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Tempo e memórias em árvores e nos seres humanos

Time and memory in trees and human beings

RESUMO:

Comparar e diferenciar o tempo das árvores e o tempo dos homens e, portanto, sua respectiva memória será o primeiro passo deste artigo. Muitas vezes esquecidas apesar de sua longevidade muito superior à do homem, as árvores impõem uma reflexão ecológica sobre a memória. Em um segundo passo, comparar o tempo de memória do hoje ilustrado pelas árvores, num objeto feito com inteligência artificial e no exigido pela arte.

PALAVRAS-CHAVE:
Tempo; Memória; Árvores; Seres Humanos; Ecologia

ABSTRACT:

Comparing and differentiating the time of trees and the time of men and therefore their respective memory will be the first step of this article. Often forgotten despite their longevity far superior to that of man, trees impose an ecological reflection on memory. In a second step, compare the memory time of today illustrated by trees, an object made with artificial intelligence and in the required by art.

KEYWORDS:
Time; Memory; Trees; Human Beings; Ecology

Pode parecer estranho começar um artigo sobre memória e tempo em seres humanos com a memória das árvores, mas o leitor verá por que a seguir. Em The Overstory (L’arbre-monde), Richard Powers relata a luta de grupos ambientais norte-americanos pela preservação das vastas florestas do país, semelhantes em muitos aspectos à Amazônia brasileira. Seguindo os passos de uma personagem bióloga, Pat Westerford, o leitor aprende a distinguir uma árvore-mãe entre as outras, cuja função é sombrear as mais jovens, abrigá-las de tempestades e enviar-lhes mais comida. Espantada, ela também descobre que as árvores falam entre si através de suas raízes ou aerossóis e cuidam dos brotos jovens.

Para construir sua personagem, Powers tomou como modelo uma estudiosa canadense inicialmente rejeitada por seus pares que, após mais de vinte anos de resultados, foi reconhecida nos círculos científicos, Suzanne Simard (2021SIMARD, Suzanne. Finding the Mother Tree: discovering the wisdom of the forest. New York: Knopf, 2021. 368 p.), autora de Finding the Mother Tree: Discovering the Wisdom of the Forest.

A casca de árvores comparável ao “Hoje”, cobre camadas de até duzentos ou até 5000 anos de existência para as sequoias gigantes da Califórnia. O autor americano insiste no "hoje" das florestas que dependem de seu passado. Nenhuma fuga é possível, a vida das árvores depende das gerações anteriores e até mesmo das árvores mortas, o que contradiz a conduta da maioria dos homens:

Mas os seres humanos não fazem ideia do que é o tempo. Eles acreditam que é uma linha, que começa a rolar três segundos atrás apenas para desaparecer tão rapidamente nos três segundos de neblina na frente deles. Eles não vêem que o tempo é um círculo em expansão que envolve outro, sempre se estendendo, até que a pele mais fina de hoje dependa para existir da enorme massa de tudo o que já está morto (POWERS, 2019POWERS, Richard. L'arbre monde. Paris: Le Cherche Midi, 2019. 744 p., p. 529).

Identificamos sem pensar a imagem do tempo que passa em uma linha bastante curta indo de um ponto para outro, enquanto o tempo nas árvores segue o da casca ou dos círculos escuros que são adicionados um ao outro seguindo um percurso circular. Powers contrasta a visão curta e superficial do tempo do homem, que deve se estender pelo menos ao longo de uma geração, mas que, na maior parte, é limitada a uma semana, ou mesmo um mês, à da árvore, que muitas vezes cobre de cem a duzentos anos, pelo menos. Pensar no planeta além de nossa vida pessoal é um primeiro ensinamento da floresta.

Nosso espaço de memória que decorre dessa visão do tempo é, portanto, muito limitado, ao contrário das árvores, que não param em seu tronco como eu pensava inicialmente, mas tomam a dimensão de um conjunto de árvores ou mesmo de uma floresta, como observa Suzanne Simard. Esta forma de atravessar o espaço em um campo pequeno, mas extenso, permite que as árvores se concentrem e tenham contato mais fácil entre anéis ou entre gerações sucessivas.

Esta situação não é aparentemente o caso para o homem nos níveis pessoal e social. O homem mantido por um hoje que o segura em suspense a cada minuto, dificilmente pensa nas horas ou nos dias anteriores. O smartphone, sempre conectado na maior parte do tempo, o assedia o tempo todo e se ele se deixar levar, ou seja, se ele ouvir esses ruídos que não param, dificilmente será capaz de se concentrar no hoje que o ocupa, em seu trabalho seja lá o que for, ainda menos no passado, que o forçaria não a deixar o hoje de lado, mas reconsiderá-lo para dar-lhe um novo significado.

No plano social, o ser humano pode ter muitos amigos, que serão lembrados pelo Facebook, pelo Instagram ou pelo Messenger, mas que, muitas vezes também, vai provocar a pergunta: quem é esse nome, quando eu o conheci? É provavelmente um dos indicados por esses novos canais de comunicação que correm para fazer o vínculo entre um e o outro porque têm um amigo comum, mas quem de fato não são nem amigos nem conhecidos próximos. O hoje, portanto, também terá uma espécie de memória infiel que fará crer não apenas em uma falsa amizade, mas também em memórias inexistentes. Quanto aos verdadeiros amigos ou parentes já falecidos, o hoje irá facilmente apagá-los da memória imediata, o que dá razão a Powers.

No entanto, se assumirmos a psicologia do espaço definida pelo narrador proustiano, diminuiremos facilmente as consequências da vida superficial que decorre das redes sociais:

Não poderíamos descrever nossas relações, ainda superficiais, com alguém, sem evocar os mais diversos sítios de nossa vida. Assim, cada indivíduo - eu inclusive - dava-me a medida da duração pelo giro (revolução) que realizava em torno não só de si mesmo como dos outros e notadamente pelas oposições (posições) que sucessivamente ocupara em relação a mim. E, sem dúvida, todos esses planos diferentes, segundo os quais o Tempo, desde que, nesta festa, eu o recapturara, dispunha minha vida, aconselhando-me a recorrer, para narrar qualquer existência humana, não à psicologia plana em regra usada, mas a uma espécie de psicologia no espaço, acrescentavam nova beleza às ressurreições por minha memória operadas enquanto devaneava a sós na biblioteca, pois a memória, pela introdução da atualidade, do passado intato, tal qual fora quando era presente, suprime precisamente a grande dimensão do Tempo, a que permite à vida realizar-se. (PROUST, 2013PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto. V. 7. São Paulo: Globo , 2013. 464 p., p. 386.)

Quanto mais o sujeito gira ou revoluciona em torno do objeto - um livro, uma obra de arte, uma paisagem, etc. - ou do ser amado ou odiado, mais o espaço-tempo entre o sujeito e o objeto se expande e enriquece. O paradoxo entre rejuvenescimento e envelhecimento ou o contato diário do hoje embutido no ontem dos dias anteriores causa enraizamento - esta é a palavra certa quando falamos de árvores -, o enraizamento do tempo passado combinado com as superposições do espaço, que inclui as do presente. Esses movimentos circulares solidificam nossas relações com seres e objetos, e incluo na psicologia proustiana o contato com gerações anteriores. Assim, na imitação das árvores, os elos não lineares dos tempos espaciais percorridos de hoje para o passado são reforçados, mas supõem uma constância inerente às árvores, nem sempre presentes no homem. A psicologia do narrador proustiano encontra um vasto espaço semelhante ao da árvore-mãe em contato com jovens brotos no meio da floresta.

Onde está a memória das árvores?

A memória de eventos passados é armazenada nos anéis das árvores e no DNA das sementes. A largura e a densidade dos anéis das árvores, bem como a abundância natural de certos isótopos, guardam as memórias das condições de crescimento dos anos anteriores, se foi um ano chuvoso ou seco, se havia árvores próximas, ou se elas tinham caído, criando mais espaço para outras crescerem mais rápido. Nas sementes, o DNA evolui por meio de mutações e da epigenética,1 1 Epigenética (mot-valise de epigênese e genética) é a disciplina da biologia que estuda a natureza de mecanismos que modificam reversivelmente, transmissível (durante as divisões celulares) e adaptativa a expressão dos genes sem alterar a sequência nucleotídea (DNA). (Wikipédia) refletindo mudanças nas condições ambientais como adaptações genéticas. (SCHIFFMAN, 2021SCHIFFMAN, Richard. Árvores conseguem aprender e lembrar de coisas, defende famosa ecologista em novo livro. Scientific American, 06 maio 2021. Disponível em: https://sciam.com.br/arvores-mae-sao-inteligentes-elas-aprendem-e-lembram/ . Acesso em: 10 set. 2021.
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)

A memória das árvores mantém certas lembranças e evolui pressionada pela epigenética e pelas adaptações que ela implica. Para entender como funciona a memória das árvores, é necessário descer ao longo dos troncos, alcançar a "rede interconectada e complexa de fungos micorrhizal, que colonizam as raízes das árvores" (SCHIFFMAN, 2021SCHIFFMAN, Richard. Árvores conseguem aprender e lembrar de coisas, defende famosa ecologista em novo livro. Scientific American, 06 maio 2021. Disponível em: https://sciam.com.br/arvores-mae-sao-inteligentes-elas-aprendem-e-lembram/ . Acesso em: 10 set. 2021.
https://sciam.com.br/arvores-mae-sao-int...
) e perceber que as estruturas dessa rede se assemelham em muitos aspectos ao cérebro como mostrado na imagem ao lado. (SIMARD, 2016SIMARD, Suzanne. How trees talk to each other?. 2016. Disponível em: https://www.ted.com/talks/suzanne_simard_how_trees_talk_to_each_other?language=pt#t-664363 . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.ted.com/talks/suzanne_simard...
). Trata-se de uma verdadeira rede, semelhante à rede de Internet, onde as linhas representam os caminhos tomados por fungos indo de uma árvore para outra, verdadeiras "sinapses" carregando carbono, nitrogênio, enxofre e água, onde os círculos em preto, representando as árvores-mãe, se assemelham aos grupos de neurônios do nosso cérebro. A memória da árvore não é, portanto, apenas a das cascas, mas também abrange as raízes e fungos que compõem a rede, uma situação que faz Suzanne Simard hesitar no termo exato para qualificar este sistema:

O sistema muito avançado na verdade, tem estruturas que são muito semelhantes ao nosso sistema nervoso central. Não são cérebros, mas possuem todas as características da inteligência: os comportamentos, as respostas, as percepções, o aprendizado, o arquivamento da memória. E o que está sendo enviado por essas redes são [produtos químicos] como o glutamato, um aminoácido que também serve como neurotransmissor em nosso cérebro. Eu chamo o sistema de “inteligente” porque é a palavra mais análoga que posso encontrar para descrever o que estou vendo. (SCHIFFMAN, 2021SCHIFFMAN, Richard. Árvores conseguem aprender e lembrar de coisas, defende famosa ecologista em novo livro. Scientific American, 06 maio 2021. Disponível em: https://sciam.com.br/arvores-mae-sao-inteligentes-elas-aprendem-e-lembram/ . Acesso em: 10 set. 2021.
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)

O sistema de transmissão em rede entre árvores é estranhamente semelhante ao nosso cérebro com suas sinapses e grupos de neurônios, mas pode ser chamado de inteligente por isso? Parece difícil comparar um cérebro com os 85 bilhões de neurônios e sinapses com a rede de uma árvore ou mesmo de uma floresta. A magnitude concentrada do cérebro humano e seus sistemas complexos analisados por Sidarta Ribeiro e Gerald Edelman, que detalharemos a seguir, me parecem estar muito longe do sistema de árvores. Prefiro dizer que a rede detectada por Simard anuncia o sistema cerebral em animais e humanos, mas não lhe pode ser comparada.

Não é melhor qualificar o sistema de árvores de outra forma e atribuir a ele não uma inteligência, mas uma certa "capacidade cognitiva"? A capacidade cognitiva abrange múltiplos aspectos não apenas pertencentes ao homem, mas a todos os seres vivos: "comportamentos, respostas, percepções, aprendizado, arquivamento da memória" que Simard e Wohlleben discutiram extensivamente em seus respectivos livros.2 2 Para haver algo que reconheçamos como cérebro, é necessário haver processos neurológicos, e, para isso, é preciso haver não só substâncias semi-químicas, mas também impulsos elétricos. Acontece que desde o século XIX, detectamos a presença deles nas árvores. Em meio a esse cenário, uma briga ferrenha se arrasta há muitos anos e divide os cientistas. As plantas pensam? Frantisek Baluska, do Instituto de Botânica, Celular e Molecular da Universidade de Bonn, juntamente com seus colegas, acredita que as pontas das raízes têm estruturas semelhantes ao cérebro além de conduzir impulsos elétricos, contenha sistemas e moléculas muito parecidos com os encontrados em animais. Quando as raízes avançam no solo, podem absorver estímulos. Os pesquisadores mediram impulsos elétricos que causaram mudanças comportamentais após serem processados em uma “zona de transição ». Quando as raízes encontram substâncias tóxicas, rochas impenetráveis ou áreas úmidas demais, analisam a situação e repassam as mudanças necessárias às zonas de crescimento da raiz, que muda de direção e se afasta dessas áreas críticas. (WOHLLEBEN, 2017, p. 154.)

Compartilhando com os seres da floresta os mecanismos de transmissão, de solidariedade com nossos entes queridos, o convívio com o meio ambiente e certas memórias, estamos próximos e diferentes. Ainda que o homem não tenha uma vida tão longa quanto árvores, ele é a ponte de uma cadeia quase interminável que remonta muito no tempo e da qual ele herda características tanto pela filogênese, herança biológica, quanto pela transmissão psíquica, heranças que ele carrega, muitas vezes sem saber.

Refletindo sobre o que aparece diariamente no seu consultório, a psicanalista Marie Moscovici inclui na memória psíquica "o sonho, os atos falhos, os sintomas, mas também, os mitos, os contos, e especialmente a própria língua na medida em que esse material toma forma apenas nele e por ele" (MOSCOVICI, 1991MOSCOVICI, Marie. Il est arrivé quelque chose: approches de l'évenement psychique. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1991. 418 p., p. 394). É o que ela chama de memoriais (mémoriaux).

É através desses memoriais que passa o que é transmitido de uma geração para outra. A história que eles nos revelam não é uma, escrita para ser transmitida, é uma inscrita, depositada sem o conhecimento de quem é o portador e que permanece, por assim dizer, separado da história oficial. (BENHAÏM, 2007BENHAÏM, David. La phylogenèse et la question du transgénérationnel. Le Divan Familial, Paris, v. 18, n. 1, p. 11-25, 2007. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-le-divan-familial-2007-1-page-11.htm . Acesso em: 10 out. 2021.
https://www.cairn.info/revue-le-divan-fa...
, p. 20)

Moscovici segue Freud de perto. O fundador da psicanálise argumentava que a filogênese só seria palpável através da ontogênese. O psicanalista Stoloff continua na mesma linha:

Assim, a filogênese seria a versão invertida da ontogênese e vice-versa. Na verdade, filogênese e ongênese são ambos confrontados com uma problemática inconsciente que é comum a eles e a herança não é apenas do mais antigo ao novo, mas também na direção oposta, do novo ao antigo. De acordo com a conhecida fórmula, a criança é o pai do homem. (STOLOFF, 2013STOLOFF, Jean-Claude. Le père en psychanalyse: entre « phylogenèse » et ontogenèse. Revue Française de Psychanalyse, Paris, v. 77, n. 5, p. 1480-1487, 2013. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-francaise-de-psychanalyse-2013-5-page-1480.htm . Acesso em: 10 set. 2021.
https://www.cairn.info/revue-francaise-d...
, p. 6)

A memória dos fatos do passado tanto da espécie humana quanto da vida pessoal existe, digamos, virtualmente, mas chega à consciência de cada um apenas pela palavra numa história no divã ou na frente de um amigo ou um parente. O último Lacan chama o homem: o falasser (le parlêtre) e ousa dizer que o ser falante tem um corpo, mas difere dele: “O ser não antecede a palavra; pelo contrário, a palavra atribui o ser ou a existência, a este animal por efeito de ‘só depois’: em seguida, o corpo se separa desse ser para passar ao registro de ter. O falasser não é o corpo, ele o tem”. (MILLER, 2004MILLER, Jacques-Alain. Biologia Lacaniana e acontecimentos de corpo.In: Opção Lacaniana, n. 41. São Paulo: Eolia, dez. 2004. p. 7-67., p. 7).

Diferente do animal que é um corpo, o homem que tem um corpo se separa dele:

Sabemos que o sujeito, fruto da articulação significante, é deslocado de seu corpo não podendo, portanto, a ele se reduzir. Sabemos também que o acento dado por Lacan ao fato desse deslocamento ser efeito da linguagem, visa ressaltar uma especificidade humana, bem distinta do animal. Diferente do animal que é um corpo, o humano tem um corpo. Temos assim um dualismo saber/corpo que de certa maneira retifica o dualismo res cogitans/res extensa surgido com Descartes (MILLER, 1999/2004, p. 14).

Retomar Descartes, defensor do dualismo, é uma opção, mas que não parece entender os elos intrínsecos do cérebro e da mente estudados pelo psicanalista François Ansermet e pelo neurocientista Pierre Magistretti (WILLEMART, 2021WILLEMART, Philippe. La critique génétique à la recherche d’autres savoirs. Paris: L’Harmattan , 2021. 232 p. , p. 37) nem a pesquisa de Ribeiro e Edelman nem a de Wohlleben e Simard.

Para Miller, a memória só seria acessível apenas através da linguagem; somente as palavras trariam de volta lembranças, mas como apoiar essa ideia, sabendo o papel de gatilho dos cinco sentidos e especialmente o sabor e o odor tão sugestivos para o herói proustiano? Como explicar as comunicações dos animais entre eles e os de árvores embora sem a nossa linguagem?

Não podemos considerar os anéis e raízes das árvores, os cérebros dos animais como contendo uma espécie de escritura porque contêm a memória dos fatos do passado? Antes de ler Sidarta Ribeiro, tinha diferenciado a inscrição sináptica ou a impressão material no corpo (no ponto de encontro dos neurônios no cérebro), o traço mnésico (relacionado à imagem de um evento da memória) e o significante (forma e sintaxe da língua). (WILLEMART, 2019WILLEMART, Philippe. L’écriture à l’ère de l’indétermination. Paris: L’Harmattan, 2019. 218 p., p. 113). Ribeiro, assim como Edelman relativizam a impressão material e o traço de memória, o que será mostrado posteriormente.

O que acontece com o animal e a árvore?

Parece claro que a casca e as raízes da árvore, detentoras da memória da árvore como o cérebro de qualquer animal, retêm as circunstâncias que os ajudam a viver e que, por outro lado, esse tipo de memória não permitiria a priori considerar somente o significante, já que conteria somente significados.

Portanto, não seria uma escritura, mas um conjunto de traços que parecem fixos e inadequados para jogar com o significante. Vamos pensar de novo, no entanto. Árvores e animais não brincam com o significante quando atribuem significados diferentes ao vento que lhes traz chuva ou tempestade, presa ou predador?

A diferença entre homem, animal e árvore não está, portanto, estritamente no jogo com o significante. Ela não está também na sintaxe oral se a entendermos como o linguista Tesnière, que concentra a ação no verbo (DESCOMBES, 2004DESCOMBES, Vincent. Le complément du sujet. Paris: Gallimard, 2004. 521 p., p. 84). O animal pode significar uma ação por um gesto para seus congêneres, o que significa: Fuja! e a árvore, enviando água para os brotos jovens que significará: beba!

A especificidade radical do homem será mostrada mais na escritura seja cantada, - a literatura oral e a poesia antes da Ilíada ser escrita - (CONTI, 2021CONTI, Mario Sergio. “No princípio era o verbo”. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 out. 2021. Ilustrada, C7., C7) ou se é transcrita em pedra, madeira, tecido, papel ou computador, como toda literatura depois de Homero. Para quê? porque a escritura tem a extraordinária capacidade de inventar fatos, fazê-los existir, inventar memórias. (ZULAR, 2021ZULAR, Roberto. En guise de conclusion. Pour une anthropologie de l’écriture: critique génétique et pensée anthropologique. In: WILLEMART, Phillipe. La critique génétique à la recherche d’autres savoirs. Paris: L’Harmattan , 2021. p. 177-202 , p. 177.)

Esta é a verdadeira diferenciação entre homem e animal, entre homem e árvores. O homem imagina memórias e dá existência a seres fictícios não porque ele mente, o animal também pode enganar seu adversário, mas porque ele deixa dizer seu desejo e o de seus próximos submetendo-se à escritura.

Refutando Lacan-Miller neste ponto, não direi que o animal é um corpo, mas que tem um corpo e uma consciência primária3 3 A consciência primária é o estado de estar mentalmente consciente das coisas do mundo, ou seja, das imagens mentais no presente. Os humanos não são os únicos a possuí-lo, é também o caso de animais que não têm habilidades semânticas e linguísticas, mas cuja organização do cérebro é, no entanto, semelhante à nossa. A consciência primária não é acompanhada pelo sentimento de ser socialmente definido, envolvendo o conceito de passado e futuro. (EDELMAN, 2004, p.24.) como o homem, sem ter, no entanto, a vantagem da consciência de si.

As bases fisiológicas da memória

Sobre quais bases fisiológicas funciona a memória ou quais são os mecanismos que retêm ou não os fatos. Dois pesquisadores, entre muitos outros, estudaram a questão: o neurofisiologista brasileiro Sidarta Ribeiro e o médico-biólogo americano Gerald Edelman.

Sidarta Ribeiro, autora do estudo sobre sonhos, Oráculo da noite, distingue claramente dois tipos de memórias, uma inicialmente retida no hipocampo, elemento muito pequeno no centro do cérebro, que temporariamente retém memórias, e a segunda, no córtex, que as mantém mais duráveis, mas à sua maneira:

O hipocampo (que compartilhamos com os mamíferos, as aves e os répteis) tem dimensões bem menores do que o córtex cerebral, com muito menos capacidade de codificar memórias. Durante o sono pós-aprendizado, ativam-se transitoriamente no hipocampo mecanismos de plasticidade que no córtex cerebral são persistentes. Por isso, o hipocampo cede, pouco a pouco, sua participação em cada memória recém-adquirida, tornando-se cada vez menos relevante à medida que a memória amadurece. Em contrapartida, a esse “esquecimento”, o hipocampo renova a cada noite sua capacidade de aprender outra vez, liberando espaço de codificação para as novas memórias do dia seguinte.

As memórias não são de fato confiáveis. Perdem espaço, recebem novas associações, se integram umas às outras, são depuradas e acrescidas de detalhes, atravessam filtros do desejo e da censura e sobretudo mudam de suporte biológico, passando a ser apresentadas em circuitos neuronais diferentes, gerando novas ideias, mesmo assim mantendo aparência de estabilidade. Um primor de permanência em meio à transformação incessante, um prodígio de flexibilidade sem perda de identidade. (RIBEIRO, 2019RIBEIRO, Sidarta. Oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 488 p., p. 308.)

Três fatores jogam contra a reprodução exata ou fotográfica da lembrança: a mudança de suporte biológico que vai do hipocampo ao córtex, o desejo, implícito do gozo que perturba a lembrança e a censura do eu. A plasticidade do hipocampo, que se opõe à persistência do córtex, desperta a desconfiança das lembranças já esquecidas e passadas para o córtex.

Em que acreditar quando alguém conta um sonho? A pesquisa de Edelman, anterior à de Ribeiro, vai na mesma direção e detalha como a memória funciona, mas de uma forma diferente. Distinguindo o cérebro do pensamento e, portanto, da mente, Edelman sustenta com outros uma certa autonomia do cérebro em relação à nossa vontade ou aos nossos desejos e inventa a teoria da seleção de grupos neurais (TSGN) que pressupõe uma troca de mapa a cada percepção, “muitos mapas de neurônios trocam sinais sem um organizador mestre ou coordenador. É essa troca recursiva permanente, chamada de reentrada [...] que serve para coordenar a atividade das diferentes zonas no espaço e no tempo." (EDELMAN, 2004EDELMAN, Gerald. Plus vaste que le ciel: une nouvelle théorie générale du cerveau. Paris: Odile Jacob, 2004. 215 p. , p. 57)

Sublinho: "sem mestre organizador ou coordenador". O que nos impressiona durante um dia se transforma em lembranças e se dispersa em muitos mapas de neurônios sem que percebamos no momento. Até o que acreditamos lembrar com precisão, “se deteriora”:

Em vez disso, a memória é mais uma propriedade do sistema que reflete os efeitos do contexto e associações de vários circuitos degenerados que são capazes de desencadear saídas semelhantes. Assim, cada evento de memória é dinâmico e sensível ao contexto - desencadeia a repetição de um ato mental ou físico semelhante, mas não idêntico aos atos anteriores. É recategorical: não reproduz exatamente uma experiência original. Não se justifica supor que tal memória seja representativa no sentido de que armazena um código estaticamente registrado para um ato. É melhor vê-lo como uma propriedade de interações não lineares degeneradas em uma rede multidimensional de grupos de neurônios. Essas interações tornam possível "reviver", mas não de forma idêntica, um conjunto de atos e eventos anteriores, mesmo que muitas vezes tenhamos a ilusão de que nos lembramos de um evento exatamente como aconteceu. (EDELMAN, 2004EDELMAN, Gerald. Plus vaste que le ciel: une nouvelle théorie générale du cerveau. Paris: Odile Jacob, 2004. 215 p. , p. 71)

A instabilidade da memória devida à mudança do suporte biológico, ao dinamismo das sinapses e à dispersão entre grupos de neurônios aumenta a intervenção do desejo e do contexto, o que Pascal Quignard, teórico psicanalista pós-lacaniano que não é neurofisiologista nem biólogo, não contesta:

A memória não é a do armazenamento do que foi impresso na matéria do corpo. É a da eleição, da amostragem, do recall e o retorno de um único elemento dentro do que foi armazenado a granel. O esquecimento não é a amnésia. O esquecimento é uma recusa do retorno do bloco do passado na alma. O esquecimento nunca se confronta ao apagamento de algo friável; ele enfrenta o enterro do que é insuportável. A retenção é a operação que consiste em organizar o esquecimento de todo esse "resto" que deve cair para preservar o que queremos de volta. [...] A memória é, primeiro uma seleção no que deve ser esquecido, depois apenas uma retenção do que se pretende remover da empresa do esquecimento que a baseia (QUIGNARD, 1933QUIGNARD, Pascal. Le nom sur le bout de la langue. Paris: Gallimard , 1993. 128 p., p. 63-64)

Quignard se junta a Ribeiro e Edelman, mas além disso desenvolve um conceito de memória baseado no esquecimento, vasto espaço, "enterro do que é insuportável", do qual o sujeito quer preservar algumas lembranças. É um empreendimento involuntário baseado em primeiro lugar na qualidade essencial do inconsciente, à busca por prazer ou gozo. O tempo está bastante perturbado e não segue a ordem cronológica ou linear, mas a ordem-caos do desejo. A memória retida no cérebro e na psique é, portanto, fabricada e reflete muito pouco o que realmente aconteceu.

Sem passar pelo divã ou pela pesquisa científica, o narrador proustiano ilustra como autores literários guiados pela escritura se mostram poderosos conhecedores da alma humana, como Sigmund Freud observou quando analisou a Gradiva de Jensen. (FREUD, 1949FREUD, Sigmund. Délires et rêves dans la « Gradiva » de Jensen. Paris: Gallimard, 1949.).

Sem pretender encontrar a lembrança em sua verdade, o narrador toma outra maneira de falar sobre memória. A partir de sua crítica à inteligência, ele distingue as lembranças por esta mesma faculdade, as de memória voluntária muitas vezes distorcida (ele se junta a Edelman e Ribeiro nesse ponto), daquelas evocadas pela sensação, frutos da memória involuntária também não necessariamente precisas:

Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas em algum ser inferior, em uma animal, em um vegetal, uma coisa animada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos sucede passar por perto da árvore, entrar na posse de objeto que lhe serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está quebrado o encanto. Libertada por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.

E assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca. (PROUST, 2006PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. V. 1. São Paulo: Globo, 2006. 558 p., p. 70-71).

A pequena cidade de Combray surge assim por acaso quando o herói tomava chá com uma madeleine na tia Léonie:

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília. [...] E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheio d’água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, [...], tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça [xícara] de chá (PROUST, 2006PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. V. 1. São Paulo: Globo, 2006. 558 p., p. 74).

ou no último volume da Busca do tempo perdido, quando o herói, esperando o intervalo do concerto para entrar na sala, encontra na biblioteca do duque de Guermantes o livro de George Sand que lhe lembra os doces momentos passados com sua mãe.

Como ao entrar nessa biblioteca, tinham-me justamente ocorrido as palavras dos Goncourt sobre as belas coleções originais nela existentes, resolvi vê-las enquanto ali estava. E, sem parar de refletir, ia tirando um a um, sem maior atenção, os preciosos volumes, quando ao abrir distraidamente um deles: François Le Champi de George Sand, assaltou-me uma impressão de início desagradável, como se contrariasse o rumo atual do meu pensamento, mas que depois, comovido até as lágrimas, reconheci estar bem de acordo com ele. […] Por seu lado, este livro, cuja leitura a minha mãe me fizera em Combray até alta madrugada, guardara para mim todo o encanto daquela noite. […] e eis que mil nadas de Combray, há muito esquecidos, se punham por si mesmos a saltar, airosos, e vinham, uns após outros prender-se ao bico imantado, em fila interminável e trêmula de lembranças. (PROUST, 2013PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto. V. 7. São Paulo: Globo , 2013. 464 p., p. 225-226.)

A sensação causada pelo objeto encontrado por acaso evoca involuntariamente as lembranças que, contadas, desenhadas ou escritas, denunciam o verdadeiro portador da lembrança, neste caso, a impressão. Nada confirma a precisão da lembrança, no entanto. As ações do homem contaminadas com o inconsciente, dirá Freud ou degeneradas de acordo com neurobiólogos, nunca são todas ou inteiras, continuará Lacan: a verdade nunca é toda, mas meia verdade.

Resumindo essa parte: a lembrança em seres humanos, embora fielmente registrada no hipocampo, é deformada durante sua passagem para o córtex e entra na esfera do esquecimento. Ela só será revivida impulsionada pelo desejo de saber, que vai fazê-la reaparecer e eleger como um constituinte da memória ou aleatoriamente do encontro de um objeto ou um ser amado ou odiado. A memória do cérebro imbuída de subjetividade obedece ao comando da inteligência ou do prazer para fazer as lembranças reaparecerem. Por outro lado, não sabemos muito sobre os mecanismos da memória nas árvores e só vemos os efeitos. Além disso, o homem difere profundamente de outros seres, árvores ou animais, porque inventa memórias através da poesia e da ficção.

A arte e a memória

Como a arte é obra do homem e de nenhuma outra criatura, gostaria numa segunda etapa e para concluir, aproximar a definição de tempo e da memória segundo os escritores Powers e Proust da descrição da arte emitida por uma criança de nove anos cujo pai trabalha no Google. Ela comparava a arte com uma máquina feita por Ross Goodwin4 4 Goodwin reconhece a ininteligência dos textos gerados pela máquina, que está encarregada de anexar palavras sem entendê-las. Ele as compara a uma canção de Bob Dylan, My Back Pages : onde todo mundo lê ou ouve a ele a seu gosto tanto as frases embora gramaticalmente corretas, ficam mais parecidas a uma assembleia de palavras sem significado no início : Crimson flames tied through my ears / Rollin' high and mighty traps/ Pounced with fire on flaming roads/ Using ideas as my maps/ "We'll meet on edges, soon," said I/ Proud 'neath heated brow./ Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now. etc. usando inteligência artificial, o GPT-2. 5 5 GPT-2 (Generative Pre-Teading Transformer 2) é um modelo de linguagem saído em 2019, que trabalha com 1,5 bilhão de paramétros.

Acho que essa máquina (fabricada por um programa de inteligência artificial) engana qualquer um que olhe para esta arte. [...] No que é comumente definido como arte real, há dezenas de camadas de sentidos. Há algo por trás da arte. Imagine uma pilha de papel em uma janela. A folha de cima é o que você vê no início, seu primeiro olhar. Agora, em uma inspeção mais minuciosa, você pode cavar nas camadas de papel, geralmente nunca alcançando a última folha absoluta, mas ainda satisfeito com sua distância daquela onde você começou a olhar para a peça. Com sua arte (a das máquinas de Goodwin), há um pedaço de papel em uma janela. Sem camadas. Tudo o que há é o que você vê à primeira vista. (GOODWIN, 2016GOODWIN, Ross. Adventures in Narrated Reality, Part II: Ongoing experiments in writing & machine intelligence. Artists + Machine Intelligence, 9 jun. 2016. Disponível em: https://medium.com/artists-and-machine-intelligence/adventures-in-narrated-reality- part-ii-dc585af054cb . Acesso em: 10 set. 2021.
https://medium.com/artists-and-machine-i...
)

Assim como o espaço-tempo nunca é um instante, mas o culminar de sucessivas camadas de espaço-tempo, a última delas sendo hoje, a arte é definida não apenas pelo que é visível na superfície, mas pelas múltiplas camadas de sentidos que a constituem.

O tempo de memória do hoje na árvore e na arte se unem no mesmo processo e não podem ser definidos por sua superfície ou pelo que o olho percebe. A pulsão scópica não é a rainha da interpretação nesse sentido, é apenas um guia no início. Em outras palavras, a beleza da arte, bem como o agora do tempo, são apenas sintomas ou trompe l'oeil cuja função é atrair nossa atenção ou nos seduzir, mas não constituem a essência da arte ou do tempo de memória. Tanto o tempo de memória de hoje da árvore quanto a arte precisam de um mergulho em sua história, outro nome para a quarta dimensão, para serem compreendidos pela inteligência em seus mecanismos. O estudo das camadas do passado tanto na árvore quanto nas versões do manuscrito é, portanto, necessário. A profunda aliança entre essas camadas ilustra a memória do texto.

No que diz respeito ao texto, delimitamos o papel do texto publicado na literatura, correndo o risco de ofender críticos literários que se apegam somente ao texto editado ou terapeutas que se limitam o presente de seus pacientes para tratá-los.

Quando falamos da memória de um texto literário ou de uma manifestação artística, devemos, portanto, identificar as camadas de instantes que estão sobrepostos já no texto publicado ou no quadro pendurado no museu e considerar as camadas de versões que se acumulam no arquivo, fonte de muitas interpretações possíveis. Assim como a árvore cuja memória viva está impressa nos anéis de seu tronco e em suas raízes, o texto publicado contém uma memória que só será possível saber através do estudo do manuscrito.

No entanto, nem a memória como vimos acima, nem a arte de escrever, pintar ou esculpir são gravadores perfeitos ou câmeras fiéis que retêm todos os fatos ou camadas da escritura, uma vez que alguns desses fatos acontecem na cabeça dos criadores, sejam científicos ou artísticos e sofrem da fragilidade da memória sujeita à transferência do hipocampo ao córtex e à dispersão nos grupos de neurônios.

Além disso, o imponderável sempre fará parte da memória de um manuscrito no sentido de que outras testemunhas possam surgir, como Les soixante-quinze feuillets de Proust (2021PROUST, Marcel. Les Soixante-quinze feuillets: et autres manuscrits inédits. Paris: Gallimard, 2021.) trabalhados de 1907 a 1908 e encontrados em 2021 ou o manuscrito De l'essence double du langage de Saussure de 1891SAUSSURE, Ferdinand de. De l’essence double du langage, Genève. In: Archives de Ferdinand de Saussure, 372: 'Les Manuscrits'. Bibliothèque de Genève, 1891., encontrado por acaso na estufa de seu castelo em 1996. Nossa memória com lacunas em seus mecanismos é parecida à memória dos manuscritos, quase sempre incompleta tendo em vista a existência possíveis de outros documentos.

Encontrar a memória invisível da floresta preservada nos anéis e raízes das árvores, é tão difícil quanto a memória dos processos de criação do manuscrito que, nunca será totalmente revelada, mesmo que o crítico acredite possuir todos os manuscritos. Sempre haverá um resto que pode ser o que a mente do artista trabalhou inconscientemente em seus sonhos e cujos efeitos aparecerão no texto na forma de insight sem mostrar a causa.

Comparar as árvores ou a floresta com a arte e especialmente aos manuscritos da arte da escritura ensina ao homem e ao pesquisador que a paciência é a regra em observações e escavações e que a memória que emerge é a metonímia de um passado muitas vezes não muito acessível, mas sempre lá, cujo conteúdo por mais que seja frágil, é a única garantia da meia-verdade que a memória contém.

O que aprendemos com essa aproximação entre a memória das árvores e a do homem?

Correndo o risco de me repetir, eu diria que a memória das árvores para o pouco que sabem os cientistas, se assemelha em muitos aspectos à nossa. Complexos também, mas muito pouco visíveis, só vemos os efeitos que demonstram uma capacidade cognitiva além do que pensávamos inicialmente: árvores conversam entre si, cheiram, cuidam de seus brotos e mantêm uma certa memória.

O que sua capacidade cognitiva nos traz, não em termos de conhecimento, mas em termos de amplitude da visão de nosso cotidiano? É saber que o nosso hoje é o ápice de anos de trabalho de nossos antecessores amplifica nosso lugar no mundo à dimensão da idade das árvores, o que não é pouco, e nos dá uma memória dessa grandeza, memória que, reinventada e transcrita em um poema, um conto ou um romance, levantará a admiração do leitor e o levará para além de si mesmo como foi a leitura de L’arbre-monde de Powers para mim.

É saber que somos parte de um universo que inclui plantas, árvores e animais os quais não estão necessariamente submetidos ao homem e que, em vez disso, devemos às vezes proteger e ajudar a viver. É saber que a grande diferença que nos separa deste mundo é a escritura e a invenção de memórias que também dependem de uma longa história, a dos manuscritos.

Finalmente, é saber que a arte de escrever, como toda arte, leva o homem a redesenhar o mundo de outra forma onde, como o pequeno príncipe de Saint-Exupéry, fica surpreso e maravilhado com a riqueza de uma rosa.

REFERÊNCIAS

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  • WILLEMART, Philippe. L’écriture à l’ère de l’indétermination Paris: L’Harmattan, 2019. 218 p.
  • WILLEMART, Philippe. La critique génétique à la recherche d’autres savoirs Paris: L’Harmattan , 2021. 232 p.
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  • ZULAR, Roberto. En guise de conclusion. Pour une anthropologie de l’écriture: critique génétique et pensée anthropologique. In: WILLEMART, Phillipe. La critique génétique à la recherche d’autres savoirs Paris: L’Harmattan , 2021. p. 177-202
  • 1
    Epigenética (mot-valise de epigênese e genética) é a disciplina da biologia que estuda a natureza de mecanismos que modificam reversivelmente, transmissível (durante as divisões celulares) e adaptativa a expressão dos genes sem alterar a sequência nucleotídea (DNA). (Wikipédia)
  • 2
    Para haver algo que reconheçamos como cérebro, é necessário haver processos neurológicos, e, para isso, é preciso haver não só substâncias semi-químicas, mas também impulsos elétricos. Acontece que desde o século XIX, detectamos a presença deles nas árvores. Em meio a esse cenário, uma briga ferrenha se arrasta há muitos anos e divide os cientistas. As plantas pensam? Frantisek Baluska, do Instituto de Botânica, Celular e Molecular da Universidade de Bonn, juntamente com seus colegas, acredita que as pontas das raízes têm estruturas semelhantes ao cérebro além de conduzir impulsos elétricos, contenha sistemas e moléculas muito parecidos com os encontrados em animais. Quando as raízes avançam no solo, podem absorver estímulos. Os pesquisadores mediram impulsos elétricos que causaram mudanças comportamentais após serem processados em uma “zona de transição ». Quando as raízes encontram substâncias tóxicas, rochas impenetráveis ou áreas úmidas demais, analisam a situação e repassam as mudanças necessárias às zonas de crescimento da raiz, que muda de direção e se afasta dessas áreas críticas. (WOHLLEBEN, 2017WOHLLEBEN, Peter. A vida secreta das árvores. Rio de Janeiro: Sextante, 2017. 224 p., p. 154.)
  • 3
    A consciência primária é o estado de estar mentalmente consciente das coisas do mundo, ou seja, das imagens mentais no presente. Os humanos não são os únicos a possuí-lo, é também o caso de animais que não têm habilidades semânticas e linguísticas, mas cuja organização do cérebro é, no entanto, semelhante à nossa. A consciência primária não é acompanhada pelo sentimento de ser socialmente definido, envolvendo o conceito de passado e futuro. (EDELMAN, 2004, p.24.)
  • 4
    Goodwin reconhece a ininteligência dos textos gerados pela máquina, que está encarregada de anexar palavras sem entendê-las. Ele as compara a uma canção de Bob Dylan, My Back Pages : onde todo mundo lê ou ouve a ele a seu gosto tanto as frases embora gramaticalmente corretas, ficam mais parecidas a uma assembleia de palavras sem significado no início : Crimson flames tied through my ears / Rollin' high and mighty traps/ Pounced with fire on flaming roads/ Using ideas as my maps/ "We'll meet on edges, soon," said I/ Proud 'neath heated brow./ Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now. etc.
  • 5
    GPT-2 (Generative Pre-Teading Transformer 2) é um modelo de linguagem saído em 2019, que trabalha com 1,5 bilhão de paramétros.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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