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O antropoceno: um futuro sem o humano?

PENTEADO, M.P; TORRES, S.. (org.). Literatura e arte no Antropoceno: conceitos e representações. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2021. 231p.

Compreendido como um alerta sobre os efeitos da ação humana na natureza, o Antropoceno nos oferece a possibilidade de um futuro sem o humano. Este, posto de forma soberana sobre todo o planeta, vê sua trajetória futura ameaçada justamente por condições decorrentes de um projeto social realizado de forma predatória, cujas implicações colocam a terra sob a iminência de um colapso ambiental e civilizacional e a vida sob o risco da descontinuidade. Aos discursos otimistas sobre os grandes feitos, sobrepõem-se os da sobrevivência sobre o espaço inóspito. Em razão dessa amplitude, o Antropoceno deixa de ser tema de interesse apenas das ciências naturais, geologia e ecologia, para alcançar um amplo debate nas mais diversas áreas do conhecimento, como na antropologia, na filosofia, na arquitetura, nas artes e na crítica literária, como evidenciam os diversos artigos que compõem o livro organizado pelas professoras Sonia Torres e Marina Pereira Penteado, Literatura e arte no Antropoceno: conceitos e representações.

A inciativa do livro parte do olhar sobre uma circunscrição histórica definida pela geologia, qual seja, o momento presente, uma nova era geológica marcada por complexas transformações decorrentes da aceleração do desenvolvimento industrial e do elevado consumo de agroquímicos e de combustíveis fosseis. A partir daí, a coletânea busca, para além dos discursos científico, não apenas examinar o aparecimento do Antropoceno, suas causas, seus efeitos e suas representações, mas também apontar alternativas diante de um amplo impasse. A experiência do Antropoceno é complexa e atinge a todos, razão pela qual o conjunto de artigos exibe temática plural, consagrando abordagens bastante distintas daquelas efetivadas pelos especialistas tecnocientíficos. Esta é a mais relevante intenção da proposta: a alteridade do discurso hegemônico da ciência como “abertura para novos modos de engajamento” (PENTEADO; TORRES, 2021PENTEADO, Marina Pereira; TORRES, Sonia (org.). Literatura e arte no Antropoceno: conceitos e representações. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2021. 231 p., p. 14).

A seleção reúne artigos acadêmicos de pesquisadores do Brasil e do exterior, lotados em universidades públicas e privadas e em centros de pesquisa. Apresenta igualmente um artigo inédito em língua portuguesa da escritora, poeta e dramaturga canadense Lee Maracle. Além das duas organizadoras, quatorze colaboradores reconhecidos no meio universitário buscam responder a sinais ainda não alcançados por todos, uma tarefa bastante complexa à qual se entregam com empenho. Amparados em um sólido arsenal teórico inauguram não apenas novos entendimentos sobre o fenômeno, como indicam alternativas, em um escopo amplo que contempla poder político, biotecnologia, ficção, imagens da natureza, ancestralidade, animalidade, dentre outros.

A revisão conceitual do Antropoceno e da sua história é realizada por Manuel Bogalheiro, em um levantamento que agrega o conjunto de transformações ocorridas nas propriedades físicas do planeta em razão da interferência humana. Revela assim o quanto a história humana e a história natural estão imbrincadas em um processo que, iniciado a partir do aparecimento da agricultura, foi favorecido pela modernização industrial e acentuado ao longo do tempo. Ao final, aponta, sem deixar de problematizar, as novas ações propostas pelas ciências tecnológicas que visam a reparar os danos e viabilizar a vida na terra.

Sonia Torres explora a criação ficcional em seu artigo, ponderando o quanto o cultural e o natural estão entrelaçados na medida em que a literatura e o cinema de distopia antecipam o futuro sob a força do passado em enredos especulativos e catastróficos. Assinala também a necessidade e a importância de novas e amplas ferramentas para compreender o fenômeno do Antropoceno, destacando as recém emergentes. Torres sustenta, através de uma fecunda discussão amparada nas últimas descobertas, que o Antropoceno interfere nos objetos e nos estados da memória. No âmbito da representação, assinala o amalgamento das narrativas culturais à história da terra, pois, em suas palavras, “o Antropoceno é, ao mesmo tempo, traço, inscrição, registro, cicatriz, arquivo” (PENTEADO; TORRES, 2021, p. 39).

A relação entre a fotografia e o Antropoceno é o centro de interesse de Ana Maria Mauad e Marcos de Brum Lopes. Em uma discussão sobre o aparecimento do registro fotográfico combinado com alterações econômicas e sociais profundas, ressaltam sua importância enquanto testemunha ocular e representação. Tomando a fotografia como um domínio atuante no campo político, chegam ao trabalho desenvolvido por três fotógrafos junto aos povos indígenas brasileiros. Mostram, por fim, o quanto essa convivência atua em defesa do planeta ao constituir-se no lugar por excelência para a transmissão de conhecimentos e para a repercussão da alteridade.

Mariana Simoni explica como a arte em geral e a literatura em particular reagem de forma especulativa à insuficiência dos instrumentos comunicativos em responder à crise do Antropoceno. Trata-se de uma mudança de estilo que integra à grandiosidade, ao assombro e ao prazer desinteressado, uma espécie de inquietude gerada pelo reconhecimento de nosso papel diante do Antropoceno e dos seus efeitos agregados, de acordo com uma série de narrativas contemporâneas.

O aparecimento de obras com consciência ecológica é o tema de Lucas Murari. Tratando primeiro de questões ligadas à terminologia do Antropoceno, salienta a importância da presença de temas ambientais nas manifestações artísticas. Posteriormente, dá evidência às produções cinematográficas, detendo-se em Recife frio (2009RECIFE FRIO. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Juliano Dorneles e Émilie Lesclaux. Brasil: CinemaScórpio, 2009. 1 DVD (24 min).), de Kleber Mendonça Filho, filme especulativo sobre uma suposta alteração climática na capital pernambucana que passa do clima tropical ao frio intenso.

Marina Pereira Penteado assinala em seu artigo que a presença na literatura de catástrofes ligadas às mudanças ambientais populariza-se a partir da década de 1970. Refere que, nesse momento, as manifestações literárias assumem uma feição mais participante, ao reconhecerem a responsabilidade humana no aparecimento das intempéries. Um conjunto de obras com consciência ecológica, como as de Ian McEwan, Barbara Kingsolver e Nathaniel Rich indiciam, segundo alguns críticos, o aparecimento de um novo gênero. Penteado destoa desse entendimento, compreendendo-os como mais uma temática presente em gêneros variados, ainda sem uma terminologia, segundo leitores especializados.

As problematizações efetivadas pelo feminismo sobre a etimologia - o universalismo masculino - e a epistemologia do Antropoceno estão presentes no artigo de Cláudia de Lima Costa. O interesse de Costa é aclarar como a autoridade masculina do discurso ignorou a genealogia do feminismo e da teoria queer nos debates sobre o Antropoceno. Procura também demonstrar como o intelectualismo branco da academia euro-ocidental e seu delineamento hegemônico excluiu do debate reflexões, conhecimentos e práticas produzidos em contextos históricos específicos.

Ildney Cavalcanti, por seu turno, propõe uma crítica ao aparato pesado e sombrio do Antropoceno, tomando como seu contraponto uma formulação teórica de Donna Haraway. Trata-se do Chthuluceno, um projeto político feminista e multiespécies que visa à atuação afetiva positiva e cuja correspondência encontra-se na trilogia MaddAddam (2013), de Margaret Atwood. Conclui atestando a necessidade de reorientação diante do impasse por meio do experimentalismo e dos desdobramentos da imaginação.

Eduardo Marks de Marques entrega uma ampla e minuciosa discussão sobre as escolas de pensamento e os movimentos, como o pós-humanismo e o transumaníssimo, com seus históricos, desenvolvimentos, nomes e obras representativas e suas repercussões na sociedade e na cultura. Mostra ainda os compartilhamentos e as distinções entre os respectivos discursos visando a delimitá-las. Após, toma as duas versões do filme Blade Runner para demonstrar a presença desses conteúdos na cultura popular.

Apocalipses provocadas por vírus e sua presença nas manifestações literárias clássicas e contemporâneas constituem o ponto central do artigo de Lucia de La Rocque e Denise Figueira-Oliveira. A partir de considerações bastante amplas e informações sobre agentes infecciosos e contágio recolhidas de diferentes especialidades, passam a discutir sua presença e o modo de representação em obras ficcionais de momentos distintos, como The last man (1826/2010), de Mary ShelleySHELLEY, Mary. The last man. New York: Dover Publications, 2010. 352 p., e a trilogia Oryx and Crake (2003ATWOOD, Margaret. Oryx and Crake. 1 ed. New York: Anchor Books, 2003. 376 p.), The Year of the Flood (2009ATWOOD, Margaret. The Year of the Flood. 1 ed. New York: Anchor Books , 2009. 592 p.) e MaddAddam (2013ATWOOD, Margaret. MaddAddam. New York: Doubleday, 2013. 394 p.), de Margaret Atwood.

Já o texto de Eloína Prati dos Santos traz uma visão panorâmica da efetividade do elemento indígena na cultura brasileira até os dias atuais. O artigo também destaca a sua importância como agente de resistência diante da crise ambiental do Antropoceno, haja vista os seus vínculos com a natureza e com a ancestralidade, bem como a sua constante luta em busca de autoafirmação e reconhecimento. Além disso, a autora refere-se a uma série de escritores expoentes da literatura indígena brasileira na contemporaneidade e suas temáticas: pertencimento, emancipação e mundos possíveis.

Compete a Rubelise da Cunha a tradução de um ensaio da escritora indígena canadense recém falecida, Lee Maracle, Trata-se de “O salmão é o cerne da memória Salish”, um tocante relato que toma como ponto de partida o desparecimento voluntário de um cardume de salmões, associado à morte dos afegãos após a invasão do país pelas forças norte-americanas para questionar e denunciar a seletividade da história. Com seu posicionamento contra os pensamentos e as práticas hegemônicas, contra o extrativismo, na defesa de uma história mais compreensiva e de uma conexão mais ampla com a natureza, Maracle propõe um novo humanismo.

O artigo de encerramento, de Fernando Silva e Silva, traça o contraste entre as formulações teóricas mais conhecidas sobre a crise ambiental e as desenvolvidas pela filósofa da ciência Isabelle Stengers. Distanciada deliberadamente do termo Antropoceno em favor de ‘A intrusão de gaia”, um pensamento polêmico no meio acadêmico, Stengers propõe um novo caminho, o da cosmopolítica, a inserção da ciência no debate político. Por fim, para ilustrar as proposições apresentadas, o autor desenvolve uma discussão sobre a trilogia Comando Sul, do escritor estadunidense Jeff VanderMeer, composta pelos romances Aniquilação (2014VANDERMEER, Jeff. Aniquilação. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 200 p.), Autoridade (2015VANDERMEER, Jeff. Autoridade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. 384 p.) e Aceitação (2016VANDERMEER, Jeff. Aceitação. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. 368 p).

Referências

  • ATWOOD, Margaret. Oryx and Crake 1 ed. New York: Anchor Books, 2003. 376 p.
  • ATWOOD, Margaret. The Year of the Flood 1 ed. New York: Anchor Books , 2009. 592 p.
  • ATWOOD, Margaret. MaddAddam New York: Doubleday, 2013. 394 p.
  • PENTEADO, Marina Pereira; TORRES, Sonia (org.). Literatura e arte no Antropoceno: conceitos e representações. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2021. 231 p.
  • RECIFE FRIO. Direção: Kleber Mendonça Filho. Produção: Juliano Dorneles e Émilie Lesclaux. Brasil: CinemaScórpio, 2009. 1 DVD (24 min).
  • SHELLEY, Mary. The last man New York: Dover Publications, 2010. 352 p.
  • VANDERMEER, Jeff. Aniquilação Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 200 p.
  • VANDERMEER, Jeff. Autoridade Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. 384 p.
  • VANDERMEER, Jeff. Aceitação Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016. 368 p

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2022
  • Aceito
    06 Abr 2022
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