais profissionais citados no decorrer dos capítulos, o que ajuda a ampliar as percepções acerca tanto da formação como da circulação desses agentes pelo país e pelo mundo. Assim, por tudo o que foi apresentado, o livro Contra as secas: técnica, natureza e território (2018) é referência importante para os estudiosos dos processos de modernização do Brasil, da temática das secas e de outros muitos assuntos relevantes tratados ao longo da obra.

Referências

  • FERREIRA, A. L .; DANTAS, G. A. F .; SIMONINI, Y . (Org.). Contra as secas: técnica, natureza e território. Rio de Janeiro: Letra Capital; INCT/Observatório das Metrópoles, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2021
  • Aceito
    30 Ago 2021
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