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Ao encontro do corpo: teorias da performatividade para um debate diferencial sobre espaço urbano

Meeting the Body: Performative Theories for a Differential Debate on Urban Space

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar a centralidade do corpo como orientação do pensamento nos estudos urbanos, a partir das teorias da performatividade de Sara Ahmed, Karen Barad e Judith Butler. Nossos pressupostos partem da importância da experiência vivida encorporada, tanto do ponto de vista epistemológico como do método, para compreender a potência teórico-metodológica e intelectual do pensamento do corpo numa perspectiva materialista, fenomenológica e feminista interseccional do espaço urbano. Partimos do entendimento de que a abordagem positivista se mantém na prática dos estudos urbanos, conformando uma barreira histórica para novas condutas de pesquisa. Como contraponto a tal modelo, apresentamos a ideia de esparramação do corpo através de uma orientação queer/estranha, compreendendo o próprio corpo como algo que é capaz de orientar (ou desorientar) o espaço, mesmo diante da precariedade cotidiana vivida, diferencialmente, por corpos generificados, racializados e sexualizados. Nossa perspectiva almeja processos de resistência transformadora, inclusive de interpretação do cotidiano, para desenraizar os rastros positivistas dos pensamentos hegemônicos sobre o espaço urbano.

Palavras-chave:
Performatividade; Corpo; Espaço Urbano; Epistemologia

Abstract

The main purpose of this article is to present the centrality of the body as an orientation in thinking for the urban studies, based on the theories of performativity by Sara Ahmed, Karen Barad and Judith Butler. Firstly, our assumptions asserts the importance of the embodied lived experience, both from the epistemological and the method points of view, to understand the theoretical-methodological and intellectual power of thinking the body in a materialistic, phenomenological and feminist intersectional perspective of the urban space. We assume that the positivist approach remains in the practice of urban studies, forming a historical barrier to new research conducts. As a counterpoint to such a model, we present the idea of spreading the body through a queer orientation, understanding the body itself as something that is capable of orienting (or disorienting) space, even with the daily precariousness experienced, differentially, by gendered, racialized and sexualized bodies. Our perspective aims at processes of transformative resistance, including for the interpretation of daily life, to uproot the positivist traces in the hegemonic theories about urban space.

Keywords:
Performativity; Body; Urban Space; Epistemology

1. Primeiras questões

As motivações que atravessam este artigo são muitas. A primeira delas, talvez a mais importante, refere-se ao diálogo das autoras no âmbito de um corpo-coletivo de discussão de pesquisadoras feministas, que permitiu um encontro e reconhecimento como grupo. Um corpo-coletivo de pesquisa que expressa um processo de construção do conhecimento dialógico, crítico, radical e encorporado1 1 Ao longo do artigo, utilizamos grifos em itálico de quatro formas distintas: (1) para termos que conformam a proposição conceitual da análise, vinculados à ideia de esparramação e encorporação elaboradas ao longo do texto; (2) para palavras estrangeiras, como queer, seguindo com o grifo para as variações e extrapolações conceituais que propomos a partir de cada termo, como estranhado, estranhamento etc.; (3) para especificações de conceitos que compõem elaborações teóricas específicas - neste caso, salientamos que os termos grifados encontram-se referenciados com os nomes das autoras e dos autores que os propõem, grafados em itálico apenas em sua primeira aparição; (4) para ênfase de algumas expressões e palavras específicas, sempre em diálogo com a perspectiva teórica do artigo. das nossas experiências como acadêmicas, o qual, a nosso modo, valoriza nossas incertezas e desejos como alavanca fundamental para estabelecer rupturas da reprodução sistêmica do cotidiano (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.). O entendimento de que a perspectiva positivista nos estudos urbanos persiste entre nossos pares e se conforma historicamente como uma barreira significativa para discussão de novas abordagens epistemológicas precisa ser explicitado. Nesse sentido, este artigo apresenta reflexões com base nas teorias da performatividade e queer, interpretadas como caminhos de confrontação crítica aos entendimentos hegemônicos sobre espaço urbano no campo do urbanismo e do planejamento urbano, de modo a contribuir para novas condutas de pesquisa.

De forma geral, há a crença de que o espaço pode moldar corpos e práticas sociais. Os modernistas, particularmente, difundiram tal ideia por meio das utopias urbanas, em resposta à chamada crise das cidades industriais do século XIX (CHOAY, 2007CHOAY, F. O Urbanismo - utopias e realidades. Uma antologia. 6ª Edição. Tradução: Dafne Nascimento Rodrigues. São Paulo: Perspectiva, 2007.). Em contraposição, como há muito aprendemos com Massey (1994MASSEY, D. Space, place, and gender. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.; 2009MASSEY, D. Pelo espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009.), a implicação coetânea de distintas lógicas espaço-temporais atravessa as dinâmicas de produção social do espaço em geometrias de poder sempre móveis e constitutivas de materialidades sócio-históricas. Apesar desse questionamento, ainda é preciso pensar no corpo de forma mais direcionada, já que a ideia de sujeitos encorporados (tanto aqueles que importam quanto os que não importam para a vida social) como agentes que interferem e moldam o espaço urbano é marginal em nosso campo de estudos. Então, aqui, interrogamos como as teorias queer e da performatividade podem contribuir para a compreensão histórica e dialética do espaço urbano e abrir brechas para o entendimento de que os corpos não são apenas moldados, mas também transformam o espaço. O modo como os corpos se orientam e, ao mesmo tempo, desorientam no espaço modifica a ordem das coisas (AHMED, 2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.). Como intelectuais feministas, esse é um ponto-chave.

Historicamente, como acadêmicas, estamos buscando esparramar nossos corpos no espaço a partir de práticas no cotidiano, inclusive em reivindicações e em disputas teórico-acadêmicas. Nessa direção, estruturamos uma narrativa que perpassa a ideia de esparramar passagens possíveis para novos pensamentos críticos e propositivos, com vistas ao reposicionamento da experiência vivida encorporada, tanto do ponto de vista epistemológico como do método, aspirando a construção de um terreno fértil de diálogo com quem quiser se aliar a esse processo de ruptura com os rastros positivistas dos pensamentos hegemônicos no campo de estudos urbanos e regionais.

A compreensão da esparramação do corpo via uma orientação espacial queer estranha se fundamenta na concepção de níveis distintos de apropriação do espaço que podem ser desvelados no modo como esse mesmo corpo esparramado orienta ou desorienta as espacialidades urbanas. Consideramos esses níveis de apropriação como processos de resistência que ocorrem cotidianamente frente ao poder homogeneizador dos espaços orientados para enquadrar os corpos e absorver as diferenças. Ou seja, propomos a esparramação do corpo como uma ideia produtora de uma contrarresistência da indiferença. Tal concepção nos serve de base para os questionamentos teóricos delineados ao longo do texto, operando como um desdobramento de argumentos estratégicos e epistêmicos para a condução de abordagens diferenciais e críticas nos estudos urbanos.

Trata-se de uma aposta nas críticas, por um lado, ao espaço da economia política, à luz de encorporações performativas generificadas, racializadas e sexualizadas, e, por outro, à dimensão da experiência do vivido, iluminada pelas geo-histórias político-econômicas. Caminhar nesse “entre”, por meio das teorias da performatividade, é uma forma de nos contrapormos à visão homogeneizadora de espaço urbano, assim como de pesquisas, também homogeneizadoras, sobre o tema. Como enfoque, damos centralidade à problematização da materialidade do corpo a partir das teorias da performatividade de Sara Ahmed, Karen Barad e Judith Butler, apontando para a potência teórico-metodológica e intelectual de uma perspectiva materialista, fenomenológica e feminista interseccional do espaço urbano.

2. Episteme e poder: o que conta como teoria? (ou) Corpos importam!

Considerando as reflexões de Sandra Harding (1986HARDING, S. The science question in feminism. Ithaca: Cornell University Press, 1986), Donna Haraway (1988HARAWAY, D. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, v. 14, n. 3, 1988, p. 575- 599.), Isabelle Stengers (2013STENGERS, I. Une autre science est possible! Manifeste pour un ralentissement des sciences. Paris: Éditions La Découverte, 2013.) e outras intelectuais que complexificaram o debate crítico sobre o que se convencionou chamar Ciência, suspeitamos da invariável parcialidade de qualquer sistema de pensamento teórico e filosófico, em especial dos arcabouços que buscam responder a uma ideia de totalidade por meio da revelação da “verdade” por trás das aparências, como se a objetividade do mundo estivesse à espera de certa racionalidade para ser descoberta. Tomamos esse engajamento crítico com a produção do conhecimento como uma herança das onto-epistemologias2 2 Onto-epistemologia refere-se à proposição sobre à inseparabilidade entre a ontologia (formas de “ser”) e a epistemologia (formas de “conhecer”), advogada por distintas correntes de pensamento feminista e correntes afins ao que se convencionou chamar de pós-estruturalismo. feministas para nossas práxis com as espaço-temporalidades urbanas e com as práticas discursivas a partir das quais estas últimas se coconstituem.

Observamos os ruídos dessa herança aparecem nos questionamentos sobre “o que conta como teoria?” e nos enquadramentos sobre conhecimento, verdade, sujeito, objeto etc., tidos como fundamentos não questionados para sustentá-la. Um entrelaçamento com a Teoria Crítica nos é particularmente importante: a realidade é produzida em movimento dialético no e através do imaginário social. Ou seja, a realidade produz-se consubstancialmente à produção do pensamento, que, por sua vez, é constituído pelos próprios objetos que ele enquadra, a fim de serem questionados em sua tentativa de apreender a realidade. A forma como e o que somos capazes de pensar numa dada conformação geo-histórica - aquilo que contará como teoria legítima de explicação da realidade - compõem-se com a construção sociopolítica do saber e certamente estão implicados em geografias da produção do conhecimento, inscritas por e nas relações macro e micro-ético-políticas de poder.

Esse ruído é precioso em nossa leitura do espaço urbano, pois nos engaja em discordâncias epistemológicas e teóricas em distintos campos do saber que o têm como objeto, ainda que alguns corpos de pensamento se façam como historicamente hegemônicos. Desse ângulo, devemos pontuar que o debate sobre a cumplicidade histórica da prática discursivo-científica sobre o urbano com o projeto positivista instrumental a serviço das estruturas político-econômicas do capitalismo não é novo, já tendo sido analisado em sua atuação como instrumento de territorialização do capital e como direcionador dos fluxos de produção e da divisão social do trabalho, assim como em sua relação ambígua com as práticas discursivas da política e da democracia liberal (MASSEY, 1994MASSEY, D. Space, place, and gender. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.; ARANTES, 2000ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 11-74.; MARICATO; 2000MARICATO, E. As ideias fora do lugar e o lugar fora das idéias: Planejamento urbano no Brasil Em: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos . Petrópolis: Editora Vozes , pp. 121-192, 2000.; LEFEBVRE, 2008LEFEBVRE, H. La production de l'espace. 4ª Edição. Paris: Anthropos, 2000.).

O amplo campo do saber dedicado ao urbano é também atravessado por outros questionamentos cruciais para as epistemologias feministas. Não passa despercebida a problematização feita ao domínio da causalidade econômica em certos paradigmas da economia política da urbanização, limitados conceitualmente ao debate redistributivo de bens e infraestruturas urbanas por meio de conteúdos derivados das relações do capital na esfera da produção. Essa foi uma das primeiras contestações intelectuais feministas, ainda na década de 1970/80, as quais estenderam as interpretações da economia política ao reinscrevê-las em temas associados à reprodução social. Assim, a crítica feminista apostou em análises do urbano baseadas na divisão sexual do trabalho e nos papéis sociais atribuídos pelo binarismo de gênero, incorporando a construção sociocultural da domesticidade e da vida privada ao quadro analítico dos processos de urbanização (PEAKE, 2017PEAKE, L. Feminism and the urban. In: SHORT, J. R. (org.). A Research Agenda for Cities. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2017, p. 82-97.).

Tampouco passa despercebida às leituras feministas a idealização da transformação social em corpos intelectuais que se opõem ao pensamento positivista instrumental, mas que, ao mesmo tempo, reproduzem um paternalismo ao reafirmar o popular - ou os “oprimidos” -como objeto de reabilitação da vida coletiva. Como polemiza Topalov (1991TOPALOV, C. Saberes sobre a cidade: tempos de crise? Espaço e Debates, v.11, n.34, 1991, p. 28-37.), um popular a ser esclarecido, salvo de sua passividade e alienação, com a ajuda daqueles que, como intérpretes legítimos das verdadeiras necessidades da existência social, sabem estudá-lo. Na mesma linha, Ana Clara Ribeiro (2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.) nos provoca a compreender o ponto de vista da alienação como um dos argumentos estruturantes de leituras das condições de vida urbanas - análise que, segundo ela, é responsável por uma visão arrogante, moralista e precipitada da própria experiência urbana, relegando a possibilidade de interpretação da realidade a racionalidades alternativas sobre o cotidiano.

Ao trazer esses aspectos, desejamos destacar que a própria construção do objeto espaço urbano é intrínseca à constituição do campo científico que o estuda, juntamente da definição das problemáticas que serão consideradas legítimas e dos modelos cognitivos que o tornam inteligível segundo determinadas categorias de descrição e análise. Dito de outra forma, dialeticamente, o objeto espaço urbano, que parece emergir como realidade objetiva através das análises socioespaciais, é o efeito das práticas discursivo-científicas que o produzem como objeto e que nele intervêm. Cabe, então, somarmos às vozes de Jennifer Robinson (2006ROBINSON, J. Ordinary cities: Between Modernity and Development. Londres: Routledge, 2006.) e Ananya Roy (2016ROY, A. What is urban about critical urban theory? Urban Geography, v. 37, n. 6, pp. 810-823, 2016. DOI: 10.1080/02723638.2015.1105485.
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): o que se encontra em jogo atualmente no pensamento sobre o espaço urbano é o próprio terreno ético-político da teorização do urbano e até mesmo do espaço, se acrescentamos a perspectiva da filosofia espacial de Doreen Massey (2009MASSEY, D. Pelo espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009.).

Seguindo esta direção, propomos que as teorias da performatividade podem contribuir para a tarefa de desenraizar os rastros positivistas dos pensamentos hegemônicos sobre o espaço urbano, pois elas são capazes de submeter à crítica não apenas as representações, as categorias e os conceitos com os quais pensamos e intervimos no urbano, mas também, e principalmente, as condições de inter-relação entre materialidade e significação que viabilizam a própria construção dessas mesmas representações, categorias e conceitos (BARAD, 2017BARAD, K. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria. Revista Vazantes, v. 1 n. 1, 2017, p. 07-34.). Façamos, então, algumas delimitações mais explícitas a respeito da noção de performatividade com a qual estamos nos engajando.

Karen Barad (2017BARAD, K. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria. Revista Vazantes, v. 1 n. 1, 2017, p. 07-34.) utiliza as reflexões de Joseph Rose para examinar o que ela denomina pensamento representacionista, um subproduto da divisão cartesiana entre interno (sujeito, mente) e externo (realidade, corpo), articulado em um arranjo tripartido da ciência positivista: (i) de um lado, o sujeito conhecedor, que elabora a representação; (ii) do outro, a realidade/objeto a ser conhecida/o, configurando o que será representado; (iii) entre os dois termos, o conhecimento, que se apresenta como as representações da realidade. A função mediadora da representação torna o conhecedor (sujeito) e o conhecido (objeto) entidades substancializadas, como se possuíssem conteúdos inerentes a si mesmos, autocontidos. Ademais, no polo do conhecedor, o pensamento positivista da representação ainda assume a forma de categorias ontológicas essencializadas, configurando o que Maria Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. v. 22, n. 3, 2014, p. 935-952., p. 935) chama de pensamento categorial da modernidade colonial, que “organiza o mundo ontologicamente em categorias atômicas, homogêneas e separáveis”. Essa forma ontológica de categorização nos interessa particularmente pois seguimos a argumentação de Lugones, que a entende como a principal condicionante da lógica opressora do sistema de pensamento que põe em operação dicotomias hierárquicas de raça, gênero e sexualidade e metrifica o sujeito. Em outras palavras, torna o sujeito uma variável possível de ser calculada e quantificada na prática de pesquisa, além de produtivamente controlado nas distintas formas de existência social.

A crença de que tanto o sujeito como o objeto são entidades atômicas substanciais, independentes das múltiplas práticas que os constituem como sujeito e objeto, é também uma “crença na distinção ontológica entre as representações e aquilo que elas pretendem representar” (BARAD, 2017BARAD, K. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria. Revista Vazantes, v. 1 n. 1, 2017, p. 07-34., p. 10). Como se aquilo que é categorizado (o que nós categorizamos) preexistisse às práticas de representar e nomear. Esse é um ponto nevrálgico das teorias da performatividade: deslocar o enigma positivista do como (ou quanto) uma representação é capaz de corresponder à realidade observada em questões sobre inter-relações entre práticas discursivas e fazeres sociais que produzem a realidade. O foco passa a ser a relação entre materialidade e significação, isto é, como os sujeitos e os objetos são constituídos por meio das relações de poder que os tornam possíveis e inteligíveis. Ao contrário do que se imagina:

[...] a performatividade é precisamente a contestação do poder excessivo dado à linguagem [às representações e categorias] de determinar o que é real. Assim, em irônico contraste com a má compreensão que equipararia a performatividade a uma forma de monismo linguístico, considerando a linguagem como substância da realidade, a performatividade é na verdade uma contestação dos hábitos mentais irrefletidos que concedem à linguagem e a outras formas de representação mais poder para determinar nossas ontologias do que elas merecem. (BARAD, 2017BARAD, K. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria. Revista Vazantes, v. 1 n. 1, 2017, p. 07-34., p. 9)

De distintas formas, o pensamento representacionista e categorial é exatamente o que é desafiado pela noção de performatividade nas teorias feministas pós-estruturalistas, pós-coloniais e decoloniais, bem como na teoria queer. Encontra-se, aqui, uma crítica do sujeito: sua compreensão como entidade atomizada, posicionada como um universal racional no arranjo tripartido positivista, só é possível se este for abstraído de subjetivação. Esse sujeito universal (abstrato, racional e neutro da Ciência) dissimula sua particularidade masculinista3 3 Masculinista não é o antônimo de feminista. Significa um sujeito que defende os direitos dos homens por acreditar que o feminismo os oprime; como se o movimento contra a misoginia, o machismo e o sexismo tivesse trazido desvantagens aos homens. , branca, cis-heteronormativa, e sua localização norte-eurocêntrica privilegiada. Além disso, a construção mítica da posição abstrata universal de um sujeito que é, afinal, particular é indissociável da consolidação do saber-poder da modernidade colonial, oportunizada, por sua vez, pela própria constituição sócio-histórica desse sujeito (ocidental, colonizador, masculino, branco, heterossexual), simultânea à constituição dos seus outros (OYEWUMI, 2003OYEWUMI, O. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2003.; QUIJANO, 2005QUIJANO, Al. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.; FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Ed. UFBA, 2008.).

O desdobramento dessa crítica é uma ruptura epistêmica: qualquer conhecedor é uma corporeidade geo-histórica situada, tal como as teorias que ele é capaz de produzir. Abre-se, então, o desafio de questionar como a mítica do sujeito chega à materialidade. Trata-se de interrogar a própria instância de possibilidade de existência do sujeito encorporado a partir da ideia de esparramação no espaço, a qual não deixa de ser uma aliança paradoxal de corpos com o espaço.

É nessa direção que Judith Butler (2015BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.; 2017BUTLER, J; ATHANASIOU, A. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica , 2017.), inspirada em Michel Foucault, pensa o paradoxo da subjetivação: o sujeito é o efeito produtivo de processos ambivalentes e tênues da sua sujeição a múltiplas forças que organizam as matrizes sociais, políticas, econômicas e culturais. Em paradoxal simultaneidade com as relações de poder, nossa ontologia se refere aos efeitos de sermos interpeladas por relações sociais situadas e localizadas no espaço-tempo que nos constitui, no qual, desde o início, somos nomeadas por termos que nunca escolhemos para nós mesmas e que nos formam como seres reflexivos, antes mesmo de formarmos nossa vontade (ou consciência). A partir desse paradoxo de sujeição-constituição, Butler (2018)BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. propõe a ideia de que toda vida é precária em sua constituição, pois o próprio surgimento do sujeito é interdependente das forças sociais que o permitem emergir como vida passível de ser vivida (ou não) e de se aliar (ou não) politicamente.

Entretanto, seguindo Butler, ainda que toda vida seja precária em sua constituição, nem todas estão suscetíveis à mesma precariedade: alguns corpos são tornados abjetos e descartáveis pelos regimes de regulação de inteligibilidade de existências que diferenciam aqueles que serão considerados mais ou menos humanos (LUGONES, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. v. 22, n. 3, 2014, p. 935-952.). Essa diferenciação corporal valorativa que marca o humano distribui, desigualmente, as formas de precarização, expropriação, exposição à injúria, violência e morte, constrangendo algumas existências mais do que outras (BUTLER; ATHANASIOU, 2013BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Dispossession: The Performative in the Political. Cambridge: Polity Press, 2013.). É preciso dizer: vidas feminizadas, vidas racializadas negras e não brancas/ocidentalizadas, vidas não heteronormativas, vidas queer etc. estarão corporalmente marcadas em sua exposição à precarização, estimadas como menos humanas na balança dos corpos que importam para a vida social.

Assim, da perspectiva da performatividade, falar da marcação de precariedade nos corpos é ter em conta a produção da materialidade desses corpos como efeito produtivo de múltiplas relações sociais. Significa considerar, por exemplo, que a hierarquia social por gêneros - aquilo que torna as vidas feminizadas mais expostas à precariedade - adquiriu materialidade por meio de práticas históricas de generificação dos corpos, chamadas de tecnologias de gênero por Teresa de Lauretis (1994LAURETIS, T. Tecnologias do gênero. In: HOLLANDA, H. (org.) Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.). Nesse sentido, corporeidades masculinas e femininas são ficções sociais que se efetivam materialmente em relações de generificação, junto de processos heteronormativos4 4 Heteronormatividade é um termo amplamente utilizado por distintas correntes de pensamento feminista empenhadas em problematizar a força compulsória da heterossexualidade por meio da crítica às múltiplas normas sociais regulatórias que a produzem como parâmetro de normalidade para a sexualidade. Como padrão de sexualidade sócio-histórico que regula o modo como as sociedades ocidentais estão organizadas, uma de suas consequências é a perpetuação das várias formas de violência contra pessoas que “escapam” à norma heterossexual, habitualmente agrupadas na sigla LGBTQI+. de sexualização dos corpos, em um regime de organização social da diferença sexual pela gestão coletiva da energia reprodutiva (PRECIADO, 2019 PRECIADO, P. Femmes en psychanalyse. Palestra na Journées 49 de l'ECF (Ecole de la Cause Freudienne), realizada em 17.nov. 2019. (42m26s) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&t=378s&fbclid=IwAR19qdtqtM4R2amdVK9vQkEd6SDvLmpT-i8dM10ed3YVMBZGdWB7PCqIT08 . Acesso em: 10. dez. 2019.
https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_...
; FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.). Do mesmo modo, conforme Beth Coleman (2009COLEMAN, B. Race as Technology. Camera Obscura, v. 24, n. 1, 2009, p. 176-20. ), o que chamamos de raças adquiriu materialidade nos processos históricos coloniais de racialização dos corpos via tecnologias de raça que inauguraram a branquidade simultaneamente à constituição de seus outros, então subjugados como vidas menos humanas, ou mesmo não-humanas, justificadas em sua exploração e expostas a variadas formas de violência (MBEMBE, 2018aMBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018a.; 2018bMBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições , 2018b.; QUIJANO, 2005QUIJANO, Al. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO), 2005.; MALDONADO-TORRES, 2016MALDONADO-TORRES, N. Outline of Ten Theses on Coloniality and Decoloniality. Foundation Frantz Fanon, 2016.). Processos de generifcação, sexualização e racialização dos corpos, embora possuam genealogias e tecnologias distintas, se coconstituem uns aos outros de forma consubstancial e interseccional (OYEWUMI, 2003OYEWUMI, O. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2003.; CRENSHAW, 1994CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. In: FINEMAN, M.; MYKITIUK, R. (orgs). The Public Nature of Private Violence. Nova York: Routledge, 1994, p. 93-118.; KERGOAT, 2012KERGOAT, D. Se battre, disent-elles. Paris: La Dispute, 2012.).

Para as teorias da performatividade, nenhum sujeito encorporado é anterior a suas inter-relações e são elas que o reatualizam continuamente como sujeito encorporado. Assim, para se materializarem como corpos, as hierarquizações valorativas de raça, gênero e sexualidade exigem reiteração constante, sobretudo por meio de “hábitos mentais irrefletidos que concedem [...] [às] formas de representação mais poder para determinar nossas ontologias do que elas merecem”, retomando as palavras de Karen Barad (2017BARAD, K. Performatividade pós-humanista: para entender como a matéria chega à matéria. Revista Vazantes, v. 1 n. 1, 2017, p. 07-34., p. 9). Além da reprodução das relações de poder que sustentam as representações que nos nomeiam, ao mesmo tempo que nos constituem, elas requerem a performance continuada dos corpos no espaço e no tempo, pois “o sujeito só permanece sujeito mediante a reiteração ou rearticulação de si mesmo como sujeito” (BUTLER, 2017BUTLER, J; ATHANASIOU, A. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica , 2017., p.107).

Nessa rearticulação de si mesmo, há uma consequência radical: a reiteração performativa das representações encorporadas de raça, gênero e sexualidade é uma cena mais de iterabilidade5 5 Iterabilidade é um termo que compõe a constelação conceitual das teorias da performatividade. Pode apontar-se Jacques Derrida como percursor do termo no seu texto "Assinatura acontecimento contexto", a partir da leitura desconstrutiva que o filosofo propõe à teoria dos atos de fala de John Austin (e seus proferimentos constatativos e performativos da linguagem). A custo da profundidade necessária para discuti-la, iterabilidade pode ser sintetizada como a propriedade do signo - ou mais precisamente do significante - de ser sempre outro na sua mesmidade, ou seja, que sua repetição é o evento de sua alteração. do que uma lógica de pura repetição. Não há uma constante em nossa autoidentificação aos enquadramentos sociais de poder, porque a ideia de iterabilidade para as teorias da performatividade entende que toda repetição é uma alteração. Como observa Gayatri Spivak (1996SPIVAK, G. Revolutions that as yet have no model - Derrida's "Limited Inc.". In: LANDRY, D.; MACLEAN, G (eds.) The Spivak Reader: Selected Works of Gayatri Chakravorty Spivak. Londres: Routledge, 1996, p. 75-106.) em diálogo com Jacques Derrida, a cena de iterabilidade na subjetivação demarca o paradoxo de que, se a repetição é a base da identificação social - condição de possibilidade da identificação de nós mesmas com as categorizações que nos produzem no mundo social -, não há repetição que não produza uma diferença. Se nossa subjetivação se apresenta como sempre incompleta, é porque a necessária performatividade do corpo, para a reiteração da realidade, impossibilita que as forças sociais de subjugação controlem perfeitamente a rearticulação dos sujeitos: é a possibilidade constante da diferença pela performatividade que torna qualquer imaginário social ambivalente e provisório, logo, aberto à reelaboração, por mais rígido e cristalizado que pareça no espaço-tempo (BUTLER, 2015BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.). Se os corpos se materializam como corpos na história, é na história de nossas performatividades que também podem se transformar das formas atuais hierarquizadas valorativamente. O que propomos a seguir é pensar essas transformações performativas como práticas espaciais de esparramação de corpos, operando, para tanto, aberturas sobre o pensamento do espaço.

3. Performatividade e espaço urbano: o que podem as práticas espaciais? (ou) Corpos sempre importam!

Uma de nossas preocupações com as perspectivas apresentadas neste artigo é elucidar interpretações sobre o espaço urbano que não abandonem as experiências nem os enlaces de energias sociais que cotidianamente tecem novos tecidos urbanos, valorizando linguagens, performatividades corporais e o instante (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.). Inspiradas na filosofia espacial de Doreen Massey (2009MASSEY, D. Pelo espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2009., p. 274), assumimos que, por meio das negociações intermináveis sobre o que constitui significantemente os lugares, que nada mais são do que, nos termos da geógrafa, “o desafio de nossa inter-relacionalidade constitutiva e, assim, [da] nossa implicação coletiva nos resultados dessa inter-relacionalidade”, poderemos experienciar formas mais justas do espaço, sempre parciais, instáveis, incompletas e aberta ao devir.

Da obra de Massey, somada a outras intuições teóricas feministas, observamos que as implicações das geometrias paradoxais de poder atuais, nas quais coexistem múltiplas lógicas socioespaciais, forçam-nos à indiferença, ao medo e à espetacularização de si pelo outro, alisando o próprio sentido da experiência espacial. Assim, a pretensão aqui é desenraizar a indiferença analítica, ponderando sobre a nossa capacidade de encorporar a desmaterialização de performatividades repetitivas de modelos excludentes de cidade e urbanidade (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.). Ana Clara Ribeiro dá centralidade à compreensão do sujeito encorporado como aquele capaz de desafiar a burocratização da existência, a fim de atingir o direito ao espetáculo, recusando-se a reduzi-lo à ideia de alienação:

Frente à cidade capitalista atual, em que megaempreendimentos e festas grandiosas privatizam memórias e imaginários, como negar a relevância dos ensaios de espetáculo do sujeito corporificado? Insinuo, com essa pergunta, que o espetáculo precisa ser libertado da espetacularização, que o controla e domina. [...] Neste sentido, a espetacularização pode ser refletida como impedimento do exercício do direito ao espetáculo. Um direito que, para o sujeito, corresponde ao direito de ser visto, lido e conhecido em seus próprios termos. (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41., p. 32)

Esse outro direito ao espetáculo, que podemos associar ao direito ao aparecimento de Butler (2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.), não é dado e é uma força de estranhamento, tanto para quem resiste à dominação quanto para a ação dominante, a qual também estabelece resistências na direção conservadora das formas hierárquicas de vida (KERGOAT, 2012KERGOAT, D. Se battre, disent-elles. Paris: La Dispute, 2012.). É um processo de construção coletiva e de si, uma orientação de busca pela esparramação do corpo no espaço, que, por sua vez, pode trabalhar para reorientar o espaço a partir desse corpo queer, estranho (AHMED, 2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.). Tal processo, pressuposto pela reorientação estranha no espaço, decorre, na maioria das vezes, de uma exposição precária dos nossos corpos, sobretudo se considerarmos, interseccionalmente, as formas mais sutis de resistência diante da precariedade da vida, experienciadas no cotidiano em instáveis territorialidades (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.), nas quais as ações dominantes forçam a imposição somente da materialidade de uma vida que é a anulação e conformação do corpo à homogeneização hierarquizante.

Se com Butler (2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.) apreendemos que, embora toda vida seja precária em sua constituição, nem todas estão suscetíveis à mesma precariedade, devemos ainda argumentar com a filósofa que a produção do espaço é fundamental na indução social da precariedade. Somos fundamentalmente dependentes não apenas das condições de infraestrutura, as quais possibilitam manter nossas vidas - habitação, serviços públicos de saúde e educação, mobilidade etc. -, mas também da possibilidade de ocupar e aparecer nas ruas e espaços públicos sem sermos agredidas e violentadas. É importante reforçar que a distribuição diferencial das condições infraestruturais do espaço urbano a que temos acesso nos expõe e nos conforma a distintas vulnerabilidades, tanto pela própria questão do acesso a necessidades básicas de sobrevivência quanto pelos diferentes graus de viabilidade de nosso aparecimento, ou seja, de que nossa presença no espaço urbano seja viável e vivível. Na leitura de Legg (2019LEGG, S. Subjects of truth: Resisting governmentality in Foucault’s 1980s. Environment and Planning D: Society and Space, v. 37, n. 1, 2019, p. 27-45.) da obra de Foucault, vemos uma confluência com a possibilidade de restituição do espaço como dimensão a partir da qual poder, subjetividade e resistência materializam-se pelo aparecimento do corpo como lugar de produção de verdade e de mudança a partir das formas de governamentalidades6 6 O conceito de governamentalidade é apresentado por Michel Foucault (2008) para examinar a racionalidade política concebida nos países ocidentais. FOUCAULT, M. Segurança, território e população. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. biopolíticas ou até mesmo necropolíticas, se acionarmos as palavras de Achille Mbembe (2018aMBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições , 2018b.).

Para refletir sobre o vínculo entre infraestrutura e esfera de aparecimento como uma geo-história de governamentalidades dos e nos corpos (LEGG, 2019LEGG, S. Subjects of truth: Resisting governmentality in Foucault’s 1980s. Environment and Planning D: Society and Space, v. 37, n. 1, 2019, p. 27-45.), recorremos à conexão entre espaço e imaginação, como proposto pela geógrafa Gillian Rose. Com base na autora, podemos ponderar que a ideia que construímos no/do espaço-tempo é atravessada pela questão da performatividade dos corpos presentes e ausentes no espaço urbano - corpos que são, também, aparições das relações de poder, conformando um corpo-imaginário. No intuito de elucidar as consequências socioespaciais dos corpos que performam sua presença, ligadas a uma alteridade com um fazer ausência de outros corpos, Rose (1993)ROSE, G. Feminist & Geography: The limits of geographical knowledge. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993. associa a história da construção do corpo masculino, heterossexual e burguês, na Europa e nos Estados Unidos, segundo uma série de negações à presença de outras corporalidades - o que é facilmente traduzido para a produção socioespacial no Brasil, ainda que cada lugar tenha suas particularidades. A imposição da presença hegemônica (e legitimada por um imaginário socialmente construído) do corpo branco, masculino e cis-heterossexual como centro do espaço urbano performa a negação dos outros corpos, postos, então, à margem, submetidos aos constrangimentos e violências ao aparecerem em espaços que lhes são negados. Em outras palavras, o status constituinte de um corpo particular como hegemônico personifica a negação dos corpos constituídos como marginais por meio de uma representação masculinista, racista e heteronormativa. Essa interpretação ganha dimensões paradoxais ao se articular às distintas coerções sociais, políticas, econômicas e culturais engendradas pela relação de alteridade centro-margem, presença-ausência, que reproduz continuamente as segregações socioespaciais - por exemplo, a experiência dos corpos feminizados no espaço urbano público ou privado. As diferenças entre corpos feminizados são atravessadas por fatores interseccionados (corpos cisgêneros, transgêneros, brancos, negros, não heteronormativos etc.), mas o senso de (in)segurança vivida numa cultura machista de exposição à violência e ao assédio sexual profundamente compartilhado por nossos corpos orienta nossas performances, seja para enfrentar, seja para acomodar (ambas ações de resistência) nosso direito de aparecer/ocupar os espaços.7 7 Às circunstâncias dos espaços públicos, soma-se o fato de que os corpos feminizados ainda estão vulneráveis à violência doméstica, num contexto excepcional de reprodução e cuidado reduzido ao espaço privado. Dessa perspectiva, a infraestrutura do espaço urbano não se liga apenas à distribuição material; ela é, igualmente, expressão e, ao mesmo tempo, instrumento de discriminação, racismo e exclusão dos corpos socialmente marginalizados. Ao assumirmos, com base nas teorias da performatividade, que os sujeitos são coconstituídos como corpos no espaço-tempo, avançamos com a ideia de que a categorização social das vidas consideradas mais ou menos humanas se (re)produz na esfera do aparecimento. Por sua vez, a esfera do aparecimento se organiza numa relação dialética com a infraestrutura urbana que enquadra o que será experienciado como vida vivível na cotidianidade, define quais vidas merecem ser preservadas na sociedade, pela lei e pela polícia (dentro de suas casas e nos espaços públicos), bem como quais poderão ser abandonadas e/ou ceifadas impunemente, inclusive (e até em especial) pelo poder do Estado (MALDONADO-TORRES, 2016MALDONADO-TORRES, N. Outline of Ten Theses on Coloniality and Decoloniality. Foundation Frantz Fanon, 2016.; MBEMBE, 2018bMBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições , 2018b.). A presença-ausência dos corpos negros no espaço urbano brasileiro, em sua criminalização e matabilidade, sobretudo pela polícia, é a ilustração trágica desse argumento. É preciso destacar, ainda, que essa violência é (re)produtora da realidade urbana da população negra, favelada e periférica, abandonada em condições de precariedade.

O que queremos sublinhar com tal argumentação é que a produção de nossos corpos não está dissociada das condições materiais e espaciais que podem (ou não) sustentar nossas vidas de modo que sejam vivíveis, o que demonstra que “a organização da infraestrutura está intimamente ligada a [...] como a vida é mantida, como a vida é viável, com que grau de sofrimento e esperança” (BUTLER, 2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p.27). Assim, a perspectiva política e social da construção representacionista e categorial que determina quais corpos importam ou não, nos põe o desafio sobre a seguinte questão: como o que fazemos com nossos corpos afeta o que podemos fazer? (AHMED, 2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.) Considerando as práticas espaciais e performáticas imanentes e potenciais (ou ainda potentes), restam outros questionamentos: o que está ao nosso alcance? Apenas estranhar o espaço?

Em sua construção do pensamento de centro e margem (presença e ausência) no elo entre corpos e espaços, Rose (1993ROSE, G. Feminist & Geography: The limits of geographical knowledge. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993.) salienta como a performatividade corpórea é capaz de contestar os modelos hegemonizados no e pelo espaço e de conformar outras experiências espaciais. Ao adotar a perspectiva de um espaço paradoxal numa geometria diferencial em que o centro e a margem são coexistentes e móveis, a experimentação dos corpos pode reorientar o processo de produção do espaço urbano, performando, para tanto, a imaginação de outro espaço. Essa compreensão nos parece poderosa para a desconstrução do entendimento totalizante e fixo do que significa o urbano. As interações cotidianas entre pessoas e objetos (corpos e infraestruturas) suscitam um determinado tipo de conhecimento consciente, subconsciente e ideológico, promovendo performances que tanto reproduzem a estrutura social, econômica, política e cultural quanto a dissociam (ROSE, 1993ROSE, G. Feminist & Geography: The limits of geographical knowledge. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993.). Em nossos termos, algumas performances podem estranhá-la no processo de esparramação dos corpos.

Afinal, aquilo que é considerado estranho em um determinado espaço é construído socialmente como tal pelas formas normativas que enquadram nossas relações sociais e performáticas. Nesse sentido, haveria, de modo diferencial, orientações performativas de corpos que estranham o espaço urbano. Ainda que as materialidades generificadas, sexualizadas e racializadas dos corpos possam deslizar rapidamente para uma desorientação social, subjugando e expondo alguns corpos (mais do que outros) à discriminação e violência, é o próprio estranhamento da presença que conforma uma espacialização instável de resistência e questiona a normatividade de exclusão que enquadra o vivível no espaço.

A partir da noção de espaço paradoxal de Rose (1993ROSE, G. Feminist & Geography: The limits of geographical knowledge. Cambridge, Oxford: Polity Press, 1993.), podemos ainda tensionar as teorias da performatividade com o espaço diferencial de Lefebvre (2000LEFEBVRE, H. La production de l'espace. 4ª Edição. Paris: Anthropos, 2000.). Em nossa leitura, a potente ideia lefebvriana só pode ser apreendida plenamente via políticas do corpo, ainda que, para isso, seja preciso ir além da aparição corporal salientada pelo autor, um tanto generalista e desencorporada de relevantes processos de diferenciação social que excedem, em muito, a redução feita por Lefebvre da ontologia às relações do capital (KINKAID, 2020).

Lefebvre (2000LEFEBVRE, H. La production de l'espace. 4ª Edição. Paris: Anthropos, 2000., p. 405 - tradução nossa) argumenta que o espaço é percebido, concebido e produzido por meio do uso do corpo, tido como uma totalidade prático-sensorial, em que a “inteireza do espaço (social) procede do corpo [...] prefigura as camadas do espaço social e suas interconexões”. Para o autor, é a ordem do corpo que nos ajuda a refletir sobre a cotidianidade do espaço urbano como local tanto de reprodução do espaço abstrato do capitalismo quanto de produção das virtualidades de uma sociedade livre de dominação, estando as últimas no espaço diferencial do domínio criativo e generativo da vida cotidiana. No espaço abstrato, o próprio corpo é transformado em abstrato, fragmentado na medida da fragmentação homogeneizante das dimensões da vida social moderna (trabalho, lazer, vida familiar etc.). Ainda assim, mesmo que o espaço abstrato se constitua pela homogeneidade como meta, a partir das operações de mimesis (em outros termos, de repetição das práticas sociais, nas contradições inerentes à sua estrutura e estruturação), sempre são produzidos resíduos irredutíveis à sujeição total da experiência vivida, o que o abre para a poiesis - a possibilidade de orientação para criar outra coisa que não o mesmo: ou seja, o espaço diferencial (LEFEBVRE, 2000LEFEBVRE, H. La production de l'espace. 4ª Edição. Paris: Anthropos, 2000.).

São múltiplas as possibilidades de articulação da poiesis do espaço diferencial com a ideia de iterabilidade nas teorias da performatividade, se retomamos o potencial da ontologia lefebvriana junto da noção de sujeito encorporado: nunca plenamente constituído, sempre aberto à ressignificação, o que o permite retrabalhar as relações de poder pelo estranhamento performativo produzido por certos corpos. Visto que em Lefebvre o corpo é dotado de capacidade de poiesis, entendido como produtor de diferenças concretas, é por ele que se realizam as existências diferenciais não hegemônicas constituintes dos espaços diferenciais, nos quais se encontra a potência de emancipação do espaço abstrato. Ou seja, ao pensarmos as marcações diferenciadoras dos corpos como práticas espacialmente políticas, da perspectiva dos sujeitos marginalizados, são estes que encorporam e performam as rupturas e contradições do espaço de formas distintas (KINKAID, 2020).

Podemos especular sobre a compreensão da poiesis do corpo produtor de espaço diferencial lefebvriano como um potencial queer, um estranhamento como condição para a desconstituição das encorporações limitadas pelo espaço abstrato e limitantes da existência. Os resíduos performáticos vão de encontro aos impulsos miméticos da abstração, transformando-os em base para um estranhamento potencial do espaço. Em diálogo com as argumentações de Sara Ahmed (2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.), a produção de estranhamentos por corpos socialmente estranhados num determinado espaço revela possibilidades de resistências à precarização da vida frente às forças fóbicas da heteronormatividade, da misoginia falocêntrica e do racismo.

Não por menos, abrem-se muitas perguntas acerca de como o mundo está disponível como espaço de ação e como nos sentimos em casa8 8 Cf. Fanon, 1986 apud Ahmed, 2006, p.111. em nossos corpos para agir. Um ponto central dos questionamentos de Ahmed (2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.) diz respeito a como a proximidade e a distância são vividas, levando em conta determinados corpos e lugares. Isto quer dizer que a própria precariedade socialmente induzida para corpos racializados negros e para os feminilizados, por exemplo, aumenta distâncias ou, ainda, impõe barreiras à orientação performática no espaço, em comparação aos corpos brancos e masculinos. Como nossas ações são capazes de produzir espaços diferenciais quando não podemos aparecer? Como performar rupturas se nossos estranhamentos são recebidos com violência? Voltemos a Butler (2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.), para a qual a performatividade também pode ser entendida como o exercício do direito de aparecer no espaço e de reivindicar a consideração de uma vida vivível, ampliando, inclusive, o sentido de precariedade. Neste sentido, a reivindicação por infraestrutura é tanto por melhores condições socioespaciais e materiais de suporte à existência - algo especialmente importante neste momento de acirramento das políticas neoliberais, de austeridade e privatização, quando temos de lutar contra o desmantelamento dos bens, serviços e espaços públicos já desiguais - quanto por poder aparecer para poder lutar por tal infraestrutura. "Agir em nome desse suporte, sem esse suporte, é o paradoxo da ação performativa plural em condições de precariedade" (BUTLER, 2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 82).

Certamente, não é possível deixar de lado que a complexidade política das características e justificativas para indiferenças e injustiças que se reproduzem atualmente na produção do espaço - ainda mais violentas na conjuntura neoliberal - guarda relação com o problema da redistribuição de bens e infraestruturas, bem como do reconhecimento das existências capturadas sob uma ótica liberal-meritocrática (FRASER, 2018FRASER, N. Do neoliberalismo progressista a Trump - e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, n. 40, set./dez. de 2018. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2175-7984.2018v17n40p43 . Acesso em: 01 mai. 2020.
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). Contudo, é relevante entender como a precariedade dos corpos que buscam reconhecimento num contexto de precarização, quando aliam seus corpos nas ruas, reivindicam uma vida que possa ser vivida (BUTLER, 2018BUTLER, J; ATHANASIOU, A. Corpos em aliança e a política das ruas - notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.), como nos movimentos “vidas negras importam” e “[...] é pela vida das mulheres!”.9 9 Tal como nas manifestações contra o racismo nos Estados Unidos e no Brasil, nos últimos anos, as feministas têm incorporado o lema para demarcar a importância da sua existência corpórea, evocando reivindicações por direitos. A performatividade desses corpos pode ser, assim, interpretada como uma ferramenta potente de resistências e afirmações sociais, deslocando os limites entre o espetáculo, ou o direito de aparecer, e a espetacularização, uma ação planejada para manter a ordem social e urbana (RIBEIRO, 2010RIBEIRO, A.C. Dança dos sentidos: na busca de alguns gestos. In: JACQUES, P.B.; BRITTO, F.D. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010, p. 24-41.). Uma verdadeira e paradoxal disputa cotidiana no espaço urbano, no centro-periferia (espacial e corporal), de enfrentamento da precariedade urbana.

A (re)produção do espaço urbano tem, portanto, uma orientação metodológica social, cultural e política que revela um envolvimento maior, inclusive de cuidado, com determinados corpos. Sobre isso se ancora nossa argumentação a respeito da centralidade da política dos corpos nos estudos urbanos. A política corpórea também é teórico-metodológica, porque se refere a nossas orientações e desorientações como pesquisadoras e à maneira pela qual nossa construção epistêmica é atravessada pelas experiências espaciais performativas e perpassada pelo estranhamento para geração de rupturas, brechas e enlaçamentos sociais significativos para reorientações. Um processo de esparramação do corpo no espaço (urbano e social) como consequência da (re)produção - deliberada ou não, consciente ou não - do estranhamento pelo corpo queer/estranho. Um processo que não é único nem linear, logo, com avanços e retrocessos perante a própria reorientação das políticas sistêmicas, cúmplices nas artimanhas de dominação.

4. Comentários finais

Trouxemos nossa compreensão das teorias da performatividade, propondo uma reflexão inicial sobre como elas podem ser traduzidas para nossas práticas de pensar o espaço urbano. Gostaríamos de finalizar este artigo com algumas reflexões sobre como a ideia de performatividade também pode ser traduzida para a prática teórico-intelectual e acadêmica.

Pontuamos, antes de tudo, que as teorias da performatividade promovem rupturas onto-epistêmicas: nós, produtoras de teorias, somos todas corporeidades geo-históricas situadas. Assim também são as teorias que produzimos: sempre parciais, geo-localizadas e dentro das limitações que nossos corpos nos permitem apreender. Por isso, afirmamos que qualquer trabalho intelectual é também trabalho encorporado, ao menos de duas formas fundamentais. Vejamos.

Dialogando com a fenomenologia queer de Ahmed (2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006.), podemos supor a encorporação do trabalho intelectual ao compreendermos a própria consciência como sendo encorporada. Nesse sentido, nossos corpos se orientam para alguns objetos enquanto outros são excluídos de nosso campo de percepção, postos em segundo plano: os objetos que percebemos depende de onde e como estamos situadas no mundo (espaço-temporalmente e nas relações de poder), mesmo que isso não envolva um ato voluntário de direcionamento.

Objetos são, então, uma questão de orientação, em que nossas situações subjetivo-corpóreas se voltam para as coisas de uma maneira, e não de outra. Uma orientação que, a partir de maneiras particulares, direciona nossa percepção sobre o objeto multifacetado que é o espaço urbano e relega outras à invisibilidade para sustentar essa direção. Algumas orientações são consideradas mais legítimas e científicas que outras, pelas mesmas teias de saber-poder que nos produzem como sujeitos encorporados hierarquicamente. O que conta como teoria é, em geral, a orientação a objetos tidos como superiores (ou mais objetivos) - isto é, os que contam como "dignos" de serem problematizados e apresentam perguntas “legítimas” para serem respondidas. Contam as experiências encorporadas que geraram essas perguntas e contam como racionais apenas as soluções para tais problemas (HARDING, 1993HARDING, S. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. Revista de Estudos Feministas, v. 1, n. 1, Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, 1993, p. 7-31.). O que vale como teoria depende, pois, do corpo que a produziu e do quanto esse corpo vale para a vida social.

Em complemento à ideia de orientação aos objetos que encorpora o trabalho intelectual, a situação relacional do sujeito dito conhecedor revela que a produção teórico-intelectual está implicada nessa mesma teia relacional encorporada. A exemplificação mais óbvia: o trabalho reprodutivo necessário para que o trabalho intelectual aconteça (limpeza dos espaços de trabalho, cuidados com a alimentação etc.), baseado na definição de quais corpos são orientados a realizá-lo de forma desigual pela divisão do trabalho por gênero, raça, classe, geopolítica etc. A teia dos marcadores corporais da dinâmica do capitalismo é também o que seleciona quem se faz ouvir e pode ser reconhecido no mercado intelectual acadêmico, extensível até mesmo ao debate do que conta como teoria feminista (AHMED, 2000AHMED, S. Whose counting? Feminist Theory, v.1n. 1, 2000, p. 97-103.):

As teorias patriarcais que procuramos estender e reinterpretar não foram criadas para explicar a experiência dos homens em geral, mas tão-somente a experiência de homens heterossexuais, brancos, burgueses e ocidentais. As feministas teóricas também procedem dessas mesmas camadas sociais - não por conspiração, mas em virtude do padrão histórico que faz com que apenas indivíduos a elas pertencentes disponham de tempo e recursos para fazer teoria e que unicamente mulheres dessa origem social possam se fazer ouvir. (HARDING, 1993HARDING, S. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. Revista de Estudos Feministas, v. 1, n. 1, Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, 1993, p. 7-31., p. 9)

Esse questionamento de Sandra Harding nos leva a outra problemática. As representações e categorias que usamos para pensar o espaço urbano podem ser reprodutoras das fronteiras diferenciais e hierárquicas de distribuição da precariedade da vida, visto que a efetivação desse regime desigual se dá por meio da iterabilidade das práticas da Ciência de representar e categorizar a alteridade, como demonstra Sylvia Wynter (2003WYNTER, S. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom: Towards the Human, After Man, Its Overrepresentation - An Argument. The New Centennial Review. v. 3, n. 3, 2003, p. 257-337.). Sem dúvida, elas também podem ser utilizadas como prática de contestação da precariedade diferencial entre os sujeitos encorporados da/na cena urbana, uma vez que as desigualdades pela marcação dos corpos só podem ser contestadas quando visibilizadas e reconhecidas. Em outras palavras, quando nos orientamos para certos objetos da experiência urbana, nós os trazemos para o primeiro plano: se gênero, raça e sexualidade contam na produção do espaço, deveriam contar para qualquer produção teórico-intelectual que se queira herdeira de uma práxis de transformação social.

Contudo, enxertar as diferenciações das experiências de vida, como se fossem categorias fixas de análise faltantes das nossas teorias urbanas tradicionais, é ignorar o próprio arcabouço teórico hegemônico que as produz como ausências teóricas. E mais: generalizar as representações sociais como enxertos categoriais de análise é recair no que há muito já é apontado quanto ao uso da categoria de gênero mulher pelas feministas negras, lésbicas, latino-americanas, árabes etc. e no que se entrevê nas palavras acima de Sandra Harding: a universalização da categoria mulher - assim como do patriarcado como fonte comum e unificadora da opressão das mulheres - baseou-se na experiência do feminismo heterossexual branco norte-europeu, silenciando outras dimensões da precariedade social, como as opressões imperialistas, coloniais, raciais, sexuais, étnicas etc. que coconstituem a própria representação social de mulher (OYEWUMI, 2003OYEWUMI, O. The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2003.; BIDASECA, 2011BIDASECA, K. Mujeres blancas buscando salvar a las mujeres color café de los hombres color café: reflexiones sobre desigualdad y colonialismo jurídico desde el feminismo poscolonial. Andamios. Revista Investigación de Social, Colegio de Humanidades y Ciencias Sociales-UAM, v. 17, 2011, p. 1-25.).

Encontramo-nos, assim, num paradoxo: operar pesquisas com o auxílio de mediações representativas para visibilizar a indiferença analítica das teorias urbanas hegemônicas e, ao mesmo tempo, resistir a um congelamento essencialista das categorias e conceitos de gênero, raça e sexualidade. E é por reconhecer esse paradoxo que as teorias da performatividade, ao apontarem para o sujeito encorporado de múltiplas formas, convidam-nos a apostar em princípios onto-epistêmicos com fronteiras flexíveis e a adotar a instabilidade das categorias analíticas, como propõe Harding (1993HARDING, S. A instabilidade das Categorias Analíticas na Teoria Feminista. Revista de Estudos Feministas, v. 1, n. 1, Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, 1993, p. 7-31.).

Então, habitemos esse paradoxo, orientemo-nos para ele e por ele e abramos nossas perspectivas teóricas para outras formas de pensar e praticar os estudos urbanos. Insistimos que é por meio da crítica e do estranhamento das representações (e como estas constituem as nossas orientações aos objetos) que seremos capazes de reconfigurar nosso campo de experiência de vida e de produção teórico-intelectual. Teremos de nos esforçar, de momento a momento, para praticar, também, uma performance disruptiva de nosso pensamento crítico, teórico e intelectual, para nos engajar com o pensamento como uma experiência sempre aberta ao devir, para nos manter contagiadas por outras formas de pensar e insubmissas a qualquer ortodoxia do pensamento intelectual.

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  • 1
    Ao longo do artigo, utilizamos grifos em itálico de quatro formas distintas: (1) para termos que conformam a proposição conceitual da análise, vinculados à ideia de esparramação e encorporação elaboradas ao longo do texto; (2) para palavras estrangeiras, como queer, seguindo com o grifo para as variações e extrapolações conceituais que propomos a partir de cada termo, como estranhado, estranhamento etc.; (3) para especificações de conceitos que compõem elaborações teóricas específicas - neste caso, salientamos que os termos grifados encontram-se referenciados com os nomes das autoras e dos autores que os propõem, grafados em itálico apenas em sua primeira aparição; (4) para ênfase de algumas expressões e palavras específicas, sempre em diálogo com a perspectiva teórica do artigo.
  • 2
    Onto-epistemologia refere-se à proposição sobre à inseparabilidade entre a ontologia (formas de “ser”) e a epistemologia (formas de “conhecer”), advogada por distintas correntes de pensamento feminista e correntes afins ao que se convencionou chamar de pós-estruturalismo.
  • 3
    Masculinista não é o antônimo de feminista. Significa um sujeito que defende os direitos dos homens por acreditar que o feminismo os oprime; como se o movimento contra a misoginia, o machismo e o sexismo tivesse trazido desvantagens aos homens.
  • 4
    Heteronormatividade é um termo amplamente utilizado por distintas correntes de pensamento feminista empenhadas em problematizar a força compulsória da heterossexualidade por meio da crítica às múltiplas normas sociais regulatórias que a produzem como parâmetro de normalidade para a sexualidade. Como padrão de sexualidade sócio-histórico que regula o modo como as sociedades ocidentais estão organizadas, uma de suas consequências é a perpetuação das várias formas de violência contra pessoas que “escapam” à norma heterossexual, habitualmente agrupadas na sigla LGBTQI+.
  • 5
    Iterabilidade é um termo que compõe a constelação conceitual das teorias da performatividade. Pode apontar-se Jacques Derrida como percursor do termo no seu texto "Assinatura acontecimento contexto", a partir da leitura desconstrutiva que o filosofo propõe à teoria dos atos de fala de John Austin (e seus proferimentos constatativos e performativos da linguagem). A custo da profundidade necessária para discuti-la, iterabilidade pode ser sintetizada como a propriedade do signo - ou mais precisamente do significante - de ser sempre outro na sua mesmidade, ou seja, que sua repetição é o evento de sua alteração.
  • 6
    O conceito de governamentalidade é apresentado por Michel Foucault (2008) para examinar a racionalidade política concebida nos países ocidentais. FOUCAULT, M. Segurança, território e população. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • 7
    Às circunstâncias dos espaços públicos, soma-se o fato de que os corpos feminizados ainda estão vulneráveis à violência doméstica, num contexto excepcional de reprodução e cuidado reduzido ao espaço privado.
  • 8
    Cf. Fanon, 1986 apud Ahmed, 2006AHMED, S. Queer phenomenology: orientations, objects, others. Durham; Londres: Duke University Press, 2006., p.111.
  • 9
    Tal como nas manifestações contra o racismo nos Estados Unidos e no Brasil, nos últimos anos, as feministas têm incorporado o lema para demarcar a importância da sua existência corpórea, evocando reivindicações por direitos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2020
  • Aceito
    24 Mar 2021
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