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Assunção de Callado: inserção e modos de engajamento no meio artístico

Callado’s Ascent: Insertion and Modes of Engagement in the Artistic Environment

RESUMO

Antonio Callado e seus escritos, de maneira geral, são interpretados por analistas como pertencentes ao campo da esquerda. Entretanto, seus primeiros trabalhos no jornalismo, na dramaturgia e na literatura, quando inseridos nos respectivos campos em que foram concebidos, denotam orientações ideológicas e estéticas conservadoras. Conforme evidências de parte da correspondência - inédita - trocada entre ele e intelectuais de grande projeção pública entre as décadas de 1950 e de 1960, é possível sugerir que Callado, posicionando-se dessa forma, teceu laços com intelectuais de diferentes tendências políticas e artísticas e, assim, conquistou posições mais proeminentes no âmbito da impressa e das letras. Desse modo, os sentidos de suas variadas formas de engajamento poderiam ser compreendidos sob outra ótica.

Palavras-chave:
Antonio Callado; imprensa; teatro; literatura; intelectuais

ABSTRACT

Antonio Callado and his writings, in general, are interpreted by analysts as belonging to the left-wing field. However, his early tasks in journalism, dramaturgy, and literature, once inserted in the respective fields in which they were conceived, denote conservative ideological and aesthetic orientations. According to pieces of evidence from part of the - unpublished - correspondence exchanged between him and notorious intellectuals from the 1950s until the 1960s, it is possible to suggest that Callado, by championing such positions, wove ties with intellectuals of different political and artistic tendencies, as well as reached more prominent positions in the fields of the press and of literature. In this way, the meanings of his varied manners of engagement might be understood from a different perspective.

Keywords:
Antonio Callado; Press; Theater; Literature; Intelectuals

Em famoso ensaio publicado em 1970, Roberto Schwarz considerou o romance Quarup (1967), de Antonio Callado, como “o mais representativo para a intelectualidade de esquerda recente” (Schwarz, 2008SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. , pp. 110-111). Analistas posteriores, em direção semelhante, situaram as posições políticas e estéticas dele no campo da esquerda (Leite, 1982LEITE, Lígia Chiappini Moraes; LAFETÁ, João Luiz (Orgs.). Artes plásticas e literatura. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 234; Martinelli, 2006MARTINELLI, Marcos. Antonio Callado, um sermonário à brasileira. 1ª Ed. São Paulo: Annablume, 2006., p. 69). Neste texto, entretanto, buscarei - levando em conta a gênese do campo literário em que a obra de Callado foi elaborada e suas determinações sociais (Bourdieu, 1998BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: genèse et structure du champs littéraire. Paris: Éditions du Seuil, 1998., pp. 85-86) -, sugerir que seus primeiros passos no jornalismo, no teatro e na literatura orientavam-se por posições ideológicas caracterizadas por matizes conservadores; e que, seguindo orientações desse tipo, ele logrou articular-se com artistas situados em diferentes correntes estéticas e políticas, de modo a impulsionar sua carreira jornalística e literária. Tais evidências talvez lancem luz sobre diversas formas de engajamento por ele encampadas ao longo de sua trajetória1 1 Este artigo é resultado de parte de pesquisa de pós-doutorado por mim desenvolvida no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) no primeiro semestre de 2022, sob a supervisão do professor Sérgio Miceli. Gostaria de agradecer-lhe pelo grande estímulo, pelas críticas e pelas sugestões. Agradeço igualmente aos integrantes do grupo de Sociologia da Cultura, em especial os professores Luiz Carlos Jackson e Fernando Antonio Pinheiro Filho, pela organização de excelentes discussões, e a Vavy Pacheco Borges pela leitura cuidadosa de uma versão preliminar deste texto. Todas as afirmações e conclusões apresentadas a seguir são de minha responsabilidade. .

1. A FORMAÇÃO DO ESCRITOR

Antonio Callado nasceu em Niterói, em 1917. Branco, saudável e sem estigmas, possuía características físicas que lhe tornaram a ascensão social mais fácil na sociedade brasileira ao longo do século XX. Foi criado em ambiente significativamente letrado. Seu avô materno, Antonio Pitanga, era desembargador e membro do Instituto Histórico e Geográfico. Interessava-se bastante pelos indígenas, sobre quem escreveu o trabalho O Selvagem Perante o Direito (1899) e A Tutela dos Índios (1915). Redigiu igualmente a obra de caráter jurídico A Pena de Açoites. Faleceu devido à gripe espanhola quando Callado tinha aproximadamente dois anos. O pai deste último, Dário Callado, era médico e “poeta parnasiano”, admirador de Bilac e de literatura. Possuía ampla biblioteca, com obras brasileiras e francesas, em cujo acervo o filho pôde aprender francês por conta própria e ler diversos livros de ficção, sobretudo românticos, como Lamartine, Chateaubriand e Musset, além de Euclides da Cunha e obras de poesia (Perez, 1960PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos . 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1960., pp. 33-34). Acometido de tuberculose, morreu quando o filho tinha onze anos2 2 Muitas das informações biográficas concernentes a Antonio Callado foram consultadas em entrevistas por ele concedidas a Lígia Chiappini Moraes Leite, disponíveis nas seguintes obras: Leite (1982), Leite; Lafetá (1982). Outras informações sobre sua vida foram obtidas em verbete escrito por Renard Perez (cf. Perez, 1960), texto apresentado como feito em conjunto com o biografado e por ele autorizado. Servi-me ainda de obra redigida e organizada por sua última esposa (Callado, 2013). Os dados coincidentes nesses relatos serão apresentados de agora em diante sem referências. .

Callado teve muito contato com as tias maternas, com quem aprendeu as primeiras letras em escola de propriedade delas, e de quem obteve formação católica bastante rigorosa. Seu elã rumo às letras provém tanto do lado paterno quanto materno, ambos oriundos das camadas médias-altas. Sua mãe, D. Edith Pitanga, é por ele lembrada lendo Os Miseráveis, de Victor Hugo, em meio a lágrimas, além de ter também escrito poesia, embora nunca publicada. Como Callado era muito jovem quando seu avô desembargador morreu, é provável que sua mãe, descrita como tendo “verdadeira adoração pelo pai”, tenha projetado a figura de seu genitor sobre ele - o nome Antonio é sugestivo e poderia, em parte, explicar sua percepção de que era o filho favorito, em núcleo familiar em que convivia com três irmãs (Callado, 1988CALLADO, Antonio. Antonio Callado. In: BISIAUX, Marcel; JAJOLET, Catherine (Orgs.). À ma mère: 60 écrivains parlent de leur mère. 1ª Ed. Paris: Pierre Horay, 1988. pp. 71-77., p. 72).

A socialização de Callado com seu pai foi intensa em sua primeira década de vida, situação que pode ter lhe despertado o interesse em “herdar” um projeto intelectual interrompido3 3 Neste ponto, sua trajetória pode ser comparada com a de Jorge Luis Borges, cujas escolhas sugerem ter ele dado sequência a pretensões intelectuais do pai, obstaculizadas pela perda da visão (Miceli, 2007, p. 159). . Experimentara com ele tanto os livros quanto o círculo de amigos. A impressão guardada por Callado em relação a estes últimos era a de que possuíam um “conhecimento médio”, pelo grau tanto de compreensão da realidade brasileira quanto de domínio da cultura francesa. Essa transmissão de capital cultural mediano no círculo familiar e por meio de conhecidos se fazia acompanhar por um capital social relativamente diminuto nos círculos letrados. Alguns de seus parentes haviam tido breves contatos com membros da elite intelectual do país. Seu avô materno, por exemplo, fora colega de Castro Alves na Faculdade de Direito de Recife, amigo de Capistrano de Abreu e de Silvio Romero, o qual passou pelo consultório de seu pai (Perez, 1960PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos . 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1960., pp. 33-34).

Callado recorda-se da onipresença da língua e da literatura francesas na formação de seu avô, de seu pai e de sua mãe, em época em que ambas eram majoritariamente tidas como veículos da alta cultura (Callado, 1988CALLADO, Antonio. Antonio Callado. In: BISIAUX, Marcel; JAJOLET, Catherine (Orgs.). À ma mère: 60 écrivains parlent de leur mère. 1ª Ed. Paris: Pierre Horay, 1988. pp. 71-77., p. 74). Além dessas influências familiares, uma maior imersão no universo da França foi por ele experimentada nos anos passados no tradicional Ginásio Bittencourt Silva, no qual foi educado por meio de livros em francês importados daquele país. Trata-se de período em que o conforto que desfrutara em seus primeiros anos de vida foi substituído por problemas financeiros e por ameaças de descenso social. De qualquer forma, o fato de sua mãe ter conseguido sustentar o lar por meio de serviços ligados ao uso da linguagem dos surdos-mudos, a qual aprendera para ajudar um irmão, permitiu-lhe adiar sua entrada no mercado de trabalho, ocorrida quando tinha dezessete anos (Callado, 1988CALLADO, Antonio. Antonio Callado. In: BISIAUX, Marcel; JAJOLET, Catherine (Orgs.). À ma mère: 60 écrivains parlent de leur mère. 1ª Ed. Paris: Pierre Horay, 1988. pp. 71-77., p. 72).

Mesmo imerso na cultura francesa, é possível que alguns ventos o tenham cedo despertado para a cultura anglo-saxônica, não tão prestigiada no Brasil quanto a primeira à época, mas que seria por ele privilegiada anos depois. Callado passou os anos iniciais de sua vida em Niterói - onde, além de ter circulado e começado sua vida escolar, praticava esportes como sócio do Clube de Regatas Icaraí -, local em que muitos ingleses habitavam, trabalhavam e se socializavam de diversas maneiras4 4 Desde o século XIX, havia considerável presença de alemães e ingleses em Niterói, onde se instalaram companhias, bancos, clubes, escolas e igrejas ligados àquelas comunidades; instituições e sujeitos que marcaram significativamente o cenário e a vida social fluminenses no início do século XX (cf. Bezerra, 2015). . Ademais, seu pai trabalhou na empresa britânica Western Telegraph Company; e ele, no início de sua vida profissional, para a firma Thornycroft, da mesma nacionalidade (Perez, 1960PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos . 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1960., p. 34).

Callado compôs alguns poemas na juventude, tendo publicado uma amostra deles no jornal de seu colégio. Por volta dos dezesseis ou dezessete anos, publicou contos no Suplemento Literário do Jornal do Brasil e ganhou um pequeno concurso de contos pelo jornal Praia, que circulava em Icaraí. Ainda que ele tenha manifestado pendor pelo ofício literário desde tenra idade, seria preciso transcender sua memória pessoal - que situa a formação do escritor já na infância -, e delinear as forças sociais que o impulsionaram a deixar de ser autor bissexto para investir na produção de peças teatrais e romances com maior frequência. Tais ímpetos indicam estar associados a estratégias de grupo de intelectuais das camadas médias para evitar o rebaixamento social e alavancar a própria ascensão (Queler, 2023QUELER, Jefferson José. Jornalismo e literatura remodelados: estudo de um grupo de intelectuais das camadas médias (1940-1960). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 36, n. 78, pp. 74-93, 2023.).

Adulto, Callado ingressou na Faculdade de Direito de Niterói e, ao longo do curso, começou a trabalhar na imprensa. Sua entrada no mundo dos jornais foi facilitada por contatos familiares. Era parente distante de Paulo Bittencourt, proprietário do prestigioso Correio da Manhã, a quem se dirigiu com uma carta de recomendação. Foi por ele contratado após um teste, em 1937. Pouco depois, começou também a colaborar com os jornais A Notícia e O Globo (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 69). O jornalismo e a promessa de diploma na área jurídica favoreciam sua entrada na carreira política. Porém, Callado enveredou pelo campo jornalístico, no qual buscou alçar posições mais elevadas.

Nessa fase, Callado conviveu sobretudo com integrantes da base dos campos literário e jornalístico. Na Agência Nacional, ligada ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), atuou ao lado de Clarice Lispector e de José Condé, jovens jornalistas com ambições literárias, e de Lúcio Cardoso, que possuía então considerável projeção como romancista e dramaturgo (Perez, 1964PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964., p. 76). Como se vê, o meio jornalístico favorecia a socialização de Callado com escritores-jornalistas de graus variados de notoriedade. Ademais, fornecia-lhe oportunidades para exercitar a imaginação literária, em época em que os jornalistas eram instados a servir-se largamente de adjetivos, de emoções e de elementos ficcionais em suas reportagens (Rodrigues, 2021RODRIGUES, Nelson. A desumanização da manchete. O Globo, 22 fev. 1968. In: RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2021.; Bergamo, 2014BERGAMO, Alexandre. A escrita do presente: mudanças no status cultural do jornalismo. In: MICELI, Sérgio; PONTES, Heloisa (Orgs.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. 1ª Ed. São Paulo: Edusp , 2014. pp. 211-241.).

Em 1941, Callado investiu na carreira jornalística ao aceitar um contrato para trabalhar na seção da BBC voltada para a América Latina, em Londres, onde permaneceu até 1947. Em meio a esse período, atuou um ano na Radio-Diffusion France, em Paris. Nestas emissoras, fazia entrevistas, transmissões de notícias de guerra e traduções. Paralelamente, enviava crônicas para o Correio da Manhã. Com isso, cacifou-se trabalhando em renomadas instituições estrangeiras e ascendeu à posição de correspondente internacional. Não menos importantes para sua projeção nos ofícios de jornalista e de escritor foram as relações pessoais que ali teceu, suas experiências em cenas culturais efervescentes, suas leituras multifacetadas e sua imersão em dois idiomas.

É difícil situar em que momento de sua trajetória cristalizou-se sua opção por se transformar em escritor. De qualquer maneira, a certa altura de sua estada na Inglaterra, tal escolha já se escorava num habitus. Assim, em entrada em seu diário de 17 de outubro de 1944, Callado asseverou: “tenho a certeza de ter nascido para escrever [...] e até agora ainda não descobri direito nem o que escrever nem o que fazer” (Callado, 1944CALLADO, Antonio. Diário (1944) - Acervo pessoal Antonio Callado; AC Pi 131A, pp. 1-3. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1944.). Essa prática de escrita íntima, segundo ele, constituía-se num treinamento para futuras publicações. Pouco antes, reforçara sua incursão pela trilha da ficção: nos arquivos da BBC, encontram-se dezenove roteiros de radioteatro redigidos por ele e transmitidos pelo programa A Voz de Londres, como a peça Jean e Marie, que foi ao ar em 1943 (Thomaz, 2017THOMAZ, Daniel Mandur. No ano de seu centenário, textos inéditos encontrados na Inglaterra revelam aspecto desconhecido de Antônio Callado. BBC News - Brasil, 30 jan. de 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38794242 . Acesso em: 16 mai. 2022.
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-387...
).

As experiências teatrais vivenciadas por Callado na Europa podem ter contado para conduzi-lo ao caminho da dramaturgia. Entre elas, recorda-se de ter assistido na Inglaterra a peças como Ricardo III e Rei Lear, de Shakespeare, Édipo Rei, de Sófocles, e O Crítico, de Sheridan, estreladas pelo célebre ator Laurence Olivier (Callado, 1997aCALLADO, Antonio. Eu vi Olivier na noite da glória absoluta. Folha de São Paulo, 21 fev. 1992. In: CALLADO, Antonio. Crônicas de fim do milênio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1997a., pp. 266-267). Ao chegar na França, em fins de 1944, deparou-se com a falta de artigos de primeira necessidade, contrabalançada, porém, por uma oferta abundante de espetáculos de teatro, entre os quais presenciou os primórdios da carreira do dramaturgo Jean ­Anouilh, com Antígona, e o sucesso do teatro e do cinema de Jean-Louis Barrault (Callado, 1997bCALLADO, Antonio. Resistem ainda bocas inúteis e micos-leões. Folha de São Paulo, 20 jun. 1992. In: CALLADO, Antonio. Crônicas de fim do milênio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora , 1997b, p. 206; Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 107).

Os contatos pessoais tecidos naqueles anos por Callado devem ter igualmente pesado para direcionar sua produção artística. Em 1943, casou-se com a inglesa Jean Maxine Watson, funcionária da BBC e portadora de um diploma da London School of Economics and Political Science. Ela era versada em espanhol e em português, e vivera em Portugal, Espanha e nos Estados Unidos. Cultivavam a língua inglesa em casa e experimentavam intercâmbios culturais. Sua presença certamente contribuiu para a carreira do marido, o qual seria fortemente reconhecido no Brasil por sua proximidade com a cultura anglo-saxônica. Jean deve ter ainda encorajado os primeiros experimentos dele na dramaturgia5 5 A peça A cidade assassinada (1954), a primeira por ele publicada e derivada de um trabalho de radioteatro destinado à BBC (Francis, 1957, p. 4, 2ª secção), vem com a seguinte dedicatória: “Para minha mulher, minha primeira leitora” (Callado, 2010a, p. 69). .

Ainda que ele estivesse na capital britânica, outro impulso para direcionar sua escrita ficcional aos palcos pode ser identificado no florescente cenário teatral no Brasil ao longo da década de 19406 6 Em suas palavras, houve uma bifurcação em seus ímpetos como romancista, uma vez que a “realidade do teatro brasileiro exemplificada pelo TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], por Cacilda [Becker] e Sérgio [Cardoso], pelo advento dos diretores estrangeiros, pelo desenvolvimento do autor nacional de cunho próprio como Nelson Rodrigues, atraiu-me vertiginosamente ao teatro” (Francis, 1957, p. 4, 2ª secção). . Sua convivência com Paschoal Carlos Magno, um dos grandes incentivadores do teatro no Brasil, e que servia então como diplomata em Londres, deve ter atuado para entrelaçar os estímulos do teatro londrino com os do teatro brasileiro em direção a um projeto dramatúrgico próprio. Ambos constituíram uma relação bastante íntima, a julgar pelo fato de que Magno foi seu padrinho de casamento (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 89). Callado conviveria ainda com Magno alguns anos depois no Correio da Manhã, quando o último atuou como crítico de teatro. Magno elogiou em sua coluna a primeira apresentação de peça do amigo nos palcos brasileiros; franqueou-lhe depois o teatro Duse, erigido em sua residência; e apresentou-o a outros dramaturgos e atores.

Alguns cargos e posições ocupados por Callado na capital inglesa podem tê-lo estimulado a confrontar sua formação marcadamente europeia com a necessidade de conhecer mais a fundo o Brasil. Em 1941, tomou parte da fundação da Sociedade Brasileira de Londres, responsável por divulgar a cultura de seu país, tornando-se membro de seu conselho diretor. Em 1943, ajudou a organizar a Semana do Brasil, promovendo visitas, festas, conferências e debates, ocasião em que proferiu palestra acerca de escritores brasileiros contemporâneos (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 82), dado que sugere ter ele se aprofundado na literatura pátria para se pensar como escritor. Não parece casual que tenha publicado naqueles anos o conto “Blue Prison” em inglês, tendo o Rio de Janeiro como cenário, pela revista New Writing and Daylight, da editora Hogarth Press, fundada pelo casal Leonard e Virginia Woolf.

Em Londres, Callado peregrinava por sebos à cata de obras variadas tratando de sua terra natal. Ali, em suas palavras, “de repente, começou a bater aquela saudade do Brasil” (Leite, 1982LEITE, Lígia Chiappini Moraes; LAFETÁ, João Luiz (Orgs.). Artes plásticas e literatura. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 235). Dessa forma, sua sensibilidade romântica, exercitada nos livros de literatura de seu pai, aparenta ter sido reformulada na Inglaterra, provavelmente por rasgos locais. Seu olhar voltou-se então com mais acuidade para os habitantes e as paisagens do interior do Brasil. Conforme veremos, essa postura viria acompanhada de traços de um “romantismo resignado”, ou seja, lamento da existência da modernidade como um estado de fato, acompanhado, porém, da percepção de que é preciso se resignar a ela. Tal perspectiva, bastante próxima do romantismo conservador, pode resultar na concepção de que há uma contradição intransponível entre os valores e a realidade, ou em ação reformista destinada a remediar males da sociedade burguesa por meio de instituições associadas a valores pré-capitalistas (Löwy; Sayre, 2015LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 98), caminhos que Callado parece ter trilhado.

2. AVANÇOS NOS CÍRCULOS LETRADOS

De volta ao Brasil em 1947, Callado integrou-se novamente à imprensa sediada no Rio de Janeiro. Foi contratado pela revista norte-americana Reader’s Digest e retornou ao Correio da Manhã, ambas publicações de orientação liberal e conservadora, opositoras do comunismo e do varguismo. Na redação do Correio da Manhã, conviveu com vasta gama de intelectuais famosos. Entre eles, os membros da “República das Alagoas” - composta por Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda, Rodolfo Mota Lima e Costa Rego, o redator-chefe - imprimiam um padrão exigente à linguagem e ao estilo dos textos do jornal (Moraes, 2012MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo , 2012., p. 233). A hierarquia no interior deste último ficava patente em suas divisões espaciais e nos nomes a elas atribuídos. O chamado Petit Trianon, por exemplo, abrigava os reputados editorialistas e críticos literários Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux (Moraes, 2012MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo , 2012., p. 233).

Àquela altura, Callado deu sequência às suas atividades como correspondente internacional, cultivando paralelamente francas aspirações de romancista. Fez a cobertura da IX Conferência Pan-Americana, na Colômbia, evento que resultou na fundação da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ao longo de seus trabalhos naquele país, reunia-se diariamente com membros da delegação brasileira, integrada pelo diplomata e escritor em ascensão João Guimarães Rosa, com quem entabulou uma interlocução literária.

Algumas das viagens de Callado tornar-se-iam cenários de sua produção ficcional. Após regressar ao Brasil, embarcou num navio gaiola para percorrer o rio Amazonas, dando início a uma série de jornadas pelo interior do Brasil. Em seguida, pôs-se a escrever um romance intitulado Manoa (nome relacionado à lenda de Eldorado, a respeito da qual lera ostensivamente), ambientado na Amazônia; e depois o entregou a Guimarães Rosa, Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux para leitura (Perez, 1960PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos . 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1960., p. 36). Tais interlocutores revelam sua proximidade não apenas com um escritor de algum destaque (período anterior à sua consagração com Grande Sertão: veredas) ligado à corrente regionalista, como também com membros da cúpula do Correio da Manhã, dois dos mais notórios críticos literários do país: relações que forneceriam suporte à sua carreira de escritor7 7 Callado tornara-se muito próximo de Álvaro Lins naqueles anos. Em carta enviada por este último ao primeiro, de Portugal, em 16 de novembro de 1953, o célebre crítico cogitou transformar Callado em seu substituto na cadeira de Estudos Brasileiros, em Lisboa. Para tanto, solicitou-lhe que procurasse João Cleofas, ministro da Agricultura à época, ou outra pessoa influente, para que a referida indicação fosse encaminhada ao ministro do Exterior ou ao Palácio do Catete. Além disso, aconselhou-o a abrir-se, “em todos os sentidos, com o Guimarães Rosa, que considero meu melhor amigo” (Lins, 1953). . Álvaro Lins chegou a articular a publicação de Manoa com José Olympio, dono da casa editorial mais badalada do país. Apesar de tal romance nunca ter vindo a lume, essa intermediação sugere ter facilitado o lançamento de algumas das primeiras obras de Callado por meio daquela editora.

O projeto de romance não finalizado por ele ganhou alguma vazão com o lançamento do livro-reportagem Esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett (Callado, 2010bCALLADO, Antonio. Esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.). Essa obra, publicada pelo Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Cultura em 1953, resultou de uma viagem feita por Callado no ano anterior ao Xingu. Sob o convite dos Diários Associados, o jornalista acompanhou uma expedição integrada por Orlando e Cláudio Villas Bôas e por um dos filhos de Fawcett. O intuito da jornada era averiguar se uma ossada ali encontrada pertencia ao explorador britânico que desaparecera anos antes em busca de uma espécie de Eldorado.

Esse foi o primeiro contato direto de Callado com os indígenas, para quem defendia então a criação de um parque nacional como solução provisória. Ao mesmo tempo, propugnava por uma posterior incorporação deles no restante da sociedade brasileira, por meio de ações educativas agropecuárias direcionadas às crianças (Callado, 2010bCALLADO, Antonio. Esqueleto na lagoa verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b., pp. 87-88)8 8 Esse posicionamento se alinhava aos princípios norteadores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), atuante à época. Este último surgira com o propósito de proteger os indígenas, visando prepará-los para se tornarem parte da “comunhão nacional”, isto é, virarem trabalhadores ou produtores rurais (Valente, 2017, p. 24). . O livro não desvendou o paradeiro do oficial inglês, cujo corpo jamais foi encontrado. Tangenciou, antes, a literatura policial ao construir sofisticada teia narrativa para descrever a própria viagem de Callado e as eventuais motivações do explorador desaparecido9 9 O valor estético dessa obra foi reconhecido por Carlos Drummond de Andrade, um dos poetas mais celebrados no país no início da década de 1950, em carta por ele enviada a Callado como aparente resposta ao envio do texto para apreciação: “De uma excursão de repórter você extraiu um texto literário palpitante, cheio de informações diretas sobre esse infraBrasil que os brasileiros desconhecem” (citado em Callado, 2013, p. 210). .

A gestação da obra ficcional de Callado pode ser mais bem compreendida se relacionada à construção da sociedade moderna no Brasil. No período pós-guerra, a industrialização avançou expressivamente no país, juntamente com a propagação de novos hábitos de consumo, semelhantes aos da sociedade norte-americana. Na seara cultural, a cidade de São Paulo assumiu a proeminência, seja com a maior profissionalização do teatro e do cinema, seja com a criação do Museu de Arte de São Paulo (MASP), por meio de expressivo mecenato cultural (Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no Meio Século XX. 2ª Ed. São Paulo: Edusp, 2015., pp. 45-46 e 95). Como forma de compensar a perda da primazia da antiga capital federal, uma parcela influente e moderna da elite carioca - representada por grandes bancos, diplomatas, homens públicos, letrados, artistas e jornais destacados, entre eles o Correio da Manhã - uniu-se para fundar o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1949. Tal realização, por ter contado com o apoio de políticos, revela as dificuldades de um projeto de cunho estritamente privado em se concretizar por si só naquela cidade (Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no Meio Século XX. 2ª Ed. São Paulo: Edusp, 2015., p. 334).

No início da década de 1950, Niomar Muniz Sodré, esposa de Paulo Bittencourt, juntou-se à direção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nesse momento, convidou Callado para assumir um lugar no conselho administrativo daquela instituição. Tal indicação sugere tanto a notável proximidade do último em relação aos proprietários do Correio da Manhã quanto sua articulação com um movimento de modernização das artes e da cultura encabeçado por fração da elite brasileira. Em tal posição, Callado delinearia, no plano ficcional, uma série de críticas ao modo como o processo de modernização se concretizava no país.

Em 1954, Callado publicou Assunção de Salviano, seu primeiro romance, e A cidade assassinada (com capa ilustrada por Cândido Portinari, pintor de renome internacional e ligado à esquerda comunista à época), sua primeira peça teatral, ambos pela editora José Olympio. Em Assunção de Salviano, narra a estória da ida secreta de uma célula de militantes comunistas, entre eles o carpinteiro cujo nome assoma ao título, à cidade de Juazeiro, na Bahia - cujo sertão Callado havia conhecido em viagem -, com o intuito de dar ensejo à revolução entre os trabalhadores do campo. Tendo em vista a arraigada religiosidade destes últimos, porém, os agentes infiltrados logo veem como única saída forjar a transformação de Salviano em líder messiânico. Com isso, esperavam conquistar um grande número de seguidores a serem depois direcionados para a revolução comunista.

Nessa narrativa, o autor cria ficção inspirando-se em acontecimentos da história recente. Transpõe para o plano ficcional eventos inspirados no conflito armado ocorrido poucos anos antes em Porecatu, no Paraná, envolvendo posseiros, assim como em movimentos religiosos dirigidos por líderes carismáticos como o Padre Cícero e Antônio Conselheiro no Nordeste, em décadas anteriores. Callado, em busca do próprio caminho, baseava-se no cânone de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Da mesma forma, paira sobre o referido enredo a Revolução Chinesa, acontecimento internacional de grande impacto que acenava para a possibilidade de a revolução socialista ser desencadeada a partir do campo.

No decorrer da trama, o ateu Salviano, de forma surpreendente, passa a acreditar literalmente no papel que representava, considerando-se um enviado de Deus e tornando-se líder de uma multidão de fiéis. Dessa forma, o ímpeto comunista, um dos produtos da modernidade e cujo racionalismo forjara um milagre a partir de um cálculo, via-se sobrepujado e absorvido pelo catolicismo popular. As intervenções estéticas de Callado tangenciavam temas caros aos romancistas engajados e de esquerda, bem como aos escritores regionalistas. Entretanto, guardavam maior afinidade com a escrita intimista ou psicológica praticada por autores católicos como Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Jorge de Lima, o que não impedia seu trânsito entre representantes de diversas correntes literárias.

Callado intentou projetar Assunção de Salviano no exterior, tendo contado com o auxílio de Érico Veríssimo, afamado representante do realismo, para essa tarefa. Em carta enviada de Washington, em 15 de outubro de 1955, o último expressou sua satisfação pela leitura do referido livro, presumidamente emprestado de Clarice Lispector. Ademais, prontificou-se a interceder por sua publicação em inglês, fosse pela editora Macmillan Co, fosse pela Alfred Knopf, com as quais mantinha boas relações. Por fim, pediu licença ao “autor-tradutor” por não ter gostado do título da versão daquela obra em inglês (Veríssimo, 1955VERÍSSIMO, Érico. Carta a Antonio Callado (15 de outubro de 1955). Acervo pessoal Antonio Callado; AC-cp/448, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1955.), evidência de que Callado a traduzira.

No que diz respeito ao cenário nacional, Callado foi sensível ao deslocamento da centralidade da cena cultural brasileira para São Paulo. Antes de publicar o referido livro, remeteu-o, sob pseudônimo, ao concurso de romances do IV Centenário da Fundação de São Paulo, conforme carta por ele enviada ao crítico literário paranaense Wilson Martins, jurado daquele certame, em 8 de julho de 1953. Mesmo não tendo sido premiado, solicitou ao último as razões de seu voto favorável a Assunção de Salviano, supostamente relatado pelo escritor Marques Rebelo, e um possível encontro (Martins, 1953aMARTINS, Wilson. Carta a Antonio Callado (8 de julho de 1953). Acervo pessoal Antonio Callado; AC-cp/263, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1953a.). Como resposta, Martins mencionou que tal obra explorava “assunto mais essencialmente brasileiro” e deu sugestões para a versão final do livro (Martins, 1953bMARTINS, Wilson. Carta a Antonio Callado (10 de julho de 1953). Acervo pessoal Antonio Callado; AC-cp/263, p. 2. (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1953b.). Desse modo, ainda que Callado não tenha obtido premiação na capital paulista, forjou laços com crítico literário de grande expressão, de quem obteve posteriormente orientações e reconhecimento em outra instância de validação10 10 Em outra carta, Martins declarou que escrevia seção de livro intitulado Panorama das Literaturas Americanas, organizado por um português residente em Angola, e que resolvera incluir Callado nela para dar uma ideia do “novíssimo romance brasileiro” (Martins, 1953c). .

A peça A cidade assassinada, por sua vez, também publicada em 1954, narra a luta de João Ramalho, fundador da vila de Santo André da Borda do Campo, contra os esforços do padre José de Anchieta para transferir a população daquele local para o povoado de São Paulo. Em linhas gerais, trata de um grupo de colonos que se afastara da autoridade da coroa portuguesa e dos mores cristãos ao se ligarem a concubinas nativas, mas que acabam sendo, após uma série de conflitos, integrados por todas essas instâncias, irradiadas da ascendente São Paulo11 11 Numa das cenas, Anchieta profere a seguinte sentença: “Cidades de sangue e de paixão precisam existir para que delas surja uma Cidade de Deus” (Callado, 2010a, p. 141). .

Esse interesse de Callado pelo passado aflorou em momento de intensa celebração do advento do moderno (Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no Meio Século XX. 2ª Ed. São Paulo: Edusp, 2015., p. 33). Os sentidos de A cidade assassinada se aproximam do teatro de Jorge Andrade - provavelmente de modo indireto e coincidente, dado que o último ainda não publicara seus trabalhos -, em que cenas do passado engendram mal-estar em face do presente, produzindo uma crítica implícita à modernidade constituída naqueles anos (Arruda, 2015ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: São Paulo no Meio Século XX. 2ª Ed. São Paulo: Edusp, 2015., p. 38). No caso específico de A cidade assassinada, é possível que nela sejam desenvolvidas, especificamente, objeções à descristianização e ao surgimento de um público desapegado das constrições morais, formado por sujeitos enleados por teias de subjetividade, em conexão com transformações sociais observadas à época (Arruda, 2014ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Lúcio Cardoso: tempo, poesia e ficção. In: MICELI, Sérgio; PONTES, Heloisa (Orgs.). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. 1ª Ed. São Paulo: Edusp , 2014. pp. 115-161., p. 143).

Por meio de carta enviada por Álvaro Lins a Callado, é possível identificar que este último inscreveu A cidade assassinada em outro concurso em torno das comemorações do IV Centenário de São Paulo, não tendo obtido premiação (Lins, 1953LINS, Álvaro. Carta a Antonio Callado (16 de novembro de 1953). Acervo pessoal Antonio Callado; AC cp /241, pp. 1-2. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1953.). De todo modo, essa peça viabilizou a interlocução de Callado com o diplomata e escritor Gilberto Amado, intelectual que lhe forneceu conselhos sobre como avançar no campo teatral. Em carta de Nova Iorque, datada de 19 de novembro de 1954, Amado elogiou efusivamente o texto da referida obra e traçou as seguintes sugestões: “Deveria ser traduzida em inglês [...] para ser levada nas grandes cenas de Londres e de Nova York [...]. Saberá Café Filho que essa peça é o maior acontecimento do seu período presidencial?” (Amado, 1954AMADO, Gilberto. Carta a Antonio Callado (19 de novembro de 1954); Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/5, p. 2. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1954. ). Em outras palavras, recomendava-lhe mirar no circuito teatral internacional dos países desenvolvidos e no centro do poder político nacional, orientações que Callado parece ter incorporado, direta ou indiretamente, conforme veremos12 12 Três anos depois, Callado convidou Café Filho - àquela altura ex-presidente -, por meio de carta, para a apresentação de uma de suas peças (Callado, 1957). .

3. CAMINHOS ATÉ NOVAS FORMAS DE ENGAJAMENTO

Em 1954, mesmo ano em que se lançou oficialmente como autor, Callado se tornou redator-chefe do Correio da Manhã, em substituição a Costa Rego, falecido havia pouco tempo. Tal associação não deve ter sido coincidência. Jornalista consideravelmente destacado e experiente, possuidor de capital cultural elevado, próximo dos escalões mais altos e dos proprietários daquele jornal, ele certamente reunia múltiplos requisitos para dirigi-lo; situação coroada com sua projeção inicial como romancista e dramaturgo. Somente não possuía casa própria - dado revelador das limitações de seu capital econômico e de seu status naquelas circunstâncias -, condição que Paulo Bittencourt lhe impôs para assumir o referido posto, oferecendo-lhe um empréstimo (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 93).

Na gestão de Callado, o Correio da Manhã ateve-se, de maneira geral, a uma orientação liberal legalista. Apoiou a posse de Juscelino Kubitschek, em meio à contestação de sua eleição por setores civis e militares. No entanto, Paulo Bittencourt, em carta ao primeiro, de 7 de janeiro de 1956, manifestou preocupação quanto à possibilidade de seu jornal ser considerado um órgão oficioso, ainda mais pelo fato de que Álvaro Lins assumira a chefia da Casa Civil do novo governo. Por isso, recomendou que não se expressasse diante deste último um posicionamento de “braços abertos, nem espírito fechado” (Bittencourt, 1956BITTENCOURT, Paulo. Carta a Antonio Callado (7 de janeiro de 1956); Acervo pessoal Antonio Callado, AC - cp/125, p. 3. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1956.). Dessa forma, o proprietário do Correio da Manhã, em viagem ao exterior e sem poder controlar todas as opiniões emitidas por seus funcionários, procurava definir as linhas mestras da orientação editorial. Em outra missiva despachada a seu redator-chefe, em 11 de agosto de 1957, saudou a campanha do periódico contra o “estatismo” (Bittencourt, 1957BITTENCOURT, Paulo. Carta a Antonio Callado (11 de agosto de 1957); Acervo pessoal Antonio Callado, AC - cp/125, p. 8. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1957.), indicação da orientação liberal com a qual Callado se alinhava13 13 O papel exercido então por Callado na orientação político-ideológica do Correio da Manhã pode ser inferido a partir de depoimento de Luís Alberto Bahia, que o sucedeu na condução daquele jornal. Segundo Bahia, o redator-chefe, pautando-se pelo “estilo francês”, encarregava-se de alinhar as matérias consideradas importantes aos comentários e editoriais. Comandando estes últimos, utilizava-os como guias para a confecção de um jornal com notável uniformidade: “Nunca se encontrava uma manchete brigando com o editorial” (citado em Andrade, 1991, p. 102). .

Nesse período, Callado fez outras incursões pelo teatro14 14 Para os fins deste artigo, analisarei somente as peças Frankel (1954), Pedro Mico (1957) e Forró no Engenho Cananeia (1964), por considerar que elas permitem vislumbrar distintos posicionamentos políticos na obra do autor. . Em 1954, escreveu a peça Frankel em inglês, em provável investimento na carreira internacional, e traduziu-a depois para o português. Ela foi encenada em diversas temporadas, por diversas companhias e em diferentes cidades do país, tendo sido ainda exibida em Londres. Além disso, foi cogitada como filme pelo cineasta francês Jean Renoir, conforme carta deste último enviada a Callado, em 11 de fevereiro de 1958 (Renoir, 1958RENOIR, Jean. Carta a Antonio Callado (11 de fevereiro de 1958). Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 356, p. 2. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1958.). Valendo-se de sua viagem ao Xingu, este último narra acontecimentos fictícios passados num posto do SPI naquela região. O personagem-título é um pesquisador das populações indígenas, morto desde o início da estória, cuja memória, porém, se faz sentir fortemente entre as outras personagens.

Uma delas, Estela, antropóloga do Museu Nacional, o considerava brilhante e, ao mesmo tempo, espécie de pai repressor, carregando a culpa pela sua morte e chegando perto de divinizá-lo, ainda que ele tenha morrido em circunstâncias obscuras; enredo que ecoa Totem e Tabu, de Freud. A narrativa policialesca, por outro lado, desvela uma faceta sinistra de Frankel, dado a experimentos reprováveis - ia até o ponto de colocar os indígenas em guerra entre si para provar suas teses. Esse tipo de crítica aos excessos da ciência não é necessariamente novo, lançado pelo menos desde os primórdios do romantismo. Contudo, possivelmente defendia, naquelas circunstâncias, a preservação de formas pré-capitalistas de organização como modelos para inspirar reformas para a sociedade brasileira.

A peça Pedro Mico (1957), por seu turno, lança luz sobre outros sujeitos relegados pela modernidade. Seu personagem principal é um malandro carioca negro e é ambientada numa favela. Estreada pelo diretor e crítico Paulo Francis, teve montagens por todo o Brasil e adaptação para o rádio. Na estória, o malandro homônimo escala paredes para entrar em residências e aprecia saber sobre seus feitos nos jornais. Analfabeto, porém, carece de alguém que lhe narre as notícias. É assim que conhece Aparecida, dotada de algum letramento e conhecimento de História. Ela lhe introduz a figura de Zumbi e o insta a emulá-lo, como na seguinte fala: “Se Zumbi quisesse, esse morro inteiro baixava com ele e tomava as casas da Lagoa” (Callado, 2010aCALLADO, Antonio. Teatro completo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010a., p. 334). Essa obra teatral é fortemente calcada em medo difundido entre as camadas médias brancas de que os habitantes dos morros descessem às suas casas e tomassem seus pertences. Ao que tudo indica, Callado entrou na discussão da questão racial chamando a atenção para possíveis abalos na ordem, trazidos, ou não resolvidos, pelo desenvolvimento do país.

Ainda que não se colocasse à esquerda do espectro político, Callado cultivava laços com artistas modernistas situados nessa posição do campo de poder. Em 1956, a convite de Niomar Muniz Sodré, Callado escreveu a biografia Retrato de Portinari, publicada pelo MAM do Rio de Janeiro. O famoso pintor, que desenhara a capa da primeira peça teatral de Callado a pedido de José Olympio, foi por ele longamente entrevistado; ocasião que serviu também para selar uma maior aproximação entre ambos e, por consequência, com Carlos Drummond de Andrade, amigo do biografado.

No livro, Callado comentou não ser fácil para os artistas venderem suas obras “ao povo, que ainda não se habituou a ela, nem viver com independência se os donos do dinheiro compram obras de arte timidamente”. Advogou assim um auxílio governamental para sustentar artistas de talento ainda não reconhecido, ao conclamar os contribuintes a aceitarem esse “fardo temporário” como forma de manter a arte (Callado, 2003CALLADO, Antonio. Retrato de Portinari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003., p. 71). É provável que procurasse com isso intervir no cenário artístico, especialmente em regiões do país não tão providas de mecenato quanto a capital paulista, dado que defendeu financiamentos públicos para o teatro em entrevista a Paulo Francis no ano seguinte (Francis, 1957FRANCIS, Paulo. Entrevista de Antonio Callado. 2ª secção. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 out. 1957., p. 4).

Sua posição como redator-chefe do Correio da Manhã tanto o avizinhou de variadas instâncias de consagração quanto facilitou sua admissão em muitas delas. O Prêmio Esso de Jornalismo, instituído em meados da década de 1950 e maior honraria da área, contou com sua presença na comissão julgadora nos dois primeiros anos de sua existência. Em 1960, foi sua vez de receber essa premiação por uma série de reportagens realizadas no Nordeste. Em 1958, integrou a comissão do prêmio Manuel Antônio de Almeida, ao lado dos escritores Antônio Olinto e Rachel de Queiroz, em julgamento que concedeu o primeiro lugar a Carlos Heitor Cony pelo romance Tijolo de Segurança (Perez, 1964PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964., p. 49).

No mesmo ano, Callado levou, pelo seu romance A Madona de Cedro, a primeira colocação em prêmio concedido pelo P. E. N. Clube do Brasil, conforme ata desta instituição emitida em 18 de novembro. O júri deste certame foi composto por Peregrino Júnior, Jaime Adour da Câmara, Magalhães Júnior, Paschoal Carlos Magno, Rodrigo Octavio Filho e Valdemar Cavalcanti (Ata do P. E. N. Clube do Brasil, 1958ATA DO P. E. N. CLUBE DO BRASIL. 18 de novembro de 1958. Acervo pessoal Antonio Callado, AC - cp/ 319, p. 2. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1958.). Tanto os concursos quanto as obras coletivas das quais participou serviram de oportunidade para o estreitamento de seus laços com jornalistas e ficcionistas de destaque. O suplemento literário do Correio da Manhã certamente foi espaço para o fortalecimento desses vínculos e para seu reconhecimento como autor, além de ter promovido sua aproximação com algumas editoras15 15 Segundo Alzira Alves de Abreu, no Correio da Manhã as “editoras José Olympio e Civilização Brasileira [pelas quais Callado publicou vários de seus livros] foram as mais assíduas frequentadoras da seção Livros na Mesa, de responsabilidade de Otto Maria Carpeaux e Franklin de Oliveira” (Abreu, 1996, p. 22). .

Em A Madona de Cedro, livro dedicado a Paulo Bittencourt - sinal de sua pretensão de cultivar relação íntima com o proprietário do Correio da Manhã -, Callado conta história ambientada na cidade mineira de Congonhas, outro símbolo da nacionalidade. Nela, o personagem principal, Delfino Montiel, ávido para se casar com a mulher amada, mas sem recursos para tanto, rouba uma imagem de Nossa Senhora feita pelo Aleijadinho para um colecionador. Anos depois, chantageado por este último para devolver a referida peça e se apossar de outra - em plano destinado a criar a impressão de um milagre aos olhos da população local com o retorno da imagem, ou seja, artifício semelhante àquele empregado pela célula comunista de Assunção de Salviano -, adentra a igreja onde praticara o furto durante os preparativos para a Sexta-feira da Paixão.

Delfino percebe então um movimento de pessoas entrando no recinto e esconde-se no esquife da imagem de Cristo, cobrindo-se com os paramentos dela. Inesperadamente, movimenta-se e é visto pelo padre e por uma assídua frequentadora da paróquia, a qual falece subitamente frente ao ato que se lhe afigura como milagroso. Aguarda assim a reprimenda do sacerdote que presenciara a cena ciente do engodo. Entretanto, o padre, para sua surpresa, conta-lhe que a mencionada ocasião lhe oferecera um momento de revelação e de renovação da fé, outro paralelo com o primeiro romance de Callado: novo ímpeto ressacralizador em momento da história do país em que a religião cedia espaço a explicações racionalizadoras.

Tal enredo agradou a Alceu Amoroso Lima, um dos mais proeminentes críticos literários do país e figura de proa em movimento que buscava revitalizar o catolicismo. É o que aponta resenha altamente elogiosa por ele escrita sobre a referida obra no jornal Diário de Notícias. Pouco depois, em 29 de julho de 1957, Callado enviou-lhe carta manifestando seu contentamento pelos comentários acerca de seu livro, de modo a cultivar a relação com o célebre intelectual católico (Callado, 1957aCALLADO, Antonio. Carta a Alceu Amoroso Lima (29 de julho de 1957). Acervo pessoal Alceu Amoroso Lima; CAALL/ATA/C12/74-73. Petrópolis (Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade - CAAL). 1957a.). O diálogo entre ambos se aprofundou. Em missiva de 1 de abril de 1960, Callado agradeceu-lhe pelo “dom de não recusar nunca”, referência a um provável pedido atendido para que Tristão de Athayde, célebre pseudônimo de Lima, escrevesse o prefácio da segunda edição de Assunção de Salviano, tratado pelo primeiro como um “spotlight” (Callado, 1960CALLADO, Antonio. Carta a Alceu Amoroso Lima (1 de abril de 1960). Acervo pessoal Alceu Amoroso Lima; CAALL/ATA/C12/74-73. Petrópolis (Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade - CAAL). 1960.). Essa afinidade aponta que eles se reconheciam, naquele momento, em posição homóloga no campo literário16 16 Em verbete para a enciclopédia Delta-Larousse, Lima incluiu Callado entre literatos dedicados a movimento de renovação do catolicismo (Pinheiro Filho, 2007, p. 35). .

Ao mesmo tempo que conquistou maior projeção na seara literária, Callado deslocou-se no campo jornalístico. No final da década de 1950, deixou o cargo de redator-chefe e retornou à função de repórter, tendo pesado para tanto o fato de que se sentia desautorizado na hierarquia administrativa do Correio da Manhã17 17 Em seu pedido de exoneração, datado de 18 de dezembro de 1957 e dirigido a José Velasco Portinho, queixou-se “pela forma de julgamento que você mais respeita - a do número - você colocou a Chefia da Redação abaixo da Superintendência [...] e abaixo da Gerência, onde ela nunca esteve. Ficou ao lado da Contabilidade” (Callado, 1957b). . Seu alinhamento com as diretrizes editoriais deste jornal, no entanto, manteve-se em grande medida. Paulo Bittencourt e seu periódico apoiaram a iniciativa do governo Kubitschek de implementar a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), idealizada por Celso Furtado e destinada a planejar o crescimento econômico e a industrialização daquela região (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 187), em guinada rumo ao que Bittencourt criticamente denominara antes de “estatismo”.

Na esteira dessa mudança, Callado foi enviado, no final de 1959, para o Nordeste, com a tarefa de identificar óbices para a concretização do mencionado projeto. Entreviu-os nas condições de vida dos trabalhadores rurais e na conduta de fazendeiros daquela localidade. Assim como o Correio da Manhã, defendia uma reforma agrária moderada e a modernização das relações trabalhistas no campo, como a introdução de direitos sociais e do trabalho assalariado monetizado. Essa orientação reformista respaldava-se no temor de abalos da ordem naquela região, em momento em que as Ligas Camponesas tomavam força ali. De qualquer modo, estas últimas foram exaltadas por Callado, o qual vislumbrava nelas o potencial de se tornarem um catalizador para o processo de modernização almejado, desde que tivessem suas forças canalizadas nesse sentido (Queler; Zangelmi, 2020QUELER, Jefferson José; ZANGELMI, Arnaldo José. Por uma revolução branda no campo: significados do vocabulário político das reportagens de Antonio Callado sobre o Nordeste (1959-1960). Revista de História (USP), São Paulo, pp. 1-29, n. 179, 2020., p. 20).

Em 1960, essas matérias foram reunidas e publicadas no livro Os industriais da seca e os “galileus” de Pernambuco, documento de grande importância para as discussões em torno da questão fundiária no Brasil, e que contribuiu para a desapropriação do Engenho Galileia, marco da reforma agrária. Tal obra foi lançada por Ênio Silveira, editor de orientação comunista, pela editora Civilização Brasileira, colocando o autor em contato mais próximo com o público engajado.

A relativa autonomia de Callado para se mover no campo jornalístico, bem como as condições mais vantajosas assim obtidas para se firmar como ficcionista, foram favorecidas por sua formação no exterior. Seu reconhecimento como autoridade na cultura e no idioma ingleses renderam-lhe uma série de oportunidades e contatos com literatos consagrados. Desse modo, em 1958, ciceroneou o escritor inglês Aldous Huxley e a poeta norte-americana Elizabeth Bishop numa expedição ao Xingu. No ano seguinte, recebeu convite de Manuel Bandeira para redigir um capítulo em obra comemorativa ao 25º aniversário de Casa Grande & Senzala que tratava da temática “Gilberto Freyre, discípulo dos anglo-saxões” (Bandeira, 1959BANDEIRA, Manuel. Carta a Antonio Callado (5 de janeiro de 1959); Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 29, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1959.), tarefa que levou a cabo.

Além disso, Callado, entre 1960 e 1964, deixou de trabalhar em jornais e se tornou coordenador da Barsa, versão da Encyclopaedia Britannica para o Brasil. Os termos de seu contrato inicial aludem à posição privilegiada que podia ocupar no cenário cultural em termos de contatos, uma vez que devia buscar parceria com os “mais competentes educadores e escritores disponíveis” (Contrato de trabalho..., 1960CONTRATO DE TRABALHO de Antonio Callado com a Enciclopédia Barsa. Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 159, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1960., tradução minha). Dessa forma, contou com a colaboração de intelectuais prestigiados de distintas orientações ideológicas e artísticas, tais como Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda, Jorge Amado, Oscar Niemeyer e Gilberto Freyre18 18 Uma carta de Freyre dirigida a Callado, em 2 de agosto de 1961, aponta terem sido dois os verbetes inicialmente remetidos pelo primeiro para a coletânea: “Civilização do Açúcar” e “Pernambuco”. Ademais, o sociólogo ofereceu-lhe artigo seu não publicado pela revista Senhor, para que fosse comprado desta última e aproveitado na enciclopédia (Freyre, 1961). .

Callado logrou atingir posição bastante sólida no establishment literário naquele momento. É o que sugere sua participação na obra coletiva O Mistério dos MMM, publicada em 1962, ao lado dos escritores Viriato Corrêa, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, Jorge Amado, José Condé, Guimarães Rosa, Orígenes Lessa e Rachel de Queiroz. Nesta estória policial, cada um compôs um capítulo não definido a priori a partir da seção que havia sido escrita por último. Vários desses intelectuais contavam com a distinção de serem membros da Academia Brasileira de Letras, ao passo que outros ingressariam nela ou seriam por ela reconhecidos no futuro, inclusive o próprio Callado.

Em 1964, Callado lançou a peça engajada Forró no Engenho Cananeia, em mudança de orientação estética. Publicou-a pela editora Civilização Brasileira, tendo a orelha do livro sido escrita por Dias Gomes, autor situado à esquerda e sucesso no teatro e no cinema. Na narrativa, mescla, no plano ficcional, os acontecimentos por ele reportados junto às Ligas Camponesas e ao engenho Galileia com o sebastianismo presente em Canudos. Conta a luta de trabalhadores rurais para construir um cemitério nas terras de um “coronel” e assim poder enterrar seus mortos de maneira decente. Desse modo, a incursão anterior de Callado pelas temáticas sociais no jornalismo teve impactos em suas escolhas na criação ficcional. Em momento em que a arte engajada visava conduzir o processo reformista-revolucionário, atuante no governo Goulart (Napolitano, 2001NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955-1968). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28, pp. 103-124, 2001., p. 106), Callado reforçou, por meio de uma interpretação peculiar dessa corrente, sua defesa de reformas para o país.

A afinidade das primeiras obras teatrais de Callado com os trabalhos de Jorge Andrade foi abalada com Forró no Engenho Cananeia. Andrade, em carta não datada ao primeiro, ainda que tenha reconhecido o mérito do tema e a força dos diálogos da peça, teceu longos comentários críticos, questionando sobretudo o posicionamento explícito de Callado. Em sua opinião, o “ódio” deste último aos “coronelões nordestinos” fora tão intenso “que foi levado por ele a ridicularizá-los ao ponto máximo, quando você pode reduzi-los a expressão mais simples...simplesmente contando o fato em si” (Andrade, s.d.ANDRADE, Jorge. Carta a Antonio Callado. Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 11, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). [s.d.]. ).

Esses comentários são indicativos de que Callado mudara de posição no campo teatral ao alinhar-se, em alguma medida, às ascendentes produções engajadas do Teatro de Arena, do Teatro Oficina e às apresentações do Centro Popular de Cultura, sem se ligar diretamente a nenhuma dessas tendências; e distanciar-se de produções similares àquelas produzidas pelo Teatro Brasileiro de Comédia, em crise naquela conjuntura (Napolitano, 2001NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955-1968). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28, pp. 103-124, 2001., p. 109). Em 1967, fez algo parecido no campo literário, com o lançamento de Quarup, sua obra mais famosa. Nesse sentido, assumiu, por meio de uma releitura de corrente literária internacionalmente aclamada, a postura de escritor engajado que pretendia participar direta e plenamente do processo revolucionário com suas obras (Benoît, 2002BENOÎT, Denis. Literatura e engajamento: de Pascal a Sartre. Bauru: EDUSC, 2002., p. 24), procurando, na prática, canalizá-lo para a realização de reformas no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como no caso de outros intelectuais, o amplo reconhecimento da obra de Callado no campo da esquerda, em momento em que esta última detinha a hegemonia cultural no país (Schwarz, 2008SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras , 2008. , p. 71), contribuiu para sua consagração. Por outro lado, trouxe-lhe desvantagens e riscos numa sociedade autoritária como a brasileira, especialmente no que diz respeito ao preconceito social generalizado contra o comunismo (Ridenti, 2022RIDENTI, Marcelo. O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural. 1ª Ed. São Paulo: Unesp, 2022., p. 59) - considerando as prisões e censuras por ele sofridas. De qualquer forma, é preciso destacar que seus escritos com esse tipo de engajamento, bem como a aclamação deles por expressivos setores da esquerda, delinearam-se tão-somente no final da década de 1950 e início da de 1960.

Os primeiros passos de Callado nas carreiras jornalística e literária foram marcados por outras formas de orientação ideológica. Ao longo da década de 1950, ele trabalhou em periódicos liberais-conservadores, cujas diretrizes ideológicas seguia em grande medida. Em seus primeiros passos na ficção, alinhou-se mais aos escritores católicos e a críticos da modernização então em curso no país, veiculando representações culturais marcadas por apelos ao reencantamento da sociedade e por temores a respeito de possíveis abalos na ordem social. Seguindo tais diretrizes e atuando em posição central no campo jornalístico, conquistou trânsito entre variadas tendências estéticas e políticas dos campos teatral e literário, assim como contatos no meio artístico e com instâncias de consagração.

O deslocamento de Callado rumo a uma produção jornalística e ficcional que tocava em assuntos abordados pela arte engajada de esquerda parece ter sido embalado - mas não determinado - pelos vínculos institucionais que manteve no final da década de 1950. A defesa de reformas então encampadas pelo Correio da Manhã, bem como da industrialização planejada do Nordeste - projeto que dependia de uma reforma agrária limitada e da melhora das condições de vida dos trabalhadores rurais daquela região -, estimulou-o a propugnar por essas causas tanto em seus escritos jornalísticos quanto ficcionais. Partindo dessas premissas, Callado reinterpretou o então ascendente movimento ligado à arte engajada, buscando canalizar as lutas em prol da revolução em direção a reformas que estimulassem o capitalismo no Brasil.

REFERÊNCIAS

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    » http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38794242
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  • 1
    Este artigo é resultado de parte de pesquisa de pós-doutorado por mim desenvolvida no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) no primeiro semestre de 2022, sob a supervisão do professor Sérgio Miceli. Gostaria de agradecer-lhe pelo grande estímulo, pelas críticas e pelas sugestões. Agradeço igualmente aos integrantes do grupo de Sociologia da Cultura, em especial os professores Luiz Carlos Jackson e Fernando Antonio Pinheiro Filho, pela organização de excelentes discussões, e a Vavy Pacheco Borges pela leitura cuidadosa de uma versão preliminar deste texto. Todas as afirmações e conclusões apresentadas a seguir são de minha responsabilidade.
  • 2
    Muitas das informações biográficas concernentes a Antonio Callado foram consultadas em entrevistas por ele concedidas a Lígia Chiappini Moraes Leite, disponíveis nas seguintes obras: Leite (1982LEITE, Lígia Chiappini Moraes; LAFETÁ, João Luiz (Orgs.). Artes plásticas e literatura. 1ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.), Leite; Lafetá (1982LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Antonio Callado: literatura comentada. 1ª Ed. São Paulo: Abril Educação, 1982.). Outras informações sobre sua vida foram obtidas em verbete escrito por Renard Perez (cf. Perez, 1960PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos . 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1960.), texto apresentado como feito em conjunto com o biografado e por ele autorizado. Servi-me ainda de obra redigida e organizada por sua última esposa (Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013.). Os dados coincidentes nesses relatos serão apresentados de agora em diante sem referências.
  • 3
    Neste ponto, sua trajetória pode ser comparada com a de Jorge Luis Borges, cujas escolhas sugerem ter ele dado sequência a pretensões intelectuais do pai, obstaculizadas pela perda da visão (Miceli, 2007MICELI, Sérgio. Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 77, março, pp. 155-182, 2007., p. 159).
  • 4
    Desde o século XIX, havia considerável presença de alemães e ingleses em Niterói, onde se instalaram companhias, bancos, clubes, escolas e igrejas ligados àquelas comunidades; instituições e sujeitos que marcaram significativamente o cenário e a vida social fluminenses no início do século XX (cf. Bezerra, 2015BEZERRA, Maria Cristina Caminha. Britânicos e alemães em Niterói: um estudo de imigração urbana. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2015.).
  • 5
    A peça A cidade assassinada (1954), a primeira por ele publicada e derivada de um trabalho de radioteatro destinado à BBC (Francis, 1957FRANCIS, Paulo. Entrevista de Antonio Callado. 2ª secção. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 out. 1957., p. 4, 2ª secção), vem com a seguinte dedicatória: “Para minha mulher, minha primeira leitora” (Callado, 2010aCALLADO, Antonio. Teatro completo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010a., p. 69).
  • 6
    Em suas palavras, houve uma bifurcação em seus ímpetos como romancista, uma vez que a “realidade do teatro brasileiro exemplificada pelo TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], por Cacilda [Becker] e Sérgio [Cardoso], pelo advento dos diretores estrangeiros, pelo desenvolvimento do autor nacional de cunho próprio como Nelson Rodrigues, atraiu-me vertiginosamente ao teatro” (Francis, 1957FRANCIS, Paulo. Entrevista de Antonio Callado. 2ª secção. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 27 out. 1957., p. 4, 2ª secção).
  • 7
    Callado tornara-se muito próximo de Álvaro Lins naqueles anos. Em carta enviada por este último ao primeiro, de Portugal, em 16 de novembro de 1953, o célebre crítico cogitou transformar Callado em seu substituto na cadeira de Estudos Brasileiros, em Lisboa. Para tanto, solicitou-lhe que procurasse João Cleofas, ministro da Agricultura à época, ou outra pessoa influente, para que a referida indicação fosse encaminhada ao ministro do Exterior ou ao Palácio do Catete. Além disso, aconselhou-o a abrir-se, “em todos os sentidos, com o Guimarães Rosa, que considero meu melhor amigo” (Lins, 1953LINS, Álvaro. Carta a Antonio Callado (16 de novembro de 1953). Acervo pessoal Antonio Callado; AC cp /241, pp. 1-2. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1953.).
  • 8
    Esse posicionamento se alinhava aos princípios norteadores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), atuante à época. Este último surgira com o propósito de proteger os indígenas, visando prepará-los para se tornarem parte da “comunhão nacional”, isto é, virarem trabalhadores ou produtores rurais (Valente, 2017VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., p. 24).
  • 9
    O valor estético dessa obra foi reconhecido por Carlos Drummond de Andrade, um dos poetas mais celebrados no país no início da década de 1950, em carta por ele enviada a Callado como aparente resposta ao envio do texto para apreciação: “De uma excursão de repórter você extraiu um texto literário palpitante, cheio de informações diretas sobre esse infraBrasil que os brasileiros desconhecem” (citado em Callado, 2013CALLADO, Ana Arruda (Org.). Antonio Callado: fotobiografia. 1ª Ed. Recife: CEPE, 2013., p. 210).
  • 10
    Em outra carta, Martins declarou que escrevia seção de livro intitulado Panorama das Literaturas Americanas, organizado por um português residente em Angola, e que resolvera incluir Callado nela para dar uma ideia do “novíssimo romance brasileiro” (Martins, 1953cMARTINS, Wilson. Carta a Antonio Callado (10 de julho de 1953). Acervo pessoal Antonio Callado; AC-cp/263, p. 3. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1953c.).
  • 11
    Numa das cenas, Anchieta profere a seguinte sentença: “Cidades de sangue e de paixão precisam existir para que delas surja uma Cidade de Deus” (Callado, 2010aCALLADO, Antonio. Teatro completo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010a., p. 141).
  • 12
    Três anos depois, Callado convidou Café Filho - àquela altura ex-presidente -, por meio de carta, para a apresentação de uma de suas peças (Callado, 1957CALLADO, Antonio. Carta a Café Filho (8 de agosto de 1957). Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/60, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1957.).
  • 13
    O papel exercido então por Callado na orientação político-ideológica do Correio da Manhã pode ser inferido a partir de depoimento de Luís Alberto Bahia, que o sucedeu na condução daquele jornal. Segundo Bahia, o redator-chefe, pautando-se pelo “estilo francês”, encarregava-se de alinhar as matérias consideradas importantes aos comentários e editoriais. Comandando estes últimos, utilizava-os como guias para a confecção de um jornal com notável uniformidade: “Nunca se encontrava uma manchete brigando com o editorial” (citado em Andrade, 1991ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã. 1ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. , p. 102).
  • 14
    Para os fins deste artigo, analisarei somente as peças Frankel (1954), Pedro Mico (1957) e Forró no Engenho Cananeia (1964), por considerar que elas permitem vislumbrar distintos posicionamentos políticos na obra do autor.
  • 15
    Segundo Alzira Alves de Abreu, no Correio da Manhã as “editoras José Olympio e Civilização Brasileira [pelas quais Callado publicou vários de seus livros] foram as mais assíduas frequentadoras da seção Livros na Mesa, de responsabilidade de Otto Maria Carpeaux e Franklin de Oliveira” (Abreu, 1996ABREU, Alzira Alves. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (Orgs.). A imprensa em transição. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. pp. 13-60., p. 22).
  • 16
    Em verbete para a enciclopédia Delta-Larousse, Lima incluiu Callado entre literatos dedicados a movimento de renovação do catolicismo (Pinheiro Filho, 2007PINHEIRO FILHO, Fernando Antonio. A inversão da ordem: intelectuais católicos no Brasil. Tempo Social, v. 19, n. 1, pp. 33-49, 2007., p. 35).
  • 17
    Em seu pedido de exoneração, datado de 18 de dezembro de 1957 e dirigido a José Velasco Portinho, queixou-se “pela forma de julgamento que você mais respeita - a do número - você colocou a Chefia da Redação abaixo da Superintendência [...] e abaixo da Gerência, onde ela nunca esteve. Ficou ao lado da Contabilidade” (Callado, 1957bCALLADO, Antonio. Carta a José Velasco Portinho (18 de dezembro de 1957). Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 83, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1957b.).
  • 18
    Uma carta de Freyre dirigida a Callado, em 2 de agosto de 1961, aponta terem sido dois os verbetes inicialmente remetidos pelo primeiro para a coletânea: “Civilização do Açúcar” e “Pernambuco”. Ademais, o sociólogo ofereceu-lhe artigo seu não publicado pela revista Senhor, para que fosse comprado desta última e aproveitado na enciclopédia (Freyre, 1961FREYRE, Gilberto. Carta a Antonio Callado (2 de agosto de 1961) - Acervo pessoal Antonio Callado; AC - cp/ 175, p. 1. Rio de Janeiro (Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB). 1961.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2022
  • Aceito
    08 Mar 2023
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