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Patogênese da leucemia linfóide crônica

Pathogenesis of chronic lymphocytic leukemia

Resumos

A leucemia linfóide crônica foi durante muito tempo entendida como uma doença relativamente homogênea causada pela acumulação de linfócitos B monoclonais, imuno-incompetentes e com graves distúrbios nos mecanismos normais de apoptose. Evidências recentes demonstram que as células leucêmicas LLC constituem-se em linfócitos B previamente expostos a antígenos, ou seja, provavelmente imunocompetentes. Além disso, ao contrário do que se acreditava, o aparato de apoptose destas células parece estar intacto. Pelo menos dois subgrupos distintos de LLC podem ser caracterizados por particularidades imunobiológicas, cursos clínicos e prognósticos distintos. A presença de mutações somáticas em genes da região variável de imunoglobulina define estes dois subtipos, onde o grupo não mutado apresenta melhor prognóstico, ao passo que o grupo com mutações indica cursa com pior prognóstico. A célula de origem da LLC, ou seja, a célula em que o evento leucemogênico inicial ocorre provavelmente é um progenitor linfóide, com boa parte da sua maquinaria transcipcinal comprometida com a linhagem B, mas com algumas características de linfócitos T anormalmente expressas. A progressão destas células para os linfócitos tipicamente LLC depende de estimulação antigênica. Tanto as formas não mutada como mutada expressam BCR, mas, aparentemente, as células com mutação são anérgicas. Células de LLC não mutada apresentam telômeros mais curtos que nos casos com mutação, indicando que os primeiros devem sofrer um número maior de divisões celulares e, portanto, uma maior probabilidade de adquirirem mutações. A expressão anômala de ZAP70, uma tirosina-quinase importante no processo de fosforilação de CD3 em linfócitos T, associa-se fortemente com o status não mutado e pode ser utilizado como um possível "surrogate" para a avaliação prognóstica. Alterações citogenéticas são freqüentes em LLC, mas provavelmente são fenômenos tardios da doença e a sua aquisição apresenta correlações prognósticas.

Leucemia linfóide crônica; gene de imuno; globulina; patogênese; revisão


For decades, chronic lymphocytic leukemia (CLL) has been regarded as homogeneous entity caused by the accumulation of monoclonal and immunoincompetent B cells with dysfunctional apoptotic pathways. Recently, many of these certainties have been questioned by evidence that demonstrate that CLL cells have been previously challenged by antigens, and therefore are immunocompetent cells. Moreover, in proliferative compartments, like the mantle zone of lymphoid organs or pseudo-follicles in the bone marrow, defects in proliferation seems to be as important as apoptosis impairment in the pathogenesis of the disorder. Two distinct subgroups of CLL can be segregated based on immunobiologic characteristics, clinical course and outcomes. The two subgroups can be identified by the presence of somatic mutations in the variable region of the heavy chain gene. The unmutated group presents a better outcome and is probably composed of anergized B cells previously exposed to an antigen which frequently affects a common segment of the variable region. The mutated group courses with a poorer prognosis and commonly presents an abnormal expression of ZAP70, a typical T-cell tyrosine kinase. The cell which originates CLL is a very early lymphocyte that still bears some T-cell characteristics, such as CD5 and ZAP70 expressions, but with the transcriptional machinery committed to the B-lineage. The original genetic lesion in this CLL primary cell is unknown. Cytogenetic abnormalities are frequently seen in the circulating lymphocytes and are probably late events in the pathogenesis of CLL.

Chronic lymphocytic leukemia; immunoglobulin gene; pathogenesis; review


ARTIGO ARTICLE

Patogênese da leucemia linfóide crônica

Pathogenesis of chronic lymphocytic leukemia

Bernardo Garicochea

Professor adjunto de Medicina Interna e diretor do Serviço de Oncologia da Faculdade de Medicina da PUC-RS

Endereço para correspondência Correspondência para: Bernardo Garicochea Rua Álvares Machado, 203 ap 401 - Petrópolis 90630-010 - Porto Alegre-RS E-mail: bgarico@terra.com.br

RESUMO

A leucemia linfóide crônica foi durante muito tempo entendida como uma doença relativamente homogênea causada pela acumulação de linfócitos B monoclonais, imuno-incompetentes e com graves distúrbios nos mecanismos normais de apoptose. Evidências recentes demonstram que as células leucêmicas LLC constituem-se em linfócitos B previamente expostos a antígenos, ou seja, provavelmente imuno­competentes. Além disso, ao contrário do que se acreditava, o aparato de apoptose destas células parece estar intacto. Pelo menos dois subgrupos distintos de LLC podem ser caracterizados por particularidades imunobiológicas, cursos clínicos e prognósticos distintos. A presença de mutações somáticas em genes da região variável de imunoglobulina define estes dois subtipos, onde o grupo não mutado apresenta melhor prognóstico, ao passo que o grupo com mutações indica cursa com pior prognóstico. A célula de origem da LLC, ou seja, a célula em que o evento leuce­mogênico inicial ocorre provavelmente é um progenitor linfóide, com boa parte da sua maquinaria transcipcinal comprometida com a linhagem B, mas com algumas características de linfócitos T anormalmente expressas. A progressão destas células para os linfócitos tipicamente LLC depende de estimulação antigênica. Tanto as formas não mutada como mutada expressam BCR, mas, aparentemente, as células com mutação são anérgicas. Células de LLC não mutada apresentam telômeros mais curtos que nos casos com mutação, indicando que os primeiros devem sofrer um número maior de divisões celulares e, portanto, uma maior probabilidade de adquirirem mutações. A expressão anômala de ZAP70, uma tirosina-quinase importante no processo de fosforilação de CD3 em linfócitos T, associa-se fortemente com o status não mutado e pode ser utilizado como um possível “surrogate” para a avaliação prognóstica. Alterações citogenéticas são freqüentes em LLC, mas provavelmente são fenômenos tardios da doença e a sua aquisição apresenta correlações prognósticas.

Palavras-chave: Leucemia linfóide crônica; gene de imuno­globulina; patogênese; revisão.

ABSTRACT

For decades, chronic lymphocytic leukemia (CLL) has been regarded as homogeneous entity caused by the accumulation of monoclonal and immunoincompetent B cells with dysfunctional apoptotic pathways. Recently, many of these certainties have been questioned by evidence that demonstrate that CLL cells have been previously challenged by antigens, and therefore are immuno­competent cells. Moreover, in proliferative compartments, like the mantle zone of lymphoid organs or pseudo-follicles in the bone marrow, defects in proliferation seems to be as important as apoptosis impairment in the pathogenesis of the disorder. Two distinct subgroups of CLL can be segregated based on immuno­biologic characteristics, clinical course and outcomes. The two subgroups can be identified by the presence of somatic mutations in the variable region of the heavy chain gene. The unmutated group presents a better outcome and is probably composed of anergized B cells previously exposed to an antigen which frequently affects a common segment of the variable region. The mutated group courses with a poorer prognosis and commonly presents an abnormal expression of ZAP70, a typical T-cell tyrosine kinase. The cell which originates CLL is a very early lymphocyte that still bears some T-cell characteristics, such as CD5 and ZAP70 expressions, but with the transcriptional machinery committed to the B-lineage. The original genetic lesion in this CLL primary cell is unknown. Cytogenetic abnormalities are frequently seen in the circulating lymphocytes and are probably late events in the pathogenesis of CLL.

Key words: Chronic lymphocytic leukemia; immunoglobulin gene; pathogenesis; review.

Introdução

Um grande volume de informações colhidas sobre a biologia da LLC permitiu que na última década estes dados começassem a ser traduzidos para a prática clínica. Um dos maiores avanços no desenho de novas estratégias de estadiamento e na identificação de melhores alvos para novas drogas passou necessariamente pela descoberta de que tipo de linfócito está comprometido na origem da doença. Para que esta descoberta pudesse ser feita, foram necessários cerca de três décadas de estudos sobre como linfócitos maturavam e de que maneira as imunoglobulinas eram produzidas.

LLC é uma doença clinicamente heterogênea. Certos pacientes apresentam quadros indolentes que durante muitos anos podem ser controlados com pouco ou nenhum tratamento. Outros apresentam doenças catastróficas, de rápida evolução, e de difícil controle terapêutico. Estes dois extremos de apresentação clínica têm correlatos biológicos hoje bem definidos. O divisor de águas é a presença de mutações somáticas nos genes da região variável de imunoglobulinas (IgV). Pacientes com mutações em IgV apresentam maior sobrevida do que aqueles sem mutações, e este é hoje o fator de prognóstico mais relevante em LLC. CD38 e ZAP70 são dois outros marcadores associados à sobrevida e que se correlacionam diretamente ao estado mutacional de IgV. Pacientes com IgV não mutado apresentam freqüentemente a expressão anormal de CD38 e ZAP70, sugerindo que este subgrupo de indivíduos, que corresponde a cerca de 40% de todos os casos de LLC, trata-se de uma população bastante homogênea.1

Ontogenia dos linfócitos B e produção das imunoglobulinas

Gênese dos linfócitos B

Uma molécula de anticorpo é composta de quatro cadeias polipeptídicas: duas cadeias leves idênticas (de cerca de 220 aminoácidos cada) e duas cadeias pesadas também idênticas entre si (de cerca de 440 aminoácidos cada). Os 220 aminoácidos das cadeias leves encontram-se conectados a outros 220 aminoácidos das cadeias pesadas e na extremidade deste complexo encontra-se o sítio de ligação do antígeno. Tanto as cadeias leves como as pesadas colaboram para a especificidade desta região. A extremidade da cadeia pesada que não se encontra ligada à cadeia leve constitui a fração Fc do anticorpo, cuja função é conectar o anticorpo a receptores posicionados na superfície de células fagocitárias, como macrófagos ou neutrófilos. O tipo de fração Fc determina a classe do anticorpo, IgM, IgD, IgA, IgG e IgE. As cadeias pesadas que constituem a molécula de IgM são denominadas m e possuem importância central no desenvolvimento dos linfócitos B em fases iniciais.

A geração de um linfócito B maduro é um processo laborioso e ocorre basicamente em três compartimentos: medula óssea, sangue periférico e centro germinativo dos linfonodos. Inicialmente, células-tronco comissionadas para a produção de linfócitos produzem um precursor denominado linfócito pré-B. Esta célula se caracteriza pela presença, em sua superfície, de uma molécula de cadeia m e um precursor de cadeia leve, o surrogate light chain. A associação destas duas cadeias é essencial para que o linfócito progrida para um estágio posterior de desenvolvimento, onde cadeias leves propriamente ditas serão produzidas. Estas novas cadeias leves substituem as surrogate light chains e combinam-se com as cadeias m preexistentes, formando cadeias completas de IgM. Esta IgM na superfície de um linfócito ainda localizado na medula óssea chama-se de BCR (B-cell receptor) e vai ser o componente fundamental para o prosseguimento da maturação do linfócito B. Neste estágio, o linfócito B é chamado de linfócito B naive imaturo e encontra-se em condições de deixar a medula óssea. Já na circulação, a célula começa a expressar IgD na sua superfície, e é chamada de linfócito B naive maduro. Linfócitos B, neste estágio, estão prontos para serem incorporados nos centros germinativos de órgãos linfáticos onde ocorrerão transformações que permitirão a seleção e expansão de clones que produzam anticorpos viáveis.2

Produção de cadeias leves e pesadas durante a maturação do linfócito B

A comparação entre seqüências de aminoácidos de diferentes moléculas de anticorpos revela que as regiões C-terminais, tanto das cadeias pesadas como leves, são relativamente constantes; no entanto, as regiões N-terminais são radicalmente distintas. Todas estas regiões são produto de segmentos repetidos, cada um com cerca de 110 aminoácidos, chamados de domínios da imunoglobulina. As cadeias leves consistem em um domínio variável (VL) e um domínio constante (CL). As cadeias pesadas consistem em um domínio variável (VH) e três constantes (VC). As regiões variáveis das cadeias leve e pesada constituem o sítio de ligação do antígeno e a variabilidade na sua seqüência de aminoácidos garante a capacidade de identificar a grande diversidade de seqüências antigênicas existentes na natureza. Na verdade, a diversidade deste sítio de ligação antigênica deve-se a três pequenas regiões hipervariáveis, compostas cada uma por cinco a dez aminoácidos, localizados dentro da região variável de ambas as cadeias.3

Geração da diversidade dos anticorpos

Mesmo na ausência de estimulação antigênica existe a possibilidade de serem produzidas mais do que 1012 moléculas diferentes de anticorpos. Este repertório pré-imune garante que existirá um sítio de ligação antigênico específico, no mínimo com baixa afinidade, para cada antígeno existente na natureza. Após estimulações repetidas com determinado antígeno, os linfócitos B podem produzir anticorpos cada vez mais específicos. Se esta variabilidade é uma realidade facilmente verificável em diversas condições experimentais, ela sugere um problema lógico: como todas estas proteínas (anticorpos) são produzidas se o repertório genético humano não ultrapassa os 50.000 genes? A solução deste problema ocorre pela associação de dois fenômenos, a permutação de genes que codificam os domínios VL e VH e a capacidade que as regiões hipervariáveis têm de sofrer mutações na estrutura original.

O domínio variável de cada cadeia leve é codificado por uma seqüência de DNA formada pela agregação de dois genes: V e J. Estes genes, na verdade, provêm de uma família de genes V e J que são respectivamente compostos por 40 segmentos (V) e 5 segmentos (J). Como apenas um dos segmentos V vai se agregar a um segmento J, as combinações possíveis são de 200, somente para a região variável das cadeias leves. As cadeias pesadas, por sua vez, são compostas pela combinação de três segmentos genéticos provenientes de três famílias de genes, V, J e D. A família de genes V é composta por 51 segmentos que podem se combinar a qualquer um dos 6 segmentos J e que, por sua vez, agregam-se a um dos 27 segmentos D, resultando em possibilidades combinatórias de 8.262 VH distintas. A associação entre VH e VL pode, portanto, criar cerca de 2 x 106 possibilidades de combinação (8.262 x 200).

O mecanismo de ligação entre os segmentos V(D)J é uma outra fonte de variabilidade, já que algumas vezes, durante este processo, pares de base são ganhos ou perdidos nos locais exatos de acoplagem dos segmentos. Desta forma as combinações possíveis são muito maiores que o “pool” de linfócitos B que um indivíduo possui em um certo momento.4

Mutações hipersomáticas da região V

Após a imunização inicial, inicia-se um processo de aprimoração das regiões hipervariáveis da imunoglobulina, com o objetivo de torná-la cada vez mais específica ao determinante antigênico. A partir de um rearranjo V(D)J que possui alguma afinidade com o determinante antigênico, uma série de mutações passa a ocorrer dentro deste segmento da região V tanto na cadeia leve quanto na cadeia pesada. O linfócito B que apresentar após esta seqüência de mutações a maior afinidade com o determinante antigênico, por meio de estimulação pelo BCR, vai proliferar mais intensamente que os outros (expansão clonal), garantindo um aporte de linfócitos antígeno-específicos. Este processo é conhecido como mutação hipersomática e é assim denominado porque as mutações estão ocorrendo em células somáticas e não germinativas. Mutações hipersomáticas definem o estágio final de maturação de um linfócito B e, portanto, são úteis para se determinar se determinado tipo de clone maligno eclodiu em uma etapa precoce ou tardia de maturação desta células. Como vimos, as mutações hipersomáticas também são importantes para definir os dois subtipos clínicos de LLC.5

Assim, do ponto de vista do processamento de genes para compor uma molécula madura de imunoglobulina, a associação de segmentos dos genes V(D)J, a diversificação dos sítios de junção entre estes segmentos e, finalmente, a recombinação entre as regiões VH e VL, ocorrem dentro da medula óssea (ou no fígado do embrião); a etapa de mutação hipersomática ocorre quando os linfócitos B são estimulados por antígenos ambientais e linfócitos T em órgão linfóide periféricos, mais especificamente nos centros germinativos destes órgãos.

Qual é a célula de origem da LLC?

As células de leucemia linfóide crônica apresentam um perfil fenotípico compatível com linfócitos B de memória ativados e anergizados por interação com antígeno. Mas, paradoxalmente, também apresentam marcadores que são comumente observados em linfócitos T.6 A expressão de CD5 na superfície das células LLC é um destes achados anômalos. CD5 é um marcador tipicamente associado a linfócitos T. Em humanos, linfócitos B CD5+ são comuns no feto mas indetectáveis na medula óssea após o nascimento. No entanto, estas células podem ser detectadas esporadicamente no sangue periférico e na periferia do centro germinativo. Outros marcadores fenotípicos associados a linfócitos T são observados em alguns casos de LLC, tais como CD7, CD8, CD9 e CD154.7 Além de moléculas de superfície, os linfócitos de LLC também apresentam elementos-chave na sinalização que também são comuns aos linfócitos T. Os casos mais interessantes são os das tirosina-quinases ZAP70 e Lck, moléculas cruciais na função do complexo CD3-HLA nos linfócitos T e que se expressam nas células LLC.8 Quando estes dados são levados em conta, seria plausível supor-se que, em diversos níveis, as células de LLC são linfócitos B caracterizados por uma constelação de propriedades associadas aos linfócitos T. Isto poderia indicar que algum evento leucemogênico importante possa ter ocorrido em um estágio precoce na maturação de linfócitos. Este evento poderia provocar alterações na programação genética de uma célula pré-B que favoreceria a ativação de determinados fatores trans­crip­cionais específicos dos linfócitos T.

Portanto, o nosso conhecimento atual indica que a LLC inicia-se em um linfócito B que preserva certas características de linfócito T. O evento genético inicial é ainda desconhecido e alterações cromossômicas só serão identificáveis mais tardiamente. Estes linfócitos B precursores freqüen­temente produzem auto-anticorpos, incluindo anticorpos polirreativos, que são freqüentemente observados em linfócitos normais em fases iniciais de maturação. Estes auto-anticorpos respondem pelos fenômenos auto-imunes observados com freqüência em LLC.

O importante papel de ZAP70 na patogênese da LLC e seu uso como ferramenta prognóstica

A proteína zeta-associada de 70 kD (ZAP70) é uma tirosina-quinase essencial para o disparo de sinais promovido pela ativação do receptor de linfócitos T. Apesar de não ser encontrada em linfócitos B normais, ZAP70 é expressa em células de LLC em que VH não está mutado. Linfócitos de LLC com mutação em VH raramente mantêm a expressão desta proteína.9 Como era de se esperar, a expressão de ZAP70 associa-se a doença com pior prognóstico. Ainda não se sabe com certeza se a expressão de ZAP70 indica uma origem celular distinta do clone ou se ela representa estados de ativação distintos das células leucêmicas.

Como a LLC progride?

O modelo apresentado é bastante atraente para explicar as etapas iniciais no processo de leucemogênese, todavia ele não acomoda uma explicação para o fato de como uma doença que tem como sua célula de origem um linfócito primordial, cuja exposição antigênica ainda não ocorreu, pode gerar duas entidades caracterizadas pela presença de BCR, um achado exclusivo de linfócitos B que já experimentaram exposição a antígenos.

De fato, existe uma vasta literatura fornecendo evidencias de que as células que se acumulam e proliferam em LLC são linfócitos B maduros que apresentaram exposição antigênica. Diversas observações suportam esta opinião. Em primeiro lugar, existe uma desproporção no uso de certos tipos de genes da região variável em LLC, muito acima do que seria esperado de ocorrer ao acaso, ou em uma população de linfócitos B normais. Por exemplo, apenas sete genes respondem por 20% de todos os segmentos Vh encontrados em LLC. Considerando-se todas as possibilidades de combinação entre os diversos genes IgV, as probabilidades deste fenômeno ocorrer ao acaso estão na casa de 1:1.000.000!10 Três tipos de genes IgV são especialmente hiper-representados: Vh 3-07 é observado fre­qüen­temente em LLC com mutação somática, Vh1-69 em LLC não mutada e Vh 4-34 é encontrada igualmente distribuída nas duas formas.11

Estes achados indicam que provavelmente existe um papel específico para certos antígenos na gênese de LLC com e sem mutação somática. Uma revisão recente sugere que este uso repetido de certos genes IgV indicaria que o estímulo antigênico inicial em LLC com mutação somática seria causado por um grupo limitado de antígenos, ao passo que nos casos não mutados, a exposição seria a um superan­tígeno.7

Em segundo lugar, a presença de mutações somáticas nos genes IgV implica que a história natural da doença nos casos com mutação foi de alguma forma influenciada pelos eventos que se seguiram à estimulação de BCR por reações imunes dependentes de linfócitos T. Estas reações ocorrem na maior parte das vezes nos centros germinativos dos folículos linfóides secundários.12

Por último, indiferentemente ao estado mutacional dos genes IgV, o fenótipo do linfócito da LLC é de uma célula plenamente ativada, da mesma forma que linfócitos B normais expostos a antígenos; além disso, as propriedades do BCR dos linfócitos LLC também lembram aquelas relatadas em linfócitos B expostos a antí­genos.13

Portanto, o estado atual de conhecimento da LLC indica que a célula precursora de LLC (a célula que sofre o primeiro evento leucemogênico) consegue escapar dos checkpoints na medula óssea e evadir à apoptose, para poder se diferenciar em um linfócito B maduro que retém propriedades de células T, mas possui um BCR funcional. A funcionalidade do BCR é observada indistintamente em casos mutados como não mutados, indicando que alguma forma de estimulação antigênica é comum provavelmente em todos os casos de LLC. A natureza deste “antígeno” é desconhecida, mas, independente da mesma, seja viral, autólogo ou superantígeno, o papel desempenhado pela estimulação de BCR é incontestável e desempenha um papel central na patogênese da LLC.

As células de LLC se acumulam por excesso de proliferação ou por bloqueio de apoptose?

Como virtualmente todas as células circulantes de LLC apresentam uma vida longa e encontram-se em fases G0 ou G1 do ciclo celular, durante muito tempo cristalizou-se o conceito que LLC era uma doença caracterizada preferencialmente por perda dos mecanismos de apoptose normais. Algumas observações recentes envolvendo os telômeros das células leucêmicas colocaram este conceito em cheque. Os telômeros das células leucêmicas são significantemente mais curtos do que os observados em linfócitos B normais,14 indicando que um número considerável de divisões celulares adicionais deve ter ocorrido dentro do clone leucêmico. Quando se analisam os subtipos com e sem mutação somática, estes últimos apresentam telômeros mais curtos do que os primeiros e maior atividade de telomerase.15 Portanto, as células sem mutações somáticas passam por um número maior de divisões celulares possivelmente após múltiplas exposições a estimulação antigênica. Este cenário prediz que as células não mutadas têm uma gama muito maior de oportunidade para adquirir aberrações cromossômicas, e, portanto, de apresentar um curso clínico mais agressivo. É também possível que o encurtamento dos telômeros ocorra preferencialmente em certos elementos do clone, favorecendo o desenvolvimento de um subclone mais agressivo. As células com mutação somática, ao contrário, apresentam telômeros mais longos e mínima atividade de telomerase. É possível que as células com mutação somática tenham uma menor capacidade de interagir com antígeno, o que conduziria a célula a um estado de reduzida capacidade de proliferar, ou seja, de anergia. Dado o menor número de divisões, a chance de que estas células adquiram aberrações genéticas é menor e, portanto, isto poderia refletir o melhor prognóstico deste grupo de indivíduos.

Assim, parece termos elementos suficientes para pensar que a LLC é uma doença que depende de um balanço entre proliferação e apoptose. A interação com o micro­ambiente é fundamental para garantir a capacidade proli­ferativa dos linfócitos LLC, e esta comunicação, tumor – microambiente, vem sendo um dos focos de estudo mais ativos na compreensão da patogênese desta doença.

Microambiente e LLC

As células de LLC não proliferam adequadamente in vivo (exceto quando transfectadas por EBV). Esta observação manteve durante algumas décadas o princípio de que células de LLC tinham baixa capacidade proliferativa. A localização dos compartimentos de proliferação das células LLC modificou substancialmente este conceito.

Os compartimentos de proliferação da LLC são representados por agregados espalhados de grandes células que formam áreas nodulares sem manto nos linfonodos e na medula óssea e são conhecidos como centros de proliferação ou pseudofolículos. Os pseudofolículos hospedam um grande número de células não tumorais que suportam o crescimento do clone leucêmico.16 A maioria dos linfócitos T dos pseudofolículos são CD4+ e estão em contato físico com a fração proliferativa Ki-67+ das células leucêmicas.17 Muitas destas células expressam CD40L, indicando que se encontram em um estado ativado. Os linfócitos T CD4+, CD40L+ podem influenciar a proliferação e acumulação das células leucêmicas por meio de interações entre CD40/CD40L. A estimulação de CD40 impede que as células leucêmicas entrem em apoptose além de induzi-las à proliferação.

Células que compõem o estroma da medula óssea são também capazes de manter a sobrevida de linfócitos leu­cêmicos por meio de contato físico direto. Células den­dríticas foliculares, por sua vez, atuam no microambiente provavelmente protegendo as células leucêmicas ancoradas de apoptose espontânea.18

Aberrações genômicas na LLC

Cerca de 80% dos casos de LLC apresentam alterações genômicas detectadas em estudos por hibridização in situ. Destas, as mais comuns são a deleção de 13q, a deleção de 11q, a trissomia de 12 e a deleção de 17p.19 Existem diversas linhas de evidência que sugerem que estas anormalidades são eventos tardios em LLC. De fato, diversos modelos de leucemogênese apontam para a aquisição destes eventos como o início da “fase leucêmica” da doença propriamente dita.20 Esta hipótese não é, todavia, completamente aceita. O caso mais complicado envolve a deleção na região 14.3 do cromossomo 13, que é encontrada em mais de 50% dos casos de LLC. Esta anomalia tem sido descrita em estágios iniciais da doença e até em indivíduos normais. No entanto, ainda não se encontrou algum gene dentro desta região que pudesse se associar com a doença. Recentemente, um estudo com micro-RNA mapeou dois genes candidatos nesta região.21 É interessante observar que a acumulação de anormalidades citogenéticas são mais comuns em LLC sem hiper­mutação e que expressam CD38 e ZAP70.22

Estudos com microarray em LLC

Estudos de perfis genômicos em LLC baseados em tecnologia de DNA-chip indicam que a assinatura molecular em LLC com mutação e sem mutação em VH é surpreendentemente muito similar. No entanto, alguns genes emergem como diferenciais entre os dois grupos. Este é o caso de ZAP70, mais comumente observado, como já foi mencionado, nos casos sem hipermutação.23 Estes estudos revelaram também que deleções afetando 11q22-q23 e 17p13 corre­lacionaram-se com redução na expressão dos genes ATM e p53, e que casos com trissomia 12 resultaram na hiper­expressão de genes mapeados em 12q. Estes achados indicam que o efeito dose (i.e. a amplificação gênica resulta em aumento da expressão de genes localizados na região am­plificada) parece ser importante na patogênese de LLC.24 Outros estudos de expressão gênica estão em fase avançada e devem incrementar os conhecimentos sobre a patogênese de subgrupos específicos desta entidade, como também gerar alvos terapêuticos mais eficientes e menos tóxicos.

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  • Correspondência para:
    Bernardo Garicochea
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005
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