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A paixão crítica*

Resenha de HELENA, Lucia.. O livro dos afetos: cultura e autoritarismo na literatura contemporânea. Rio de Janeiro: Graphia, 2022.

Os ensaios reunidos em “O livro dos afetos: cultura e autoritarismo na literatura contemporânea” resultam da longa e profícua trajetória de pesquisa de Lucia Helena. Composto por seis ensaios - o primeiro e o último escritos originalmente e os demais retomados de publicações anteriores -, o livro dá continuidade e amplia o trabalho crítico da ensaísta. Algumas indagações particulares, em torno dos dilemas éticos e estéticos da literatura sob as condições históricas da modernidade, em especial o estágio avançado do capital, conhecido como a era da globalização e do mercado, estão presentes, de alguma forma, em estudos prévios da autora, a exemplo de A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade (2006HELENA, Lucia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da Modernidade. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 233 p.), Ficções do desassossego (2010HELENA, Lucia. Ficções do desassossego. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010. ), Náufragos da esperançaHELENA, Lucia. Náufragos da Esperança. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2016. 159 p.: a literatura na época da incerteza (2012HELENA, Lucia. Náufragos da esperança: a literatura na época da incerteza. Rio de Janeiro: Editora Raquel, 2012. 152 p.), Uma literatura inquieta (2016HELENA, Lucia; OLIVEIRA, P. C. Uma literatura inquieta. Rio de Janeiro: Caetés, 2016. ), entre outros.

O livro que agora vem a público traz os afetos para o centro das reflexões sobre o literário, talvez repercutindo o “estado de desassossego” que marca a sua pesquisa, iniciada em 2017 e finalizada durante o período de isolamento da pandemia. A teoria dos afetos, desenvolvida pelo filósofo Baruch Espinosa (2015ESPINOSA, Baruch. Ética. Tradução de Grupo de Estudos Espinosanos; Coordenação de Marilena Chauí. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 600 p.), é brevemente esboçada na Introdução, servindo de baliza ao propósito que enfeixa as análises: compreender de que modo as subjetividades das personagens são afetadas pelo desamparo contemporâneo. A perspectiva crítica leva em conta as circunstâncias da “modernidade líquida”, de acordo com Zygmunt Bauman (2001BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. ), e o cenário de “ruína da história”, nos termos de Walter BenjaminBENJAMIN, Walter. On the concept of History. In: BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin Selected Writings, v. 4. 1938-1940, Howard Eiland and Michael W. Jennings (Ed.). Cambridge: Harvard University Press, 2003.. Somam-se a essas referências teóricas, centrais na fundamentação das análises, o pensamento de Hannah Arendt (2013ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mario W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013. 352 p.), na aproximação à hipótese do autoritarismo como constitutivo do imaginário cultural brasileiro, passado e presente; e de Giorgio Agamben (2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapeco: Argos, 2009. 92 p.), nas discussões sobre o contemporâneo, exatamente aquilo que do passado ainda persiste, sobretudo a herança da violência colonial, que interessa ao caso brasileiro.

Assim, partindo da articulação entre os afetos e o corpo político, as análises assinalam as “modificações na forma de estruturação dos sujeitos e das subjetividades” (SAFATLE, 2016SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. 360 p, p. 22), em estreita conexão com o sistema de normas e valores que regulam o comportamento e as interações sociais, conforme o “circuito dos afetos”, descrito por Vladimir Saflate (2016). Com este empenho, Lucia Helena examina a construção de certos tipos de personagens que têm suas existências impactadas pelo modo das trocas e da circulação de mercadorias no mundo da globalização capitalista, começando pelas figuras do leitor e do autor. A reflexão é tecida no primeiro capítulo, tomando por base Verão (2010) cuja trama simula o processo de elaboração da biografia do próprio autor, J. M. Coetzee. A ensaísta detecta o bem engendrado e irônico jogo do romance com o mercado e a mídia, que se acham no “direito de devassar a vida de um escritor, tomando-o como mercadoria de domínio público.” (HELENA, 2022, p. 34). Desse modo, explicita os atravessamentos do corpo político na própria experiência da leitura e da escrita prefigurada na narrativa. Nesta mesma chave, o capítulo 2 examina a condição do intelectual submetido a regimes autoritários e às novas formas de imperialismo do capital internacional. A apreciação recai, primeiramente, sobre o romance Em liberdade (1981), de Silviano Santiago, desvelando a fina articulação histórica tecida em sua trama, que traz à tona a memória das arbitrariedades do governo militar implantado com o golpe de 1964, os desmandos da ditadura getulista, nos anos 1930-40, e a luta dos Inconfidentes, no século XVIII, contra o jugo colonial. Já em Berkeley em Bellagio (2002) e Lord (2004), de João Gilberto Noll, é enfatizada a condição precária do intelectual periférico, transformado em força de trabalho mal paga em universidades dos grandes centros hegemônicos do poder. Assim, a análise demonstra o progressivo rebaixamento da condição do intelectual, na esteira dos totalitarismos que atravessam a história brasileira e se refletem no processo de globalização em curso.

O capítulo 3 enfatiza a relação entre literatura e mercado ou, em outros termos, o modo com que cultura e economia se interpenetram, segundo a lógica do mercado. A ensaísta aproxima obras de estágios distintos da era global, surpreendendo pontos de contato em autores como Clarice Lispector e Chico Buarque. O incômodo tematizado em A via crucis do corpo (1974), obra escrita “sob encomenda” para suprir a falta de dinheiro da autora, amplia-se em Budapeste (2003), que focaliza a reificação da escrita, produzida primordialmente para o proveito financeiro, às custas do expediente ilícito da falsa autoria. Um novo arco temporal se estabelece, ligando a “consciência dilacerada” em face ao conluio da escritora com o mercado, nos anos 1970, à desfaçatez da “agiotagem mercadológica” da “fábrica de textos”, na primeira década do século XXI.

O capítulo 4 atenta para o “drama lutuoso da história” (Benjamin), configurado ficcionalmente na imagem de dois cadáveres: o da filha desaparecida durante a ditadura militar brasileira, em K, relato de uma busca (2014), de Bernardo Kucinski; o do irmão desconhecido e as sombras do nazismo, em Meu irmão Alemão (2014), de Chico Buarque. Ambas as narrativas mergulham no âmago das mazelas e abismos sociais do nosso tempo, propondo uma verossimilhança simulada, que esboroa as fronteiras entre ficção, memória e registros factuais da história. Tal estratégia, na visão da ensaísta, representa uma nova ocupação da arena política pela literatura, em resposta à perda de influência que, no século XIX, exercia na construção cultural da sociedade.

O capítulo 5 focaliza a tessitura dos afetos que movimenta as relações amorosas, marcadas pela instabilidade, pelo desgaste e esgarçamento dos vínculos, nos romances Anel de vidro (2013), de Ana Luísa Escorel, O outro lado da sombra (2014), de Mariana Portela, e O que deu para fazer em matéria de amor (2012), de Elvira Vigna. Em comum, estão os sentimentos de medo e solidão, que tornam as personagens reativas face a um mundo percebido como ameaçador. Os romances são exemplos muito bem escolhidos do fracasso do encontro com o outro, tendo em vista os mecanismos da sociedade competitiva e autoritária, que sequestra o bem-estar e a satisfação das relações, em favor do produtivismo, do controle moral e das promessas de felicidade. Tais armadilhas são desmontadas pelas obras, que fixam o olhar na miséria das relações, tanto individuais como sociais, sem concessões a saídas fáceis, vendidas no mercado das emoções baratas.

O capítulo final enfrenta um debate persistente na história da literatura brasileira: o problema da identidade nacional e a relação com modelos europeus. O exame parte do modo como o Brasil é visto e se vê, em momentos cruciais de sua história, remontando à Carta de Caminha, ao romance romântico de Alencar, especialmente Iracema, passando por Macunaíma e pelos manifestos de Oswald de Andrade, chegando a Clarice Lispector, autora pouco associada às discussões sobre o nacional. No entanto, leitora arguta da obra clariceana, Lucia Helena destaca, no conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, do livro Laços de família (1961), a simulação do registro da língua do colonizador, fazendo com que a questão da identidade penetre no texto não como algo externo, “mas como construção encarnada no corpo da linguagem” (HELENA, 2022, p. 123). Nesses termos, a ensaísta surpreende no discurso narrativo a alegoria da “identidade declinada” de um eu feminino que, dobrando-se sobre si, percebe-se em imagens múltiplas e estilhaçadas, escapando às determinações de gênero pautadas pela estrutura repressora da sociedade patriarcal.

A apresentação sumária de cada um dos capítulos da coletânea busca evidenciar as linhas de força que, segundo nos parece, orientam o exercício crítico. No entanto, é fácil perceber que as análises entrecruzam um repertório literário e teórico mais vasto, sacado da pena da autora para iluminar suas hipóteses e alargar o escopo dos temas em debate. Os ensaios interligam-se numa cadeia de referências e citações, formas de entrelaçamentos diversos e mútuas contaminações, constituindo-se em um “corpo de afetos”, na feliz expressão de Jorge Fernandes da Silveira, autor que assina o prefácio e convida o leitor a uma leitura amorosa e poética deste O livro dos afetos de Lucia Helena. Por fim, vale lembrar que o livro, indagando sobre as subjetividades e as possibilidades de transformação das relações humanas, sugere um modo potente de intervenção da literatura no espaço social pela via dos afetos, naquilo que estes guardam de mais ético: a capacidade de afetar e deixar-se afetar pelo outro.

REFERÊNCIAS

  • AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapeco: Argos, 2009. 92 p.
  • ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro Tradução de Mario W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013. 352 p.
  • BAUMAN, Zygmunt. A modernidade líquida Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
  • BENJAMIN, Walter. On the concept of History In: BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin Selected Writings, v. 4. 1938-1940, Howard Eiland and Michael W. Jennings (Ed.). Cambridge: Harvard University Press, 2003.
  • ESPINOSA, Baruch. Ética Tradução de Grupo de Estudos Espinosanos; Coordenação de Marilena Chauí. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 600 p.
  • HELENA, Lucia; OLIVEIRA, P. C. Uma literatura inquieta Rio de Janeiro: Caetés, 2016.
  • HELENA, Lucia. Náufragos da Esperança Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2016. 159 p.
  • HELENA, Lucia. Náufragos da esperança: a literatura na época da incerteza. Rio de Janeiro: Editora Raquel, 2012. 152 p.
  • HELENA, Lucia. Ficções do desassossego Rio de Janeiro: Contra Capa, 2010.
  • HELENA, Lucia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da Modernidade. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 233 p.
  • SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. 360 p

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2022
  • Aceito
    29 Mar 2022
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