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Mídia e memória: apresentação e 'uso' de testemunhos em som e imagem

Resumos

O artigo estuda o registro de testemunhos em som e imagem, bem como os efeitos desse registro e das mídias, em geral, sobre as pessoas entrevistadas. O autor expõe sua experiência com depoimentos de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial na Alemanha e analisa diversos aspectos, como a ética no uso dessas entrevistas em filmes, e as relações entre ciência, pedagogia e jornalismo. O autor comenta a reinterpretação de depoimentos pelas gerações posteriores e recorre a quatro exemplos de sua própria família para expor como são variáveis e complexos os julgamentos de personagens antigas no decorrer da história.

Memória; entrevistas; registro em som e imagem; Alemanha, século XX


This article looks at the recording of witnesses in sound and image, as well as the effects of this recording and of the media in general on the people interviewed. The author discusses his experience with statements from survivors of the Second World War in Germany and analyzes various questions, such as ethics in the use of these interviews in films, and relations between science, pedagogy and journalism. The author comments on the reinterpretation of statements by later generations and draws on four examples from his own family to show how the judgment of old characters during history is complex and variable.

Memory; interviews; registration in sound and image; Germany, twentieth century


ARTIGOS

Mídia e memória: apresentação e 'uso' de testemunhos em som e imagem1 1 Tradução: Gabriela França; edição de texto: Armando Olivetti.

Media and memory: the presentation and 'use' of witnesses in sound and image

Alexander von Plato

PD. Dr. Phil. Haus der FernUniversität, Institut für Geschichte und Biographie. Liebigstraße, 11. 58511 - Lüdenscheid - Deutschland alexander.vonplato@fernuni-hagen.de

RESUMO

O artigo estuda o registro de testemunhos em som e imagem, bem como os efeitos desse registro e das mídias, em geral, sobre as pessoas entrevistadas. O autor expõe sua experiência com depoimentos de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial na Alemanha e analisa diversos aspectos, como a ética no uso dessas entrevistas em filmes, e as relações entre ciência, pedagogia e jornalismo. O autor comenta a reinterpretação de depoimentos pelas gerações posteriores e recorre a quatro exemplos de sua própria família para expor como são variáveis e complexos os julgamentos de personagens antigas no decorrer da história.

Palavras-chave: Memória; entrevistas; registro em som e imagem; Alemanha, século XX.

ABSTRACT

This article looks at the recording of witnesses in sound and image, as well as the effects of this recording and of the media in general on the people interviewed. The author discusses his experience with statements from survivors of the Second World War in Germany and analyzes various questions, such as ethics in the use of these interviews in films, and relations between science, pedagogy and journalism. The author comments on the reinterpretation of statements by later generations and draws on four examples from his own family to show how the judgment of old characters during history is complex and variable.

Keywords: Memory; interviews; registration in sound and image; Germany, twentieth century.

QUESTÕES

O tema "mídia e memória" ou "testemunhos2 2 O autor refere-se várias vezes a 'testemunhas contemporâneas' e a 'testemunhas oculares'. Testemunha contemporânea ( Zeitzeuge) é a pessoa que vivenciou acontecimentos históricos; testemunha ocular ( Augenzeuge) é quem presenciou determinado acontecimento e pode dizer algo sobre ele. Nesta edição em português, as expressões foram mantidas quando fundamentavam a interpretação. (N.E.) em som e imagem" abrange várias questões:

• O uso de gravações em vídeo ou de anotações feitas durante conversas, embora esse aspecto possa ser atribuído, de maneira geral, à relação da escrita com a oralidade e com a visualidade.

• O 'uso' de entrevistas na ciência e no trabalho educacional, em exposições e memoriais, em filmes de ficção ou em documentários e docudramas; com isso, envolve também a relação entre ciência, pedagogia e jornalismo.

• As entrevistas biográficas em vídeo, fitas de áudio e transcrições sofrem processos de envelhecimento diversos, e algumas delas sofrem até mesmo de 'obsolescência'. No que diz respeito ao Entre Guerras, ao nacional-socialismo, à Segunda Guerra Mundial e ao período da ocupação da Alemanha,3 3 Os alemães chamam de História Contemporânea ( Zeitgeschichte) os acontecimentos das últimas décadas, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. (N.T.) atravessamos uma transição: contamos com testemunhas ainda vivas, mas logo estaremos sem elas. O que se fará então - eventualmente, de maneira diferente da atual - nas novas gerações, com as gravações em áudio e com a documentação visual dessas experiências?

• O tema envolve também a ética, quando lidamos com depoimentos em filmes, sobretudo na questão do público e do privado.

• O tema ainda pode ser completamente tomado pelo 'outro lado' (e esta é a questão usual): é preciso conhecer o efeito das mídias sobre as lembranças dos entrevistados, pois chegam a interferir na credibilidade de outros testemunhos.

É com esta última questão que pretendo começar, para então me aproximar das demais -sucintamente, levando em conta a brevidade deste trabalho -, com o objetivo de nos sensibilizarmos para o emprego de mídias e para o registro de testemunhos em áudio e vídeo.

O EFEITO DAS MÍDIAS SOBRE A MEMÓRIA

Quando há alguns anos entrevistei a senhora S. - uma mulher de orientação social-democrata expulsa da Silésia e que hoje vive na região do rio Ruhr - e perguntei sobre suas experiências no pós-guerra, ela discorreu longamente sobre as dificuldades na integração dos fugitivos, mas também sobre a recepção quase sempre boa no local de trabalho e sobre o grande significado da reforma monetária e da conciliação de responsabilidades em sua própria vida. Mas ela se perdeu totalmente quando lhe perguntei sobre suas lembranças da fundação da República Federal da Alemanha (1949). Nada lhe ocorreu - como acontece, aliás, com muitos de nossos entrevistados do lado ocidental. Em nosso segundo encontro, contudo, a senhora S. fez uma descrição extremamente vivaz do surgimento da Constituição Federal e da fundação da República. Ela sabia da Conferência de Herrenchiemsee e acentuou o papel de Carlo Schmid e Annemarie Renger,4 4 Primeira mulher a se tornar presidente do Bundestag (Parlamento Alemão). ou seja, de social-democratas importantes e carismáticos. Naturalmente, tentei descobrir o que causara a mudança em sua memória. A senhora S. esquivou-se ou pareceu sentir-se flagrada. Mesmo assim, explicou - de maneira um pouco mais agitada que antes - que sempre fora leitora de jornais, e que seus filhos teriam aprendido a respeito do tema na escola. Com isso, suas lembranças teriam sido reavivadas. Mas logo surgiu o fato de que duas noites antes passara na televisão um filme sobre Annemarie Renger contendo tudo isso que ela transmitia agora como se fossem suas próprias lembranças.

Poderíamos dizer, então, que as pessoas não recordam suas próprias vivências e experiências de determinada época, mas sim as representações dessa época, as quais foram transmitidas por diversas mídias. Essa primeira impressão sobre a falta de credibilidade dos entrevistados, ou até mesmo sobre sua falsidade, vem se propagando rapidamente entre vários representantes da comunidade acadêmica ligada à história como um argumento contra a pesquisa que envolve testemunhos, de maneira geral.

Porém, o problema da credibilidade das personagens em relação às mídias e à memória é naturalmente mais complexo. Eu poderia ter iniciado este texto com outra história. A senhora M., entrevistada por mim no âmbito de um projeto sobre recordações do bombardeio de Dresden em fevereiro de 1945, colocou-se veementemente contra um filme televisivo, um docudrama sobre os ataques aéreos à cidade, no qual a trama girava em torno de uma história de amor entre uma alemã e um piloto britânico cujo avião fora abatido. Ela trouxe para um nível muito mais profundo argumentos fidedignos que definiam como impossível a história narrada no filme. Segundo ela, o filme conteria, sobretudo, uma série de 'notícias falsas' que classificava com bastante precisão e que tentou refutar.

Ambos os exemplos - e muitos outros que eu poderia apresentar - mostram que relatos midiáticos sobre uma época, um acontecimento, ou mesmo sobre o impacto de determinados acontecimentos, podem ter diversos efeitos sobre a memória de testemunhas e sobre suas narrativas. A tarefa e a arte da entrevista e da interpretação consistem exatamente em descobrir se uma descrição feita como se fosse de algo relacionado à própria pessoa resulta do que a mídia expôs e/ou de suas vivências, se ela se encaixa entre as demais experiências e vivências da pessoa questionada, ou se aparece como falsa ou implausível.

Ou seja: é preciso, de fato, discutir de onde se originam determinadas lembranças, opiniões e orientações, para que possamos coordená-las e interpretá-las no contexto de uma exposição biográfica. Mas devemos nos proteger do pressuposto de que as apresentações nas mídias são simplesmente assumidas de forma igual pelas diferentes personagens. Pelo contrário: o trabalho de interpretação em si começa com o reconhecimento de que algumas dessas apresentações vêm de jornais, são ouvidas ou vistas. Mas esse trabalho às vezes é precocemente considerado desnecessário, como se tudo que se diz não passasse de uma narrativa emprestada desse ou daquele filme. Pelo contrário, é necessário investigar por que alguns elementos de uma apresentação na mídia são adotados por alguns entrevistados, ao passo que elementos diferentes atingem outros entrevistados. Pode-se até mesmo argumentar o contrário: a adoção de certos relatos expostos nas mídias pode ser a chave para a interpretação de alguns depoimentos. Talvez a senhora S., incriminada, tenha encontrado o termo adequado a várias dessas reflexões na explicação de que suas lembranças teriam sido 'refrescadas' pelo filme sobre Annemarie Renger.

Cabe, aqui, outra argumentação científica: experiências jamais são idênticas ao diretamente vivido. Experiência5 5 Em alemão há duas definições para 'experiência': o evento direto e o evento que é recolhido e trabalhado por uma pessoa. é vivência trabalhada e história trabalhada. E vivências são reconhecidamente percebidas, trabalhadas e narradas de maneiras muito distintas, por exemplo em função de origem, meio social, sexo, formação, orientação religiosa e política; dependem também das 'ofertas' para essa elaboração que provêm de outras pessoas que viveram algo semelhante, da literatura, de mídias e monumentos, ou ainda da política educacional oficial. Seria assim ingênuo acreditar que algumas pessoas não 'incorporem' relatos oriundos das mídias ou das narrativas de outrem em suas próprias recordações ou relatos de vida, conscientemente ou não. Se formos sinceros, admitiremos fazer o mesmo ou algo semelhante. Inserimos as experiências de outros, os relatos de terceiros em nossa narrativa sobre fases importantes da vida, seja como uma alusão comprovada, seja como nossas vivências e experiências supostamente próprias.

A análise dos relatos de experiências mostra a dificuldade em descobrir recordações livres da influência de fontes vindas da mídia. Mas, quando a pesquisa com testemunhos examina sobretudo a história trabalhada e seu efeito, em vez de 'fatos e personagens', então essa objeção não é relevante: nesse caso, a 'adequação' daquelas fontes às nossas experiências é mais importante do que as possíveis fontes em si que possam ou não ter sido aproveitadas pelos entrevistados, pois trata-se dos conteúdos e das maneiras de trabalho da história - e aí a adaptação de relatos de terceiros sempre desempenha um papel.

Contudo, algo diferente disso reside nos relatos de testemunhas oculares sobre determinados acontecimentos. Se essas pessoas se mostram realmente críveis, então elas devem suportar melhor que seus contemporâneos a averiguação de seu relato, o que significa que a origem de seu conhecimento deverá ser cuidadosamente examinada sob a lupa, que seus relatos deverão ser comparados com os de outras testemunhas, ou que as contradições em suas lembranças deverão ser expostas e confrontadas com outras fontes.

Há, porém, um aspecto totalmente diverso: agindo no sentido oposto ao dos exemplos apresentados até agora, reunimos uma grande quantidade de narrativas pessoais que tiveram a primazia na condução da ciência ou do jornalismo a determinadas pistas. Por exemplo, as primeiras pesquisas sobre os campos de concentração e o Holocausto, o exame dos campos de prisioneiros de guerra ou dos campos especiais soviéticos na Alemanha. Essas pesquisas surgiram em uma época na qual havia na mídia muito pouca ou nenhuma apresentação de efeito sobre esses temas. Nesse caso, foram as recordações pessoais que encorajaram o desenvolvimento de pesquisas, artigos e filmes, ou simplesmente os tornaram possíveis.

Um exemplo disso: recentemente, durante uma entrevista biográfica sobre trabalhos forçados, o senhor F., um cigano sinti da Prússia oriental, me contou que as autoridades do Terceiro Reich separaram os ciganos de suas famílias, isolaram-nos e dividiram-nos em diferentes aldeias e zonas rurais. Como logo foram proibidas também os deslocamentos entre as comunidades, todos eles perderam-se de vista e só procuraram uns aos outros depois da guerra - na maioria das vezes em vão, porque muitos haviam sido mortos. Essa medida de repressão não foi abordada até agora pela pesquisa sobre a política nacional-socialista para os ciganos.

O 'USO' DE TESTEMUNHOS NA CIÊNCIA E NO TRABALHO DE EDUCAÇÃO

As entrevistas e sua interpretação nos âmbitos da ciência, da pedagogia e do jornalismo costumam ser as mesmas, um erro amplamente difundido.

Por exemplo, quando trazemos convidados para uma aula, a discussão costuma girar em torno do efeito disso sobre os alunos, da utilidade didática dessa visita, da comiseração ou - com um pouco de ironia - da identificação dos alunos com um destino subjetivo dentro da grande História. Esse destino é apresentado com a imponência decorrente da idade, seja o convidado uma vítima, um mártir, um opositor ou um herói, homem ou mulher. No final das contas, portanto, trata-se na maioria dos casos de uma ilustração impressionante sobre um acontecimento histórico ou um desenrolar histórico, cujo verdadeiro significado poderia ser apreendido de outras fontes. Além disso, em minha opinião não é raro desenvolver-se nas escolas uma prática ruim, na qual a identificação emocional, o 'politicamente correto', resulta quase sempre em um espetáculo esquematizado da relação do sujeito e da história com testemunhas 'profissionais'. Vistas por si mesmas, essas aparições não parecem ruins, uma vez que elas devem satisfazer os objetivos previstos e nada mais. Mas quem já presenciou o comportamento dos alunos - como eles podem ficar intimidados e calados, às vezes até mesmo constrangidos, quando sobreviventes de campos de concentração ou prisioneiros de antigos campos soviéticos fazem suas apresentações - pode ter uma noção das diferenças entre ciência e (má) pedagogia na utilização de testemunhas. Como pode um adolescente inquirir 'criticamente' testemunhas que trazem consigo vivências tão terríveis? Como pode chamar a atenção para a existência de outras fontes? Às vezes me pergunto se não seria, em vários casos, muito mais sensato apresentar e discutir nas escolas trechos de entrevistas em vídeo, em vez de levar essas pessoas à escola. Faltariam a 'autenticidade' e a 'imponência da idade', mas em compensação os alunos teriam liberdade para discutir. Em resumo, os educadores têm de (aprender a) decidir qual é o meio mais adequado para atingir seu objetivo.

Na ciência, ao menos na ciência histórica, as entrevistas biográficas são conduzidas pormenorizadamente; nelas os entrevistados em primeiro lugar narram suas vidas e os entrevistadores podem, com bastante tempo e um objetivo em mente, perscrutá-los ou até mesmo discutir algum ponto. Depois disso as narrativas podem ser comparadas com as de outras pessoas ou com outras fontes, e então interpretadas. Se necessário, marcam-se ainda outros encontros, para mais entrevistas.

Acredito que problemas semelhantes aos da escola possam surgir no emprego de testemunhas em museus e memoriais. Entretanto, essas instituições têm no mínimo a tarefa dupla de entrevistar testemunhas como fontes científicas e utilizá-las no trabalho educacional.

O 'USO' DE TESTEMUNHOS EM FILMES E NA TELEVISÃO

Vantagens e desvantagens de gravações em som e vídeo

Na primeira etapa desta tentativa de dar um parecer sobre o emprego de testemunhos em som, imagem, produções televisivas, documentários e filmes de ficção, devemos ao menos sinalizar quais os méritos das gravações de depoimentos em vídeo caseiro ou em filme, comparadas à gravação sonora. Ambas desfrutam igualmente da vantagem da 'veracidade' da reprodução em contraposição à simples transcrição das fontes orais, a qual geralmente é feita pelas pessoas que procedem à avaliação e à interpretação. O perigo normalmente presente nessa tarefa é o de 'moldar' as fontes àquilo que corresponda mais amplamente às teses preconcebidas. Os erros poderiam ser minimizados mediante a correção escrita pelo próprio entrevistado, mas neste caso o perigo está, por exemplo, na seleção parcial de trechos, na substituição de palavras, no direcionamento de uma argumentação para gerar impacto - algo que não foi anteriormente decidido mas que, afinal, é aceito pelo entrevistado.

As vantagens das gravações em vídeo, em relação às sonoras, são óbvias: ao lado da voz destacam-se também a expressão facial e suas mudanças, o suor, o rubor, os gestos, o cenário de fundo, o mobiliário, o estilo da decoração, o olhar de esguelha sobre textos preparados, eventualmente uma leitura em voz alta ou uma fala livre, entre outros aspectos. Isso leva à ampliação e ao enriquecimento dos comentários sobre um texto, às vezes até mesmo a outra possibilidade de interpretação, completamente diferente. Por exemplo, um cidadão da RDA (República Democrática Alemã, ou Alemanha Oriental), em depoimento em 1987, apontou o indicador para o teto, ou seja, chamou a atenção para um possível 'grampo', com isso mostrando que a segurança de Estado, à espreita, fora frustrada. Já o fato de evitar uma pergunta ou sorrir de maneira maliciosa pode dar um significado totalmente diferente ao mesmo gesto.

A gravação em vídeo caseiro ou em filme tem, entretanto, como desvantagem - dependendo do aparato técnico e da exigência quanto à qualidade - a presença de várias pessoas no ambiente: os responsáveis pela câmera, pela iluminação, pelo som e pela entrevista em si. A simples comunicação entre essas pessoas ou sua mera presença podem incomodar o entrevistado. Além disso, para que a gravação seja boa é necessário usar uma luz que esquenta o ambiente, por isso a fita tem de ser substituída a cada 30 minutos. Acrescente-se a isso o fato de que uma câmera e a equipe de filmagem imprimem no entrevistado uma consciência mais clara sobre uma futura apresentação pública de seu depoimento, e assim contribuem para o nervosismo que permanecerá durante a gravação. Porém, quando a qualidade da gravação merece menos cuidado que a documentação em si, basta uma câmera de vídeo que pode ser operada pelo próprio entrevistador. A gravação sonora, ao contrário, não exige aparato técnico especial, basta a presença do entrevistador. Com as gravações digitais de hoje não é mais necessário trocar fita alguma. Quase não há, portanto, entraves de natureza técnica nas gravações sonoras que remetam os entrevistados à percepção de que suas palavras estão sendo gravadas. É por isso que, em minha opinião, desaparece rapidamente o nervosismo causado pela 'situação de gravação'. O microfone é logo 'esquecido'.7 7 Documentaristas que trabalham com testemunhas contemporâneas, como Hans-Dieter Grabe ou Loretta Walz, afirmam entretanto que o fato de se estar numa filmagem é logo esquecido também em gravações com filme.

Quando já se sabe que o depoimento será apresentado ao público, independentemente da natureza dessa apresentação, surgem outras exigências em relação aos entrevistados. Já na sua escolha há que se atentar para o fato de que o entrevistado deve ser capaz de narrar claramente e de 'suportar' a duração de uma entrevista, sem parecer nervoso demais. Às vezes, é preciso considerar até mesmo se a aparência do entrevistado é adequada ao objetivo do programa. Eu mesmo pude constatar o papel da aparência numa produção televisiva: a entrevista com um antigo negociante do mercado negro foi recusada depois da edição, porque no início de 1945 metade de seu rosto foi arrancada por um tiro de canhão e, apesar das várias cirurgias, ele não foi totalmente refeito. Pelo mesmo motivo também sua fala era incompreensível, embora outros caminhos pudessem ser encontrados para torná-la inteligível. Argumentou-se que a aparência dele poderia chocar os telespectadores. Essa seleção, em função de critérios exteriores, é incomum na ciência.

Pontos fortes e perigos na apresentação de testemunhos em filme

Um filme não se torna imediatamente um filme: testemunhas desempenham direta ou indiretamente um papel nos diversos tipos de produções - documentações biográficas sobre determinadas pessoas ou necrológios sobre elas em documentários, programas de TV, docudramas 8 8 Classifica-se como docudrama o filme que em parte das gravações utiliza testemunhos e em parte recorre a encenações baseadas tanto nas afirmações daquelas pessoas como em outras fontes. e filmes de ficção. Além disso, seus depoimentos são usados em mostras, vídeos de apresentação e instalações em museus e memoriais, bem como em filmes educativos, para formação de jovens e adultos. Todos esses filmes, incontáveis, atendem a objetivos e condições totalmente diferentes em sua execução. Abordarei, aqui, apenas a título de exemplo, alguns problemas, perigos e pontos fortes da utilização de entrevistas em filmes.

De maneira geral, a qualidade da 'inserção' de testemunhos em filmes de todos esses gêneros será julgada posteriormente - se será possível compreender e transmitir os pontos fortes da pesquisa com o uso de tais testemunhos, ou se o filme vai perpetuar os problemas relacionados à sua 'inserção'.

Os depoimentos são incluídos de maneira incondicional quando se trata da experiência individual e da atividade das pessoas, ou dos ecos - numa fase posterior da história - de antigas experiências e critérios. Nesse caso eles são a fonte principal, e há muitos exemplos positivos na história filmográfica mais recente: Heinrich Breloer em Eine geschlossene Gesellschaft (1987), sobre a juventude na Alemanha Ocidental no pós-guerra, na década de 1950, ou seu docudrama Todesspiel,9 9 Todesspiel, realizado por Heinrich Breloer e pelo produtor Ulrich Lenze (1997). sobre o sequestro e assassinato de Hans-Martin Schleyer, ou ainda sua série sobre a família de Thomas Mann, Die Manns (2001). Heinrich Breloer é tido como um dos pais do docudrama,10 10 Heinrich Breloer realizou uma série de outros filmes e docudramas notáveis sobre Engholm, Wehner, Speer e outros. gênero que em sua concepção é especialmente apropriado para apresentar experiências pessoais em contextos históricos. Reunindo fotografias pessoais de depoentes, documentos e entrevistas de um lado, e encenações de outro, não apenas fica claro o que vem e o que não vem diretamente das testemunhas, como também torna-se mais fácil distanciar-se das testemunhas e de suas considerações eventualmente 'tendenciosas'. Afirmações falsas ou controversas de depoentes também podem ser, assim, mais facilmente corrigidas.11 11 É sempre problemático melhorar, no sentido histórico, as afirmações falsas de testemunhas. Com esse objetivo, o documentarista Malte Ludin colocou notas curtas sob os depoimentos, como legendas, no intuito de corrigi-los. Considero docudramas bem sucedidos Deutschlandspiel (2000), feito em duas partes por Hans Christoph Blumenberg e pelo produtor Ulrich Lenze, sobre a reunificação alemã, como também o filme de ambos sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, chamado Die letzte Schlacht (2006).

Entre os documentários históricos feitos para televisão, o filme Ein Tag, sobre o cotidiano em um campo no pré-guerra, de Egon Monk e do ex-prisioneiro de campo de concentração Günther R. Lys, estabeleceu novos parâmetros relativamente cedo, em 1965. Destacam-se, também, os documentários de Hans-Dieter Grabe, Mendel Schainfelds zweite Rückkehr nach Deutschland (1972), sobre um ex-interno de campo de concentração e suas dificuldades na República Federal da Alemanha. Grabe filmou ainda Er nannte sich Hohenstein (1994), que refaz, com base em um diário, os caminhos de um membro do partido nazista nomeado prefeito na Polônia ocupada. Em ambos os filmes propõe-se uma troca de perspectiva da 'objetividade' de determinada história para a visão particular de um indivíduo, o que lhes confere uma enorme intensidade e simpatia, ao mesmo tempo em que surge o efeito, sob nova luz, de determinado acontecimento sobre uma pessoa - no primeiro caso, o modo pelo qual se procede à reparação.

O filme de Malte Ludin, ...zwei oder drei Dinge, die ich von ihm weiâ, sobre o envio de seu pai em 1946 para Bratislava (Pressburg) - ele fora o emissário de Hitler na Eslováquia -, é para mim o melhor exemplo de um 'filme-testemunho' sobre a vivência pessoal e familiar do nacional-socialismo: Ludin consegue apresentar com rigor as controvérsias de três gerações de uma família em torno desse marido, pai e avô, o que já é por si raríssimo no tratamento cinematográfico sobre o nazismo. Torna-se extremamente claro como o nacional-socialismo foi processado diferentemente pelas gerações sucessivas, e como é forte a necessidade, entre alguns membros, de defender um parente próximo dos ataques externos, ou ainda, quão doloroso foi, para outros membros, separar-se de um criminoso que fazia parte da família. Em resumo: como são vastas as fissuras causadas pelo desmantelamento do nacional-socialismo nas famílias alemãs.

Partindo de outras circunstâncias, cinematograficamente falando, surge o filme de Loretta Walz, Die Frauen von Ravensbrück (2005), que lhe deu em 2006 o prêmio Grimme. Seu filme consiste quase que exclusivamente na reunião de relatos de experiências pessoais editados dramaturgicamente. Isso é algo raro, porque documentários com depoimentos individuais tendem à monotonia e à excessiva 'intelectualidade' - como acontece em muitos filmes desse tipo. Mas Loretta Walz conseguiu, ao inserir no filme trechos de depoimentos contrastantes, construir habilmente tensões entre diferentes âmbitos de vivências e diferentes pontos de vista entre os depoentes, tensões que dão a todas essas pessoas, ao mesmo tempo, o 'direito' de sua perspectiva. Esse filme me parece ser do gênero 'peça teatral com fins didáticos', o que raramente dá certo.

Nos últimos anos, também surgiu no mercado voltado ao trabalho educacional uma série de produções que utilizam testemunhos paralelamente a uma compilação de documentos. É especialmente impressionante, para mim, o DVD sobre o Processo de Auschwitz em Frankfurt (1963-1965), produzido pelo Instituto Fritz-Bauer. O DVD apresenta de inúmeras maneiras os assassinos, sua máquina de mortes e a administração desta, mas também possibilita, à sua maneira, uma história de experiências sobre a década de 1950 e os anos seguintes. Tornam-se evidentes, aí, os problemas inerentes ao estado de direito na tentativa de se chegar a um veredicto, uma vez que os advogados dos réus, antigos membros da SS, valem-se de todas as brechas da justiça no estado de direito em prol de seus clientes. Do outro lado estão as testemunhas - ou seja, as antigas vítimas -, que naturalmente não conseguem se lembrar daquilo que habitualmente se exige de testemunhas num tribunal, ou seja, de sequências de acontecimentos e datas, como também dos rostos daqueles que antes costumavam estar metidos em uniformes. Chama a atenção o fato de que tais tentativas bem sucedidas sobre a história da RDA sejam muito recentes. O canal NDR está trabalhando neste momento numa documentação biográfica em quatro partes, de nome Mein DDR, que busca essa perspectiva tendo por base cerca de cem entrevistas.12 12 Fiz uma tentativa semelhante junto a Holger Riedel: Erlebte RDA, em duas partes, transmitido em 1992 pelo canal 3sat.

O que eu citei aqui não passa de uma pequena seleção de filmes que, como muitos outros, conseguiram 'resgatar o sujeito na história', tornar palpável a história sobre destinos individuais e nela deixar claro tanto o contexto biográfico como o respectivo contexto político-social. Nesses filmes e documentações as pessoas não são inseridas como simples ilustrações para os desenvolvimentos históricos passados, separados dos posteriores, os quais se originam daqueles. Também a experiência é apresentada como uma dimensão independente, dimensão esta que se mostra pelas decisões, pelas liberdades de ação, pelos problemas e necessidades, pelas alegrias e esperanças de pessoas de carne e osso em processos históricos. A experiência também surge nos reflexos de medidas institucionais, oficiais, policiais ou políticas sobre as pessoas, algo bem diferente de documentos administrativos.

Obviamente há inúmeros filmes de ficção que se apoiam em diários ou em memórias (auto)biográficas, os quais não são listados justamente por causa de sua quantidade. Filmes de ficção não são documentos e, por isso, os critérios históricos de 'experiência' não valem para eles, nem para seus personagens, nem para sua dramaturgia. Quando muito, é possível classificar suas afirmações históricas como 'conhecimentos científicos'. Mas quero citar um exemplo que vale radicalmente apenas por sua visão pessoal e que por isso, entre outros fatores, é até hoje discutido e lança luz sobre os problemas da representação da subjetividade posta quase que integralmente. Trata-se do primeiro filme de ficção de Alain Resnais, Hiroshima, mon amour (1959), com roteiro de Marguerite Duras. Cito esse filme porque ele revela de forma exemplar como uma visão subjetiva sobre a história pode por isso mesmo ser impactante. Os destinos individuais que ele apresenta em Hiroshima e na França colidem com a grande política e com a opinião da maioria, e ainda hoje - na Alemanha, mais do que na época em que o filme surgiu - não correspondem precisamente à visão 'correta' sobre a história da Segunda Guerra Mundial, o que leva a debates acalorados quando o filme é apresentado: ambos os protagonistas são vítimas, embora de tipos diferentes. A francesa apaixona-se por um soldado alemão da ocupação e por isso é execrada, tem a cabeça raspada e é mantida pela família num porão. O japonês e sua família são vítimas da explosão atômica em Hiroshima.

Filmes como esse são exemplares, pois lograram tornar visível o papel independente da dimensão da experiência. Mas a História não nasce da história da experiência. Por isso devemos mencionar também os perigos que ameaçam o trabalho cinematográfico com testemunhos:

Um perigo fundamental na utilização de depoimentos é a criação da aparência de que testemunhas contemporâneas e oculares são os verdadeiros peritos em história, e que os jornalistas de cinema e TV são seus melhores mediadores. Por que uma testemunha ocular do bombardeio de Dresden em fevereiro de 1945 - para aproveitar mais uma vez esse exemplo - deveria conhecer a totalidade das vítimas desse ataque aéreo? Uma suposição como essa exige a inclusão de outras fontes. Contudo, não foi só essa prática duvidosa que se intrometeu nos filmes para a TV; eles também mostram depoimentos de contemporâneos como 'a última verdade válida', quando de fato os entrevistados só apresentaram suposições.

Outro perigo relacionado à introdução de depoimentos é a falta de contextualização. Isso significa, em primeiro lugar, que a afirmação de uma pessoa sobre certo acontecimento é reproduzida sem que sejamos informados sobre o contexto no qual essa afirmação foi feita. Em segundo lugar, não se identifica o contexto biográfico dessa pessoa, o qual poderia ser essencial para avaliá-la. Às vezes a impressão é de que esse fundo biográfico é obscurecido de propósito. Isso fica patente nos inúmeros documentários televisivos nos quais todas as pessoas são filmadas diante de um cenário preto, iluminadas por um feixe de luz clara, e só se trocam as legendas com seus nomes. Tal recurso permite que essas entrevistas sejam usadas mais facilmente em diferentes filmes e contextos.

Guido Knopp, o redator-chefe responsável pelo Departamento de História do canal ZDF, é tratado por muitos historiadores como o belzebu da filmagem de temas históricos. Eu não compartilho desse pensamento, pois Knopp apoiou um grande número de documentaristas que em minha opinião fizeram bons filmes.13 13 Alguns dos exemplos positivos na área cinematográfica surgiram sob a administração dessa redação da ZDF, como o docudrama Todesspiel, de Heinrich Breloer, o docudrama composto de duas partes sobre a reunificação alemã, de Hans-Christoph Blumenberg e do produtor Ulrich Lenze, ou ainda o filme realizado pelos três: Die letzte Schlacht; ao lado desses destacam-se, entre outros, o documentário O milagre de Berna ( Das Wunder von Bern), de Ulrich Lenze (1994), e algumas séries. Porém, nessa mesma redação de TV há vários exemplos do problema da falta de contextualização: diversos filmes sobre Hitler e seus 'ajudantes voluntários' apresentaram pessoas sobre as quais não ficou claro se estavam lá como combatentes da oposição, militares, ou antigos dirigentes nazistas ou da SA. Em alguns casos não se mencionou que essas pessoas haviam trabalhado temporariamente como criminosos, em campos de concentração ou em níveis elevados da administração, ou mesmo como médicos. Algo semelhante ocorreu no filme A queda (Der Untergang).

A tentação de empregar outro material que possa ser conhecido pela testemunha contemporânea, mesmo que venha de outras épocas e locais, é grande.14 14 Eu, por exemplo, fui acusado de ter introduzido no filme Szurowa, sobre o assassinato de ciganos roma na Polônia, um dos poucos - talvez o único - filme da SS sobre esse assassinato, o qual foi filmado em Lublin e não em Szurowa, embora eu tenha citado a fonte no trailer. É particularmente irritante quando não se menciona ou identifica um material desse tipo, ou mesmo um trecho de filme reaproveitado e ainda por cima inadequado. Considero igualmente problemático quando cenas de filmes de ficção se apoiam em algumas afirmações para criar associações que não correspondem ao conteúdo dos testemunhos, ou quando evocam lembranças de filmes que apontavam para uma direção não desejada pelos que viveram aqueles acontecimentos.

Além disso, há o perigo - tanto na ciência como nos filmes - de mais tarde sermos enganados pelas 'correções' que a própria testemunha faz em suas vivências originais.15 15 Hans-Dieter Grabe utilizou um diário no filme Er nannte sich Hohenstein, que eu indico como exemplo positivo de documentário corrigido após a guerra por seu autor - ou seja, por um contemporâneo.

Em resumo, pode-se dizer: afirmações presentes em testemunhos exigem controle científico e contextualização. A maioria dos chefes de redação e dos autores de filmes está se empenhando para que isso ocorra.

SOBRE O ENVELHECIMENTO DAS TESTEMUNHAS E SUAS EXPERIÊNCIAS NA TRANSIÇÃO PARA A NARRATIVA

Pelo fato de estarmos vivendo a transição de uma fase em que as testemunhas da primeira metade do século XX ainda estão vivas, para outra, na qual elas desaparecerão, é muito importante documentar e guardar as experiências dessas pessoas. Somente assim será possível para os futuros historiadores incluir a experiência subjetiva daquela época na historiografia vindoura. Esse é um dos motivos que tornam relevantes as entrevistas, as compilações de material biográfico e os depoimentos. Verifica-se nessas áreas um aumento extraordinário em fontes audiovisuais com as quais os historiadores da geração passada só podiam sonhar - a esmagadora maioria com relatos sobre o Holocausto, mas também sobre expulsões e migrações,16 16 Os refugiados tiveram grande importância na Alemanha do Pós-Guerra: aproximadamente 14 milhões se instalaram nas quatro zonas ocupadas. sobre a vida cotidiana naqueles tempos e circunstâncias, por exemplo.

Se é importante documentar para a próxima geração os relatos de testemunhas oculares, suas experiências, as histórias de vida e as recordações subjetivas, bem como suas tradições, é claro que deveremos desconsiderar nosso ponto de vista. Nossas interpretações provavelmente serão consideradas como fontes sobre a nossa época e sobre nossa relação com as gerações mais antigas, isso se forem consideradas.

Quem determinará - daqui a 50 anos, digamos - quais relatos da época do nacional-socialismo foram 'típicos' ou isolados, quem poderá apaziguar as lembranças antes irreconciliáveis, quem tornará ordinária a diversidade daquela época? Ou ainda: quem irá identificar os simplismos temporariamente dominantes (como 'povo criminoso', entre outros)? Será que a grande variedade de experiências que apresentamos com nossos trabalhos e arquivos, com nossas transcrições de entrevistas, gravações em áudio e filmes será retomada e utilizada? Ou esse material será, por sua vez, trabalhado jornalisticamente de forma demasiadamente simplificada?

Embora não saibamos o que ocorrerá com nossas tradições, é extremamente necessário acrescentar aos relatos de experiências o maior número possível de informações e comentários, porque em pouco tempo - sobretudo nas fotos e em filmes - não mais se saberá o que significa certo penteado, uma barba, uma roupa, determinados botões etc. Testemunhas contemporâneas envelhecem como as outras pessoas, mas diferentemente daquelas que não deixam testemunhos, e muitas delas caem na obsolescência à medida que as novas gerações reescrevem a história, em razão das maneiras de transmissão e dos contextos nos quais seus testemunhos são transmitidos: isso ocorre nos partidos políticos, nas empresas e nas famílias, por exemplo. As testemunhas contemporâneas sofrem sobretudo quando se sentem como fiéis depositárias da história e perdem, ainda em vida, o 'poder de definição' sobre 'sua' história.

Até este momento eu praticamente desconheço trabalhos sistemáticos sobre como antigos relatos de experiências foram interpretados pela geração seguinte e reinterpretados por gerações posteriores, excetuando-se algumas abordagens sobre as diferentes interpretações da Alemanha do pós-guerra. No que tange a épocas passadas e aos antepassados, eles são muito raros. Eu, contudo, fui logo cedo confrontado com os 'problemas na transmissão' da história da minha própria família. Quero registrar, aqui, quatro exemplos que mostram por vias diferentes como são variáveis e complexos os julgamentos de personagens antigas no decorrer da história, e como as interpretações de suas imagens podem ser difíceis.

No primeiro caso, meu trisavô Bodo é o protagonista: seu retrato e o de sua esposa Annette ficavam pendurados lado a lado numa grossa moldura dourada em nossa sala de estar. Essa moldura e a roupa vermelha, preta e branca do retratado já faziam do quadro uma relíquia de tempos muito antigos. Minha avó, porém, impedia que nos esquecêssemos de Bodo. Ela o descrevia como um homem de opiniões fundadas na Real Ordem Guélfica de Hannover. Ele e a esposa mantiveram nosso sítio durante os difíceis tempos das guerras de libertação, pois ao lado de rudes camponeses eles ofereciam seus produtos nos mercados das cidadezinhas próximas. Esses antepassados, que com esforço e humildade salvaram a propriedade da família, ganharam nossa alta consideração.

Duas gerações após minha avó, um de seus sobrinhos-netos - pertencente a outro ramo da família - e um de seus netos contaram outra versão que sempre existira, mas que fora minimizada pelos mais velhos: nosso trisavô foi recriminado por esses familiares por causa de suas atividades profissionais, pois entre 1798 e 1813 ele atuou não só como administrador do conselho de Hannover mas também como prefeito sob os franceses, mais exatamente no reino da Vestfália, sob o rei Jerôme, o irmão de Napoleão. Como se isso não bastasse, ele também servira temporariamente aos prussianos.

A questão que se colocou, portanto, é: nosso antepassado foi um colaboracionista, ou um fiel cavaleiro da Real Ordem Guélfica? Ou foi um jacobino disfarçado? Esse debate não foi concluído, mas veio a calhar nos tempos pós-1968. Os documentos deixados e seu testamento informam que ele considerava positivo o sistema francês de administração em oposição ao de Hannover, e que só deveria ser enterrado quando o cheiro de decomposição se alastrasse. Tentamos encontrar na roupa que ele vestiu ao posar para o quadro alguma indicação sobre sua posição política - se ele afinal representava o ponto de vista francês ou o conservador de Hannover -, mas foi em vão. Até mesmo os botões tinham duplo sentido: eles mostravam um leão ereto, que aparecia tanto no brasão do reino de Hannover quanto no do reino da Vestfália. E assim mantivemos nossa questão, que naquela época eventualmente não tinha importância alguma: colaboracionista, ou nacionalista da Real Ordem Guélfica?

O segundo caso refere-se a um tio-bisavô pelo lado materno, o qual - assim eu ouvia dizer quando criança - emigrou para o México 'para tentar a sorte', mais tarde participou da guerra civil americana como soldado e, graças a isso, comprou um pedaço de terra que trouxe problemas para as gerações seguintes, relacionados ao documento de propriedade. Ele não teve filhos, e seus sinais perderam-se com o tempo. Essa era a versão corrente de sua história, que servia bem para a criação de fantásticas aventuras sobre o antepassado. Mais tarde escutei de um tio, em segredo, outra versão: esse tio-bisavô teria sido um '175' - assim eram chamados os homossexuais naquela época - e fora obrigado a emigrar quando sua história veio à tona. Esse foi o fim, para nós, adolescentes, de todas as aventuras positivas sobre ele. Hoje parece não haver problema algum em contar uma história dessas, ou quem sabe o tempo simplesmente passou por cima do tio-bisavô e de seus problemas; contudo, nenhum dos membros mais jovens da família sabe algo sobre ele. Ou certas posturas que condenam a homossexualidade se insinuaram novamente na história, ou alguém ainda não gosta de ver um membro desses na família, mesmo cem anos depois.

O terceiro caso é curto: refere-se ao quadro de um parente na década de 1920 - um homem com cara de brigão, mal-encarado e com a barba torcida, como no período do império. Mas segundo minha avó ele de forma alguma era monarquista, e depois da Primeira Guerra Mundial tornou-se até anarquista, seja lá o que ela entendia por isso. Até hoje eu me pergunto: essa mesma barba, que vinte anos antes do quadro poderia ter sido cultivada por um monarquista, algum dia tornou-se o símbolo de um opositor? Se a resposta é positiva, que valores essa barba defendia, em cada época? Também é possível que ela tenha sido cultivada apenas para cobrir uma cicatriz ou um queixo duplo. Talvez acontecesse o mesmo com a barba que eu deixei crescer em 1967, sobre a qual meus filhos recentemente disseram: "essa é uma barba típica de professor". Como os futuros historiadores lidarão com essa barba, se é que o problema lhes interessará? Eles terão noção de que tipo de aborrecimento eu tive no meu meio quando apareci pela primeira vez com esse sinal dos tempos no rosto?

O quarto caso é mais complicado, entre outros fatores porque sou um dos atores: desde meados de 1960 eu persegui meus pais com a suspeita de que eles teriam sido nazistas. Sempre acreditei ter achado indícios, mas acabei sendo 'malsucedido' em minha busca. Quando eu já estava com mais de 50 anos, recebi do Canadá uma carta de um desconhecido. Ele me contava que em 1944 meus pais teriam acolhido uma semijudia, contratando-a como Pflichtjahrmädchen;18 18 Designação dada às jovens alemãs que, por força de um decreto de 1938, eram obrigadas ao serviço doméstico em lares e em propriedades rurais de terceiros pelo período de um ano. (N.T.) os pais dessa moça foram mais tarde deportados de Berlim para Auschwitz e lá assassinados. Ainda em 1944 minha mãe teria escrito uma carta de recomendação muito positiva sobre essa moça, e ela teria, então, deixado a Alemanha. Esse homem a conheceu em Londres em 1946, eles se apaixonaram e emigraram para o Canadá. Ele queria agradecer a meus pais em nome dela; ela falecera, ele se sentia velho e queria colocar a vida em ordem. O período em que vivera na casa de meus pais teria sido o mais bonito da juventude daquela moça. Algum tempo depois ele nos enviou as cartas que sua sogra escrevera de Berlim e Theresienstadt à sua futura esposa, quando ela ainda morava com meus pais. Fiquei bastante comovido, pois meus pais nunca me haviam contado isso. Eu conhecia somente a versão segundo a qual a irmã de minha mãe teria pedido, em 1943, que a filha de um amigo escritor fosse acolhida, uma vez que ela tinha de "sair de circulação por algum tempo". Quando naquela época eu questionei minha mãe - agora já falecida - a esse respeito, ela explicou que de fato essa menina era semijudia e que fora acolhida por ela e por meu pai, mas que o seu 'semijudaísmo' não desempenhara papel algum. Tratara-se de uma gentileza para com sua irmã. Ela não queria concordar - nem na década de 1960, nem nessa época - em qualificar o ocorrido como um ato pró-judaico ou mesmo antinazista. Talvez essa autoavaliação esteja correta, e tanto eu quanto grande parte de meus colegas questionados por mim a esse respeito simplesmente não conseguimos imaginar que, com tanta vigilância e controle por parte dos nazistas, alguém protegesse uma semijudia a não ser por motivos políticos. Os futuros historiadores, livres de tais conflitos, talvez possam lidar com isso mais livremente do que essa geração imediatamente posterior aos acontecimentos.

Todos estes exemplos mostram quão rapidamente são reinterpretados os testemunhos subjetivos de lembranças e os relatos de experiências, quão rapidamente essas reinterpretações têm de desaparecer por conta de novas interpretações, e quão pouco material está disponível para nos ajudar a colocar em ordem a interpretação e nos reconduzir ao conteúdo original da experiência. Som, imagem e filmes podem nos fornecer mais observações, gerar mais comentários, mas, como vimos, eles também geram novos problemas. Em se tratando do efeito sobre o público leigo que não vê tais materiais como fontes, mas como parte de uma documentação interessante ou de um filme de ficção, imagens e filmes me parecem até mesmo 'envelhecer' mais rapidamente do que textos simples ou documentos sonoros, nos quais cada geração pode fantasiar suas próprias imagens. Filmes mostram com toda a clareza a fragilidade também das modas, dos estilos e dos signos - sejam estes do poder, da oposição ou da inovação.

NOTAS

  • 6 Em outro trabalho apresento mais detalhadamente as regras básicas para a condução qualitativa de entrevistas, no contexto de um projeto de investigação sobre trabalhos forçados: PLATO, Alexander von. "Interviewrichtilien". In: PLATO, Alexander Von; LEH, Almut; THONFELD, Christoph (Org.). Hitlers Sklaven: Lebensgeschichtliche Analysen zur Zwangsarbeit im internationalen Vergleich. Viena, 2008. p.443 ss.
  • 17 Em relação a esse parágrafo e ao seguinte, ver a exposição completa em meu ensaio "Testemunhos e a comunidade histórica": PLATO, Alexander von. "Zeitzeugen und die historische Zunft. Erinnerung, kommunikative Tradierung und kollektives Gedächtnis in der qualitativen Geschichtswissenschaft - ein Problemaufriss". Bios, v.13, p.5-29, 2000.
  • 6
    Com esse pano de fundo, parece sensato que os alunos façam suas próprias pesquisas, breves, nas quais além de reunir fontes escritas ou visuais poderão realizar entrevistas. Assim, é indiscutível e essencialmente mais simples comparar as narrativas dos entrevistados com outras fontes e manter distância de suas afirmações. Nossa experiência indica que isso não enfraquece a identificação emocional, por exemplo, com sobreviventes de campos de concentração, mas antes coloca os depoimentos num nível mais elevado e menos censurável em virtude de sua maior diversificação. Ao mesmo tempo, esse recurso permite aos alunos o aprendizado de metodologias científicas.
  • 17
    Tenho o pressentimento de que essa retomada acontecerá de maneira totalmente diferente, uma maneira que se encontra fora de nossas categorias e de nossos objetivos. Minha suspeita é de que estamos fabricando e fornecendo os ingredientes para os futuros homunculi. Forneceremos recortes e fragmentos para futuras gerações de cientistas e jornalistas que produzirão com isso pessoas de proveta, as quais provavelmente serão consideradas autênticas ou consistentes por nossos futuros colegas. Isso até poderia decorrer do bom motivo de tornar compreensível nesse futuro o material do passado, aquilo que pensávamos naquele tempo e que o entendimento nos novos tempos não 'alcança' mais.
  • 1
    Tradução: Gabriela França; edição de texto: Armando Olivetti.
  • 2
    O autor refere-se várias vezes a 'testemunhas contemporâneas' e a 'testemunhas oculares'. Testemunha contemporânea (
    Zeitzeuge) é a pessoa que vivenciou acontecimentos históricos; testemunha ocular (
    Augenzeuge) é quem presenciou determinado acontecimento e pode dizer algo sobre ele. Nesta edição em português, as expressões foram mantidas quando fundamentavam a interpretação. (N.E.)
  • 3
    Os alemães chamam de História Contemporânea (
    Zeitgeschichte) os acontecimentos das últimas décadas, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. (N.T.)
  • 4
    Primeira mulher a se tornar presidente do Bundestag (Parlamento Alemão).
  • 5
    Em alemão há duas definições para 'experiência': o evento direto e o evento que é recolhido e trabalhado por uma pessoa.
  • 7
    Documentaristas que trabalham com testemunhas contemporâneas, como Hans-Dieter Grabe ou Loretta Walz, afirmam entretanto que o fato de se estar numa filmagem é logo esquecido também em gravações com filme.
  • 8
    Classifica-se como
    docudrama o filme que em parte das gravações utiliza testemunhos e em parte recorre a encenações baseadas tanto nas afirmações daquelas pessoas como em outras fontes.
  • 9
    Todesspiel, realizado por Heinrich Breloer e pelo produtor Ulrich Lenze (1997).
  • 10
    Heinrich Breloer realizou uma série de outros filmes e docudramas notáveis sobre Engholm, Wehner, Speer e outros.
  • 11
    É sempre problemático melhorar, no sentido histórico, as afirmações falsas de testemunhas. Com esse objetivo, o documentarista Malte Ludin colocou notas curtas sob os depoimentos, como legendas, no intuito de corrigi-los.
  • 12
    Fiz uma tentativa semelhante junto a Holger Riedel:
    Erlebte RDA, em duas partes, transmitido em 1992 pelo canal 3sat.
  • 13
    Alguns dos exemplos positivos na área cinematográfica surgiram sob a administração dessa redação da ZDF, como o docudrama
    Todesspiel, de Heinrich Breloer, o docudrama composto de duas partes sobre a reunificação alemã, de Hans-Christoph Blumenberg e do produtor Ulrich Lenze, ou ainda o filme realizado pelos três:
    Die letzte Schlacht; ao lado desses destacam-se, entre outros, o documentário
    O milagre de Berna (
    Das Wunder von Bern), de Ulrich Lenze (1994), e algumas séries.
  • 14
    Eu, por exemplo, fui acusado de ter introduzido no filme
    Szurowa, sobre o assassinato de ciganos
    roma na Polônia, um dos poucos - talvez o único - filme da SS sobre esse assassinato, o qual foi filmado em Lublin e não em Szurowa, embora eu tenha citado a fonte no
    trailer.
  • 15
    Hans-Dieter Grabe utilizou um diário no filme
    Er nannte sich Hohenstein, que eu indico como exemplo positivo de documentário corrigido após a guerra por seu autor - ou seja, por um contemporâneo.
  • 16
    Os refugiados tiveram grande importância na Alemanha do Pós-Guerra: aproximadamente 14 milhões se instalaram nas quatro zonas ocupadas.
  • 18
    Designação dada às jovens alemãs que, por força de um decreto de 1938, eram obrigadas ao serviço doméstico em lares e em propriedades rurais de terceiros pelo período de um ano. (N.T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      2011
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